Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
183 Este capítulo tem o objetivo de apresentar o último ciclo de vida – a velhice – e suas diversas relações com a violência. Apresenta um caso verídico, ocorrido em uma comunidade do Rio de Janeiro, seguido de textos para auxiliar a reflexão, e de referências para consulta. Finaliza o capítulo um exercício de avaliação do conteúdo aqui proposto. CASO A HISTÓRIA DA FAMÍLIA CABRAL A família Cabral é atendida por uma equipe do Programa de Saúde da Família e é um exemplo dos vários tipos de problemas sociais e de violência envolven- do famílias inteiras. Maus-tratos, negligência, abandono, fome, desnutrição, deficiência motora, deficiência mental, distúrbios psíquicos, alcoolismo, tuber- culose, Aids, abuso sexual, prostituição e uso de drogas estão presentes na história dessa família e no cotidiano de seus familiares. No centro de toda essa trajetória de pobreza e exclusão social está dona Rosa que, aos sessenta e poucos anos de idade, cuida do pai, dos nove filhos e dos netos. Dona Rosa é crente e sofre de diabetes. Mora sozinha no alto do morro, num barraco cedido que não tem banheiro nem água encanada. Atualmente está para ser despejada. Ao redor, em outros barracos, estão o ex-marido de dona Rosa – que bebe muito e também é diabético –, os filhos e os netos. Recentemente, dona Rosa teve que dar uma atenção especial à filha, quando esta quebrou a perna e ficou imobilizada por 45 dias. A moça é alcoólatra e sempre traz problemas para a mãe. 8. A violência contra os idosos Amaro Crispin de Souza Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 183Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 183 09/04/2009 10:04:5809/04/2009 10:04:58 IMPACTOS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE 184184 Dona Rosa é negra e estudou até a 3ª série primária. Engravidou ainda adoles- cente e teve uma filha sozinha. Quando essa criança tinha apenas dois anos, dona Rosa conheceu um rapaz, com quem foi morar, na casa da sogra. O com- panheiro assumiu a paternidade da menina, registrando-a em seu nome. Dona Rosa e o marido tiveram mais oito filhos. Ele trabalhava numa casa de móveis, não consumia bebidas alcoólicas, mas era mulherengo. Aos poucos, começou a maltratar dona Rosa e, quando as crianças eram pequenas, ele expulsou-a de casa junto com os filhos. Ela foi embora do bairro com as nove crianças e só voltou quando foi chamada a cuidar da sogra, doente e também maltratada pelo filho. Quando dona Rosa conseguiu se separar do companheiro, ele não manteve contato com os filhos e nem ajudou a criá-los. Trabalhando como faxineira para sustentar a família, todos os dias, ao sair de casa, deixava a comida pron- ta. A filha mais velha cuidava dos irmãos menores enquanto a mãe trabalhava. Todos freqüentaram a escola. No entanto, mesmo com os filhos crescidos, a família continuou a passar necessidade. Faltava comida. Dona Rosa ficou doente e foi internada em um hospital psiquiátrico. Após esse episódio, dona Rosa não voltou a morar com os filhos. Ela agora dava trabalho aos outros e estava incomodada porque ficava com “muito ba- rulho na cabeça”. Há alguns anos havia se tornado crente, o que a ajudou muito. Hoje em dia diz sentir-se bem melhor; deixou de tomar tranqüilizantes e, quando necessário, utiliza um chá caseiro como calmante. Lamenta sua con- dição de vida e a de seus filhos, que não a ajudam. Na verdade, eles também precisam de ajuda. Alguns lidam com drogas ilegais; outros consomem bebi- das em excesso; uma delas está envolvida com prostituição; e outra, ainda, é deficiente mental e foi internada após um surto psiquiátrico. Esta moça tam- bém é suspeita de ter praticado abuso sexual contra a filha, que passou uns tempos morando com dona Rosa. Dona Rosa lutou durante anos para satisfazer, ainda que minimamente, as necessidades materiais e afetivas dos filhos, em detrimento de suas próprias necessidades, muitas vezes esquecidas. Chegou um momento em que não su- portou tantos sofrimentos e a miséria, aliados às cobranças constantes por parte dos filhos e netos. Resultado: adoeceu, “pirou”, “pifou”. Posteriormen- te, reconstruiu como pôde sua rede de relações, primeiramente apoiada ape- nas nos serviços de saúde e em seguida, de forma preponderante, na religião e na igreja evangélica, que a ajudaram a melhorar sua identidade e auto-es- tima. Depois de tanto sofrimento, dona Rosa descobriu, ou recuperou, a ge- nerosidade para consigo mesma. Ao menos do ponto de vista subjetivo, obte- ve uma melhora de “qualidade de vida”. Atualmente usufrui do prazer de fazer compras pessoais parceladas e de quitar suas dívidas com dinheiro que ganha do próprio trabalho. Por algumas semanas, esteve num quiosque da praia vendendo hambúrgueres para pagar um perfume e um CD de música evangélica. Embora continue sem ter onde morar ou como viver dignamente, não deixa de dar apoio aos filhos e aos netos, a cada problema que surge. Essa história e muitas outras abordando famílias ao longo dos ciclos vitais estão relatadas na tese de doutorado A abordagem da violência intrafamiliar no Programa Médico de Família: dificuldades e potencialidades, de Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti (2002). Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 184Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 184 09/04/2009 10:04:5809/04/2009 10:04:58 185 A violência contra os idosos 185 Para refletir Na sua opinião, que tipos de violências perpassam a vida de dona Rosa? O que o Programa de Saúde da Família ou outros serviços de saúde poderiam fazer para ajudar uma família em situação de tamanha exclusão social? A importância de se saber mais sobre o processo de envelhecimento A reflexão sobre a velhice e o processo de envelhecimento nos possibi- lita verificar se a imagem que temos do idoso interfere positiva ou nega- tivamente na sua inserção social. A percepção da velhice não deve se dar no âmbito da abstração. Para compreendê-la é necessário situar o idoso em um meio específico, verificando até que ponto e em que medida esse contexto contribui para sua saúde ou doença. A dificuldade de se entender o idoso explica-se em função da nossa for- mação histórico-social. Durante muito tempo o Brasil foi um país consti- tuído por uma população majoritariamente jovem. Em virtude de vários fatores – diminuição dos níveis de fertilidade, aumento da expectativa de vida, melhoria nas condições de saúde e saneamento básico etc. –, o perfil da nossa população está mudando. Hoje, convivemos com um número crescente de pessoas com mais de 65 anos. Mas, embora esse avanço na qualidade de vida da população tenha pos- sibilitado ao idoso uma certa visibilidade social, nós o percebemos por meio do preconceito e dos estereótipos. Esses estereótipos impedem que nos aproximemos dele respeitando as suas peculiaridades, pois encara- mos a velhice como uma idealização, um ponto de perfeição a ser alcan- çado, o que dificulta a compreensão do idoso como sujeito histórico. Segundo as projeções estatísticas da Organização Mundial da Saúde, no período de 1950 a 2025 os idosos no Brasil terão aumentado o seu contingente em 15 vezes, alcançando, em 2025, cerca de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais de idade (BRASIL, 1999). Enquanto a Europa levou mais de um século para se perceber velha, o Brasil vem apresentando essa mudança a partir da segunda metade do século passado. É importante atentarmos para esse fenômeno agora, pois em pouco tempo teremos problemas estruturais decorrentes dessa Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 185Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 185 09/04/2009 10:04:5809/04/2009 10:04:58 IMPACTOS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE 186186 mudança. Compete-nos, por conseguinte, resgatar o idoso como pos- suidor de uma vida ativa, possibilitando a integração das dimensõespassado-presente-futuro, criando uma nova imagem da velhice. Para você, o que é ser velho? O envelhecimento é: um processo biológico, que é real e pode ser reconhecido por sinais externos do corpo. A velhice é apropriada e elaborada simbolicamente por todas as sociedades, em rituais que defi- nem, nas fronteiras etárias, um sentido político e organizador do sistema social (MINAYO; COIMBRA JÚNIOR, 2002, p. 14). O velho não é diferente daquilo que sempre foi. Ao envelhecermos, ten- demos a aumentar as características positivas ou negativas da nossa per- sonalidade. Se fomos amáveis, dóceis, compreensivos, amigos e bondosos quando jovens, seremos muito mais ainda nessa fase da vida. O contrá- rio se dará na mesma proporção. As várias dimensões do envelhecer É importante destacar que o envelhecimento deve ser analisado consi- derando as diferentes dimensões apresentadas a seguir: Dimensão ética Resgate do idoso como possuidor de uma vida ativa. Integração das dimensões passado-presente-futuro: identidade- temporalidade. Criação de uma nova imagem de velhos e velhas. Dimensão psicológica Inadequação entre o processo biológico da pessoa e as exigên- cias do meio ambiente em que vive. Angústias passadas revividas provocam descompensações. Fobia social como resultado da agressividade de nossa sociedade em relação ao idoso. Dificuldade de encarar o envelhecer. Um exemplo claro desse processo é quando uma pessoa, acostumada a se ver – e ser vista Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 186Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 186 09/04/2009 10:04:5809/04/2009 10:04:58 187 A violência contra os idosos 187 pelos outros – sempre bela e jovem, ao envelhecer continua cul- tuando essa imagem, que não corresponde mais à realidade, consi- derando o processo de transformação pelo qual está passando. Acontecimentos vitais ou modificações fisiológicas podem acarretar rup- turas da trajetória psíquica e afetiva, tais como: privações sensoriais; comprometimento da motricidade; aposentadoria; privações sociais; fenômenos dolorosos; permanência em albergues ou hospitais. Dimensão social Quanto mais idosa, mais a pessoa tem tendência a ver seu ambiente humano modificado, subvertido. Com a diminuição do seu dinamismo, há uma tendência pro- funda do idoso à introversão. Todas as situações de isolamento social favorecem o apareci- mento do medo, da angústia e solidão. Os idosos enfrentam rupturas com o trabalho, com os amigos e familiares que morrem, com mudança de domicílio etc. Parar de trabalhar pode tornar o idoso dependente de outras pessoas e de sua família. Essa dependência, no plano material, espe- cialmente financeiro, coloca o idoso em uma situação de refém, levando-o, muitas vezes, a recorrer aos familiares e a outras pessoas para suprir suas necessidades vitais. O idoso, não sendo dono da sua vontade, perde a dimensão da subjetividade. Dimensão existencial Podemos afirmar que a velhice é o lugar da solidão. É o momento em que o homem se vê diante de si mesmo, na integridade e na pureza do seu ser, sem as amarras e as ilusões que as tarefas cotidianas lhe propor- cionavam. Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 187Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 187 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 IMPACTOS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE 188188 Não tendo mais os pretextos das tarefas cotidianas a que se apegar, só resta ao velho o enfrentamento com a sua história. Essa introspecção pode ser o ponto de partida para novas conquistas e novas realizações; do contrário, se tornará um ser à espera da morte. Envelhecimento e violência Além das perdas biológicas, psicológicas e sociais, o velho se defronta com as dificuldades ambientais – o meio onde reside e os locais que fre- qüenta. Essas dificuldades são encontradas na própria residência – esca- das, iluminação precária, chão escorregadio etc. – e também no espaço público, que é inadequado – transporte coletivo sem adaptação, calçadas irregulares, iluminação pública precária, prédios com acesso dificultado, rede de serviços não adaptada às dificuldades do velho e prestadores de serviços essenciais despreparados. As dificuldades já apontadas demonstram de que modo o velho está suscetível a se tornar vítima de violências na família e fora dela. Se nas sociedades primitivas o desejo de morte aparece em rituais e cerimônias, nas sociedades ocidentais esse desejo se expressa, sobretudo, nos confli- tos intergeracionais, nas várias formas de violência física e emocional, e na negligência de cuidados. No caso brasileiro, os maus-tratos e os abusos são os mais variados. Cometidos quase sempre pelas famílias, eles vão desde os castigos em cárcere privado, abandono material, apropriação indébita de bens, pertences e objetos, até a tomada de suas residências, coações, ameaças e morte. Violência na família Os dados bibliográficos retratam que 95% dos casos de violência con- tra os idosos ocorrem na família. Embora importante para a formação da personalidade e para o fortalecimento dos vínculos afetivos, muitas vezes a família não é o melhor lugar de acolhimento do idoso, principal- mente se ele for dependente, em função das intercorrências e dos atra- vessamentos comuns em toda relação familiar. O que vai garantir uma boa acolhida, em caso de dependência parcial ou total, é a qualidade dos vínculos estabelecidos entre o idoso e aqueles que estiveram mais próximos dele ao longo dos anos. Se esses vínculos forem satisfatórios, com certeza a família estará predisposta a assumir a responsabilidade pelo cuidado, em caso de necessidade. Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 188Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 188 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 189 A violência contra os idosos 189 Para refletir Você tem idosos na sua família? Reflita sobre essas dimensões e as dificuldades encontradas pelos idosos em seu contexto familiar. Esses vínculos negativos, somados à diminuição da capacidade funcio- nal (entendendo-a como desempenho satisfatório das atividades da vida diária e autogerenciamento), tornam o idoso uma vítima em potencial de violência. Texto para reflexão sobre o caso A história da família Cabral Um levantamento feito em 2005 pela equipe de pesquisadores do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde (Claves) demonstrou que a violência contra a pessoa idosa é um importante fator de deterio- ração da qualidade de vida desse grupo populacional. O levantamento e a análise dos casos de violência e desrespeito ao idoso pautaram-se nos registros da Delegacia do Idoso e do Núcleo Especializado de Aten- dimento à Pessoa Idosa (Neapi), no ano de 2004. Procurou-se caracteri- zar as denúncias, os idosos e os agressores. Os resultados mostram que foram feitos 898 registros em 2004, sendo 763 na Delegacia do Idoso e 135 no Neapi. Os motivos mais freqüentes de denúncias na delegacia são os maus-tra- tos (48,5%), o constrangimento ilegal (11,1%), a apropriação indébita (10%) e a ameaça (9,4%). No Neapi, os maus-tratos (47,4%) e a apro- priação indébita (24,0%) também constituem as principais queixas dos idosos. Neste último órgão, o abandono aparece ainda como importante motivo de denúncia em 21% dos registros. As mulheres (62% na dele- gacia e 75,7% no Neapi) são mais vitimadas que os homens. Os algozes são, na maioria das vezes, os próprios filhos/enteados dos idosos (52,3% na delegacia e 53,4% no Neapi) e as áreas de incidência da maioria das violências foram a zona sul e a zona norte da cidade do Rio de Janeiro (Áreas Programáticas 2.1, 3.2 e 3.3). Conclui-seque há necessidade de investir no preenchimento adequado dos registros, na qualificação dos profissionais para o atendimento e na quantidade de órgãos de defesa do idoso. A violência doméstica que se Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 189Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 189 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 IMPACTOS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE 190190 abate sobre o idoso revela que a família, principal responsável pelo seu cuidado, deve ser alvo de estratégias políticas que lhe forneçam suporte e reforcem os vínculos entre seus membros, favorecendo o exercício do seu papel protetor. Esses dados demonstram apenas uma pequena porcentagem do total de idosos maltratados, pois, em sua maioria, eles temem por si próprios ou zelam pela família, deixando assim de procurar ajuda. O fato de a família ser considerada sagrada e intocável pode estar contribuindo para que as situações de abuso, negligência, violência e maus-tratos, existentes nesse meio, permaneçam ocultadas pelos envolvidos. A quebra do silên- cio representa assumir-se como vítima ou como abusador, desmorali- zando a família, considerada sagrada, e tendo de enfrentar o preconceito da sociedade (SAFFIOTI apud FIGUEIREDO, 1998, p. 133). Embora não possamos ser coniventes com a violência em nenhuma cir- cunstância, é importante entender os atravessamentos que perpassam a relação familiar. O conflito existente entre os idosos e seus filhos pode ser entendido de várias maneiras. Figueiredo (1998) fala de uma inver- são de papéis, quando pais idosos e filhos jovens iniciam um convívio contínuo, que não existia anteriormente, no qual os filhos começam a tomar conta dos pais. Os idosos, que conviveram na infância com o perfil patriarcal de seus pais, dificilmente conseguirão aceitar o papel que lhes é atribuído na sociedade contemporânea. Quando necessitam de ajuda de terceiros para sobreviver, como os que moram com a família devido a problemas de saúde, apresentam maiores riscos de sofrer algum tipo de abuso ou maltrato, principalmente se não houver entendimento entre eles e a família. Em muitas situações, o fato de os idosos possuírem casa própria faz com que seus filhos e netos venham morar com eles, propiciando a ocorrên- cia do maltrato. Segundo Sánchez (1997), briga conjugal, desentendi- mentos com filhos, falta de recursos econômicos e falta de espaço são fatores que podem contribuir para o abuso e maltrato familiar contra o idoso, mesmo sendo este o proprietário do local onde reside a família. São denunciados muitos casos de parentes que vão morar com o idoso e acabam se apropriando de seus bens e ameaçando-o de expulsão de sua própria casa, com uso de violência física e psíquica para tentar forçá-lo a transferir ou inventariar seus bens ainda em vida. Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 190Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 190 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 191 A violência contra os idosos 191 Alguns tipos de violência mais comuns contra os idosos As violências que costumam ocorrer com idosos são o abuso físico, psico- lógico, sexual, o abandono e a negligência. A negligência é uma das for- mas de violência contra os idosos mais presentes no nosso país. Freqüen- temente ela se manifesta associada a outros abusos que geram lesões e traumas físicos, emocionais e sociais, em particular para as pessoas que se encontram em situação de múltipla dependência ou incapacidade. Também ocorrem o abuso financeiro e econômico e a autonegligência, que diz respeito à conduta da pessoa idosa que ameaça sua própria saúde ou segurança, pela recusa de prover cuidados necessários a si mesma. Violência fora da família A compreensão dos vários tipos de violência de que são vítimas os idosos passa, em primeiro lugar, pela contextualização histórica dos eventos analisados. Quando analisamos a “política de desenvolvimento urbano”, a ser exe- cutada pelas prefeituras e câmaras municipais com o objetivo de “orde- nar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, conforme preconiza a Constituição Federal, artigo 182, verificamos que cabe aos prefeitos e aos vereadores garantir a qualidade de vida nas áreas da educação, saúde, lazer, segu- rança e, parcialmente, na área do trabalho. Mas quando a velhice é negligenciada, desdenhada, será sempre um problema e um grave ônus para a família, para a sociedade e para os poderes públicos municipal, estadual e federal. Concluindo, o Estatuto do Idoso, sancionado em 2003, significou um avanço na percepção das necessidades da pessoa idosa, mas a imple- mentação de todos os seus artigos reporta a atitudes que devem ser tomadas pelo poder público e que reclamam investimentos em vários setores. Esses recursos, que ainda não atingem verbas tão vultosas, não justificam adiamentos nem impedem que o Estado e a sociedade civil organizada tomem uma atitude diante do fenômeno do envelhecimento e da velhice. Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 191Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 191 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 IMPACTOS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE 192192 Os setores de promoção social desde o plano local, assim como os cen- tros de referência pertinentes aos idosos, devem ser adequadamente preparados para indicar, recomendar e, quando preciso, encaminhar pessoas mais velhas que precisam de assistência, proteção, reabilitação e estímulo social, em ambientes seguros e humanizados. Quando forem constrangidas a viver em lares ou estabelecimentos asilares, elas deverão desfrutar plenamente de seus direitos e das liberdades fundamentais, com pleno respeito a suas crenças e intimidade, de modo a poderem tomar suas próprias decisões na busca da qualidade de vida no local. Para o enfrentamento das necessidades básicas de apoio e assistência aos mais velhos, é fundamental que o trabalho não se reporte apenas a relatórios e observações. As ações devem ter alcance direto e aplicação de recursos onde isso seja conveniente. Violência dentro de casa Muitos dos casos de violência e maus-tratos contra idosos são cometidos por pessoas próximas à vitima – o vizinho, o amigo e, principalmente, os seus familiares. Antônio Quelce Salgado, presidente do Conselho Esta- dual do Idoso de São Paulo e membro do Conselho Nacional do Idoso, explica que a violência contra os idosos pode acontecer de várias formas, desde a psicológica, que se manifesta pela negligência e pelo descaso, até as agressões físicas. São comuns os casos de filhos que batem nos pais, tomam seu dinheiro, dopam-nos, deixam-nos passar fome ou não lhes dão os remédios na hora marcada. Casos como esses últimos são chamados de abandono material. Estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), com base nas ocorrências registradas pela Delegacia de Proteção ao Idoso de São Paulo, em 2000, mostra que 39,6% dos agressores eram filhos das vítimas; 20,3%, seus vizinhos; e 9,3%, outros familiares. As ocor- rências registradas com maior freqüência foram as ameaças (26,93%), seguidas de lesão corporal (12,5%) e de calúnia e difamação (10%,84). O estudo mostrou, também, que algumas queixas de ocorrências são retiradas pelos idosos dias após a denúncia. Nos registros, os idosos argu- mentam que precisam viver com a família, têm de voltar para casa, e a manutenção da queixa atrapalharia a convivência. Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 192Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 192 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 193 A violência contra os idosos 193 A questão da violência contra o idoso é de ordem mundialA violência contra a pessoa idosa acontece em todos os países e repre- senta um problema de saúde pública. Silenciosa, ocorre na maior parte das vezes dentro de casa – negligência, intolerância e até exploração financeira – muitas vezes praticada por pessoas da própria família. De acordo com dados do IBGE, 55% dos idosos são mulheres. Elas vivem em média oito anos a mais que os homens. Na verdade, nascem mais homens do que mulheres, mas por volta dos 15 anos, principalmente nos grandes centros urbanos, esses homens estão mais expostos aos ris- cos da violência. A maior parte dos agressores são filhos solteiros ou aqueles que se sepa- ram e voltam para casa de suas mães. Uma grande dificuldade para essas idosas é denunciar o próprio filho, que passa por um processo interno de culpabilização. Em outras palavras, é como se ela estivesse atestando que falhou na educação da sua família. Muitas das mulheres idosas nunca trabalharam. São viúvas e dependem exclusivamente da pensão do seu marido. Tratados internacionais elegeram a questão da violência contra os idosos como prioritária. Em 2005, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos lançou o Plano de Enfrentamento à Violência contra a Pessoa Idosa. Cerca de seis mil profissionais que trabalham com a questão foram capa- citados, mas esse é um assunto novo, velado. Diferentemente do que ocorre com a criança e a mulher, esse tipo de violência ainda não é reconhecido (VIOLA, 2006). Para refletir A violência que atinge o idoso na família – como, por exemplo, no caso da dona Rosa – é um problema individual que deve ser resolvido somente entre as partes envolvidas ou requer ações do poder público? Como garantir que o idoso maltratado possa denunciar o agressor e manter a sua integridade preservada? Pense nos mecanismos que poderiam ser criados para que a denúncia feita por ele seja mantida. No seu entender, como seria explicada a questão de gênero na violência contra a pessoa idosa? Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 193Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 193 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 IMPACTOS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE 194194 Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 1395, de 09 de dezembro de 1999: alguns aspectos da população idosa brasileira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 dez. 1999. Seção 1. . Ministério da Saúde. Datasus. Indicadores e dados básicos – Brasil, 2005 (IDB-2005). Disponível em: < http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2005/matriz.htm>. Acesso em: 05 ago. 2006. . Presidência da República. Sub-Secretaria dos Direitos Humanos. Idosos brasileiros: indicadores de condições de vida e acompanhamento de políticas. Brasília, 2005. CAVALCANTI, M. L. T. A abordagem da violência intrafamiliar no programa médico de família: dificuldades e potencialidades. 2002. Tese (Doutorado) Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2002. DIMENSTEIN, G. O cidadão de papel. 19. ed. São Paulo: Ática, 2000. FERICLA, J. Envejecer: una antropología de la ancianidad. Barcelona: Anthropos, 1992. FERNANDES, M. G. M.; ASSIS, J. F. Maus-tratos contra idosos: definições e estratégias para identificar e cuidar. Gerontologia, São Paulo, v. 7, n. 3, p. 144-149, 1999. FIGUEIREDO, S. C. S. Abuso de pessoas idosas na família: um ensaio. Gerontologia, São Paulo, v. 6, n. 3, p. 126-135, 1998. . Abuso em pessoas idosas: algumas considerações. Gerontologia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 140-142, 1997. GABINET, I. St. Joseph’s health center woman abuses protocol. Toronto: ON, 1996. GROSSI, P. K. Violência contra a mulher na esfera doméstica: rompendo o silêncio. 1994. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1994. IBGE. Anuário estatístico: censo demográfico brasileiro de 1995. Rio de Janeiro,1997. MACHADO, L. Elder abuse and neglect: a new challenge on aging in Brazil. In: WORLD CONGRESS OF GERONTOLOGY. Proceedings of the... Adelaide, Austrália, 1997. .; QUEIROZ, Z. Negligência e maus-tratos. In: FREITAS, E. V. et al. Tratado de geriatria e gerontologia. São Paulo: Guanabara Koogan, 2002. p. 791-797. MATEUS, S. B. Disputa por bens causa violência contra o idoso. O Estado de São Paulo, São Paulo, set. 2000. MINAYO, M. C.; SOUZA, E. R. Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003. Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 194Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 194 09/04/2009 10:04:5909/04/2009 10:04:59 195 A violência contra os idosos 195 .; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Antropologia, saúde e envelhecimento. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2002. SÁNCHEZ, C. D. Intervención y manejo en casos de abuso y maltrato de personas ancianas. Trabalho apresentado no 5. Encuentro de Trabajo Social, Mexico Centroamérica y el Caribe, San Juan, jul. 1997. VIOLA, D. Dia mundial de combate à violência contra o idoso. Disponível em: <http://www.cemina. org.br>. Acesso em: 05 ago. 2006. ZIMERMAN, G. Velhice: aspectos biopsicossociais. Porto Alegre: Artmed, 2000. Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 195Impactos da Violência na Saúde_miolo.indb 195 09/04/2009 10:05:0009/04/2009 10:05:00
Compartilhar