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__ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ SAÚDE PÚBLICA E SAÚDE COLETIVA Prof. Fernanda Wosny Carvalho Porto União/SC Junho de 2015 __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ SUMÁRIO 1. Apresentação da Disciplina 03 1.1 Ementa 03 1.2 Plano de Ensino 03 2. Relações Saúde x Doença 00 2.1 Demandas de Serviços de Saúde e Necessidades Sociais 00 3. Saúde Pública e Coletiva 00 3.1 Antecedentes Históricos 00 3.2 Conceito de Saúde Pública x Saúde Coletiva 00 4. Psicologia e Saúde Coletiva 00 4.1 Âmbitos de atuação 00 4.1.1 SUS – Sistema Único de Saúde 00 4.1.2 Unidades Básicas de Saúde - Atenção Primária 00 4.1.3 Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) 00 4.1.4 Atenção Secundária/Ambulatorial Especializada 00 CAPS – Centro de Atenção Psicossocial 00 4.1.5 Atenção Terciária/Hospitalar 00 4.2 Tendências e perspectivas atuais de atuação prática 00 4.2.1 SUAS – Sistema Único de Assistência Social 00 4.2.2 Proteção Básica (CRAS) 00 4.2.3 Proteção Especial 00 4.2.4 Serviços de Média Complexidade (CREAS) 00 4.2.5 Serviços de Alta Complexidade (Serviços de Acolhimento) 00 5. Políticas Públicas de Saúde no Brasil 00 5.1 Ações, Programas e Serviços em saúde pública 00 5.1.1 Estratégia Saúde da Família 00 5.1.2 PROVAB – Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica 00 5.1.3 Programa Academia da Saúde 00 5.1.4 Programa Mais Médicos 00 5.1.5 Melhor em Casa 00 5.1.6 Farmácia Popular 00 5.1.7 Cartão Nacional de Saúde 00 5.1.8 UPA – Unidade de Pronto Atendimento 00 5.1.9 Humaniza SUS – Política Nacional de Humanização 00 5.1.10 PNAN - Política Nacional de Alimentação e Nutrição 00 5.1.11 DAHU – Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes 00 5.1.12 SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência 00 5.1.13 Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano 00 5.1.14 Programa Nacional de Controle do Tabagismo 00 5.1.15 QualiSUS-Rede 00 5.1.16 Controle do Câncer de Mama 00 5.1.17 Projeto Expande - Expansão da Assistência Oncológica no Brasil 00 6. Controle Social em Saúde 00 7. Equipes Multidisciplinares em Saúde 00 __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ 1. APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA A disciplina “SAÚDE PÚBLICA E SAÚDE COLETIVA” com um total de 30 horas, pertence ao eixo de ênfases de “PSICOLOGIA E PROCESSOS DE PREVENÇÃO E PROMOÇÃO DA SAÚDE”, a ser estudada na quinta fase da graduação, de acordo com a grade vigente do curso de Psicologia da UNC. 1.1 EMENTA Saúde Pública e Saúde Coletiva: antecedentes históricos, tendências e perspectivas atuais de atuação prática na área. Psicologia e Saúde Coletiva. Âmbitos de atuação, demandas por serviços de saúde e necessidades sociais. Políticas públicas e privadas de saúde no Brasil. Diversidade de contexto e de variáveis nas relações entre saúde e doença e no funcionamento e dinâmica das instituições de saúde. Estudo do controle social nos serviços de saúde e na comunidade: comportamento e saúde como temas das relações sociais; interdisciplinaridade e processos de socialização. Equipes multidisciplinares em saúde. 1.2 PLANO DE ENSINO CONTEÚDO PROGRAMÁTICO Primeiramente, será abordada a relação entre saúde e doença, com definição dos conceitos, abrangendo reflexões sobre o tema, bem como sobre as demandas de serviços de saúde e as necessidades sociais. Posteriormente, o acadêmico será introduzido aos conceitos introdutórios de Saúde Coletiva e Saúde Pública, iniciando pelos aspectos históricos até as tendências e perspectivas atuais de atuação prática na área. Em seguida, será realizado um foco na Psicologia e Saúde Coletiva, dando ênfase às áreas de atuação profissional do psicólogo inserido no contexto da saúde pública e coletiva no Brasil. Serão apresentados de forma sintética os programas e ações oficinais do governo federal na área da saúde pública, entre eles: Estratégia Saúde da Família; PROVAB– Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica; Programa Academia da Saúde; Programa Mais Médicos; Melhor em Casa; Farmácia Popular; Cartão Nacional de Saúde; UPA – Unidade de Pronto Atendimento; Humaniza SUS – Política KELLEY Riscado KELLEY Realce __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Nacional de Humanização; PNAN - Política Nacional de Alimentação e Nutrição; DAHU – Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes; SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência; Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano; Programa Nacional de Controle do Tabagismo e; QualiSUS-Rede; que são as políticas públicas em saúde no país. Entende-se que o conhecimento das políticas públicas de saúde abrange o território da saúde mental. Em especial, os serviços e programas que dão atenção psicossocial aos usuários de drogas e aos acometidos por transtornos mentais. Assim, será abordado ainda nesta disciplina o SUS o SUAS e as entidades que desses sistemas fazem parte, como UBS – Unidade Básica de Saúde, CAPS, Internações Psiquiátricas, CRAS, CREAS e Instituições de Acolhimento. O acadêmico será introduzido ainda a conhecimentos sobre o funcionamento e dinâmica das instituições de saúde, controle social e trabalho em equipes multidisciplinares em saúde. OBJETIVO Conhecer os diferentes contextos da saúde pública e coletiva no Brasil, identificando o funcionamento e a dinâmica das instituições e dos serviços de saúde. OBJETIVOS ESPECÍFICOS - Refletir sobre as relações entre saúde e doença; - Conhecer os antecedentes históricos da saúde pública e coletiva; - Analisar e refletir sobre as tendências e perspectivas atuais de atuação prática do psicólogo em saúde pública; - Conhecer de forma sintética os programas, serviços e ações em saúde pública no Brasil; - Relacionar os temas de saúde à perspectiva social. METODOLOGIA - Aula expositiva e dialogada, fazendo uso de recurso de mídia (datashow) para apresentação do tema em powerpoint, vídeos e ilustrações; - Debates; - Dinâmicas de grupo. INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO - Resenha relacionando o documentário "Ilha das Flores" à Saúde Pública e Coletiva; __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ - Avaliação Escrita Individual; - Estudo de Caso em grupo. BIBLIOGRAFIA BÁSICA ANGERAMI-CAMON, V.A. (org.). Psicologia da Saúde: Um Novo Significado Para a Prática Clínica. São Paulo: Pioneira, 2000. ______ Urgências psicológicas no hospital. São Paulo: Pioneira,1998. Crepaldi, M. A; Linhares M. B. M.; Peroza, G.B. Temas em Psicologia Pediátrica. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2006. MATUMATO, Silvia, MISHIMA, Silvana Martins, PINTO, Ivone Carvalho. Cadernos de Saúde Pública. ASSIS,Marluce M.A. A Municipalização da Saúde: interação ou Realidade? Feira de Santana: UFS, 1998. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR BRASIL, Ministério da Saúde. Programas e Projetos. Saúde do adolescente. (online). 2001. Disponível: http/www.saude.gov.br BRASIL, Ministério da Saúde. Programas e Projetos. Atenção Básica. (online). 2001. Disponível: www.saude.gov. br __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ 2. RELAÇÕES SAÚDE X DOENÇA 2.1 DEMANDAS DE SERVIÇOS DE SAÚDE E NECESSIDADES SOCIAIS Documentário: “Ilha das Flores” 2.1.1 REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE A Organização Mundial da Saúde - OMS define saúde como “o completo estado de bem- estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de enfermidade”. Tal conceito tem uma profunda relação com o desenvolvimento e expressa a associação entre qualidade de vida e saúde da população. A saúde, nesse sentido, é resultado de um processo de produção social e sofre influência de condições de vida adequadas de bens e serviços. A saúde como produto social se constrói coletiva e individualmente, por meio de ações de governo, da sociedade e de cada indivíduo. A saúde é um bem para o desenvolvimento pleno do ser humano. Assim, segundo a OMS, não é possível estabelecer a saúde coletiva ou a individual à margem do cenário atual. Contudo, esta definição da OMS, até avançada para a época em que foi edificada - em meados da década de 50, quando se tinha uma visão de saúde apenas como a condição de ausência de doença, tem sido criticada por diversos autores da área. De acordo com Segre e Ferraz (1997), trata-se de definição irreal por que, aludindo ao "perfeito bem-estar", coloca uma utopia. O que é "perfeito bem-estar?" É por acaso possível caracterizar-se a "perfeição"? Não se deseja enfocar o subjetivismo que tanto a expressão "perfeição", como "bem- estar" trazem em seu bojo. Mas, ainda que se recorra a conceitos "externos" de avaliação (é assim que se trabalha em Saúde Coletiva), a "perfeição" não é definível. Se se trabalhar com um referencial "objetivista", isto é, com uma avaliação do grau de perfeição, bem-estar ou felicidade de um sujeito externa a ele próprio, estar-se-á automaticamente elevando os termos perfeição, bem-estar ou felicidade a categorias que existem por si mesmas e não estão sujeitas a uma descrição dentro de um contexto que lhes empreste sentido, a partir da linguagem e da experiência íntima do sujeito. Só poder-se-ia, assim falar de bem-estar, felicidade ou perfeição para um sujeito que, dentro de suas crenças e valores, desse sentido de tal uso semântico e, portanto, o legitimasse. Por outro lado, a angústia (com oscilações), tendo essa angústia repercussão somática maior ou menor (por exemplo, um cólon irritativo ou uma gastrite), configura situação habitual, inerente às próprias condições do ser humano. Divergir de posturas da sociedade, e até marginalizar-se ou de ser marginalizado frente a essa mesma sociedade, não obstante o sofrimento que essas situações trazem, é comum e até desejável para o homem sintonizado com o ambiente em que vive. O filósofo Bergson (1932) contrapôs duas formas __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ de moral possíveis: a estática e a dinâmica. A primeira fixou-se nos costumes, nas ideias e nas instituições, reduzindo-se, na verdade, a hábitos coletivos de caráter conservador; já a segunda resulta de um impulso criador que se liga à vida em geral, sendo uma ética da ruptura e da criação de novos valores. Com relação a esse aspecto, Freud (1908 e 1930), em mais de uma oportunidade, procurou mostrar como a perfeita felicidade de um indivíduo dentro da civilização constitui algo impossível. Para ele, a civilização passou a existir quando os homens fizeram um pacto entre si, pelo qual trocaram uma parcela de sua liberdade pulsional por um pouco de segurança. Desta forma, a própria organização social e a condição mesma da existência do homem em grupos baseiam-se em uma renúncia que, ainda que assegure ao indivíduo certos benefícios, gera um constante sentimento de "mal-estar". Desta condição não se pode fugir, donde resulta que entre indivíduo e civilização sempre haverá uma zona de tensão. Pode-se, inclusive, situar o mal-estar em um momento anterior ao da constituição dessa "civilização" de que se fala Freud. Afinal, o homem a construiu exatamente para escapar ao incômodo da insegurança em que vivia, decorrente de sua exposição a um estado de coisas não exatamente sem leis, mas ditado pela lei do mais forte, que não deixa de ser uma espécie de lei, ainda que selvagem e injusta. Nessas condições, não se poderá certamente falar em "perfeito bem-estar social". Entende-se que, para fins de estatísticas de saúde, as formas de "avaliação externa" sejam necessárias; não seria exequível "qualitativar-se" esse tipo de mensuração. Essas reflexões e as que se seguirão são cabíveis para que o estudioso de ciências de saúde possa "pensar" melhor sua matéria. Recentemente, médicos dos EUA criaram uma entidade nosológica e até lhe deram um C.I.D.: é a "síndrome da felicidade", incompatível com a situação do homem, com suas dificuldades, dúvidas, medos e incertezas. Seria dessa "felicidade" que a OMS tiraria seus parâmetros para caracterizar o "perfeito bem-estar mental"? O que se pode observar, quando aparentemente se encontra em alguém um estado de hiper-adaptação mental, é que a vida psíquica desse sujeito, por um outro lado - o lado oculto - encontra-se severamente empobrecida no plano fantasmático. Sua vida onírica e de fantasia parece amortecida, do que resulta um rebaixamento da criatividade e do potencial de intervenção sobre a realidade, no sentido de transformá-la. Esta síndrome dos "normóticos" ou "normopatas" começa a ser percebida por alguns psicanalistas mais atentos e sensíveis, como, por exemplo, por McDougall (1978) e Bollas (1992). Esses sujeitos, exatamente por não contarem com proteção de uma vida psíquica que lhes dê sustentação para enfrentar os acontecimentos traumáticos da vida, são, segundo tais psicanalistas, os mais propensos à somatização. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ A definição de saúde da OMS está ultrapassada por que ainda faz destaque entre o físico, o mental e o social. Mesmo a expressão "medicina psicossomática", encontra-se superada, eis que, graças à vivência psicanalítica, percebe-se a inexistência de uma clivagem entre mente e soma, sendo o social também inter-agente, de forma nem sempre muito clara, com os dois aspectos mencionados. A continuidade entre o psíquico e somático tem sido objeto de uma série de investigações. Se o psíquico responde ao corporal e vice-versa, fala-se, então, de um sistema onde não se delineia uma nítida divisão entre ambos. A pesquisa em psicossomática mostra que, para um bebê, não faz sentido a divisão entre mente e soma. A psicossomática de inspiração psicanalítica tem colocado questões para a noção cartesiana da dicotomia mente-corpo. Marty (1980), por exemplo, viu em certas doenças, verdadeiras expressões do inconsciente manifestadas de forma primitiva, isto é, decorrentes da insuficiência fantasmática do sujeito. Assim, ao invés do sujeito produzir um sintoma psíquicoe simbólico, como ocorre no caso da neurose, ele tende a responder ao excesso de excitação que não pode elaborar utilizando o corpo real. Caberia aqui acrescentar que as injunções sociais atuam sobre este aparato complexo que é o sujeito. O estilo e o ritmo de vida impostos pela cultura, a modalidade da organização do trabalho, a vida nas metrópoles, entre tantos outros fatores, poderiam fazer pensar, até mesmo, em uma suposta unidade "sociopsicossomática". No que diz respeito especificamente ao impacto da natureza do trabalho na sociedade contemporânea sobre o sujeito, Déjours (1980) tem nos trazido grandes contribuições, analisando as formas de organização do trabalho que impedem o trabalhador de manter seu funcionamento mental pleno, tendo assim de lançar mão de um processo de repressão da vida fantasmática que o induz a responder à excitação através da somatização. Quando se fala em "bem-estar" já se englobam todos os fatores que sobre ele influem: ou não está já suficientemente "sentido" pessoalmente, e descrito em outras pessoas, que o infarto, a úlcera péptica, a colite irritativa, a asma brônquica, e até mesmo o câncer guardam profundos vínculos com os estados afetivos dos sujeitos? (a escolha do termo "sujeitos" e não "objetos" ou "vítimas", dessas situações é propositada, no sentido de introduzir a ideia de ser a "doença somática" apenas uma "via a mais" para externar a turbulência afetiva, tendo sido essa via inconscientemente buscada pelo sujeito, incapaz de harmonizar os seus conflitos interiores). Freud (1938) já supunha que, entre as possibilidades de defesa disponíveis para o sujeito assolado pelo "mal-estar na civilização", estava a fuga para a doença somática (junto à fuga para a neurose ou para a psicose ou, ainda, para o comportamento antissocial). Embora ele não tenha desenvolvido a abordagem dessa via, a psicanálise tomou esta tarefa __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ para si ulteriormente. O fato é que uma série de doenças somáticas encontra sua etiologia na problemática afetiva que não pode ser vivenciada no plano propriamente psíquico. Muitas vezes, a repressão da agressividade _ que não encontra uma outra via de escape _ redunda na opção final de explosão no plano somático, isto é, no corpo real. Suponha-se que decorra da percepção dessa "não clivagem" da pessoa a conhecida expressão "deve-se tratar o doente e não a doença", dando margem, a inobservância dessa proposta, ao sucesso das assim chamadas "formas não tradicionais de medicina" (muitas vezes maior do que o da medicina), por visarem, essas técnicas, muito mais a afetividade do "sujeito", do que a mera expressão somática de sua turbulência emocional. Percebe-se a extrema dificuldade de aceitação, por muitos profissionais de saúde, do fato de fincar-se o êxito terapêutico no relacionamento afetivo com o cliente (o termo paciente não foi, propositadamente, usado para tornar mais distante a ideia de exclusiva aceitação, paciente, submissa, com relação ao profissional de saúde). O vínculo afetivo, embutido de confiança recíproca, na dupla que empreende uma ação de saúde (profissional- cliente), a par dos aspectos cognitivos, técnicos e científicos, é decisivo para que se possa esperar a melhora do estado do cliente. Dir-se-á que no mundo atual, com a medicina em grande parte socializada (pré-paga), estatal ou não, com o profissional de saúde habitualmente mal ressarcido (não dispondo de tempo e espaço afetivo para dedicar-se seriamente a cada um de seus pacientes), a criação e preservação dessa ligação afetiva entre o profissional de saúde e o cliente é tão irreal quanto a expectativa de "perfeito" bem-estar da OMS. Admite-se que assim seja, pelo menos em parte, cabendo a contrapartida à própria estrutura de personalidade do profissional, despreparado muitas vezes para o estabelecimento daquele tipo de vínculo. As restrições mencionadas absolutamente não desvalorizam as reflexões apresentadas. O relacionamento profissional de saúde-paciente é, sabidamente, uma parceria entre duas pessoas, das quais uma delas detém o conhecimento técnico-científico, que põe à disposição da outra, que o aceitará, ou não, contrariamente ao que pensam muitos médicos que percebem esse relacionamento como uma subjugação, suspendendo-o diante de dúvidas, críticas ou "desobediências" do paciente; também aqui, a escolha do termo foi proposital, visando à ênfase na forma de percepção desses profissionais. É nessas condições, de pleno exercício da autonomia de duas pessoas, que o tratamento sói ter sucesso, a menos que uma delas - o "paciente" - renuncie à sua própria autonomia, optando pela sujeição a uma postura mais paternalista do profissional de saúde, o que é frequente, dada a condição de "regressão" que o mal-estar habitualmente produz no cliente. Este fenômeno, em psicanálise denominado transferência, pode levar o paciente a conceder ao médico um lugar de poder absoluto, em uma verdadeira substituição da figura __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ onipotente do pai imaginário de uma criança pequena. Reconhecer-se no lugar transferencial pressupõe certa sensibilidade do profissional. Usar tal lugar para o exercício do poder, no entanto, já implica uma ação a ser pensada e discutida no plano da ética. Acredita-se ter esclarecido a inadequação de ainda se fazer distinção, mormente num conceito da OMS, entre o físico, o mental e o social. Finalmente, para tecer considerações sobre a mencionada "unilateralidade" da definição da OMS, há que se discutir o conceito de "qualidade de vida". O que é "qualidade de vida"? Dentro da Bioética, do conceito de autonomia, entende-se que "qualidade de vida" seja algo intrínseco, só possível de ser avaliado pelo próprio sujeito. Prioriza-se a subjetividade, uma vez que, de acordo inclusive com o conceito de Bion (1967), a realidade é a de cada um. Não há rótulos de "boa" ou "má" qualidade de vida, embora, conforme já se disse anteriormente, a saúde pública, para a elaboração de suas políticas, necessite de "indicadores". Assim, por exemplo, é óbvio que são imprescindíveis, dentro de uma sociedade, as estatísticas de mortalidade pelas várias doenças. Mas, o que é doença? Não é ela, liminarmente, apenas um conceito estatístico, considerando-se doentes (físicos, mentais ou sociais) todos os que se situarem fora da assim chamada "normalidade"? Principalmente em psiquiatria (embora isso ocorra, sem exceções, em todas as especialidades médicas), onde, na maioria das vezes nem mesmo alterações morfológicas dão chancela a diversidade dos indivíduos (e, ainda que dessem, não seria, o raciocínio, o mesmo? - não valerá a pena ser repensado o valor dessa diversidade (individualidade), a fim de preservá-la? Do fato de, cientificamente, serem conhecidos muitos "determinantes" genéticos, culturais e até físicos, químicos e biológicos de muitas patologias, decorrerá o direito ou não de intervir sobre essas diferenças quando o sujeito, manifestando sua vontade, não desejar essa intervenção? O que é o doente? Um ser humano diferente, que talvez tenha sua vida encurtada. O que é o sofrimento? É dor, inteiramente subjetiva, qualquer que seja a sua origem. O tratamento de uma doença, qualquer que seja, ela apenas será legítimo (e, consequentemente, ético), se o "doente" manifestar vontade de ser ajudado. Caso contrário, o "tratamento" poderá tratar-se de "defesa social" (situaçãofrequente, em psiquiatria) transvestida de benemerência. Retornando a considerar os condicionamentos, dos genéticos aos sociais, não existem todos eles, tanto nos "sãos" como nos "doentes"? A autonomia é uma condição que não se autorga a quem quer que seja: ou se reconhece, ou se nega. Este problema com relação à psiquiatria, na verdade, já se cronificou entre nós. A própria noção da doença mental, como bem demonstrou Foucalt (1972) foi constituída historicamente. Por um hábito positivista _ uma exigência metodológica _ procurou-se no corpo anátomo-fisiológico do "louco" o substrato último para explicar sua "doença". Ocorre __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ que, como denunciou o movimento antipsiquiátrico, a noção de "desvio" pendia mais para um juízo de valor que servia, na verdade, ao controle e à normalização sociais (ler o Alienista – Machado de Assis). Logo, volta-se a enfatizar a prioridade do subjetivismo em toda reflexão sobre qualidade de vida. Poderá alguém afirmar que um portador de colostomia, consequente a uma cirurgia de câncer intestinal, tem qualidade de vida pior do que um seguidor obsessivo de regras religiosas, intimidado perenemente por um Deus que lhe foi inculcado, independentemente de sua vontade? Nesta óptica, vai ficando claro que "realidade" nada mais é do que uma convergência de subjetivismos. Haverá outra forma de conceituá-la, essa realidade, que só pode ser vista e pensada por pessoas? Será que alguém, pelo simples fato de não ter recursos para se alimentar de acordo com nossos padrões, poderá aprioristicamente ser considerado com qualidade pior de vida do que uma pessoa bem alimentada? Não restam dúvidas de que essas considerações, aparentemente radicalizantes, visam apenas a atenuar a tendência positivista dos conceitos de saúde que aí estão. O presente enfoque é importante para uma visão ampliada de saúde pública. Necessariamente ela observa, descreve, avalia e administra indicadores: a política de saúde louva-se nesses elementos. Assim sendo a abordagem "de dentro para fora" do ser humano, onde o que mais conta é o subjetivismo do indivíduo, recorrendo-se inclusive à teoria e à vivência psicanalítica para a sua fundamentação, pode parecer despropositada e fora do contexto de saúde pública. Não é nisto que se pensa. O destaque à autonomia do ser humano, em que supostamente existe uma "vontade", fazendo parte de uma "psyche" (alma) que transcende ao próprio ambiente sociocultural e mesmo à sua bagagem genética, talvez dê uma condição melhor de entender a virtual ineficácia de políticas de saúde em determinados casos e circunstâncias. Esta visão anti-positivista e mais humana das atividades dos profissionais de saúde, pode contribuir para um contato mais empático e, consequentemente, mais ético, entre eles e a população assistida. E, concluindo, dentro desse enfoque, não se poderá dizer que saúde é um estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade? SEGRE, Marco e FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101997000600016 Para refletir..... __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ 3. SAÚDE PÚBLICA E SAÚDE COLETIVA 3.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS Podemos descrever o trabalho de saúde pública como o esforço organizado da comunidade, por intermédio do governo ou de instituições, para promover, proteger e recuperar a saúde de pessoas e da população, por meio de ações individuais e coletivas. São exemplos de ações de saúde pública: a vacinação, o saneamento básico, a prestação de serviços médicos. Esse conceito foi–se firmando e aperfeiçoando, através do tempo, com variações de país para país, de região para região. No breve relato que segue percorreremos a história da saúde pública no Brasil. Os índios brasileiros impressionaram os primeiros europeus que aqui chegaram por sua aparência sadia, robusta. Eram fortes, bem nutridos e sofriam de poucas doenças. Isso se devia, sobretudo, a seu modo de vida extremamente natural. Eles se alimentavam bem, não eram sedentários – ao contrário, levavam uma vida muito ativa – e não tinham, de modo geral, hábitos prejudiciais à saúde. O uso que faziam do tabaco ou do álcool era esporádico. Por mais sadia que fosse a sua existência, contudo, estavam sujeitos a acidentes, a violências, a doenças. Quando tal acontecia, recorriam ao pajé. Dentro da concepção mágico–religiosa de enfermidade, cabia a ele exorcizar os maus espíritos, o que era feito mediante um procedimento ritualístico. Plantas e substâncias diversas eram também usadas no tratamento. Os primeiros colonizadores obviamente não endossavam esse sistema de atendimento. Um dos objetivos dos portugueses era converter os indígenas ao cristianismo e isso significava neutralizar a influência dos pajés, inclusive e talvez principalmente, no que se referia aos cuidados de saúde. Os padres jesuítas, encarregados da catequese, exerciam também a assistência aos doentes, Não só eles, claro, com as primeiras expedições colonizadoras, vieram os físicos – como eram conhecidos os médicos de então. Eles eram os “licenciados”, porque possuíam um diploma, concedido em geral por uma das escolas da Penínsuia Ibérica, como Coimbra ou Salamanca. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Os físicos tinham cargos oficiais, estavam ligados à Coroa, ou à Câmara, ou ao exército, mas exerciam também a clínica privada. O primeiro deles teria sido Jorge Valadares, que viera com a comitiva do governador–geral Tome de Souza. Vários desses físicos eram cristãos–novos, ou seja, judeus convertidos à força pela inquisição, que muitas vezes praticavam em segredo, e com risco, a religião judaica. O Brasil representava para eles um refúgio, apesar das visitações do Santo Ofício, que investigava minuciosamente os suspeitos de práticas “judaizantes”. Como era praxe na medicina de então, os físicos não executavam certas práticas consideradas “inferiores” – porque exigiam habilidade manual – e eram reservadas aos barbeiros–cirurgiões. A assistência hospitalar estava a cargo basicamente das Santas Casas de Misericórdia, surgidas já nos primórdios da colonização. A sua função era albergar os doentes, cuidar deles e, quando a situação era grave, proporcionar–lhes uma morte com assistência religiosa, porque naquela época muito pouco se podia fazer, em relação a tratamento curativo, por um enfermo. A supervisão pública sobre a assistência à saúde era restrita. Até 1782 existiu um Físico–Mor do Reino, cujos comissários fiscalizavam a atividade dos médicos e a venda de medicamentos. Em 1782 foi criada, pela rainha D. Maria I, de Portugal, a Junta do Proto– Medicato, composta de sete membros, todos médicos. Esse era o sistema oficial de assistência médica. Boa parte da população, no entanto, continuava recorrendo a curandeiros. Além disso, numerosas boticas vendiam remédios e aplicavam sanguessugas, que extraíam do paciente o “excesso” de sangue ou o sangue supostamente “envenenado”. A botica era também um lugar onde homens se reuniam para conversar e jogar gamão. Quanto aos partos, durante muito tempo ficaram a cargo das parteiras ou “curiosas”. Essa imagem bucólica não nosdeve iludir. O Brasil foi, desde seus primórdios, um país muito doente. Nem poderia ser de outra maneira: as grandes navegações favoreceram a disseminação de agentes infecciosos, que encontravam em populações com baixo nível de imunidade um terreno propício. Esse foi o caso dos índios brasileiros, que morriam aos milhares, vítimas até de uma simples gripe. As pestilências se sucediam. Em 1563 ocorreu a primeira epidemia de varíola; em 1685, a primeira de febre amarela. Essas doenças eram assunto preferencial dos primeiros escritores médicos no país: Simão Pedro Morão escreveu um Tratado único das bexigas e sarampo (1683; “bexigas” era o nome usual para varíola); João Ferreira da Rosa lançou, em 1694, o seu Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Uma das primeiras medidas tomadas por Dom João VI, quando da transferência da corte portuguesa ao Brasil, foi a criação da Junta Vacínica da Corte (1811). Era o início da ação governamental no combate direto às doenças e uma iniciativa até pioneira, considerando que a vacina tinha sido introduzida por Edward Jenner, na Inglaterra, em 1797; mas essa ação foi muito modesta. As epidemias de varíola continuaram ocorrendo. Enquanto isso, a profissão médica se ia institucionalizando. A supervisão da assistência à saúde ficava por conta do Físico–Mor e de seus auxiliares. Em 1782 havia sido criada, pela rainha D. Maria I, a Junta do Proto–Medicato. Instalada em Lisboa, e composta de sete membros, físicos e cirurgiões, tinha autoridade sobre todos os territórios dependentes de Portugal. Sua finalidade principal era o combate ao curandeirismo e a vigilância sobre os aspectos legais da profissão farmacêutica; cabia–lhe, por exemplo, referendar todos os diplomas conferidos a médicos e cirurgiões. Tratava–se, portanto, de controle do exercício profissional, o que sem dúvida correspondia aos interesses da corporação médica. Ao longo do século dezenove, surgiram escolas de medicina e cirurgia nas principais cidades brasileiras. As duas primeiras foram criadas no Rio de Janeiro e em Salvador por D. João, logo após sua chegada ao Brasil, em 1808. De início eram chamadas Academias, mas em 1832 foram transformadas em Faculdades de Medicina, de acordo com o projeto da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, aprovado pelo Congresso. As ações fiscalizadoras eram um componente da chamada polícia sanitária, um conceito paternalista e autoritário lançado na Alemanha, em 1779, por Johan Peter Frank (1745–1821). O termo alemão Polizei tem tradução ambígua; tanto pode significar política – e era realmente uma estratégia política, que contemplava a intervenção do Estado na saúde e na vida dos cidadãos – como polícia. A Polizei de Frank era muito abrangente e dava normas até para as atividades do cotidiano, como a diversão. No Brasil, a fiscalização era mais restrita, mas era fiscalização, de qualquer modo. A vacinação antivariólica, inclusive, era subordinada à Fisicatura, cuja atribuição era fiscalizar a medicina, e à Intendência Geral de Polícia. O Código de Posturas do Rio de Janeiro estabeleceu, em 1832, e pela primeira vez no país, a obrigatoriedade da vacina. Essa disposição não foi cumprida, porque a população tinha fortes suspeitas em relação à vacina; mas, mediante solicitação dos proprietários rurais, os vacinadores iam às fazendas aplicar o imunizante aos escravos. Como foi dito, a fiscalização tinha em vista principalmente a formação e a supervisão de médicos e cirurgiões. Mas isso não resolvia os grandes problemas de saúde da população, as doenças endêmicas e epidêmicas. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Em 1850, por ocasião da segunda grande epidemia de febre amarela, foi criada a Junta Central de Saúde Pública, embrião do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo tinham início os trabalhos de pesquisa, referentes sobretudo ao que era conhecido na época como medicina tropical. Como grandes potências europeias tinham colônias em regiões tropicais da Ásia, África e América, as doenças características dessas regiões – malária, febre amarela e várias parasitoses - passavam a ter interesse não apenas médico ou sanitário, mas econômico e político. Daí o surgimento de uma verdadeira especialidade, que fez escola. É nesse contexto que surge a Escola Tropicalista Baiana, com nomes como os de Oto Wucherer (1820–1873), que trabalhou com parasitoses, João Francisco da Silva Lima (1826–1910) e o escocês John Ligertwood Paterson (1820–1882). No caso do Brasil, essas doenças despertavam outro tipo de interesse. O final do século dezenove e o começo do século vinte viram um grande aumento da emigração européia. Italianos, alemães, eslavos vinham em grandes levas para o país. Deixavam para trás um continente devastado por conflitos e guerras em busca de trabalho e de melhores condições de vida. Os governos da América Latina estimulavam esse movimento; tratava–se de países ainda escassamente povoados, que seguiam o lema do intelectual argentino Juan Alberdi: “Gubemar es poblar”, governar é povoar. No Brasil, os imigrantes europeus substituiriam a mão–de–obra escrava, sobretudo na lavoura do café. Finalmente havia a intenção, nem sempre declarada, de “branquear” a população, constituída de grandes contingentes de negros, índios e mestiços. Mas os imigrantes eram muito suscetíveis às doenças tropicais. Essa suscetibilidade é dramaticamente ilustrada, ainda que em contexto um pouco diferente, pelo caso do Lombardia. Este navio, que aportou no Rio de Janeiro em 1895, não trazia imigrantes; era da marinha italiana, com uma tripulação de gente jovem e presumivelmente robusta. Dos 340 tripulantes apenas sete não contraíram febre amarela e 234 morreram. Essas notícias disseminavam–se pelo mundo – e prejudicavam a economia brasileira, que dependia fundamentalmente da exportação de café. Navios estrangeiros recusavam–se a vir ao Brasil. Com isso, não levavam café – e não entravam as divisas necessárias para o pagamento de uma grande dívida externa contraída com bancos ingleses. Combater doenças não era apenas um objetivo humanitário: era uma questão de sobrevivência econômica para o país. A simples fiscalização não resolveria o problema. Era preciso uma ação governamental mais abrangente e em bases mais científicas. A época era propícia para isso. O final do século dezenove viu o desenvolvimento da chamada revolução pasteuriana – a impressionante série de descobertas, por Louis Pasteur, seus colaboradores e seus discípulos, de agentes patogênicos causadores de doenças, de __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ soros e vacinas destinados a evitar ou controlar essas doenças, como foi o caso do soro antirrábico, que projetou o nome do pesquisador e de seu Instituto – do qual o Imperador Dom Pedro II era grande admirador e para o qual destinou uma contribuição financeira. Entre 1880 e 1898 foram identificados quase 20 agentes causadores de lepra, malária, tuberculose, cólera, peste, difteria... Doenças muito prevalentes no Brasil e que, portanto, justificavam o interesse – mais que isso, o entusiasmo – de autoridades e de pesquisadores com esse trabalho, que representava uma nova postura na saúde pública. Era agora possívelcontrolar doenças transmissíveis com medidas limitadas, sem a ampla intervenção social preconizada pela “polícia sanitária” ou, com mais contundência, pelos revolucionários inspirados nas ideias de Karl Marx. No Brasil, as primeiras repercussões da revolução pasteuriana ocorreram em São Paulo, para onde vinham grandes levas de imigrantes e onde a produção cafeeira crescia sem cessar. Em 1892 foram criados laboratórios de saúde pública, destinados inclusive a preparar vacinas; no ano seguinte Adolfo Lutz assumiu a chefia do Instituto Bacteriológico. Mas seria no Rio de Janeiro – capital federal e porto exportador de café – que a ideia de controle sanitário teria maior repercussão. Já em 1890 era criado o Conselho Nacional de Saúde Pública. Duas eram as preocupações maiores: a chamada “saúde dos portos” e a higiene e o saneamento no Rio de Janeiro. Para isso foi criada uma Inspetoria Geral de Higiene. Dois anos depois, e como em São Paulo, surgia o Laboratório de Bacteriologia. Em 1897 foi criada a Diretoria Geral de Saúde Pública. De novo, o controle de portos era prioridade. Para isso, o litoral brasileiro foi dividido em três distritos sanitários, com sedes no Rio, em Recife e em Belém. Entretanto, os problemas financeiros se agravavam. Em busca de equilíbrio nas contas públicas, o governo recorre a empréstimos externos, que só podiam ser pagos com a exportação de café. É nesse cenário que se inicia a gestão de Rodrigues Alves (1902– 1906), não por acaso um representante da oligarquia cafeeira paulista – mas também um homem com muito interesse pela ciência e pela saúde pública, que tinha, inclusive, perdido uma filha vitimada pela febre amarela. É também nesse cenário que assume a Direção Geral de Saúde Pública um jovem médico, que, fascinado pela bacteriologia, havia estagiado no Instituto Pasteur: Oswaldo Cruz. A tumultuada e relativamente curta passagem de Oswaldo Cruz pela Direção Geral de Saúde Pública teve algumas características que haveriam de marcar a saúde pública brasileira por boa parte do século vinte. Em primeiro lugar, a orientação científica. Oswaldo Cruz é considerado por muitos autores, e não sem razão, o fundador da ciência brasileira. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Todas as suas ações foram pautadas pelo critério científico, o que lhe custou muitos conflitos; por causa do seu papel vanguardista, teve de enfrentar o por vezes retrógrado estabelecimento médico do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, a visão administrativa. Oswaldo Cruz estava seguro de que o combate a doenças só teria êxito se feito de forma organizada. Introduz, assim, o conceito – militar – de campanha; por exemplo, a campanha de febre amarela é executada por batalhões de mata–mosquitos, que usavam inclusive uniforme e entravam nas casas em busca de focos de insetos. Resulta daí a terceira característica da gestão Oswaldo Cruz: o autoritarismo. É preciso dizer que nisso ele não estava sozinho. A sociedade brasileira era autoritária, e autoritários eram os governantes: Pereira Passos executou, com mão–de–ferro, a reforma urbana no Rio de Janeiro, conhecida como “bota–abaixo”. Esse autoritarismo foi uma das causas para a Revolta da Vacina, um levante popular contra a vacinação antivariólica, que convulsionou a capital durante vários dias em novembro de 1904. Depois desse desastre, Oswaldo Cruz afastou–se da política sanitária, dedicando–se à pesquisa no Instituto de Manguinhos (atual Instituto Oswaldo Cruz), órgão por ele criado. Oswaldo Cruz teve vários discípulos e seguidores, entre eles Carlos Chagas, o descobridor do agente causador da doença que leva o seu nome. A metodologia por ele preconizada foi aos poucos incorporada na rotina de saúde pública. Não era uma panaceia: em 1918 o Brasil teve de enfrentar a pandemia – uma epidemia mundial – de gripe espanhola. O número de doentes era tão grande que as grandes cidades ficaram praticamente paralisadas – e pouco a saúde pública podia fazer, porque não havia imunizante contra o vírus. Por outro lado, ficava cada vez mais óbvio que as campanhas de vacinação não resolveriam os problemas causados pelas doenças de massa no país. Uma nova mudança começava a se desenhar na trajetória da saúde pública brasileira. A atenção dos sanitaristas brasileiros voltava–se agora para a questão do saneamento básico. Essa questão emergiu em meio àquilo que se poderia chamar de redescoberta do Brasil, cuja população continuava restrita ao litoral. Após deixar a Direção Nacional de Saúde Pública, Oswaldo Cruz e colaboradores empreenderam uma série de viagens a regiões distantes (encarregando–se, por exemplo, da supervisão sanitária da construção da estrada de ferro Madeira–Mamoré). Seu exemplo foi seguido por Artur Neiva e Belisário Pena, que publicaram (1916) um impressionante relatório sobre a miséria e as péssimas condições de vida no Nordeste, principalmente. O que, aliás, era consenso: “O Brasil é um imenso hospital”, disse, no mesmo ano, Miguel Pereira, catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Na verdade, a afirmativa não era inteiramente correta. Do hospital, o Brasil tinha as doenças, mas não os meios para tratá-las. A palavra–chave para resolver o problema, ou ao menos para minimizá-lo, era o saneamento básico: água potável, esgoto sanitário, destino adequado do lixo, boas condições de moradia. Esse era o tema da muito influente obra de Artur Neiva, Saneamento do Brasil, publicada em 1918, um ano após a morte de Oswaldo Cruz e a Revolução Russa. A proximidade das datas não é coincidência, como se verá. O saneamento passou a ser visto não apenas como uma estratégia de saúde pública mas como uma verdadeira causa. De certo modo, fez ressurgir a dimensão social da teoria do miasma; de novo, as más condições de vida eram apontadas como causa de doenças. E tanto era uma causa que uma entidade surgiu para defendê-la: a Liga Pró–Saneamento. A denominação Liga é muito significativa – era expressão típica de uma época de despertar de consciências, de engajamento. No mesmo ano haviam sido criadas a Liga Nacionalista e, por iniciativa de Olavo Bilac, a Liga de Defesa Nacional, que defendia o serviço militar obrigatório. Pode–se notar que, do ponto de vista político–ideológico, esse nacionalismo era ambíguo. De fato, a Liga Brasileira de Higiene Mental tornou–se uma grande propagadora das ideias nazi–fascistas no Brasil. A Liga Pró–Saneamento, por sua vez, refutava teorias que atribuíam o atraso do país à composição étnica da população ou ao clima tropical. Por trás destas ideias estavam o despertar do nacionalismo brasileiro (de que seria uma amostra, entre os intelectuais, a Semana de Arte Moderna, de 1922) e o impulso de mudança social, que motivou a Revolução Russa de 1917 – daí uma das “coincidências” antes assinalada. A outra “coincidência” é a morte de Oswaldo Cruz, que, de certa forma, era um descendente dos “contagionistas”, logo mais interessado na doença e em seus agentes causais do que no meio social. O governo federal saiu com uma solução conciliadora. Criou o Serviço de Profilaxia Rural voltado para as populações rurais – atendendo, portanto, ao apelo de Artur Neiva – mas este trabalharia por intermédio de campanhas, contra a malária, a doença de Chagas e outras enfermidades. A Liga Pró–Saneamento não ficou satisfeita com essamedida. Insistiu em afirmar que a saúde pública brasileira exigia mais e sugeriu a criação de um Ministério de Higiene e Saúde Pública ou ao menos um Departamento Nacional de Higiene. Em 1920 era criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, chefiado (1920–1926) por Carlos Chagas. Neste meio tempo foi constituída (1923) a Sociedade Brasileira de Higiene, reunindo os sanitaristas brasileiros. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ A Sociedade tinha estreitos vínculos com o Departamento Nacional de Saúde Pública. Mas uma cisão se produziria entre os técnicos do Departamento e os sanitaristas herdeiros da mensagem nacionalista da Liga Pró–Saneamento. O motivo desta cisão foi o acordo de cooperação firmado entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller, dos Estados Unidos. A Fundação tinha uma linha de ação voltada para o controle de doenças transmissíveis como febre amarela, malária e parasitoses. O modelo era aquele criado pelos médicos militares americanos que, no final do século, haviam estudado, em Cuba (então sob tutela dos Estados Unidos), a transmissão da febre amarela. Este modelo – adotado por Oswaldo Cruz – nascera de um duplo interesse, científico e econômico. Havia sido aplicado em regiões de plantação no sul dos Estados Unidos e em Porto Rico, com o objetivo de proteger populações mas também de aumentar produtividade. O modelo da Fundação Rockefeller foi muito combatido pelos sanitaristas da Sociedade Brasileira de Higiene – por razões técnicas, e também por razões políticas, nacionalistas. De novo o governo adotou uma postura conciliadora. Pelo contrato assinado com a Fundação em 1929, esta teria sua ação na região Norte do país, ficando o Sul a cargo do Departamento Nacional de Saúde Pública. Uma consequência da presença da Fundação foi o surgimento do centro de saúde, que oferecia assistência pré-natal às gestantes, cuidados de puericultura, vacinas e outros serviços. Essa não foi a única colaboração entre Brasil e Estados Unidos na área da saúde. Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, foi criado, mediante acordo entre o governo brasileiro e a Rubber Reserve Co. – órgão do governo norte–americano – o SESO, Serviço Especial de Saúde Pública, tendo como objetivo principal o saneamento da Amazônia, a profilaxia da malária e a assistência médico-sanitária aos trabalhadores da região. De novo, havia um interesse por trás dessa medida: fomentar a produção da borracha, essencial para o esforço de guerra. A partir dos anos trinta muda o foco de interesse da política governamental de saúde. O combate às doenças transmissíveis e o saneamento básico terão prosseguimento, mas a prioridade passará a ser outra. Já não é a saúde coletiva que conta, mas a individual. De novo, isso reflete as transformações ocorridas no Brasil, que, nas palavras de Getúlio Vargas, até então era um país “semicolonial, agrário, exportador de matérias-primas e importador de manufaturas”. Vargas, que com a revolução de 1930 governaria por 15 anos, paradoxalmente era um grande proprietário rural. Até esse momento, o campo dominara a cidade; a política tivera como base os currais eleitorais, dominados pelo coronel. “Povo” era uma categoria praticamente inexistente; a população, dispersa, não tinha massa crítica para decidir o processo político. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Os anos trinta viram uma aceleração do processo de industrialização e de urbanização. O poder das oligarquias diminui, cresce o papel do governo central – um governo populista que controla tanto as elites como o povo, mediante uma legislação de bem-estar social. Nesse sentido, Vargas seguiu o exemplo de Otto von Bismarck (1815 -1898), o prussiano “chanceler de ferro”. Bismarck assumiu o cargo de primeiro ministro da Alemanha em 1862, com um projeto de acelerada industrialização e exportação de manufaturados a preços competitivos, o que significava baixos salários. Para evitar o descontentamento da classe trabalhadora, Bismarck propôs uma legislação que incluía habitação gratuita, seguro para velhice e assistência médica. Esse modelo foi seguido por vários países. Na Grã–Bretanha, um passo além foi dado: a assistência médica ficou a cargo de um Serviço Nacional de Saúde, criado em 1942. Pioneiro no gênero em países capitalistas, oferecia proteção “do berço ao túmulo” e representava uma compensação para os sofrimentos experimentados pelo povo durante a Segunda Guerra Mundial. De início, as medidas propostas por Getúlio (salário mínimo, codificação da legislação trabalhista, pensões e aposentadorias) não tiveram impacto direto na área da saúde. Aos poucos, porém, os vários Institutos de Aposentadorias e Pensões (dos industriários, comerciários, bancários, marítimos) foram introduzindo serviços de assistência médica, o que se destinava tanto a preservar a higidez da classe trabalhadora como a proporcionar retorno político. O objetivo principal era atender à demanda, a um custo baixo. Do ponto de vista de assistência médica, isso representava uma grande mudança. Até então a medicina havia sido uma profissão basicamente liberal. A população se dividia em dois grupos: a minoria que podia pagar, atendida em consultórios e hospitais particulares, e a imensa maioria de pobres que dependiam da filantropia das Santas Casas ou recorriam a curandeiros ou simplesmente careciam de recursos. Para os médicos, a Previdência Social representava um dilema: de um lado, absorvia parte da demanda privada e portanto diminuía a clientela potencial; de outro, significava a garantia de um emprego público, às vezes com salários muito bons. À medida que foi aumentando o número de escolas médicas, o dilema se resolveu por si: os jovens profissionais optavam pelo emprego, nem que fosse para garantir sustento enquanto o consultório não rendia o suficiente. Em 1967 os vários lAPs foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social. Em 1974 foram criados o Ministério de Assistência e Previdência Social e, incorporado a ele, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, INAMPS. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Àquela altura, uma cisão já se havia configurado no setor público. De um lado, a saúde pública, tendo como função básica o controle das doenças transmissíveis, por vacinação, saneamento básico, tratamento específico (no caso de tuberculose, lepra, doenças sexualmente transmissíveis), fiscalização sanitária e outros encargos que historicamente lhe foram atribuídos. Essas funções estavam a cargo do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais e municipais (ainda raras) de saúde. De outro lado, a assistência médica do INAMPS, em permanente expansão e demandando cada vez mais recursos. Esse tipo de assistência privilegiava o atendimento individual e pagava por serviços prestados, o que propiciava a fraude. Várias tentativas foram feitas para superar a barreira entre ações preventivas e curativas, entre saúde pública propriamente dita e assistência médica. A Lei 6229, de 1975, que criou o Sistema Nacional de Saúde, introduziu as Ações Integradas de Saúde, uma proposta bem intencionada, mas ainda embrionária. Em 1986 reuniu–se, em Brasília, a VIII Conferência Nacional de Saúde que postulou a continuidadedesse processo. No ano seguinte surgiu o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde. E a Constituinte de 1988, a Constituinte Cidadã, introduziu o Sistema Único de Saúde, regulamentado pelas leis 8080 e 8142, ambas de 1990. O Sistema propõe-se a atender toda a população, por meio de serviços próprios, da União, de estados e municípios, e serviços contratados com a área privada. O SUS ampliou enormemente a gama de serviços prestados à população. Mas assistência médica é uma área em que a demanda cresce sem cessar. A todo instante surgem novos exames, novos tipos de cirurgia, novos medicamentos. As pessoas buscam, nos serviços médicos, solução para problemas que antes suportavam ou procuravam resolver de outras maneiras; fala–se até em uma “medicalização” da vida. Ora, o Brasil é um país pobre, que, além disso, gasta pouco com saúde, e gasta mal. A oferta de serviços tem sido inferior à demanda. O resultado é que uma parte da população, aquela que pode pagar, busca no seguro privado a alternativa para o SUS. Aqui cabe uma pergunta: como é que a gente sabe se uma população tem bons níveis de saúde? Não é uma questão fácil de responder. Vamos comparar a avaliação da saúde coletiva com a avaliação da saúde individual. O que faz um médico, quando quer avaliar o seu paciente? Conversa com ele, faz a anamnese, isto é, pergunta sobre sintomas como dor, falta de apetite e dificuldade para urinar. Depois o examina: ausculta-o, pesa-o, conta o pulso, mede a tensão arterial, a temperatura. E pede exames, para saber quanto de glicose no sangue tem a pessoa, quanto de colesterol... Com esses dados, ele fará, se possível, um diagnóstico. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ No caso da população, o processo tem alguns pontos em comum e algumas diferenças substanciais. Para avaliar a saúde de uma população, também existem números: os indicadores de saúde. O mais importante deles é a mortalidade infantil, ou seja, o número de crianças que morrem antes de completar um ano para cada mil nascidos vivos. Esse indicador é importante, não apenas porque fala da saúde mas também porque nos diz muito do perfil socioeconômico da região: em geral, quanto mais pobre a população, maior a taxa de mortalidade infantil. Há exceções, claro: Cuba é um país pobre, mas tem uma taxa de mortalidade infantil relativamente baixa, semelhante à dos Estados Unidos. Outro indicador é a expectativa de vida ao nascer: quantos anos podemos esperar viver, em média, ao nascer? Esse também é um indicador muito influenciado pela conjuntura. Um terceiro indicador: o coeficiente de mortalidade materna, que é o número de óbitos ligados à gestação, parto e puerpério (período pós-parto) dividido pelo número de nascidos vivos. Também nos interessa saber que doenças causam mais mortes na população. Quando são más as condições de vida e de saúde, é elevado o número de óbitos por doenças transmissíveis: significa que a população não está sendo adequadamente vacinada, que as condições de saneamento são más, que as pessoas estão desnutridas, portanto propensas a tais doenças. Em contrapartida, à medida que a situação de saúde melhora e que as doenças transmissíveis vão sendo vencidas, a expectativa de vida aumenta e, por conseguinte, aumentam as doenças que acometem pessoas mais velhas, como as cardiopatias. Os indicadores são, portanto, semelhantes à temperatura corporal, pulso e medida de tensão arterial. Vamos às diferenças: sabemos, há muito tempo, qual a temperatura considerada normal para um ser humano. Mas não sabemos exatamente o que é uma mortalidade infantil “normal”. Dificilmente ela chegará a zero, porque há causas de óbito praticamente inevitáveis, a esta altura de nossos conhecimentos; mas não podemos definir com precisão o número desejável. O que podemos fazer é comparar países entre si, regiões entre si. O Brasil tem uma mortalidade infantil maior do que Cuba, Suécia, ou Japão: podemos, pois, e devemos baixar a nossa mortalidade infantil (pode-se estabelecer a mesma relação entre o Nordeste e o Sudeste brasileiro). A política de saúde é aquilo que os governos apresentam como a maneira pela qual vão melhorar a saúde da população (em geral querem melhorá-la, apesar de que a política de saúde dos nazistas contemplava o extermínio das “raças inferiores”). A política é uma formulação de caráter geral; ela pode ser mais detalhada – sob a forma de planos, que, por sua vez, compreendem programas (programa de cuidados materno-infantis, programa de vacinação), que devem ter objetivos definidos. Por exemplo: controlar a tuberculose ou a __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ lepra. Um objetivo se expressa em metas, que são os objetivos quantificados. Por exemplo: queremos vacinar 90% das crianças menores de um ano contra a poliomielite ou paralisia infantil. Definir e pôr em prática uma política de saúde voltada para as necessidades mais prementes da população é o grande desafio que se coloca diante de nosso país. A nossa história mostra que progredimos muito. Mas ainda não chegamos lá. 3.2 CONCEITO DE SAÚDE PÚBLICA E SAÚDE COLETIVA A expressão “Saúde Pública” pode dar margem a muitas discussões quanto a sua definição, campo de aplicação e eventual correspondência com noções veiculadas, muitas vezes, de modo equivalente, tais como “Saúde Coletiva”, “Medicina Social/Preventiva/Comunitária”, “Higienismo”, Sanitarismo”. Em geral, a conotação veiculada pela instância da “Saúde Pública” costuma se referir a formas de agenciamento político/governamental (programas, serviços, instituições) no sentido de dirigir intervenções voltadas às denominadas “necessidades sociais de saúde”. Já “Saúde Coletiva”, em síntese, implica em levar em conta a diversidade e especificidade dos grupos populacionais e das individualidades com seus modos próprios de adoecer e/ou representarem tal processo, e que, não necessariamente, passam pelas instâncias governamentais ditas responsáveis diretas pela saúde pública. “Medicina Social/Preventiva/Comunitária” tende a indicar uma área disciplinar/acadêmica que estudaria o adoecer para além de sua dimensão biológica. Na verdade, em linhas gerais, está voltada para abordá-la ao nível de determinantes sócio / político / econômico / ideológicos. Outra forma de encarar este problema de definições é buscar elementos nos diversos momentos históricos de reforma em saúde em diferentes formações socioeconômicas. Deste modo, por exemplo, as origens da ideia de Medicina Social estão ligadas aos movimentos sanitários na França e Alemanha. Por sua vez, Medicina Preventiva, Comunitária e Familiar relacionam–se à correspondente história referida aos Estados Unidos e América Latina. O Higienismo tem raízes européias, e o Sanitarismo sugere influências marcadamente britânicas. Alguns consideram “Saúde Coletiva” como categoria que abrange a corrente crítica constituída pela Medicina Social, pelo movimento preventivista, representado pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Social de diversas Faculdades Médicas e por alguns componentes institucionalizados em nível estatal da própria área da Saúde Pública. __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Podem–se identificar pelo menos cinco conotações diferentes emque a expressão “Saúde Pública” é empregada (sem incluir hibridismos): 1. O termo “pública” equivale ao setor público, governamental; 2. Pode incluir a participação da comunidade organizada, o “público”; 3. Identifica-se aos serviços dirigidos à dimensão coletiva (saneamento, por exemplo); 4. Acrescenta ao anterior serviços pessoais dirigidos a grupos vulneráveis (por exemplo, Programas de Saúde Materno Infantil); 5. Refere-se a problemas de elevada ocorrência e/ou ameaçadores. De qualquer modo, parece haver consenso com a caracterização do campo da Saúde Pública mediante dois amplos critérios: 1. A vinculação ao aparelho de Estado; 2. A dimensão coletiva como objeto de intervenção. Claro está que tal categorização é por demais abrangente. Conforme as circunstâncias, os campos se interpenetram e nem sempre é possível fazer distinções bem delimitadas quanto aos respectivos domínios e fronteiras. Pode–se conjeturar, enfim, que a compreensão do que seja “Saúde Pública” resulte, em última análise, de pontos de vista dos indivíduos/grupos socioeconômicos culturais, condicionados pelas suas ideias acerca do mundo que nos rodeia, conforme os respectivos interesses, crenças, concepções. Mas, sobretudo, sob as determinações da correspondente formação socioeconômica. Aqui, não há preocupação estrita em aderir incondicionalmente a qualquer das referidas tentativas de definição. Mesmo admitindo-se a importância das propostas definidoras citadas, para efeitos deste sítio, iremos considerar Saúde Pública como um domínio genérico de práticas e conhecimentos organizados institucionalmente em uma dada sociedade dirigidos a um ideal de bem-estar das populações – em termos de ações e medidas que evitem, reduzam e/ou minimizem agravos à saúde, assegurando condições para a manutenção e sustentação da vida humana. Em tempos de Internet, é importante dispor de um sistema abrangente de informações de saúde, interligado eletronicamente. Os dados serão coletados a partir de diversas fontes para constituírem bases informatizadas confiáveis que permitam pronto manuseio pelos usuários, tanto profissionais da área como a população interessada. Para isto é necessário, além de recursos financeiros, técnicos e tecnológicos, o empenho dos indivíduos para atuarem como cidadãos com o fim de obter o comprometimento dos responsáveis pela dita Saúde Pública no sentido de viabilizar tal sistema. Fonte: Copyright © Psicóloga Alexsandra Esteves 2009 REV 00 www.hasten.eng.br/psicologia __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ 4. PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA Psicologia em Pesquisa | UFJF | 1(02) | 11 - 22 | julho - dezembro de 2007 Aguiar, S. G. & Ronzani T. M. 11 Psicologia social e saúde coletiva: Reconstruindo identidades Social psychology and collective health: Reconstruction of identities Silvia Gomes Aguiar* Telmo Mota Ronzani** O presente artigo consiste em uma revisão bibliográfica que apresenta um breve histórico da psicologia no campo da saúde, mais especificamente da psicologia na saúde pública. Problematiza as práticas da psicologia tradicional neste contexto e apresenta algumas alternativas e propostas de atuação da psicologia na saúde coletiva, centrada principalmente nas ações de políticas de saúde, prevenção de doenças e promoção de saúde, tendo como embasamento teórico principal a psicologia social. Conclui-se que a psicologia social não é uma teoria totalizadora das possibilidades de intervenção e entendimento do tema em questão, porém se apresenta como um campo coerente e importante para as ações em saúde coletiva. Palavras-chaves: Psicologia Social; Saúde Coletiva; Práticas em Psicologia. The present paper consists of a bibliographic revision that presents a brief history of the health field of Psychology, more specifically public health. Questions the traditional practises of psychology in this context and presents alternative proposals of collective health psychological practises. Specially centred on public health policy, health problem prevention and health promotion, it is based on Social Psychology theoretical framework. It is concluded that Social Psychology does not summarise the total of all possibilities of intervention and understanding about the theme in question, but it presents itself as a coherent field and it is important for actions in collective heath. Key-Words: Social Psychology, Collective Heath, Psychological Practises * Psicóloga, Residente de Psicologia no Hospital Universitário da UFJF. ** Psicólogo, Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Coordenador do Pólo de Pesquisa em Psicologia Social e Saúde Coletiva (POPSS). Contato: telmo.ronzani@ufjf.edu.br Introdução A constituição da Psicologia como campo de conhecimento e profissão faz- se no entrelaçamento de diversos saberes e acontecimentos de ordem social, política e econômica, como bem demonstra a história da psicologia. Cruzamentos estes que foram produzindo diversos desdobramentos, gerando multiplicidade em termos de teorias e de práticas, na tentativa de dar conta das diferentes demandas cotidianas (Saldanha, 2004). O psicólogo, como profissional, no Brasil, tem uma história muito recente. Resumo Abstract __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Psicologia em Pesquisa | UFJF | 1(02) | 11 - 22 | julho - dezembro de 2007 Aguiar, S. G. & Ronzani T. M. 1 Apesar de o ensino da Psicologia ser feito desde os anos 1930, foi somente em 1962 que a psicologia passou a existir como profissão (Dimenstein, 1998). Assim, há três décadas os psicólogos garantiram um espaço institucionalizado de trabalho. Sabe-se que com a regulamentação, o psicólogo passou a atuar em basicamente quatro áreas: clínica, escolar, industrial e magistério, áreas que atualmente estão bastante ampliadas e que não correspondem mais ao universo de atuação do psicólogo brasileiro. Segundo Dimenstein (1998), a própria pressão do mercado de trabalho passou a impulsionar os profissionais para outros campos de atuação. A assistência pública, dentre estas novas áreas, foi para onde convergiu uma considerável parcela dos profissionais. “As quase três décadas desde que a profissão foi regulamentada foram acompanhadas de um alargamento dos campos de atuação do psicólogo, forjado pelo próprio crescimento do contingente de profissionais assim como pelo maior conhecimento de sua atividade e, conseqüentemente, pelo aumento da demanda por seus serviços” (Spink, 2003, p. 122). Um marco importante sobre a inserção do psicólogo nos serviços de saúde ocorreu em São Paulo a partir de 1982, com a adoção de uma política explícita, por parte da Secretaria da Saúde, da desospitalização e da extensão dos serviços de saúde mental à rede básica. A política adotada pela Coordenadoria de Saúde Mental levou à criação de equipes de saúde mental integradas por equipes mínimas, das quais o psicólogo fazia parte, que passariam a atuar nos centros de saúde. “Constituía- se, assim, uma redede serviços teoricamente integrados com atuação nos níveis primário, secundário e terciário” (Spink, 2003, p. 30). Yamamoto (2003, p. 41), a respeito da situação profissional da psicologia no Brasil, comenta que o levantamento feito pelo Conselho Federal de Psicologia evidencia duas tendências: “de uma parte a manutenção da hegemonia clínica com relação às demais; de outra, uma ampliação das oportunidades profissionais, proporcionada pela abertura de novos espaços de inserção social”. Sendo que um destes espaços é o campo da saúde. Como diz o autor (op. cit, p. 48): “Um dos campos onde a psicologia tem mostrado maior inserção é o da saúde. (...) Os psicólogos ingressam no campo da saúde através de duas formas: nas Unidades Básicas de Saúde, articulados aos demais profissionais do campo, e nos Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS)”. Silva afirma que: A psicologia clínica durante décadas foi pensada e planejada como disciplina autônoma. É relativamente recente sua inserção em instituições de saúde pública, nas diferentes instâncias de serviços. Com as modificações no sistema de saúde, a psicologia, bem como as demais profissões consideradas da área de saúde, que praticamente só eram absorvidas em instituições ambulatoriais e hospitalares, passam a ser incorporadas às Unidades Básicas. Isto se torna possível a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) (...) para que __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Psicologia em Pesquisa | UFJF | 1(02) | 11 - 22 | julho - dezembro de 2007 Aguiar, S. G. & Ronzani T. M. 1 se chegasse a um Sistema Único de Saúde que possibilitasse uma atenção integral à saúde (1992, p. 25). Spink (2003) acrescenta ainda, em acordo com os autores anteriormente citados, que, até recentemente, o campo da atuação da psicologia se resumia a duas principais dimensões: em primeiro lugar, as atividades exercidas em consultórios particulares. Uma atividade exercida de forma autônoma, como profissional liberal e, de forma geral, não inserida no contexto dos serviços de saúde. A segunda vertente compreendia as atividades exercidas em hospital e ambulatórios de saúde mental. No campo da saúde, a autora considera que importantes transformações ocorreram entre os anos 1970 e 1990 e possibilitaram a inclusão do psicólogo nas ações de saúde. Primeiro houve uma ressignificação da causalidade na explicação da doença, passando a ser vista como um processo e, especialmente, como um fenômeno complexo e transdisciplinar, que precisa ser abordado de forma integradora englobando as dimensões biopsicossocial. A nova linguagem abriu espaço para ação e explicação de cunho psicológico. As mudanças foram lentas, mas o espaço foi sendo conquistado, por exemplo, nos hospitais (Spink, 2003, p. 153). A psicologia, embora intimamente relacionada ao conceito de saúde (definida pela Organização Mundial de Saúde como bem-estar físico, mental e social), como disciplina, chega tardiamente à área da saúde. Chega tarde neste cenário e “chega miúda, tateando, buscando ainda definir seu campo de atuação, sua contribuição teórica efetiva e as formas de incorporação do biológico e do social ao fator psicológico, procurando abandonar os enfoques centrados em um indivíduo abstrato e a-histórico tão freqüentes na psicologia clínica tradicional” (Spink, 2002, p. 30). Mais recentemente, surgiu no cenário da psicologia a psicologia da saúde, que tem se orientado mais pelos problemas vinculados ao desenvolvimento da saúde humana do que pela doença (Rey, 1997). O desenvolvimento da psicologia da saúde estimulou o trabalho do psicólogo no âmbito da prevenção e da promoção da saúde, assim como sua participação em equipes interdisciplinares, tanto em instituições de saúde quanto em sua atuação no trabalho comunitário, tornando-se um espaço importante de prevenção e promoção de saúde. O desenvolvimento de uma psicologia comunitária orientada pelo trabalho nas áreas de saúde, independentemente das orientações teóricas às quais se filia, na verdade representou um questionamento aos estanques rígidos definidos nas pesquisas e nas práticas psicológicas (Rey, 1997). Segundo Bock (2001, p. 30), o termo psicologia da Saúde aparece a partir do Seminário Internacional da Saúde realizado em Cuba e relatado no Jornal do Psicólogo, nº 11/84. Esta expressão ‘psicologia da Saúde’ também é usada por Spink (2003) como um novo campo do saber. Para Spink (2003), falar da psicologia da saúde como novo campo do saber parece ser, à primeira vista, uma temeridade. Afinal, os aspectos psicológicos da saúde/doença vêm sendo discutidos desde longa data, e os psicólogos já há muito vêm marcando presença na área de saúde mental. Entretanto, mudanças recentes na forma de inserção dos psicólogos na saúde e a abertura de novos campos de atuação vêm introduzindo transformações qualitativas na prática que requerem, por sua vez, __ SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA ________________Psicóloga Fernanda Wosny Carvalho – CRP-08/17.180_____________ Psicologia em Pesquisa | UFJF | 1(02) | 11 - 22 | julho - dezembro de 2007 Aguiar, S. G. & Ronzani T. M. 1 novas perspectivas teóricas. É isto, pois, que nos permite afirmar que estamos nos defrontando com a emergência de um novo saber. Os fatores conjunturais (a maior aceitação da psicologia e o crescimento do número de profissionais), associados à postura crítica de certos segmentos da profissão, levaram à definição de novas áreas de atuação, buscando estender os serviços psicológicos às camadas mais pobres da população e, neste afã, ampliar o referencial teórico de modo a focalizar os problemas sociais mais amplos subjacentes à problemática individual. “Nesse processo, muitos psicólogos deslocaram suas atividades dos consultórios particulares, inserindo-se diretamente na comunidade ou nas instituições voltadas ao atendimento das camadas desprivilegiadas da população” (Spink, 2003, p. 122). Num processo de revisão dessas práticas e a busca por melhores formas de responder às necessidades dos diferentes locais de atuação, foi gerando novos campos de saber e ampliou sua inserção na saúde. A Psicologia Social como alternativa para a nova prática Na fomentação de uma nova política pública de saúde, abrem-se espaços de trabalho para a psicologia, que passa a problematizar a aplicação das práticas tradicionais em novo cenário de atuação. Outras ferramentas de intervenção – mais apropriadas para a efetiva inserção na área – devem ser construídas para o trabalho na Saúde Pública, a fim de que possam contribuir com as transformações propostas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A Psicologia Social da Saúde, que compreende, em seus pressupostos, uma intervenção mais local e coletiva, tem sido um importante campo de conhecimento e prática para construir formas diferenciadas de intervenção na saúde. A psicologia social, tendo como arena de atuação a complexa relação entre a esfera individual e a social, tem necessariamente uma vocação
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