Buscar

Capítulo 1

Prévia do material em texto

Capítulo 1: Parte 1
Concurso de Pessoas
O tema concurso de pessoas, além de constituir importante etapa na imputação de condutas criminosas, é tema recorrente em exames e concursos públicos.
É matéria, ainda, corriqueira na prática penal, de modo que magistrados, promotores de justiça, delegados de polícia, defensores públicos e advogados devem conhecê-la profundamente.
Nesse capítulo, analisaremos os requisitos de configuração e as modalidades do concurso de pessoas, bem como peculiaridades sobre a autoria e a participação em sentido estrito, observando detidamente as importantes teorias que permeiam o assunto. Não obstante, estudaremos os reflexos do tema na responsabilização penal.
OBJETIVOS
• Compreender o conceito de concurso de pessoas e sua importância na delimitação da responsabilidade penal.
• Distinguir autoria de participação em sentido estrito, observando a evolução das teorias sobre o tema.
• Observar a influência das teorias de origem europeia na constituição de um conceito de autor.
• Perceber os reflexos da matéria na subsunção do comportamento à norma penal.
1.1 Primeiras linhas
As infrações penais, em sua maioria, podem ser praticadas por apenas um indivíduo, que, em virtude dessa atuação isolada, será considerado seu autor. Todavia, também podem ser objeto de uma prática plural, naquelas hipóteses em que duas ou mais pessoas, subjetivamente vinculadas, contribuem para a sua ocorrência. Nesse último caso, estaremos diante do fenômeno do concurso de pessoas.
CONEXÃO
Para perceber a dinâmica de um concurso de pessoas, recomenda-se o filme Assalto ao Banco Central (2011).
Quando o crime aceita cometimento por uma pessoa, ou por várias, ele é classificado como delito de concurso eventual, ou monossubjetivo.
EXEMPLO
O homicídio (art. 121, Código Penal), por exemplo, se encaixa nesta classificação, assim como o roubo (art. 157, Código Penal), o estupro (art. 213, Código Penal), a embriaguez ao volante (art. 306 da Lei n. 9.503/97) e o tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06), entre outros.
Podemos vislumbrar um homicídio em que haja um único autor?
Claro que sim! Basta pensarmos em uma briga de bar, em que duas pessoas discutem, até o momento em que uma delas saca uma arma e, tomada pela ira, mata a outra.
E pode ele ser praticado por duas ou mais pessoas? 
A resposta é igualmente positiva.
Tomemos como exemplo a mesma briga de bar, agora entre três pessoas.
Duas delas investem contra a terceira e passam a agredi-la aos socos e chutes até a provocação de sua morte. O homicídio, portanto, é monossubjetivo.
No entanto, o concurso de pessoas pode ser obrigatório em alguns tipos penais, ocasião em que estaremos diante de crimes plurissubjetivos, ou de concurso necessário.
RESUMO
Concurso eventual x concurso necessário:
	Concurso Eventual
	Concurso Necessário
	Crime unissubjetivo ou monossubjetivos
	Crime plurissubjetivo
	Praticado por uma pessoa, mas que eventualmente podem ser praticados por duas ou mais pessoas.
	Praticado por duas ou mais pessoas
	Aplica-se: Art. 29, caput do Código Penal -Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
	Aplica-se: o disposto no próprio tipo penal, já que esse irá conter - no mínimo - duas ou mais pessoas.
EXEMPLO
Podemos citar a associação criminosa (art. 288 do Código Penal), em que se exige vínculo associativo entre três ou mais pessoas; a associação para o tráfico de drogas (art. 35 da Lei n. 11.343, de 2006), que requer a presença de no mínimo dois associados; e a organização criminosa (art. 1º, § 1º, c/c art. 2º, ambos da Lei n. 12.850, de 2013), composta por ao menos quatro agentes.
1.2 Requisitos para configuração do concurso de pessoas
Para o reconhecimento de um concurso de pessoas, alguns requisitos impõem sua presença, a saber:
(a) pluralidade de condutas;
(b) relevância causal e jurídica das condutas praticadas;
(c) liame subjetivo entre os concorrentes.
Por pluralidade de condutas (a), entendamos a adoção de comportamentos pelos diversos agentes, visando à produção de um resultado comum (identidade da infração penal). Exemplificando, se alguém empresta uma chave falsa para que outrem cometa um furto qualificado, teremos a mencionada pluralidade.
Todavia, os comportamentos praticados devem, de fato, contribuir para a produção desse resultado comum (b). Assim, embora em posse da chave, se o executor opta por não a usar, valendo-se de outro meio, e sequer o empréstimo serve como estímulo para que o autor decida pelo furto, a cessão da chave não possui relevância causal no contexto da infração praticada. Portanto, o cedente não será partícipe do furto. Ainda, é imprescindível que haja adesão à vontade alheia (c). Aquele que empresta a chave conhecendo o propósito do autor do furto e sabendo que o instrumento será usado na empreitada criminosa, produz a referida adesão, denominada liame subjetivo.
COMENTÁRIO
Esse liame não existirá, por exemplo, se o autor insinua a um chaveiro que pretende treinar para trabalhar no mesmo ofício, obtendo com isso, mediante engodo, a posse do instrumento. Mister um parêntese: liame subjetivo não implica necessariamente acordo de vontades. Por exemplo, será participante de crime alheio o empregado de um estabelecimento empresarial que, violando seu dever profissional, deixa conscientemente de trancar um cofre existente na empresa, por saber da intenção de outro empregado em subtrair o seu conteúdo, com o que, mesmo sem a ciência do executor, facilita o delito.
1.3 Espécies de participação: a autoria
O concurso de pessoas pode se dar por atos de autoria ou de participação em sentido estrito. A divisão entre essas duas categorias de participantes (autores e partícipes) não é isenta de controvérsias, de modo que é imprescindível uma imersão nas teorias que buscam precisá-la.
Mas antes de qualquer aprofundamento teórico, impõe-se uma consideração aparentemente simples, mas que fará toda diferença na compreensão do tema:
A distinção entre autoria e participação não se reflete necessariamente na punição a ser aplicada ao agente. Isto é, a participação em sentido estrito não implica pena inexoravelmente menor, ou a autoria punição mais severa ao infrator.
Embora o partícipe não seja a figura principal da infração (o autor é essa figura), fica ele sujeito às mesmas margens penais (penas mínima e máxima) cominadas abstratamente ao delito praticado pelo autor. A quantidade de pena que será imposta dentro dessas margens penais é outra conversa. Há atos de participação em sentido estrito, embora não seja uma regra geral, que recebem o tratamento de agravantes (art. 62, II, do Código Penal, v. g.), ou seja, determinarão pena mais grave.
Com essa consideração, podemos passar às teorias que sustentam o conceito de autor.
1.3.1 Perspectiva unitária
Pela perspectiva unitária não há distinção entre autores ou partícipes. Assim, todos aqueles que contribuem, em uma mesma linha causal, para a ocorrência da infração, serão considerados seus autores.
Por esse prisma, a pessoa que, agindo de forma consciente e voluntária, com liame subjetivo, empresta a arma para que outra pratique um homicídio, será autora desse mesmo homicídio.
Com base na teoria da equivalência dos antecedentes, adotada pelo art. 13 do Código Penal, e verificando que o art. 29 do Código Penal, ao contrário do que faz o Código Penal alemão, não apresenta de forma clara a dicotomia entre autores e partícipes, pode-se afirmar que nossa legislação se inclina pela perspectiva unitária. Frise-se, contudo, nosso Código não adota de forma inequívoca nenhuma das teorias existentes. O que, visto sob outra ótica, permite afirmar que ele está aberto a todas.
1.3.2 Perspectivas diferenciadoras
1.3.2.1 Teoria subjetiva
A teoria subjetiva distingue autor de partícipe com base na vontade do agente: o autor é aquele que atua com animus auctori, ou seja, com vontade de autor (em apertada síntese, é a pessoa que deseja ainfração penal em nome próprio, ainda que não a execute); já o partícipe é movido pelo animus socii, ou seja, atua em nome alheio, em nome de outrem.
Um dos casos em que essa teoria foi aplicada, na Alemanha, se deu no julgamento de um espião russo, que, ao matar uma pessoa em solo germânico, o fez a mando de seus superiores. Entendeu- se que ele seria partícipe naquele crime, pois não desejava o crime para si, ao contrário, apenas obedecia a ordens.
ATENÇÃO
Importante consignar que, mesmo no direito alemão, onde ainda é utilizada, essa teoria vem sendo temperada, isto é, a jurisprudência exige alguns elementos objetivos em cotejo com a intenção do autor, ao invés da aplicação pura da teoria subjetiva.
1.3.2.2 Teoria formal-objetiva
Autor é quem realiza a ação típica, executando o crime.
Se a execução é dividida entre duas ou mais pessoas, ou seja, se cada pessoa exerce uma parcela dos atos executórios, há coautoria.
EXEMPLO
Em um homicídio, aquele que desfere o tiro fatal contra a vítima é seu autor, mas não aquele que contrata o pistoleiro; no roubo, aquele que constrange a vítima e o que arrecada seus bens, subtraindo-os, são seus coautores, ao passo em que quem planeja o crime é partícipe.
1.3.2.3 Teoria do domínio do fato
Insinuada por LOBE em 1933 e referida por WELZEL em 1939 (com a nomenclatura “domínio final do fato”), a teoria do domínio do fato só recebeu seus atuais contornos a partir dos estudos de ROXIN (1963). Busca estabelecer um critério mais preciso de distinção entre autoria e participação em sentido estrito. A teoria tem o autor como a figura central do delito, o que pode ocorrer em três hipóteses:
(a) autoria imediata;
(b) autoria mediata; e 
(c) autoria funcional.
1.3.2.3.1 Autoria imediata
Consiste no domínio da ação (realização pessoal do fato). Autor é quem executa o crime, controlando, dessa forma, o acontecimento criminoso. É o que ocorre, em uma lesão corporal, com o executor que golpeia a vítima, ou, no furto, em relação a quem diretamente pratica a subtração, por exemplo.
1.3.2.3.2 Autoria mediata
Definição mais complexa do que a anterior, pois encerra várias possibilidades.
A autoria mediata surge através do domínio da vontade alheia. Isso se dá quando o autor, por exemplo, induz uma pessoa ao erro (erro determinado por terceiro – art. 20, § 2º, do Código Penal); quando conduz o executor à ação criminosa em situação de inexigibilidade de conduta diversa (art. 22, do Código Penal); ou quando se vale de inimputável para a prática criminosa.
COMENTÁRIO
Em todos esses casos temos a figura do Hintermann (homem de trás), que domina a vontade do executor (o qual age, no mais das vezes, acobertado por uma causa de atipicidade – erro de tipo – ou de exculpação – inimputabilidade, por exemplo).
A autoria mediata não é suficientemente explicada pela teoria formal-objetiva, que tende a posicionar a pessoa dominada na condição de instrumento de que se utiliza o autor mediato para a execução (realizada por ele, mas através de outrem) do crime.
Há, ainda, uma hipótese mais polêmica: a autoria mediata pelo domínio de um aparato organizado de poder (domínio da organização ou “autoria de escritório”).
Essa espécie de autoria mediata tem como pressupostos:
(a) a existência de um poder de comando, dentro de uma estrutura verticalizada de poder, por parte do autor;
(b) uma organização desvinculada do direito – como a máfia italiana – no âmbito de sua atividade penalmente relevante; e
(c) a fungibilidade dos executores individuais que integram a organização, isto é, a inexistência de um “especialista”.
EXEMPLO
Citemos como exemplo o líder de uma organização dedicada ao tráfico de pessoas (arts. 231 e 231-A do Código Penal) que emita uma ordem criminosa a ser executada por sua rede de subalternos, sendo certo que, indistintamente, qualquer um pode ser designado a cumprir a tarefa.
Aí temos a autoria pelo domínio do aparato organizado de poder. Sustentando sua teoria, afirma ROXIN1 que esses pressupostos determinam ao autor direto (executor) uma elevada propensão ao cometimento do crime, enumerando três razões:
“Em primeiro lugar, porque no âmbito da organização de poder a ordem exerce pressão no sentido de seu cumprimento;
Em segundo lugar, porque a desvinculação do sistema em relação ao direito faz com que o executor suponha que não há razão para temer consequências penais;
E, em terceiro lugar, porquanto a fungibilidade do executor induz à ideia de que o fato não depende da sua conduta, uma vez que, mesmo sem ele, outro de todo modo o realizaria.”
Esta teoria é especialmente importante na chamada “criminalidade de Estado”, como no caso do aparato de poder nazista, é vem sendo aplicada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), como no caso “Katanga” (2008). Todavia, existe polêmica sobre sua incidência sobre a criminalidade empresarial. Embora alguns sustentem que ali pode existir o domínio de um aparato organizado de poder, no mais das vezes as ordens não são emitidas em uma organização desvinculada do direito, falecendo um dos requisitos para seu reconhecimento.
CONEXÃO
Filmes recomendados sobre o domínio de um aparato organizado de poder:
A Queda – As últimas horas de Hitler (2004) e Os Bons Companheiros (1990).
1.3.2.3.3 Autoria funcional
Na autoria funcional, ou coautoria, há pessoas que praticam atividades de especial relevância durante a execução do crime, em uma atuação coordenada. Surge, aqui, o fenômeno da imputação recíproca: a atividade de um dos coautores é imputada ao outro e vice-versa.
EXEMPLO
Imaginemos uma extorsão mediante sequestro, em que um dos autores arrebata a vítima, levando-a consigo e mantendo-a em cativeiro, e o outro entra em contato com a família da vítima, exigindo um preço como valor do resgate. A conduta daquele que mantém a liberdade de locomoção da vítima cerceada, isoladamente, caracteriza o crime do art. 148, do Código Penal; já daquele que exige a vantagem, se subsume ao art. 158, do Código Penal. Reciprocamente imputadas, contudo, surge para ambos o crime do art. 159 do Código Penal.
Mesmo a pessoa que dá a ordem para o crime, ou que o planeja, pode responder em autoria funcional com os executores, desde que participe dos atos de execução, ainda que organizando-os remotamente (por exemplo, determinando cada tarefa via radiotransmissor durante o curso da empresa criminosa).
O simples planejamento ou a simples ordem dissociados das atividades executórias, contudo, são atos de mera participação, salvo se praticados em um aparato organizado de poder.
Coloquemos, portanto, a teoria do domínio do fato de forma esquematizada:
1.3.2.3.4 Existe um “autor intelectual” na teoria do domínio do fato?
O que quer se saber aqui é se aquele que planeja ou organiza o crime pode ser considerado seu coautor. A questão é tormentosa na doutrina nacional.
Luiz Flávio Gomes e Garcia-Pablos De Molina2 aceitam a possibilidade, em trecho ora transcrito:
“coautor intelectual é o que tem o domínio organizacional ou direcional do fato e, desse modo, organiza ou planeja ou dirige a atividade dos demais. É também chamado de ‘coautor de escritório’ ou ‘autor de escritório’. Não se confunde com o ‘autor ou agente ou homem de trás’, que é o autor mediato. Na autoria mediata a responsabilidade só recai sobre o autor mediato. Na coautoria todos os coautores respondem pelo delito (como obra comum).”
Como se vê, embora admitindo a autoria intelectual, a lição confunde autoria intelectual com autoria por domínio da organização, mesclando esta última espécie com a autoria funcional.
Contrariamente opinando, Alaor Leite e Luís Greco3 refutam a figura do autor intelectual:
“A ideia de que, segundo a teoria do domínio do fato, ter-se-ia aqui autoria, de que o ‘mandante’ (termo, diga-se de passagem, coloquial e de conteúdo jurídico obscuro) é autor, de que existiria um ‘autor intelectual’, é um grande equívoco cuja origem parece ser o pequeno livro de D. Jesus.
A raiz do equívoco é uma confusão entre domínio do fato,autoria mediata por domínio da organização e instigação. É verdade que quem aceita a autoria mediata por domínio da organização transforma algumas hipóteses de instigação em autoria. Mas apenas algumas hipóteses, aquelas em que o comando é dado a partir de uma organização em que se apresentam os três requisitos acima mencionados.”
1.3.3 Coautoria alternativa, coautoria sucessiva, autoria colateral e autoria incerta
Corriqueiramente, a doutrina menciona outros tipos de autoria, alguns de forma pertinente, outros nem tanto. Passamos então a explicá-los:
Coautoria alternativa
Duas ou mais pessoas combinam entre si um resultado criminoso e todas se postam em condições de alcançá-lo, embora, de fato, apenas uma delas, ou um grupo limitado delas, irá realizá-lo. Por exemplo, para matar uma pessoa, dois coautores entram clandestinamente em sua casa, um deles pela porta da sala, ou outro pela da cozinha, tentando, assim, reduzir a possibilidade de fuga da vítima. Aquele que entrou pela porta da sala encontra a vítima dormindo no quarto e a mata antes da chegada do outro autor ao mesmo cômodo. Teríamos aqui uma espécie de autoria funcional.
Coautoria sucessiva
Autoria colateral
Autoria incerta
CAPÍTULO 1
Concurso de Pessoas
Clique sobre os ícones abaixo.
1
2
Capítulo 2: Parte 1
Concurso de Crimes
Tema de extrema importância na chamada teoria da pena, uma vez que condiciona concretamente sua dosimetria, o concurso de crimes, por razões didáticas, é estudado logo em sequência ao concurso de pessoas, pois em ambos os casos tratamos de pluralidades – seja de delitos, seja de agentes. Não que haja proximidade topológica entre ambos os assuntos: enquanto o concurso de pessoas é regulado pelos arts. 29 a 31 do Código Penal, o concurso de crimes será encontrado nos arts. 69 a 71, também do Código Penal. Igualmente, advirta-se que não há qualquer identidade substancial.
Encontramos, na jurisprudência, inúmeras referências ao concurso de pessoas,o que demonstra sua relevância e imprecisão conceitual, mormente no que tange aos elementos caracterizadores do crime continuado, como veremos. Contudo, justamente os debates em torno dos institutos tornam o tópico muito instigante, a ponto de ser objeto constante de artigos científicos, dissertações e teses.
OBJETIVOS
• Distinguir o concurso de crimes, onde haverá pluralidade delitiva, do concurso aparente de normas, hipótese de unidade delitiva.
• Reconhecer os elementos constitutivos de cada uma das espécies de concurso de crimes.
• Estabelecer o sistema de aplicação da pena decorrente em cada uma das espécies de concurso.
2.1 Primeiras linhas
Por concurso de crimes devemos entender a prática, mediante uma ou mais condutas (ação ou omissão), de duas ou mais infrações penais, em um mesmo contexto jurídico. Significa, pois, que todas essas infrações devem ser analisadas em conjunto, o que refletirá na pena a ser imposta em caso de eventual condenação.
Isso se dá porque as diversas espécies de concurso de crimes – material, formal e crime continuado – implicam sistemas distintos de imposição da sanção penal (sistemas do cúmulo material ou da exasperação de pena), os quais serão estudados oportunamente.
2.2 Concurso de crimes e concurso aparente de normas
Não confunda o concurso de crimes com o concurso (ou conflito) aparente de normas. Neste, existem comportamentos que aparentemente encontram subsunção em duas ou mais normas (tipos penais). Todavia, como as normas contemplam unidade fática, a punição por todas elas acarretaria bis in idem. Assim, alguns princípios – especialidade, subsidiariedade e consunção – são usados para a escolha da norma que preponderará sobre as demais.
COMENTÁRIO
Em outras palavras, embora a conduta pareça se amoldar a dois ou mais tipos penais, apenas um deles será de fato reconhecido, ou seja, há um único crime.
Já no concurso de crimes, esse bis in idem não ocorre, pois a conduta (ou as condutas) do sujeito ativo afeta(m) mais de um bem jurídico tutelado, dando-se o reconhecimento de crimes distintos. Portanto, o sujeito ativo é punido por dois ou mais delitos (pluralidade delitiva).
2.3 Concurso material
Previsto no art. 69 do Código Penal, o concurso material, também chamado de concurso real, pressupõe a existência de duas ou mais condutas, acarretando igualmente dois ou mais crimes, que podem ser idênticos (previstos no mesmo tipo penal, admitindo variações entre tipos privilegiados e qualificados – concurso material homogêneo) ou não (previstos em tipos penais distintos – concurso heterogêneo).
EXEMPLO
A fim de estuprar uma mulher, o autor do crime, ao invadir a casa da almejada vítima, primeiramente mata seu marido, evitando assim que este imponha qualquer resistência; em seguida, mediante grave ameaça, pratica o ato sexual por ele desejado. Nessa fictícia hipótese, teremos estupro (art. 213, Código Penal) e homicídio (art. 121, Código Penal), em concurso material.
Para que haja o reconhecimento do concurso material, é necessário que haja uma conexão entre os fatos praticados, de modo que entre eles possa haver julgamento em um único processo. Por esse raciocínio, quando o autor pratica um roubo (art. 157, Código Penal) e, dias depois, em diferente contexto, um crime ambiental (Lei n. 9.605 de 1998), entre essas infrações penais não existirá concurso material.
No concurso material, as penas dos diversos crimes são aplicadas de acordo com o sistema do cúmulo material. Isso significa que elas serão somadas na sentença condenatória.
Aqui se impõe uma importante consideração: essa soma poderá ultrapassar o limite de 30 anos de pena fixado no art. 75 do Código Penal, embora a execução da pena deva respeitar esse limite. Isto é, se, aplicado o concurso material, a pena do agente for fixada em 45 anos de reclusão, o condenado cumprirá 30 anos de privação da liberdade, mas não os 15 anos restantes. Esse teto de 30 anos deverá ser respeitado a cada unificação da pena. Suponhamos que o condenado, após cumprir 20 anos de uma pena privativa de liberdade fixada em 30 anos por sentença condenatória (ou seja, restando 10 anos a cumprir), seja condenado por novo crime a uma pena de 25 anos de reclusão. Nesse caso, os 10 anos restantes serão somados à nova condenação (10 + 25), o que gerará uma pena de 35 anos. Desse novo somatório, o autor cumprirá apenas 30 anos, e não os 5 anos que ultrapassaram esse patamar. No total, se somarmos os 20 anos que o condenado já havia cumprido de pena com a nova unificação (30 anos), ele cumprirá 50 anos de sanção penal.
Isso é possível?
Plenamente. Afinal, o limite de 30 anos deverá ser respeitado a cada unificação. Dúvida: aqui há concurso material? Não, pois, como vimos, os crimes devem se dar em um mesmo contexto.
Quando as penas privativas de liberdade forem de qualidades diversas (leia-se, reclusão e detenção), executa-se primeiro a de reclusão, de acordo com o disposto no art. 69, in fine, Código Penal. Em caso de aplicação conjunta de penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, haverá simultaneidade, ou sucessividade. De toda sorte, a substituição por pena restritiva de direitos não será possível em caso de pena privativa de liberdade não suspensa (art. 69, §§ 1º e 2º).
2.4 Concurso formal
Surge, o concurso formal (ou ideal), quando, com apenas uma conduta, o sujeito ativo comete dois ou mais crimes, consoante disposto no art. 70 do Código Penal.
EXEMPLO
Se um motorista, v. g., ao dirigir de forma imprudente e perder o controle de seu veículo automotor, atropela cinco pessoas, matando duas e ferindo três, teremos uma hipótese de concurso formal, pois, através de um único comportamento (ação descuidada), houve a concretização de dois homicídios culposos na direção de veículo automotor (art. 302 da Lei n. 9.503/97) e três lesões corporais culposas na direção de veículo automotor (art. 303 da Lei n. 9.503/97).
Tal qual o concurso material, o concurso formal também pode ser homogêneo (crimes idênticos) ou heterogêneo (crimes diferentes). Ele também seclassifica em perfeito(próprio) ou imperfeito (impróprio), o que determinará a adoção de diferentes sistemas de aplicação da pena.
No concurso formal perfeito (art. 70, 1ª parte, Código Penal), há desígnio único, isto é, apesar de o agente cometer dois ou mais crimes, a sua intenção não é dirigida a essa pluralidade de resultados criminosos, como ocorre no exemplo já citado dos delitos de trânsito.
COMENTÁRIO
Podemos ainda cogitar outra hipótese: o autor, visando a matar uma pessoa, dispara sua arma de fogo contra ela, atingindo o alvo e produzindo o óbito almejado. Entretanto, o projétil transfixa o corpo da vítima e atinge igualmente outra pessoa, que casualmente por ali passava, a qual sofre lesão corporal (culposa). Nesse exemplo, temos o chamado erro na execução com resultado duplo, que nada mais representa do que um concurso formal perfeito. Deve ser notado que em ambos os casos, os resultados não são todos dolosos: no primeiro, ambos são culposos; no segundo, há um resultado doloso e outro culposo. Sempre que houver culpa, por conseguinte, poderemos falar em desígnio único.
Falamos em concurso formal imperfeito quando o sujeito ativo atua com desígnios autônomos, ou seja, ele deseja os crimes praticados. O agente que coloca uma bomba em um ônibus, por exemplo, detonando-a e matando todos os seus passageiros, age em concurso formal imperfeito.
E qual é a importância dessa classificação para a teoria da pena?
Dependendo da situação, ora teremos a aplicação da pena pelo sistema da exasperação, ora pelo sistema do cúmulo material.
Buscando a suavização da sanção penal, apenas a pena de um dos crimes praticados será imposta: a do crime mais grave, ou, se houver igual gravidade, a pena de qualquer um deles.
E o que ocorre com os demais delitos praticados em concurso? São simplesmente ignorados?
Negativo. Os crimes restantes determinarão uma fração de aumento, que irá incidir sobre a pena do crime escolhido.
EXEMPLO
Por exemplo, no acidente de trânsito com cinco vítimas, duas fatais e três não- fatais: a pena de um dos homicídios culposos será a escolhida para aplicação.
O homicídio restante e as três lesões corporais determinarão um aumento, de um sexto até a metade, da pena eleita, consoante previsão do art. 70 do Código Penal.
O número de crimes sobressalentes pode ser usado como parâmetro para definir o patamar de aumento, inclusive: se, além do crime que houver determinado a aplicação da pena, existir apenas um outro delito, a pena será aumentada no mínimo, ou seja, 1/6. Se restarem dois crimes, será ela elevada em 1/5. No nosso exemplo, como os crimes que sobraram são quatro, o aumento será de 1/3. Também o número de vítimas pode se prestar a esse cálculo. E o que fazer com as infrações restantes quando o aumento chega em seu patamar máximo, qual seja, 1/2? Ensina Paganella Boschi:
“Sendo metade da pena o máximo de exasperação possível, disso resultará que, nas infrações regidas pelo concurso formal, o número de crimes ou de vítimas excedente a seis será um indiferente penal”.
ATENÇÃO
Saliente-se, entretanto, que, em casos extraordinários, uma vez aplicado o sistema da exasperação, ele pode se mostrar prejudicial ao condenado.
Analisemos o exemplo do disparo de arma de fogo.
Ao matar seu alvo, o autor cometerá homicídio doloso (art. 121 do Código Penal) e, ao atingir sem querer o transeunte que por ali passava, lesão corporal culposa (art. 129, § 6º, Código Penal). Suponhamos que, pelo homicídio, a ele seja imposta uma pena de doze anos de reclusão, aumentada em 1/6 em razão da lesão culposa. Isso importaria um acréscimo de dois anos na sanção penal. Ora, a pena máxima da lesão culposa é de um ano de detenção. Portanto, a exasperação está implicando pena superior àquela que seria possível pelo sistema do cúmulo material.
Mas a exasperação não existe para beneficiar o condenado?
Logo, no caso do denominado concurso material benéfico, justamente para fins de benefício do réu, quando o sistema da exasperação se mostrar prejudicial, é ele afastado, com consagração do cúmulo material (que receberá o nome de cúmulo material benéfico). É o que determina o parágrafo único do art. 70, do Código Penal.
Em caso de concurso formal imperfeito, refuta-se o sistema da exasperação e aplica-se o cúmulo material, com soma das penas dos diversos crimes (art. 70, 2ª parte, Código Penal).
CONCEITO
Disciplinado no art. 71 do Código Penal, o crime continuado (ou continuidade delitiva) é uma forma de concurso material que, todavia, é tratado como crime único, em razão de conveniência político-criminal.
Busca-se, novamente, evitar as penas excessivas que poderiam derivar do sistema do cúmulo material.
Leciona Anibal Bruno:
“Há na espécie que estudamos uma série de fatos, cada um dos quais pode ser tido por um crime distinto, acabado e perfeito, mas que se mostram todos unidos por um vínculo de dependência que os transforma em realizações parciais de um só crime em desenvolvimento continuado. De cada vez a ação se esgota integrando perfeitamente um tipo penal, mas renasce em outra ação igualmente perfeita em que se reproduz a mesma figura típica.”
A origem do instituto é creditada, normalmente, aos práticos italianos do séc. XVI, emboraFonseca Neto aponte um embrião do crime continuado nos comentários do pós-glosador Baldo de Ubaldis (séc. XIV). De qualquer forma, servia ele para atenuar a regra do “terceiro furto”, que punia com a pena de morte quem realizasse a terceira subtração. Como o crime recebia o tratamento de crime único, evitava-se o desfecho letal.
ATENÇÃO
Deve ser frisado, no entanto, que não há, de fato, crime único no crime continuado, senão por ficção jurídica. Assim, fundamentalmente, segue ele a mesma estrutura do concurso material, qual seja, duas ou mais condutas resultando em dois ou mais crimes.
A esta construção básica, agregamos alguns outros elementos, que distinguirão o crime continuado do concurso material, demonstrando que os crimes subsequentes devem ser vistos como uma continuidade do primeiro. Nesse ponto, cabe uma importante constatação: o art. 71, embora indique parte desses elementos, não é exaustivo, pois permite que o julgador, fundamentadamente, incorpore outros requisitos de configuração não especificados na norma.
Entre aqueles dados que são relatados no art. 71, temos:
(a) os crimes devem ser da mesma espécie;
(b) devem eles ser praticados em circunstâncias semelhantes de tempo, lugar e modo de execução.
MULTIMÍDIA
Antes de continuarmos, assista ao vídeo Concurso de Crimes para reforçar o conteúdo visto até aqui.
Capítulo 2: Parte 3
2.5.7 Bens jurídicos personalíssimos
Discutia-se antigamente se o crime continuado poderia existir quando os delitos praticados atingissem bens jurídicos personalíssimos, como vida e liberdade sexual.
Haveria crime continuado, por exemplo, em estupros praticados em série?
O parágrafo único do art. 71, criado quando da reforma da Parte Geral em 1984, acabou com a discussão. O reconhecimento do crime continuado é plenamente possível nesses casos.
2.5.8 Crime continuado, crime permanente e crime habitual
Embora semelhantes, os crimes continuado, permanente e habitual não se confundem. A começar pelo número de delitos existentes: enquanto que, no crime continuado, há vários delitos em concurso, tomados como crime único apenas por ficção jurídica, nos demais de fato existe um único crime.
O crime permanente consiste em uma infração penal que permanece no tempo, ou seja, embora já consumado, sua consumação não se esgota instantaneamente.
Ao contrário, é temporalmente diferida.
EXEMPLO
Como exemplo, podemos citar o sequestro ou cárcere privado (art. 148 do Código Penal), que se consuma quando o autor passa a exercer poder total sobre a vítima. No entanto, o crime se mantém em prática até o momento em que a vítima tem sua liberdade restaurada ou morre.
O crime habitual, da mesma forma, consiste em infração única, todavia caracterizada pela reiteração de condutas, ou seja, por sua habitualidade.Vejamos o caso do exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica (art. 182, CP): para a caracterização do crime não basta que o sujeito ativo se apresente como médico e clinique em uma única oportunidade, ou mesmo que o faça eventualmente; é necessário que isso se dê de forma rotineira.
ATENÇÃO
Cuidado com os casos de conflito de leis penais no tempo para os referidos crimes. Sobre o tema, vide Verbete de Súmula n.711, do Supremo Tribunal Federal. (A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência).
2.6 Tipo misto alternativo e tipo misto cumulativo
Os tipos penais admitem classificação em tipos simples e mistos. Os simples, ou uninucleares, são aqueles que contemplam uma única conduta, ao passo em que os tipos mistos, ou plurinucleares, trazem em seu bojo mais de um comportamento incriminado.
EXEMPLO
O homicídio (art. 121 do Código Penal), por exemplo, é um tipo simples, pois apenas prevê a conduta de matar. Já o tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343, de 2006), com seus vários verbos (núcleos), é um tipo misto.
Os tipos mistos, ao seu turno, admitem subdivisão em alternativos e cumulativos.
No primeiro caso (alternativos), ainda que o agente pratique, em um mesmo contexto, vários dos verbos incriminados, haverá delito único.
EXEMPLO
É o que acontece, por exemplo, com o tráfico de drogas: se o traficante importa uma carga de cocaína, transporta essa mesma carga para um determinado local, onde ele a mantém em depósito, e depois vende a droga, teremos um único crime de tráfico, a despeito da realização de quatro dos verbos previstos no art. 33 da Lei n. 11.343/06 (importar, transportar, ter em depósito e vender).
Já nos tipos mistos cumulativos, há “autonomia funcional e respondem a distintas espécies valorativas, com o que o delito se faz plural”. Em outras palavras, ocorrendo a prática de mais de um dos comportamentos incriminados, haverá mais de um crime.
EXEMPLO
É o que ocorre, por exemplo, nos artigos 208 e 244 do Código Penal. No art. 244, se o pai, injustificadamente, deixa de pagar pensão alimentícia ao filho e ainda não o socorre, estando ele gravemente enfermo, responderá por dois delitos. Importa afirmar que, nessa hipótese (isto é, quando há tipo misto cumulativo), estaremos diante de um concurso de crimes, inexistente no tipo misto alternativo.
2.7 Concurso de crimes no estupro e a Lei n. 12.015 de 2009
Até o ano de 2009, compelir uma pessoa mediante violência, real ou ficta, ou grave ameaça à pratica de um ato libidinoso, poderia caracterizar dois crimes diferentes, a saber:
Se a vítima fosse mulher e o ato praticado fosse a conjunção carnal (coito vaginal), dava-se o crime de estupro (art. 213 do Código Penal);
Se, contudo, houvesse a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal (sexo oral, anal, masturbação etc.), independentemente do gênero da vítima, o crime era de atentado violento ao pudor (art. 214, Código Penal).
A Lei n. 12.015, todavia, alterou esse panorama. Esse diploma legal efetuou profundas modificações na disciplina dos crimes sexuais, inclusive no que concerne ao estupro e ao atentado violento ao pudor. Este deixou formalmente de existir (isto é, o art. 214 foi revogado). No entanto, seu conteúdo normativo foi transportado para o art. 213.
COMENTÁRIO
Hoje, o estupro consiste em constranger, mediante violência ou grave ameaça, qualquer pessoa, independentemente de gênero, à conjunção carnal ou a ato libidinoso diverso.
Pois bem, quando buscamos compreender como se dá o concurso de crimes nos delitos sexuais praticados mediante constrangimento, necessariamente temos que passar pelo período anterior à vigência da Lei n. 12.015 de 2009, para somente então entendermos a situação atual.
Para atingirmos essa compreensão, partiremos da seguinte construção: o autor, primeiramente, praticou com a vítima – uma mulher – ato libidinoso diverso da conjunção carnal e, logo em seguida, no mesmo contexto fático, a conjunção carnal.
À época em que ainda havia a dicotomia entre estupro e atentado violento ao pudor, impunha-se determinar inicialmente qual ato libidinoso diverso da conjunção carnal fora praticado. Assim, suponhamos que o autor, antes da penetração, tivesse acariciado os seios da vítima: nessa hipótese, haveria crime único de estupro, com absorção dos atos libidinosos pela conjunção carnal praticada mediante coação. Explica-se: há, no exemplo, praeludia coiti, ou seja, atos que são considerados um prelúdio ao coito vaginal, de modo que existe natural unidade delitiva.
E se o ato libidinoso fosse autônomo em relação ao coito vaginal, como, por exemplo, o sexo oral? Surgia, então, o concurso de crimes. Mas em qual de suas espécies?
Descartado, de plano, o concurso formal, uma vez que cada ato libidinoso caracterizaria conduta diferente (e portanto, teríamos mais de uma conduta), a celeuma se situava entre o concurso material e o crime continuado.
Evidentemente, no caso sobre o qual ora trabalhamos, há circunstâncias semelhantes de tempo, lugar e modo de execução.
Quais, então, seriam os entraves para o reconhecimento da continuidade delitiva?
A jurisprudência majoritária apontava dois:
(a) estupro e atentado violento ao pudor não seriam crimes da mesma espécie, pois previstos em dispositivos diversos;
(b) entre os crimes inexistiria um nexo de continuidade.
Verifica-se, pois, que para a jurisprudência majoritária o caso seria de concurso material. Claro que havia vozes dissonantes, pugnando pelo crime continuado, até porque há divergência no que toca ao conceito de crimes da mesma espécie, como já vimos. O próprio STF adotou essa linha de raciocínio em certa ocasião.
Além de auxiliar no entendimento da atual dinâmica do concurso de crimes nos delitos sexuais, a percepção do estado de coisas anterior à Lei n. 12.015 de 2009 tem relevância atual.
Em primeiro lugar, porque ainda hoje há crimes praticados previamente à sua vigência que continuam sob investigação ou sendo julgados, de forma que se faz mister a análise do conflito intertemporal de normas.
Em segundo lugar, trazemos à colação a advertência de Gilaberte, verbis: “Não se pense que a discussão encimada hoje é destituída de relevância prática: no Código Penal Militar, mais precisamente nos artigos 232 e 233, mantém-se a dicotomia entre estupro e atentado violento ao pudor.”
E se o caso proposto ocorresse hoje?
A partir da unificação de estupro e atentado violento ao pudor em um mesmo artigo, cai por terra o argumento de que seriam crimes de espécies diferentes. Doravante, tudo é estupro, seja o ato libidinoso o sexo oral, seja o vaginal. Assim, o STF já admitiu a continuidade delitiva na hipótese, inclusive deixando de lado o argumento que preconizava a ausência de nexo de continuidade.
ATENÇÃO
Deve ser observado que estamos avaliando condutas praticadas em um mesmo contexto fático. Se em contextos diferentes (por exemplo, os estupros foram praticados em dias diversos), mas presentes as circunstâncias semelhantes de tempo, lugar e modo de execução, indubitável o crime continuado. Em havendo vítimas diversas, crime continuado específico.
Mas, exatamente no caso sob análise, a resposta não é tão simples. Isso porque parte da doutrina e da jurisprudência entendem que os atos sexuais praticados em um mesmo contexto caracterizam crime único, pois o art. 213 contemplaria uma hipótese de tipo misto alternativo. Nesse sentido se posicionam Regis Prado e Gilaberte, entre outros. Na jurisprudência, algumas decisões do STJ vão na mesma esteira. Seguindo orientação diversa, por todos, Greco Filho. Já Paulo Queiroz, embora vislumbrando crime único, não enxerga no art. 213 um tipo misto, expondo suas razões:
“Primeiro, porque já vimos que a conjunção carnal constitui uma das possíveis formas de ato de libidinagem, a qual, a rigor, não precisaria constar expressamente do tipo; segundo, porque, em verdade, se o agente praticar um ou outro ato ou ambos,realizará um só e mesmo tipo penal; terceiro, porque, ao contrário da legislação revogada, que tipificava autonomamente, em artigos diversos, o estupro e o atentado violento ao pudor, a reforma superou a distinção por considerá-la desnecessária; quarto, porque a própria classificação (crime misto cumulativo) de que se valem os precedentes carece de fundamento e não implica forçosamente concurso de crimes; quinto, porque interpretar cada ato libidinoso como constitutivo de um crime autônomo, relativamente a um só e mesmo tipo penal, importa em violação ao princípio de bis in idem. Finalmente, o estupro não é de modo algum um crime misto (alternativo ou cumulativo), visto que o tipo refere um único verbo (constranger), sendo que o ter e o praticar ou permitir que se pratique apenas o complementam.”
2.8 Esquematizando o concurso de crimes
Concurso material
• 2 ou mais condutas
• 2 ou mais crimes
• Mesmo contexto fático
• Sistema do cúmulo material
Concurso formal
• 1 conduta
• 2 ou mais crimes
• Desígnio único (perfeito) ou desígnios autônomos (imperfeito)
• Sistema da exasperação (perfeito: 1/6 a 1/2) ou do cúmulo material (imperfeito)
Crime continuado
• 2 ou mais condutas
• 2 ou mais crimes da mesma espécie
• Circunstâncias semelhantes de tempo, lugar, modo de execução e outras
• Específico: dolo + violência ou grave ameaça + vítimas diferentes
• Sistema da exasperação (1/6 a 2/3 ou até 3X)
SAIBA MAIS
ATIVIDADE
Para uma melhor sedimentação do conhecimento adquirido, propomos a resolução do seguinte caso concreto: dirigindo embriagado, João, em virtude da alteração de sua capacidade psicomotora, perde o controle do veículo e, sem querer, atropela três pessoas que se encontram em um ponto de ônibus, ferindo-as. Identifique, no caso concreto, as hipóteses de concurso de crimes e os sistemas de aplicação da pena.
Gabarito
RESUMO
• O concurso de crimes é marcado pela existência de duas ou mais infrações penais em um mesmo contexto jurídico, sem que haja concurso aparente de normas, o que interfere no sistema de aplicação das penas.
• Há dois sistemas de aplicação das penas em nosso ordenamento jurídico: cúmulo material e exasperação. No cúmulo material, há a soma das penas; na exasperação, sistema benéfico ao condenado, a aplicação de patamares de majoração sobre a pena de um dos crimes praticados.
Quando o sistema da exasperação, na prática, se torna prejudicial ao condenado, ele é afastado, em prol do cúmulo material, ora denominado concurso material benéfico.
• As espécies de concurso de crimes são o concurso material, caracterizado pela prática de duas ou mais condutas em um mesmo contexto, que configuram dois ou mais crimes; concurso formal, onde uma conduta dá ensejo a dois ou mais crimes; e o crime continuado, parecido com o concurso material, mas onde, por ficção jurídica determinada por circunstâncias especiais, trata-se a hipótese como crime único.
• O concurso material e o concurso formal imperfeito, em que há desígnios autônomos, exigem o sistema do cúmulo material; o concurso formal perfeito (desígnio único) e o crime continuado são regidos pela exasperação.
• O crime continuado impõe que os delitos em continuidade sejam da mesma espécie, além de praticados em circunstâncias semelhantes de tempo, lugar, maneira de execução e outras, havendo dúvida sobre a exigência de um requisito subjetivo.
• Se o crime continuado for praticado mediante violência ou grave ameaça contra vítimas diferentes, temos o crime continuado específico, previsto no parágrafo único do art. 71.
• O crime continuado não se confunde com os delitos de natureza permanente e com os habituais, em que, de fato, há crime único.
CAPÍTULO 2
Capítulo 3: Parte 1
A Pena
Passaremos a estudar, doravante, a pena, espécie do gênero sanção penal, bem como as teorias de fundamentam – ou pretendem fundamentar – a necessidade de sua aplicação. Trata-se de tema instigante e indissociável da teoria do delito. Em outras palavras, sem compreender a pena, impossível um perfeito entendimento sobre a infração penal.
Estudaremos ainda os princípios que sustentam a matéria, bem como as espécies de penas. Não abordaremos, ainda, a forma de aplicação dessas penas, sejam elas privativas de liberdade, privativas de direitos ou a pena de multa, o que será reservado para o próximo capítulo. O objetivo, aqui, é apresentar as penas ao leitor, contextualizando-as.
OBJETIVOS
• Identificar as transformações filosófica e jurídica das teorias sobre a pena.
• Analisar as formas de limitação do poder punitivo caracterizadas pelos princípios penais concernentes às penas.
• Distinguir as espécies de penas admitidas pelo ordenamento constitucional brasileiro.
3.1 Conceito
A pena é a consequência jurídico-penal da prática de uma infração penal por pessoa imputável, imposta através de sentença judicial condenatória e consistente em uma restrição estatal a um direito do infrator (liberdade de locomoção, patrimônio etc.).
Trata-se de espécie do gênero sanção penal, do qual são espécies também as medidas de segurança (impostas às pessoas mencionadas no art. 26 do Código Penal, ou aos chamados semi-imputáveis, ou ainda nos casos de doença mental superveniente, como veremos em outro capítulo), as medidas alternativas às penas privativas de liberdade (como as condições impostas em transação penal, instituto previsto no art. 76 da Lei n. 9.099, de 1995, ainda que não haja consenso sobre a natureza penal de tais medidas) e as medidas sócioeducativas (sobre as quais mais uma vez surge divergência acerca de sua natureza de sanção, pois, impostas a adolescentes infratores, teriam caráter diverso).
Em regra, a pena vem prevista no preceito secundário do tipo penal, isto é, logo após a descrição típica do comportamento (preceito primário). Deve ser notado que não há crime sem pena. Toda incriminação exige uma sanção penal correspondente. Contudo, é possível que as espécies penais estejam arroladas em dispositivos diferentes daquele em que existe a descrição comportamental, como ocorre, por exemplo, com as penas restritivas de direitos, previstas no art. 43 e definidas nos arts. 45 a 48, todos do Código Penal (isso se dá porque essas penas têm caráter substitutivo, como veremos).
3.2 Teorias da pena
Para que a pena existe? Qual é sua serventia?
Essas indagações estão umbilicalmente atreladas à concepção do direito penal como ramo da ciência jurídica, uma vez que crime e pena são realidades indissociáveis. Assim, devemos estudar as teorias que buscam explicar a pena para que entendamos o direito penal como um todo. Como bem ensina PAGANELLA BOSCHI, “falar em teorias das penas é destacar os fundamentos racionais que explicam e justificam, isto é, que apontam científica e empiricamente, os sentidos da imposição pelo Estado de penas pelos fatos considerados ofensivos ao interesse público”.
Podemos, para sistematizar e facilitar esse conhecimento, dividir as teorias sobre a pena em retributivas, preventivas e unificadoras.
ATENÇÃO
Deve-se advertir, no entanto, que as teorias que serão abordadas são muito mais profundas do que a explicação aqui consignada. A superficialidade é proposital e necessária para a finalidade didática a que essa obra se propõe. Consequentemente, são também sugeridas leituras para quem desejar o aprofundamento teórico.
LEITURA
Indicações de livros:
Dos Delitos e Das Penas (Cesare Beccaria)
Metafísica dos Costumes (Immanuel Kant)
Vigiar e Punir (Michel Foucault)
MULTIMÍDIA
Para reforçar seus estudos, assista a um vídeo sobre Teoria da Pena.
3.2.1 Teorias retributivas
As teorias sobre a pena começaram a ser formuladas de forma consistente no início do séc. XVIII. Nessa época, surgem as teorias retributivas, para muitos denominadasabsolutas. Aqui, a pena é concebida unicamente como um instrumento de castigo, ou seja, cuida-se de uma forma de se retribuir ao criminoso o mal por ele causado.
COMENTÁRIO
A pena, portanto, justifica a si mesma, não possuindo nenhuma outra finalidadeque não a de “ser justa”.
Temos a consagração da expressão latina punitur, quia peccatum est. Não se deve confundir, no entanto, retribuição com expiação: esta traz um significado moral, ou seja, o apenado se reconcilia com seus predicados morais através da reflexão, libertando-se das angústias determinadas pela atividade delitiva; a retribuição, ao seu turno, não busca interferir na correção moral do apenado, sendo-lhe esse resultado irrelevante.
EXEMPLO
Ilustra perfeitamente o tema um exemplo dado por KANT e corriqueiramente encontrado nos livros de doutrina: mesmo que, em virtude de um evento natural, toda população de uma ilha fosse obrigada a abandoná-la, dispensando-se pelo mundo, o último condenado à morte naquela sociedade deveria ser executado, para pagar pelo que fez.
Immanuel Kant, aliás, é um dos principais teóricos da Escola ora estudada. Em sua obra Metafísica dos Costumes, rejeita qualquer finalidade externa na pena. Como bem explicamPacelli e Callegari:
“a punição do criminoso resultaria de um imperativo categórico, que pode ser entendido como um dever incondicional, posto na regra do agir do sujeito de modo objetivo, com pretensão de validade universal, ou seja, posto para todos os homens que se deparassem com aquela possibilidade de ação”.
Prosseguem os autores afirmando que “a ação, que, do ponto de vista subjetivo (de cada um) poderia se apresentar como contingente (situada em tempo e espaço próprios), é convertida em universal no imperativo categórico”.
Outro partidário do caráter retributivo da pena (embora aqui já se veja a busca por uma finalidade, que não apenas a de castigar, de modo que não é pacífica a sua alocação de entre os retribucionistas), Hegel a estabeleceu como a negação da negação.
COMENTÁRIO
Resumidamente, quando alguém comete uma infração penal, estaria negando o direito, ou seja, negando validade à ordem jurídica. A imposição da pena serviria, pois, para negar essa negação, restabelecendo a ordem violada, ou a vigência da vontade geral.
Evidentemente, a ideia da pena como retribuição não se bastou em Kant e Hegel, existindo outros pensadores que se tornaram seus adeptos, como Mezger, para quem a pena é a imposição de um mal adaptado à gravidade da violação à ordem jurídica, dicção na qual se percebe a atribuição da pena dosada pelo critério da proporcionalidade.
3.2.2 Teorias preventivas
Para as teorias preventivas (ou, para muitos, relativas) não se vislumbra a imposição de uma pena destituída de utilidade. Desta forma, a pena, sempre, almejaria um proveito concreto.
E que proveito seria este?
A prevenção de novos delitos. Uma vez violada a ordem jurídica pela prática de uma infração penal, a aplicação da sanção correspondente ao crime praticado teria o escopo de evitar novas violações (afinal, não se apagará a lesão anterior): a pena se volta, portanto, para o futuro.
Nesse contexto, a prevenção admite divisões: pode ela ser geral ou especial; bem como negativa ou positiva.
3.2.2.1 Teoria da prevenção geral negativa
Defendida, entre outros, por Cesare Bonesana e Feuerbach (séc. XVIII). Este cria a ideia da pena como coação psicológica, oposta à coletividade, operando-se em dois momentos:
Anteriormente à prática do crime
Com a cominação abstrata da sanção penal, que serviria de aviso à sociedade sobre como o Estado reagirá à violação da ordem jurídica;
Posteriormente ao crime
3.2.2.2 Teoria da prevenção especial
Ao contrário da prevenção geral, a teoria não se volta à sociedade, mas sim ao indivíduo, isto é, à pessoa do delinquente. Busca-se evitar que determinada pessoa volte a praticar ilícitos penais. Era defensor dessa linha de pensamento, por todos, Von Liszt.
Baseia-se, a prevenção especial, na necessidade de reeducação do criminoso, para sua reinserção social (ressocialização), ou de torná-lo um ser não perigoso, porquanto à época do surgimento da teoria era ele considerado “anormal” e, consequentemente, um risco constante para a ordem social. Conforme leciona Bitencourt, “essa tese pode ser sintetizada em três palavras: intimidação, correção e inocuização”.
3.2.2.3 Teoria da prevenção geral positiva
Além de dissuadir as pessoas em geral, criando o medo do sancionamento (prevenção negativa), a pena também é uma forma de reafirmar a confiança social na autoridade do Estado, bem como na eficiência do ordenamento jurídico-penal. Essa, com algumas variações, é a sustentação teórica desenvolvida pelos adeptos da prevenção positiva, entre os quais encontramos Jakobs, Figueiredo Dias e Hassemer. De se ver que essa nova Escola não se distancia muito da antiga proposição de Hegel.
3.2.3 Teorias unificadoras, ou ecléticas, ou mistas
É certo que cada uma das teorias até aqui apresentadas têm seus méritos, mas não são isentas de críticas. E muitas vezes são ilhas que podem ser interligadas por pontes. Ou seja, são complementares.
EXEMPLO
Exemplificando: as teorias retributivas têm o mérito de trabalhar com a proporcionalidade, mas são desconectadas das finalidades do direito penal; já as preventivas, apesar de atentas a esse último aspecto, não impõem limites à atuação estatal, pois, ao menos em tese, quanto mais pena, mais prevenção. Por esse motivo, autores do quilate de ROXIN afirmam que há a necessidade de união entre as teorias.
Nosso Código Penal, em seu art. 59, preconiza que o juiz fixará a pena “conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime”. Fica claro que o diploma legal não optou expressamente por qualquer das teorias, deixando a porta aberta para que sejam combinadas.
3.2.4 Teoria agnóstica da pena
Menos badalada, a teoria agnóstica da pena, que tem em Zaffaroni um de seus defensores, nega validade às teorias anteriores, que existiriam apenas para legitimar o poder punitivo, uma vez que calcadas em pressupostos e resultados duvidosos.
CONCEITO
A pena, para esta teoria, é a manifestação de um poder político, e não jurídico, de modo que a ordem jurídico-penal deve existir para sua contenção, efetivando os direitos e garantias fundamentais. Em outras palavras: a pena serve para restringir o arbítrio estatal, obrigando o exercício do poder político nos estritos limites das regras estabelecidas.
Ferrajoli, em concepção que pode ser abraçada pelo agnosticismo, defende que a pena se presta a impedir a imposição particular da vingança, servindo, portanto, como uma forma de proteção ao criminoso. Assim, seja em uma formulação ou em outra, temos a sanção penal como instrumento de promoção de direitos.
Capítulo 4: Parte 1
Aplicação da Pena
Após aprendermos o que é a pena, suas espécies e os princípios e teorias que norteiam a matéria, chegou a vez de estudarmos a aplicação concreta das penas. Iniciaremos a tarefa com a fixação da pena privativa de liberdade, ou seja, estudaremos o sistema trifásico. Em seguida, abordaremos os regimes prisionais, que são consequência da sentença condenatória privativa de liberdade. Finalizaremos o estudo com a aplicação das penas restritivas de direitos e de multa.
O tema é recorrente em concursos públicos e de grande relevância prática, o que se reflete no grande número de controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais existentes. A dificuldade científica, no entanto, deve ser enfrentada, pois não há um sistema penal democrático sem a aplicação de uma pena justa.
OBJETIVOS
• Compreender o sistema trifásico de aplicação da pena e a consequente dosimetria da pena privativa de liberdade.
• Descobrir a forma de atribuição do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade.
• Resolver os problemas referentes à progressão e à regressão de regimes prisionais.
• Perceber como se dá a detração penal.
4.1 SISTEMA TRIFÁSICO DE APLICAÇÃO DA PENA
MULTIMÍDIA
Antes de começar seus estudos, clique aqui e assista a um vídeo sobre Dosimetria da Pena.
O sistema trifásico, também chamado de sistema Nélson Hungria, é aquele pelo qual se busca a fixação da pena privativa de liberdade em um caso concreto, após a condenação do réu. Tem previsãolegal no art. 68 do Código Penal.
ATENÇÃO
Importa assinalar que a sentença condenatória não se basta no sistema trifásico. Ao contrário, ela comporta outras etapas, como a atribuição do regime inicial de cumprimento da pena, a verificação da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, a suspensão condicional da pena, a realização da detração etc.
Como o próprio nome assinala, o sistema é composto por três fases sucessivas, a saber:
Pena-base
Onde é atribuída a pena inicial e são analisadas as circunstâncias judiciais;
Pena provisória
Pena definitiva
Nesse ponto, para uma melhor compreensão da matéria, temos que distinguir as diversas circunstâncias, pois esse estudo será imprescindível à correta aplicação do sistema trifásico.
Falamos em qualificadoras e em privilégios quando, em derivação ao tipo simples, temos a atribuição de circunstâncias que determinam novos limites máximo e mínimo de pena (nas qualificadoras, aumentando as margens penais e, nos privilégios, diminuindo). Assim, vejamos: no tipo simples do homicídio (art. 121, caput, do Código Penal), a pena é abstratamente cominada em 6 a 20 anos de reclusão (limites mínimo e máximo); no homicídio qualificado, previsto no § 2º, onde incidem circunstâncias que o tornam mais reprovável, os limites penais passam a ser de 12 a 30 anos.
Causas de aumento e de diminuição da pena estipulam frações de incremento ou de suavização da sanção penal prevista em dispositivo diverso.
EXEMPLO
Por exemplo, no roubo majorado ou circunstanciado (art. 157, § 2º, do Código Penal), a pena prevista no caput do artigo é aumentada de 1/3 a 1/2.
Já as agravantes e atenuantes, apesar de sua interferência inequívoca na fixação da pena, não determinam, desde logo, qual será essa influência. Isto é, o legislador não informa o quanto as penas serão agravadas ou atenuadas, conferindo esse poder ao magistrado.
Assim, passemos a estudar cada uma das fases do sistema trifásico.
4.1.1 PENA-BASE
Todo cálculo de pena deve ser iniciado por um número fixo, sobre o qual incidirão diversas circunstâncias. Ou seja, temos que estabelecer uma pena inicial. E essa corresponde à pena mínima cominada abstratamente ao tipo penal. Por exemplo, um ano no furto (art. 155 do Código Penal); 3 meses na lesão corporal (art. 129 do Código Penal); 12 anos no homicídio qualificado (art. 121, § 2º, do Código Penal); um ano no parto suposto privilegiado (art. 242, p. único, Código Penal). Perceba-se: (a) as qualificadoras e privilégios são observados nessa fase, na estipulação da pena inicial; (b) a eleição da pena mínima é uma decorrência do princípio da presunção de inocência.
Em seguida ao estabelecimento da pena inicial, são analisadas as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal.
COMENTÁRIO
São chamadas de judiciais porque quem determinará se serão benéficas ou prejudiciais é o magistrado, ao contrário das agravantes e atenuantes, por exemplo, onde há predeterminação da carga valorativa.
São circunstâncias judiciais a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias, as consequências do crime e o comportamento da vítima.
COMENTÁRIO
Os antecedentes se referem à vida pregressa do condenado, ou seja, se este já se viu anteriormente envolvido em questões criminais. Aqui, há ampla discussão doutrinária e jurisprudencial:
(a) a elevação da pena-base com fulcro nos antecedentes é constitucional?
(b) Inquéritos e ações penais em curso podem ser considerados maus antecedentes?
(c) O período posterior ao depuratório (reincidência) pode ser considerado para fins de caracterização dos maus antecedentes?
Nesse ponto, para melhor compreensão da matéria, impõe-se um breve estudo sobre o instituto da reincidência, para, só após, nos imiscuirmos na seara dos antecedentes.
De acordo com o art. 63 do Código Penal:
“verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”.
Ou seja, há um crime – culposo ou doloso – e, por este delito, o sujeito ativo é condenado. A condenação transita em julgado. Caso o sujeito ativo venha a cometer novo crime – culposo ou doloso – após a condenação definitiva, será reincidente. Antes da sentença condenatória irrecorrível pelo crime anterior, não há reincidência.
Todavia, uma vez transitada em julgado a condenação, a possibilidade de reincidência não perdura para sempre. Ela é temporalmente limitada.
Consoante o art. 64, I, do Código Penal:
“não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação”.
MULTIMÍDIA
Para aprimorar seus conhecimentos, assista ao vídeo Livramento Condicional.
Resumidamente, há um período depuratório para a reincidência, findo o qual a pessoa novamente se torna primária. Coloquemos a explicação em um gráfico, para melhor compreensão:
Não há se falar em reincidência, outrossim, quando o crime anterior ou posterior é um delito militar próprio, ou um crime político (art. 64, II, Código Penal).
E no caso das contravenções penais?
Temos que observar o disposto no art. 7º do Decreto-Lei n. 3.688, de 1941 (Lei das Contravenções Penais):
“verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção”.
RESUMO
Condenação irrecorrível por crime no Brasil ou no estrangeiro, seguida de contravenção = reincidência; ou condenação irrecorrível por contravenção no Brasil, seguida de nova contravenção = reincidência.
Não há reincidência, portanto, quando o sujeito ativo é condenado anteriormente por contravenção no estrangeiro, praticando posteriormente nova contravenção, ou quando há condenação por contravenção no Brasil ou no estrangeiro, com posterior crime. Ambas as hipóteses não são alcançadas pelo art. 7º da LCP.
Tendo em vista o âmbito da reincidência, restaria ao reconhecimento dos maus antecedentes tudo aquilo que não fosse abrangido pelo instituto congênere: inquéritos e ações penais em curso e o período correspondente aos 5 anos posteriores à extinção ou cumprimento da pena. Essa ponderação, contudo, comporta críticas.
De início, saliente-se que, hoje, há séria contestação sobre a constitucionalidade dos institutos da reincidência e dos antecedentes. Especialmente no que concerne à reincidência, muitos defendem que se cuida de bis in idem. Afinal, se o sujeito já foi condenado pelo delito anterior, considerar novamente essa condenação para exasperar a pena do delito posterior implicaria dupla punição pelo mesmo fato.
Quanto aos maus antecedentes, a base para seu reconhecimento poderia ser a existência de investigações ou ações penais por crimes diversos?
A questão é polêmica. Há forte corrente doutrinária sustentando a impossibilidade. Isso porque, nos inquéritos ou ações penais, o investigado ou réu pode ser inocente. Assim, usar esses procedimentos para a avaliação dos antecedentes de alguém violaria o princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade). Essa é a posição do STJ, sumulada no Enunciado n. 444:
“É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais para agravar a pena-base”.
O STF também já albergou esse entendimento, em decisão com repercussão geral (RE 591.054). Todavia, o próprio STF, depois de ter sua composição alterada, sinalizou com possível mudança de orientação. Assim, caso o Supremo efetivamente adote posição diversa, para o tribunal passaríamos a ter como base para a determinação dos maus antecedentes:
(a) inquéritos instaurados;
(b) processos criminais em curso;
(c) condenações criminais sem trânsito em julgado;
(d) absolvições judiciais porinsuficiência de provas.
E no que concerne às condenações alcançadas pelo período depurador da reincidência, isto é, o tempo posterior aos 5 anos contados da data da extinção ou cumprimento da pena?
Para o STJ, esse é o período em que se dá a verificação dos maus antecedentes.
EXEMPLO
Por exemplo, caso João, sete anos depois de extinta sua pena por furto, cometesse um roubo, não seria reincidente, mas portador de maus antecedentes.
O STF, contudo, já se manifestou contrariamente: se o período depurador tem o poder de afastar a reincidência, produziria o mesmo efeito para os antecedentes, pois senão se perpetuaria a condenação anterior (HC 126315). Ademais, em se vislumbrando bis in idem na reincidência, com consequente inconstitucionalidade, o mesmo ocorreria com os maus antecedentes (quando calcados em condenação irrecorrível anterior).
Por conduta social, terceira das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, deve-se entender a forma com que o condenado se relaciona com familiares e com a comunidade local (o condenado trabalha? Mantém bom relacionamento com vizinhos? Convive em um ambiente familiar estruturado?). Uma crítica que pode ser feita a essa circunstância se revela na punição ao autor pelo seu modo de ser, e não pelo que ele fez, incensando-se uma forma velada de direito penal do autor.
A personalidade do agente também deve ser estudada nessa fase de aplicação da pena. Pune-se com maior severidade o condenado que apresente personalidade “desviada”, como, por exemplo, a maior propensão para a prática de crimes.
COMENTÁRIO
Novamente temos uma circunstância que não é isenta de críticas: além da complexidade que envolve o tema, não sendo o juiz pessoa apta a tal análise, a elevação da pena sanciona o autor pelo que ele é, não por sua exteriorização comportamental, o que viola o princípio da lesividade ou ofensividade, além de, uma vez mais, pender para o malfadado direito penal do autor.
A motivação para o crime é circunstância que permeia toda a aplicação da pena, ora figurando – além de sua menção no art. 59 do Código Penal – como qualificadora ou privilégio (arts. 121, § 2º, I, e 242, p. único, ambos do Código Penal, por exemplo); ora como causa de aumento ou de diminuição da pena (arts. 149, § 2º, II, e 121, § 1º, ambos do Código Penal); ou como agravante ou atenuante (arts. 61, II, “a”, e 65, III, “a”, do Código Penal).
Por circunstâncias do crime temos aqueles dados periféricos, que orbitam o fato, conferindo-lhe maior ou menor carga de reprovabilidade: audácia desmedida, traições, aproveitamento de facilidades determinadas por condição pessoal, risco provocado a terceiros etc.
Penúltima das circunstâncias judiciais, as consequências do crime não se referem, por óbvio, às elementares que integram o tipo penal: a lesão suportada pela vítima no art. 129 do Código Penal, por exemplo, já faz parte do tipo consumado, não podendo ser reavaliada para elevar a pena-base. Somente aquelas consequências que não se prestam à caracterização do crime, em suas modalidades simples e derivada, podem ser aferidas. Assim, na extorsão (art. 158 do Código Penal), v.g., como a transmissão da vantagem econômica ao sujeito ativo não é condição para a consumação do delito, pode esse resultado ser apreciado como circunstância judicial.
Por derradeiro, temos o comportamento da vítima. Há certas posturas que podem criar situações mais favoráveis à prática criminosa, como deixar bens desprotegidos em locais onde há aglomeração de pessoas, por exemplo. Por ser estimulada, a conduta do delinquente ofereceria menor carga de reprovabilidade. Evidentemente, aqui há de se ter o cuidado de não consagrar tendências preconceituosas como hipóteses de suavização da pena. Nesse diapasão, uma mulher que usa decote não está estimulando um estupro, e, caso o autor assim pense, verificar-se-á preconceito inerente a uma criação patriarcal, que não pode ser acolhido como explicação para o delito.
ATENÇÃO
Importa ressaltar que não existe a possibilidade de avaliação plural da mesma circunstância, o que caracterizaria bis in idem. Assim, se a circunstância judicial já está prevista, por exemplo, como causa de aumento da pena para o crime em julgamento, não será ela considerada na fase de pena-base.
4.1.2 PENA PROVISÓRIA
Encerrada a fase da pena-base, o quantum encontrado será transportado para a fase da pena provisória, momento em que, sobre ele, incidirão as circunstâncias agravantes eatenuantes. Não há, todavia, previsão exaustiva das hipóteses. Embora – especialmente no caso das agravantes – se deva respeitar o princípio da legalidade (reserva legal, taxatividade, inadmissibilidade de analogia etc.), outros diplomas legais podem prever agravantes e atenuantes não mencionadas no Código Penal, como ocorre na Lei Ambiental (Lei n. 9.605, de 1998), em seus arts. 14 e 15.
4.1.2.1 INEXORABILIDADE DAS AGRAVANTES
O art. 61, logo em seu caput, diz que as circunstâncias nele previstas sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime.
A dúvida que surge aqui é a seguinte: será que estas circunstâncias, de fato, sempre incidirão na dosimetria da pena?
A resposta é negativa. A primeira exceção se encontra no próprio caput, pois a mesma circunstância não pode servir simultaneamente para agravar e constituir o crime, ou qualificá-lo, ou ainda aumentar sua pena, para que não se verifique indesejado bis in idem. Assim, por exemplo, o art. 61, II, h, no que concerne ao agravamento da pena quando o crime é cometido contra mulher grávida, não terá aplicabilidade aos crimes de aborto, pois a gravidez é pressuposto desses crimes, constituindo-os. Da mesma forma, a motivação torpe (art. 61, II, a) serve como agravante genérica, mas também qualifica o homicídio (art. 121, § 2º, I, Código Penal), de sorte que, neste crime, figurará apenas como qualificadora.
A segunda exceção está no atingimento das margens penais. Suponhamos que, em sentença condenatória por roubo, ao apreciar uma agravante, o magistrado perceba que a pena já atingiu o limite máximo previsto em lei (no exemplo, 10 anos). A incidência da agravante poderia levar a pena além desse limite? Não. Por conseguinte, seria ela descartada da pena provisória.
4.1.2.2 AGRAVANTES EM ESPÉCIE
Passemos, então, à análise das agravantes em espécie, salvo a reincidência, que já foi estudada no ponto 1.1, ao qual remetemos o leitor.
A primeira alínea do inciso II do art. 61 se refere à motivação fútil ou torpe.
EXEMPLO
Roubar para comprar roupas da moda com o produto do crime é exemplo de motivação fútil, ao passo em que lesionar a integridade corporal de alguém por preconceito em relação à sua orientação sexual é motivação torpe.
Deve ser assinalado que estes motivos constituem qualificadoras do crime de homicídio (art. 121, § 2º, Código Penal).
Na letra b encontramos o crime praticado para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (delito cometido por conexão).
No primeiro caso, um crime é cometido para garantir ou facilitar a prática de outro delito.
EXEMPLO
O sequestro prévio do segurança de um empresário para facilitar a invasão de domicílio e consequente roubo dos bens pertencentes a este.
Na segunda hipótese, temos o crime praticado para que outro permaneça desconhecido.
EXEMPLO
Temos a ocultação do cadáver da vítima de um homicídio, até aquele momento considerada apenas desaparecida.
A situação é diferente da garantia da impunidade, em que o crime é conhecido e a conduta visa a evitar sua imputação aos participantes.
EXEMPLO
O furto de câmeras de segurança – e respectiva central de gravação de imagens – que flagraram a execução de um estupro, evitando assim que a imagem captada permita a identificação do autor.
A garantia da vantagem se refere àquilo que é auferido com a atividade criminosa, como no caso em que um dos autores de um roubo constrange seu comparsa, intimidando-o, a fim de ficar com a totalidade do produto do crime. Novamente temos agravantesgenéricas que, no crime de homicídio, já constituem circunstâncias qualificadoras (art. 121, § 2º, V, Código Penal).
A pena é agravada, ainda, quando o crime é praticado à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido (art. 61, II, c, Código Penal). Aqui o legislador usa a técnica da interpretação analógica: após enfileirar exemplos (traição, emboscada etc.), conclui a norma com uma formulação genérica (outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido). Uma vez mais, a agravante genérica reflete uma qualificadora do crime de homicídio (art. 121, § 2º, IV, Código Penal). Além disso, a dissimulação é constitutiva do estelionato (art. 171, Código Penal), do furto mediante fraude (art. 155, § 4º, II, Código Penal) e de qualquer outro crime que pressuponha conduta fraudulenta. Igualmente, a traição é qualificadora do furto (art. 155, § 4º, I, Código Penal).
COMENTÁRIO
Na alínea d, encontramos a agravante referente ao crime praticado com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum. A par da alínea anterior, usa-se uma vez mais a técnica da interpretação analógica, em que uma formulação casuística é seguida de uma cláusula genérica.
Assim, veneno é exemplo de meio insidioso (sub-reptício, escamoteado); fogo e tortura, de meios cruéis (que causam sofrimento físico ou psíquico extraordinários); e explosão, de meio que pode provocar perigo comum (risco a bens jurídicos de pessoas indeterminadas). Essa é a última alínea que corresponde a qualificadoras do crime de homicídio (art. 121, § 2º, III, Código Penal). Os meios que podem causar perigo comum, outrossim, constituem vários crimes do Código Penal, como o incêndio (art. 250, Código Penal), a explosão (art. 251, Código Penal), a inundação (art. 254, Código Penal), o perigo de desastre ferroviário (art. 260, Código Penal), entre outros.
A agravante seguinte – alínea e – cuida do crime praticado contra ascendente (pais, avós, bisavós etc.), descendente (filho, neto, bisneto etc.), irmão ou cônjuge (pessoa com quem se mantém vínculo matrimonial). Pergunta-se, aqui, se a norma pode ser estendida aos casos de união estável, impondo-se resposta negativa.
Casamento e união estável são institutos diferentes e o dispositivo só menciona expressamente a primeira hipótese. Ou seja, a inclusão da união estável em seu âmbito somente poderia se dar por analogia, que é proibida em normas que elevam a sanção penal.
As agravantes da alínea ora em estudo não poderão ser utilizadas em crimes como o abandono material e o abandono intelectual, entre outros, para que não ocorra bis in idem.
Tem-se, em seguida, as agravantes referentes ao abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão (art. 61, II, f, Código Penal). Há, no caso, a atuação que exorbita os poderes conferidos por lei, ou contrária ao regramento legal.
CONCEITO
Cargo (público) é aquele regido por um estatuto, com denominação própria, atribuições específicas e provimento em regra efetivo. Se o servidor público pratica crime de abuso de autoridade (Lei n. 4.898, de 1965), não incidirá a referida agravante, uma vez que a abusividade já integra o tipo penal.
Ofício é a arte laboral executada de forma mecânica, como no caso de um marceneiro.
Ministério corresponde a uma função religiosa.
E profissão é a atividade que exige especialização, sendo certo que, para que seja aplicável a presente agravante, é necessário que ela esteja regulamentada por lei, pois só assim poderá haver violação de deveres.
Segue-se a agravante referente ao crime cometido contra criança (pessoa com idade inferior a 12 anos), maior de 60 anos (ou seja, idoso), enfermo (portador de doença física ou mental) ou mulher grávida, prevista no art. 61, II, g, do Código Penal. Essas agravantes se justificam na medida em que a peculiar condição da vítima reduz sua capacidade defensiva. Evidentemente, o sujeito ativo deve saber dessa condição.
EXEMPLO
Se o crime é praticado contra mulher cuja gravidez ainda não é aparente e o autor sequer tinha condições de conhecê-la, incidirá em erro, o que afasta a aplicabilidade da circunstância. Igualmente, há de se evitar o bis in idem (por exemplo, a agravante não será aplicada aos crimes contra idosos previstos na Lei n. 10.741, de 2003).
Segue-se circunstância concernente à maior audácia do criminoso, que resvala no desrespeito à autoridade pública, a saber: crime cometido contra ofendido que estava sob imediata proteção da autoridade (art. 61, II, h).
EXEMPLO
Saliente-se que a vítima imediata não é a autoridade, mas a pessoa sob sua proteção, tampouco a autoridade é autora do delito.
A penúltima agravante do art. 61, II, se refere ao delito praticado por ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido (alínea i). O sujeito ativo se aproveita da situação calamitosa para a prática criminosa, obtendo, com isso, maior facilidade em conquistar os resultados almejados. Outrossim, demonstra insensibilidade ímpar.
Por derradeiro, temos o crime praticado em estado de embriaguez preordenada (art. 61, II, j, Código Penal). Cuida-se, aqui, de espécie de embriaguez voluntária por álcool ou substância de efeitos análogos. O sujeito ativo se embriaga para praticar o crime, seja para perder seus freios inibitórios, seja para fingir um estado de inimputabilidade no momento do delito.
4.1.2.3 AGRAVANTES NO CONCURSO DE PESSOAS
As agravantes mencionadas no art. 62 pressupõem a existência de um concurso de pessoas e, logo no primeiro inciso, temos o agente que “promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes”. Como restou claro no primeiro capítulo desta obra, há divergência na doutrina brasileira sobre a existência de um “autor intelectual”.
COMENTÁRIO
Caso ele exista, terá seu comportamento agravado pelo dispositivo em estudo. Se, no entanto, nos voltarmos às lições de ROXIN, que refuta a figura do autor intelectual, a agravante poderá ser aplicada tanto a autores, quanto a partícipes, uma vez que nem sempre quem promove, organiza ou dirige o crime será considerado seu autor.
O inciso II traz aquele que coage ou induz outrem à execução material do crime. A coação, promovida pelo autor mediato (de sorte que não temos, juridicamente falando, um necessário concurso de pessoas na hipótese) pode ser física ou moral, resistível ou irresistível. O induzimento é figura já estudada no primeiro capítulo deste livro.
No inciso III, temos quem instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade (o que representa maior eficácia no convencimento ou determinação) ou não-punível em virtude de condição ou qualidade pessoal. A última agravante (inciso IV) se refere àquele que executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa. Tem-se, aqui, a figura do crime mercenário, em que o autor ou partícipe pratica o crime em virtude da percepção de uma vantagem anterior (paga), ou pela expectativa da vantagem (promessa de recompensa). Tratando-se de qualificadora do homicídio (art. 121, § 2º, I, Código Penal), a circunstância agravante não será aplicada a este delito.
4.1.2.4 INEXORABILIDADE DAS ATENUANTES
Assim como ocorre com as agravantes, o art. 65 do Código Penal, que trata das atenuantes genéricas, afirma que as circunstâncias nele especificadas “sempre atenuam a pena”. No entanto, ao contrário do que o art. 61 do Código Penal faz, não ressalva as circunstâncias que constituem ou tornam privilegiado o crime. Portanto, seria possível interpretar a norma de modo a permitir a incidência plural de uma mesma circunstância.
EXEMPLO
O valor moral (art. 65, III, a, Código Penal), poderia simultaneamente diminuir a pena do homicídio (art. 121, § 1º, Código Penal) e atenuá-la.
Contrariamente opina Damásio de Jesus:
“É possível que a atenuante do art. 65 na

Continue navegando