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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E JURÍDICAS CURSO DE HISTÓRIA A INFÂNCIA DESVALIDA: ABANDONO DE CRIANÇAS NA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA EM PORTO ALEGRE (1840-1880) Deisi Carolina da Silva Prado Ritter Lajeado, julho de 2011 B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) Deisi Carolina da Silva Prado Ritter A INFÂNCIA DESVALIDA: ABANDONO DE CRIANÇAS NA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA EM PORTO ALEGRE (1840-1880) Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão II, do Curso de Licenciatura em História, do Centro Universitário Univates, como parte da exigência para obtenção do título de Licenciado em História. Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando da Silva Laroque. Lajeado, julho de 2011 B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) Sentia muito claramente nossa entrada numa outra era. Adivinhava que essas mudanças materiais, cotidianas, eram um dos componentes fundamentais da História. Que a História, ainda uma vez, não se limitava às batalhas, aos reis, aos governos. Uma certa maneira de ser e de pensar tornava-se ultrapassada. Mais tarde, chamaria esse movimento de mudança de mentalidade – mudança que acompanharia as trocas materiais. (Jacques Le Goff, 2005) B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) AGRADECIMENTOS Considerando esta monografia como parte integrante de uma caminhada escolar, agradecer não será uma tarefa simples e justa. Por isso agradeço a todos que durante a minha vida contribuíram para a minha formação, enquanto estudante/cidadã. Agradeço aos meus pais, Loci e Neli, pelo exemplo de vida e honestidade. E imensamente pelo apoio aos estudos. Em especial, aos meus amores Izadora e Fábio, por terem-me “deixado em paz” nas horas de sufoco em frente aos livros, fontes históricas e computador. E pela paciência diante da minha ausência. A Carina (tia CÁ). Única, leal e amiga irmã que amo muito e a qual sempre “defenderei”. A todos meus familiares queridos, particularmente a Dinda Mida e a Tia Lair e aos primos “chegados” que permitem lembrar-me de uma infância maravilhosa e muito feliz. E que, durante a caminhada acadêmica, escutaram pacientemente as minhas queixas. Ao orientador deste trabalho, o professor Doutor Luís Fernando Laroque, que atentamente contribuiu para esta pesquisa e que a norteou. E aos demais professores do curso de História, em especial a Maribel Girelli, a Neli Galarce Machado, a Silvana Rossetti Faleiro e ao professor Mateus Dalmáz. A todos um muito obrigada. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) RESUMO Esta monografia versa sobre a infância, principalmente no Brasil e no Rio Grande do Sul no século XIX. Enfatizamos especificamente a história das crianças abandonadas na roda dos expostos e na casa da roda da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Os referenciais teóricos metodológicos de Burke (1992), Foucault (1977 e 1979), Faria (1998), Venâncio (1999 e 2002a e 2002b), Centurião (1999), Meneses (1998) e Marcílio (2006a e 2006b) embasaram a análise das fontes bibliográficas que abordam a temática e fontes documentais, dentre estas ressaltamos as atas e os requerimentos. Através deste estudo buscamos analisar as motivações para o abandono das crianças, bem como observar a etnia e classe social a que pertenciam. Palavras-chave: Infância. Abandono. Roda dos expostos. Porto Alegre. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 - A capital Porto Alegre em 1772....................................................... FIGURA 2 - Mapa da cidade de Porto Alegre de 1840....................................... FIGURA 3 - Roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia, onde eram colocadas as crianças quando abandonadas................................... FIGURA 4 - A roda dos expostos da rua Santa Teresa (Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro)........................................................ FIGURA 5 - Bilhete da Loteria da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa de 10 de março de 1882............................................................................. 36 46 59 68 73 B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) LISTA DE TABELAS TABELA 1 – Quadro da população de Porto Alegre........................................... 51 B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) SIGLAS E ABREVIATURAS APERS - Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. CHC - Centro Histórico Cultural/Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................ 2 INFÂNCIA E FAMÍLIA: RELAÇÕES AO LONGO DA HISTÓRIA................. 2.1 A conceitualização de infância no período medieval............................. 2.2 A influência do Renascimento para a construção de uma nova concepção sobre a Infância..................................................................... 2.3 A Infância a partir do século XIX: auge da família burguesa................. 2.4 Breve histórico da infância no Brasil: da colônia ao império................ 3 A CIDADE DE PORTO ALEGRE: ESPAÇO, POPULAÇÃO E POBREZA... 3.1 Povoamento açoriano na província do Rio Grande de São Pedro........ 3.2 De vila à cidade: o surgimento de Porto Alegre..................................... 3.3 A presença negra na Província do Rio Grande do Sul e na cidade de Porto Alegre............................................................................................... 3.3.1 O escravo urbano.................................................................................... 4 A INSTITUCIONALIZAÇÃODA ASSISTÊNCIA: A SANTA CASA DE MISERICÓRIDA DE PORTO ALEGRE E A CARIDADE AOS “ENJEITADOS”................................................................................................. 4.1 Breve história da assistência a infância abandonada............................ 4.2 Entidade assistencialista à infância abandonada: A Irmandade Santa Casa de Misericórdia................................................................................. 4.3 As Câmaras Municipais e a instituição da Roda dos Expostos em Porto Alegre............................................................................................... 4.4 A assistência informal: os filhos de criação........................................... 4.5 A Casa dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre......................................................................................................... 4.5.1 O abandono de crianças........................................................................ 4.5.2 Aleitamento e amas de leite................................................................... 4.5.3 Expostos: brancos e pardos, ricos e pobres....................................... 4.6 O cotidiano do exposto............................................................................. 10 18 19 21 23 25 33 33 37 47 49 54 55 60 61 66 67 69 76 78 84 B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ REFERÊNCIAS................................................................................................. ANEXOS............................................................................................................ 89 93 101 B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 1 INTRODUÇÃO Observamos que há várias obras sobre a história social da criança no Brasil, principalmente, estudos que analisam as crianças enjeitadas na Roda dos Expostos das Santas Casas de Misericórdias durante o Brasil Colonial. Muitos historiadores buscaram compreender o contexto social e econômico, e as causas para o decorrente abandono de crianças, sendo principalmente estudadas as Rodas dos Expostos da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Constatamos que obras relacionadas à criança exposta no Rio Grande do Sul e especificamente abandonada na roda dos expostos da Santa Casa em Porto Alegre são escassas, razões que justificam o referido trabalho. Analisar as questões referentes aos expostos da Santa Casa de Misericórdia é revelar histórias que estão inerentes à cadência da sociedade porto-alegrense do século XIX. Sobre isto, Eric Hobsbawm, (1998, p. 22) ressalta que o “[...] passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana”. Ou seja, o historiador deve, portanto examinar a natureza do “sentido do passado” nas sociedades e situar suas variações e transformações. É com o objetivo de compreender a história social que buscamos analisar o abandono de crianças na Roda dos Expostos e os demais fatores intrínsecos a este ato, tais como a questão da mulher/família e suas motivações para o abandono, e também a esfera social em que estas/estes estavam inseridas. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 11 A delimitação espacial e temporal atém-se ao abandono de crianças na roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (Rio Grande do Sul) durante o século XIX, mas poderá avançar e retroceder no tempo, conforme necessidade da pesquisa. Especificamente a pesquisa irá compreender o ano de 1840 até 1880. O recorte inicial do ano de 1840 deve-se ao fato de ser quando a documentação sobre a temática encontra-se preservada e disponível. Como delimitação final, tomamos o ano de 1880 em decorrência do aumento dos estabelecimentos para abrigar crianças desamparadas, conforme afirma Maria Luiza Marcilio (2006), ao estudar situações semelhantes na cidade do Rio de Janeiro, situação a qual acreditamos que também ocorreu no Rio Grande do Sul. O estudo irá se restringir como delimitação espacial à cidade de Porto Alegre onde está estabelecida a Santa Casa de Misericórdia, fundada em 19 de outubro de 1803, e que tinha, como principal missão, assistir órfãos, enjeitados e pobres. É importante destacarmos que há possibilidades de que as crianças não proviam somente da cidade de Porto Alegre, podendo haver crianças abandonadas na roda de expostos da Santa Casa de outras regiões ou redondezas. Sendo que a Santa Casa de Misericórdia, além da caridade estabelecida para com os desvalidos, responsabilizava-se pela correção e disciplina destes. Desta forma, as meninas eram enviadas para educandários como o Asilo Santa Leopoldina e os meninos para o Arsenal de Guerra. No período entre 1840 e 1880, observamos que diariamente eram abandonadas crianças na roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre. Sendo assim, é possível afirmar que a pobreza seria um fator determinante para o abandono de crianças na roda dos expostos? Quais eram as motivações para a exposição dos bebês? Abandonar o recém-nascido na roda seria um meio para que as crianças pobres pudessem receber uma boa educação e, consequentemente, um meio para ascensão social? Inicialmente, diante das referidas problematizações foram destacadas algumas hipóteses, sendo estas elucidadas no decorrer do trabalho. As crianças que eram expostas na roda vinham vestidas com variados tipos de peças e tecidos. Porém, percebe-se através dos pertences, e principalmente pelas vestimentas de algumas crianças abandonadas, que poderiam vir de famílias com dotes. As B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 12 motivações para o abandono das crianças, possivelmente estejam ligadas a várias causas como a moralidade estabelecida na sociedade, a gravidez indesejada, e doenças no âmbito familiar que impedia a criança de ter alguém responsável por ela. É possível que para famílias pobres não fosse vantajoso abandonar uma criança, pois esta poderia servir como mão de obra complementar. E, mesmo que o objetivo do expositor fosse deixar a criança na Casa da Roda por algum tempo para depois retirá-la, não seria lucrativo, pois a maioria das crianças vinham a falecer devido às condições de higiene e alimentares na Santa Casa não serem plenamente satisfatórias. O objetivo geral desta pesquisa é estudar e analisar, a partir de fontes bibliográficas e documentais, as causas do abandono de crianças na roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre. A partir deste, visando a atender o objetivo principal elencamos os seguintes objetivos específicos: a) Verificar a condição social dos expostos considerando os pertences que possuíam quando foram abandonados; b) Analisar a origem étnica das crianças expostas através dos registros de entrada; c) Observar as possibilidades de ascensão social das crianças expostas; d) Averiguar a roda dos expostos comosistema assistencial de crianças desvalidas. Para podermos realizar a análise empírica dos dados e discussões referentes à temática em estudo, fizemos uso de autores que escreveram sobre a temática da criança abandonada. Estas obras e respectivamente as pesquisas de seus autores encenam uma nova historiografia fundamentada nas ciências sociais, sendo resultado indissociável do movimento dos Annales. Para compreendermos a função das Santas Casas de Misericórdia como instrumento de controle social, fazemos uso do conceito e problemática do poder B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 13 referenciados por Michel Foucault nas obras “Microfísica do poder” (1979) e também em “Vigiar e punir” (1977). Podemos citar a obra “A escrita da história: novas perspectivas” (1992) organizada por Peter Burke. Do livro, podemos citar o texto de Burke (p. 7-38) “Abertura a nova história, seu passado e seu futuro” em que o autor afirma que a História Social é independente da História Econômica, mas que pertence ao processo histórico como um todo. A Nova História é a história escrita como resistência contra o modelo tradicional da história. Este paradigma, como observa Burke, caracterizava o senso comum da história, pois frequentemente era pensado como o único modelo de fazer história. Sabemos que é possível várias abordagens do passado como, por exemplo, a História Social. Peter Burke ressalta, no referido texto, que a História Social interessa-se pela atividade humana e suas relações sociais ocupando-se da análise da estrutura e não fundamentalmente com a narrativa dos episódios. A História Social está em detrimento da análise dos acontecimentos visto de cima, ou seja, a Nova História percebe os fatos, também, a partir de outras perspectivas. Outro ponto elencado por Burke é que a partir da Nova História consiste a razão de outras evidências como a fonte oral e os documentos não oficiais. Enfocando outras perspectivas, a Nova História não tem como objetivo trazer “uma única verdade”, pois somos carregados de subjetividade, e este movimento permite as pessoas ampliar em seu conhecimento sobre o passado. Ainda, para inferirmos sobre a temática, ao levarmos em consideração os registros das vestimentas das crianças expostas, ressaltamos o artigo de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses intitulado “Memória e cultura material: documentos pessoais nos espaços públicos” (1998). Nesse estudo, o autor apresenta a discussão a cerca do alcance da cultura material como fonte para o conhecimento histórico. O autor tem como principal objetivo através do artigo ater-se às implicações históricas no tocante do deslocamento dos objetos e coleções do campo pessoal, quando mobilizados como documentos históricos. A autora Sheila de Castro Faria, na obra intitulada “A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial” (1998), aponta que o abandono crescente de B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 14 crianças em praças, no relento, nas Igrejas e conventos, fez surgir, no século XVIII, no meio urbano instituições como a Santa Casa de Misericórdia, tanto em Salvador como no Rio de Janeiro. Para a autora o sistema da roda garantiria anonimato a quem abandonasse as crianças e, desta forma, também evitaria a morte dos filhos indesejáveis. Ela destaca as possíveis motivações para o abandono das crianças; no caso de pessoas ricas, para esconder filhos naturais ou ilegítimos e manter a ordem familiar e de herança, bem como conservar a moralidade católica. No caso das mulheres solteiras, abandonavam o bebê para que pudessem voltar ao mercado matrimonial sem empecilhos e também era recorrente abandonar crianças provenientes de gravidez indesejada. Sheila de Castro Faria, nesse sentido, destaca que, mais do que as motivações econômico sociais ou morais, percebe-se a preocupação em manter a unidade produtiva familiar em funcionamento, tanto entre pobres como entre ricos. A autora ainda afirma que casais pobres dificilmente abandonavam seus filhos, pois estes eram mão de obra básica dos núcleos familiares. Renato Pinto Venâncio na obra “Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – Séculos XVIII a XIX” (1999) e nos artigos “Infância e pobreza no Rio de Janeiro, 1750-1808” (2002a) e “Maternidade Negada” (2002b), analisa a trajetória das Santas Casas de Misericórdia como instituições assistencialistas, mas, principalmente, o autor ressalta as motivações para o abandono de crianças na Roda dos Expostos, as características destas crianças e a insignificante preocupação que os expositores tinham quanto à sobrevivência destas crianças. Podemos, também, mencionar o livro de Maria Luiza Marcílio, “História social da criança abandonada” (2006b), no qual, influenciada pela Nova História, a autora aborda aspectos relevantes à compreensão da história da infância desamparada. É feito um mapeamento do abandono de crianças desde a Antiguidade, passando pela Europa, e chegando aos expostos no Brasil. Desta obra destacamos a Parte III – “A criança abandonada”, visto que vem ao encontro deste estudo no sentido de contemplar as causas dos abandonos. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 15 Marcílio ressalta que a ilegitimidade ou a pobreza não foram os únicos fatores para a exposição de crianças. Dentre estes, enfatiza que famílias pobres poderiam, através da exposição, controlar o número integrante do núcleo familiar; os pais pretendiam, com a exposição, proporcionar uma melhor educação para o filho ou até mesmo a ilusão da sobrevivência; muitas crianças foram abandonadas devido a um dos responsáveis estarem doentes; a exposição também era comum em lares em que um dos responsáveis pela criança partia de casa; abandonava-se, também, por falta de leite materno e, percebendo que a criança morreria de fome, optava-se pela exposição do bebê. Outro fator apontado pela autora como sendo responsável pelas exposições era o resguardo da honra da mulher e da família. O artigo “A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 1726-1950” (2006a) de Maria Luiza Marcilio, também norteia o referencial teórico da pesquisa. Neste estudo, a autora discorre sobre a implantação do sistema de roda dos expostos na Europa e no Brasil e também pondera, em suas análises, a questão do abandono, afirmando que em São Paulo e Rio de Janeiro não fora a Roda dos Expostos que incentivou o abandono nas cidades, visto que este ato já era uma prática constante antes da instalação da roda. Para a elaboração desta pesquisa monográfica, perfaremos uso de ampla bibliografia que explana sobre a questão do abandono de crianças nas Rodas dos Expostos no Rio Grande do Sul e no Brasil. Ainda utilizaremos documentos que se encontram no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, localizado na cidade de Porto Alegre, e no Centro Histórico Cultural – Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Em relação às fontes documentais pesquisadas, destacamos os Livros de Atas da Mesa Administrativa, documentos avulsos como Requerimentos, o Livro de Matrícula Geral dos Expostos e Livro de Movimento da Roda dos Expostos. Esse acervo permite analisar as causas e o cotidiano das crianças abandonadas na Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Também destacamos os documentos pesquisados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, localizado na cidade de Porto Alegre.Nesse acervo, deparamo-nos com requerimentos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 16 destinados ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. No acervo, também pesquisamos as tabelas de alimentação diárias das crianças expostas. Para podermos analisar teoricamente e discutir sobre a questão das crianças expostas na Roda dos Expostos, utilizamos diversas obras bibliográficas e teses de mestrado. Dentre estas obras podemos citar “História social da criança e da família” (1981), de Philippe Ariès. Essa obra explicita o que é ser criança, ou seja, o simbólico criado pela sociedade europeia ocidental em torno da infância. A análise do autor refere-se, especificadamente, ao período que chamamos de Idade Média, e seu estudo concentra-se nos documentos iconográficos. A obra “A cidade colonial no Brasil” (1999) de Luiz Ricardo Michaelsen Centurião, também é fundamental para o embasamento teórico desta pesquisa, visto que, aponta o surgimento das cidades coloniais no Brasil, seguindo o modelo português de administração dos espaços. Outra importante obra é “História das mulheres no Brasil” (2002), livro organizado pela historiadora Mary Del Priore. A obra traz artigos de vários pesquisadores que analisam o papel social da mulher. Dentre os artigos que trabalhamos podemos citar “Maternidade negada” de Renato Pinto Venâncio – como já observamos – e “Mulher e família burguesa” de Maria Ângela D’Incão. Este último artigo explana sobre a conceitualização de família burguesa no século XIX, e como a sociedade impôs este modelo de núcleo familiar como sendo o único, indissolúvel e moralmente aceito. A dissertação de mestrado de Cláudia Tomaschewski “Caridade e filantropia na distribuição da assistência: a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas - RS (1847-1922)” (2007) foi importante para contextualizar a instalação das Santas Casas no Rio Grande do Sul, bem como o funcionamento da Instituição. Outro trabalho importante é a obra organizada por Mary Del Priore, “História das crianças no Brasil” (2008a). Esse livro conta com artigos referentes à temática criança no Brasil escritos por diversos autores. Dentre eles temos o trabalho de Fábio Pestana Ramos “A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI”, no qual descreve as situações às quais estavam submetidas as crianças que vinham através das embarcações para o Brasil Colônia. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 17 Ainda, na obra, temos o artigo de Rafael Chambouleyron “Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista” que relata as barbáries sofridas, principalmente, pelas crianças indígenas com a imposição das “técnicas” de conversão para a fé católica. Temos, por fim, o artigo escrito por Mary Del Priore “O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império” (2008b) que apresenta as condições insalubres da alimentação e da higiene do recém-nascido. Analisa, ainda, a grande preocupação das mães em batizar a criança tão logo nascesse, pois o perigo de bruxas e seus feitiços eram eminentes. Da obra, “Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre: Histórias reveladas” (2009) organizada pelo Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre (CHC) como resultado do 1º Encontro de Pesquisadores do CHC em 2008, utilizamos para este projeto de pesquisa o artigo de Hilda Agnes Hübner Flores “A sociabilidade da roda dos expostos” no qual a autora ressalta o abandono das crianças na roda e as peculiaridades em torno do ato de abandonar como a vestimenta e a comunicação escrita (bilhetinhos) que eram colocadas juntamente na roda. O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado “Infância e família: relações ao longo da história” elencamos historicamente a construção do conceito moderno de infância e as relações familiares. Ainda aborda a (des)importância da infância dentro dos núcleos familiares. O segundo capítulo “A cidade de Porto Alegre: espaço, população e pobreza” apresenta um histórico sobre o povoamento do Rio Grande do Sul, destacando, principalmente, o surgimento da cidade de Porto Alegre e a sua população. O terceiro capítulo “A institucionalização da assistência: a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e a caridade aos enjeitados” trata da história da assistência à infância abandonada no Brasil, destacando o papel da Santa Casa de Misericórdia para acolher as crianças abandonadas. Também ressaltamos, neste capítulo, as possíveis motivações para o abandono de crianças na Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 2 INFÂNCIA E FAMÍLIA: RELAÇÕES AO LONGO DA HISTÓRIA Ao nos propormos analisar a infância, estamos evidenciando a existência humana e as suas relações sociais. Nesse sentido, consideramos a História Social em relutância dos fatos históricos vistos de cima. Para isso elencamos as considerações de Peter Burke (1992) quanto este afirma que a escrita da história deve perpassar por novas narrativas que sejam capazes de apresentar uma maior representatividade social. Dessa forma, estamos contribuindo para a construção historiográfica, ao enfatizarmos a história da infância abandonada e ao fazermos uso da interdisciplinaridade. O processo no qual se institui o conceito de infância surge paralelamente às transformações da organização social e da família, desencadeadas pelos processos de industrialização, urbanização e individualização do sujeito na sociedade. O conceito de infância foi principiado na transição do período Medieval para o Renascimento, no contexto europeu, estabelecendo-se na passagem para a Modernidade. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 19 2.1 A conceitualização de infância no período medieval A institucionalização da família medieval1 pautava-se em núcleos abertos, ou seja, não havia a construção do privado e da individualização dos sujeitos, formando um organismo social pouco estruturado. A família criava os filhos e orientava-os, conforme seu grupo social, na sociedade. Mas a infância não era tomada de cuidados e de projetos, e, sim, de autoritarismo e imposições pelos demais membros familiares. [...] o tratamento dado às crianças e as concepções relacionadas à infância estão intimamente ligados às práticas e hábitos culturais da sociedade ao longo da história. Por volta do século XIII, a criança era pública e considerada como a parte da família que garantia sua continuidade. Na hora do nascimento, apesar de o parto acontecer em casa, local privado, este era assistido por várias mulheres das proximidades, o que o tornava um ato público. Quando a criança começava a caminhar, devia dar seus primeiros passos em um local público, preferencialmente onde repousassem seus ancestrais. Esse ritual, da mesma forma que o batizado, deveria ser assistido por outros, pois garantia aos pais a prova da continuidade da família (COSTA, 2000, p. 26). Sobre isso podemos ainda mencionar as crianças na Idade Média têm um papel social mínimo, sendo muitas vezes consideradas no mesmo nível que os animais [...], mas não na sua especificidade psicológica e física, a tal ponto que são geralmente representadascomo “pequenos homens”, tanto na vestimenta quanto na participação na vida social (CAMBI, 1999, p. 176). Podemos, também, ressaltar que não havia distinção entre os brinquedos dos adultos dos infantis, e a vida social da criança confundia-se com a vida social do adulto, pois não havia uma censura estabelecida, sendo que as crianças participavam das festividades tanto como espectadores ou até atores principais. Também podemos observar que nem da morte em público (como ocorreu posteriormente nas punições públicas da Inquisição) a criança era poupada. Na Idade Média, muitas crianças viviam misturadas aos adultos, não havendo grandes diferenças em termos de vestimentas, jogos, atividades, aprendizagens e até mesmo em relação ao trabalho. Eram vistas, em geral, 1 Ao utilizarmos a periodização histórica visamos facilitar a análise do tema referido, e em momento algum utilizamos a denominação de Idade Média pejorativamente, ou seja, envolvendo o período as trevas como fizeram os Iluministas. Tradicionalmente o medievo é periodizado tendo como início a desintegração do Império Romano do Ocidente (no século V) e término a queda de Constantinopla (no século XVI). Para iniciar leituras sobre a Idade Média indicamos a obra do medievalista francês Jacques Le Goff “Em busca da Idade Média” (2005). B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 20 como adultos em miniatura, cuja educação se dava em meio aos adultos, por um sistema de permuta de crianças entre famílias, para que fossem ensinados determinados trabalhos, costumes e valores, assim como as aprendizagens em oficinas, junto aos artesãos (PINHEIRO, 2003, p. 49). A esse respeito Cambi (1999, p. 177) acrescenta que “a educação da criança era, depois, confiada à oficina e ao aprendizado ou à Igreja e às suas práticas da vida religiosa: a primeira ensina uma técnica e um ofício, a segunda, uma visão do mundo e um código moral”. O historiador Philippe Ariès constatou, ao pesquisar a iconografia do período medieval, que é plausível que a criança não possuísse espaço porque fazia parte de uma fase sem importância. Quanto ao sentimento diante da morte da criança não “[...] se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja sobrevivência era tão problemática” (ARIÈS, 1981, p. 21). Ariès (1981, p. 22) prossegue informando que as pessoas tinham pouco apreço para com a infância devido à mortalidade frequente onde a “[...] criança era tão insignificante, tão mal entrada na vida, que não se temia que após a morte ela voltasse para importunar os vivos”. Como etapas sociais pelas quais a criança devia passar temos: Pode-se afirmar que foi na Idade Média que as “Idades da Vida” começaram a ter importância. Durante a Idade Média, então, existiam seis etapas de vida. As três primeiras, que correspondem à 1ª idade (nascimento-7 anos), 2ª idade (7-14 anos) e 3ª idade (14-21 anos), eram etapas não valorizadas pela sociedade. Somente a partir da 4ª idade, a juventude (21-45 anos), as pessoas começavam a ser reconhecidas socialmente. Ainda existiam a 5ª idade (a senectude), considerando a pessoa que não era velha, mas que já tinha passado da juventude; e a 6ª idade (a velhice), dos 60 anos em diante até a morte (BRANCHER; NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2008, p. 51). Havia contradições na família medieval, e estas foram significantes para a percepção da infância durante a transição para o período que logo viria: o Renascimento. Sob o prisma da necessidade de continuação da linha familiar, constatamos que havia um certo sentimento de infância na Idade Média [...]. As mudanças no plano econômico, político e social que começaram a se estabelecer já nos séculos XV e XVI tiveram influências decisivas no reordenamento familiar, contribuindo para que germinasse em seu seio uma contradição entre a vontade de viver e o desejo de perpetuar-se. Assim, B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 21 gradativamente, a criança começou a ser valorizada em si mesma e não mais porque representava toda uma família. Os pais começaram a preocupar-se mais com a higiene e a saúde física dos filhos, pois o objetivo era evitar suas mortes, o que possivelmente tenha implicado a constituição de novas relações afetivas entre os entes familiares (PINHEIRO, 2003, p. 52). No mundo europeu medieval dos primeiros séculos, havia uma indiferença com a infância, por isso a morte era enfrentada como algo natural e, quando a criança sobrevivia aos primeiros anos de vida, logo era inserida no mundo dos adultos. Num primeiro momento, a infância se caracterizava como uma fase transitória e sem muita importância no mundo dos adultos, somente com o advento do Renascimento e o despontar de novas concepções no campo das idéias é que se olhou para a infância reconhecendo a sua importância social. 2.2 A influência do Renascimento para a construção de uma nova concepção sobre a Infância É no período da baixa Idade Média que se constitui um novo sentido para a infância: a criança representava a continuação da linhagem entre a aristocracia e, portanto, pertencia aos interesses das famílias. O autor Jaques Gélis (1991, p. 317) destaca a relação de pertencimento gerada de pai para filho, “[...] meu corpo é meu, e procuro poupá-lo da doença e do sofrimento; mas sei que ele é perecível e, assim, continuo a perpetuá-lo através da semente de outro corpo, do corpo de meu filho”. No caso das famílias camponesas nas quais todos vivam unidos por laços de dependência, a vida social era regulamentada pela comunidade. Ou seja, a vida no lar e a privacidade não eram apreciadas, pois a vida tinha como foco principal a vivência na comunidade. Porém, neste caso, a linhagem não era uma tradição, devido à família camponesa não possuir propriedades. As mudanças no reordenamento familiar foram alavancadas a partir dos séculos XV e XVI. As transformações nos níveis econômicos, políticos e sociais foram de grande importância, gerando, além do desejo de perpetuar uma linhagem, também o anseio de viver. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 22 Assim, gradativamente, a criança começou a ser valorizada em si mesma e não mais porque representava toda uma família. Os pais começaram a preocupar-se mais com a higiene e a saúde física dos filhos, pois o objetivo era evitar suas mortes, o que possivelmente tenha implicado a constituição de novas relações afetivas entre os entes familiares (PINHEIRO, 2003, p. 51). O movimento Humanista também contribuiu para a valorização da infância, pois inseriu novas abordagens sobre a concepção da vida e papel do homem – independente da sua idade – em sociedade. Esta conjuntura permitiu a apreciação da criança pelo bem estar que ela gerava no seio familiar, a sua graça e inocência intrínseca à natureza infantil resultaram em uma aproximação física. É então que as famílias passam a prestar mais atenção nas crianças. Pinheiro (2003, p. 51) ressalta que o “[...] adulto passa a se reconhecer nas crianças, pois elas lhe remetem ao seu processo de desenvolvimento, a sua própria infância e aos seus projetos pessoais”. As crianças, segundo Ariès (1981), foram, então. consideradas como brinquedos pequenos e indefesos, desse modo era necessário cuidar dos rebentos com maior afinco, a fim de não perder o divertimento da casa. As novasrelações surgidas entre pais e filhos desencadearam descontentamentos por parte dos moralistas da Igreja Católica, pois estes condenavam o tratamento dado às crianças, salientando a importância em manter uma maior rigidez na educação e no tratamento com os infantes. Para reforçar essa postura temos a constatação: [...] existiram duas posições distintas em relação à infância: uma que concebe a criança como ser ingênuo, que necessita de mimos, e outra que a entende em fase de crescimento, necessitando assim moralização e educação. Os mimos, recebidos em casa, eram vistos como causadores de muitas fraquezas. Para combater essa educação privada, a Igreja e o Estado resolveram tomar o encargo educativo. Ou seja, o poder político e religioso, como poderes públicos, passaram a interferir diretamente na vida privada das famílias, que aceitou a intromissão, por acreditar não serem capazes de dar a formação adequada aos seus filhos (COSTA, 2000, p. 28). A educação escolar resultou da necessidade dos pais em vigiar de perto os seus filhos, visto que, agora, a criança não estudava em colégios distantes, como os internatos, e sim mais próximos de suas famílias. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 23 Com isso, observa-se um clima afetuoso totalmente diferente e mais adjacente ao nosso. Ou seja, como se a família moderna tivesse surgido ao mesmo tempo em que a escola surgiu. 2.3 A Infância a partir do século XIX: auge da família burguesa No século XIX, analisando a sociedade européia, percebe-se que o nascimento de um filho era um grande acontecimento. A criança ocupava mais que o centro do núcleo familiar, ela era vista dentro do sistema de coletividade, isto é, preocupação com sua imagem futura, pois ela era a representante da família. A educação, a partir do século XIX, definiu novas concepções acerca da conceitualização de infância. A definição da infância como uma construção social associa-se estreitamente a crítica à ideia de criança universal, considerada como uma ideia “moderna e positivista”, que, pretendendo construir uma verdade universal, corresponde fundamentalmente a uma categoria criada pela linguagem, segundo critérios de racionalidade e de acordo com uma visão essencialmente normativa. [...] no domínio da educação tem sido reconhecida a modificação das concepções acerca da infância, ao longo do tempo e em função de diferentes contextos históricos (COELHO, 2007, p. 2). No século XIX, um lar sem filhos era algo monstruoso. Como destaca Perrot (1991), o desejo de ter filhos não incluía a adoção, era necessário manter a hereditariedade por meio de filhos de sangue. A aproximação das mães com os filhos foi notória quanto às mudanças ocorridas no que diz respeito à amamentação. No século XIX, entre as famílias burguesas, tinha-se o hábito, por questões de higiene, de entregar as crianças às amas de leite. A mudança ocorrida em relação à amamentação é percebida devido ao fato das crianças não serem mais retiradas de suas casas, pois a ama passou a se deslocar para morar na casa da família. Sendo assim, a família demonstrava estar disposta a não se separar da criança e a manter laços de proximidade. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 24 A relação entre mães e filhos era de infinitas teias, desde a cumplicidade e amizade até as relações de ódio, no caso das mães que obrigavam seus filhos a seguirem determinadas profissões. Conforme Perrot (1991), o totalitarismo familiar do século XIX gera a rebeldia infantil, e o início do século fica marcado pelo uso assíduo dos castigos corporais. É importante destacar: A família, no século XIX, se encontra numa situação contraditória. Fortalecida em sua dignidade e poder por toda a sociedade, que nela vê um mecanismo regulador fundamental, ela tenta impor a seus membros seus próprios fins, considerando o interesse do grupo superior ao de seus integrantes. Mas, por outro lado, a proclamação do igualitarismo, os progressos insensíveis, mas constantes, do individualismo exercem pressões centrifugas geradoras de conflitos, que por vezes chegam à ruptura. A família é uma microsociedade ameaçada em sua integridade e até em seus segredos (PERROT, 1991, p. 263). É somente nas últimas décadas do século XIX que se passa a pensar na criança como ser próprio e para a infância é devolvida a autonomia, sendo que, numa concepção romântica, a criança é, então, vista como um ser inocente. Neste sentido a infância é objeto de disputa entre os poderes. [...] também é lugar de saberes, que se desenvolvem sobretudo no último terço do século XIX, com o esforço conjunto da medicina, da psicologia e do direito. Esses saberes surtem efeitos contraditórios. Produtores de controle, também geram conhecimentos que convertem nossa infância num mistério insondável (PERROT, 1991, p. 148). As crianças passaram a ser apresentadas como criaturas de profunda sabedoria, sensibilidade estética mais apurada e consciência profunda das verdades morais duradouras. Essa mudança resultou na redefinição do relacionamento entre adultos e crianças. A visão romântica da infância estava longe de ser predominante, pois a tradição mais antiga de manchar as crianças com o pecado original custou a desaparecer e a ênfase na inocência da infância tinha pouca relevância para as vidas da maioria dos jovens, que ainda estavam sendo inseridos no mundo dos adultos muito cedo. Enfim, é possível afirmar que a infância romantizada tinha mais aceitação nos círculos da burguesia onde o interesse pela educação era mais B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 25 desenvolvido. 2.4 Breve histórico da infância no Brasil: da colônia ao império Assim como na Europa, a infância no Brasil passou por várias fases, acompanhando a evolução da sociedade. Ressaltamos que desde o Brasil colônia, crianças e adolescentes eram privados dos direitos sociais, sendo exemplo as explorações por elas sofridas. No século XVI, o início da missão jesuítica tinha como principal objetivo converter o gentio. Neste sentido, a doutrinação iniciava-se pelas crianças, conforme Rafael Chambouleyron (2008, p. 61) “[...] era principalmente na vida religiosa que os meninos eram preparados para formar a “nova cristandade” sonhada pelos religiosos da Companhia de Jesus. A educação das crianças implicava, assim, uma transformação radical da vida dos jovens índios”. Na primeira metade do século XVI, houve a chegada do “Colégio de Jesus dos Meninos Órfãs de Lisboa” e estes meninos vieram para auxiliar os padres na catequização dos indígenas. Os meninos do Colégio logo aprenderam a língua, tornando-se muito, importantes para a conversão das crianças indígenas. Foram utilizadas as mais variadas “técnicas” para a conversão das crianças indígenas, principalmente, o canto. O autor Chambouleyron (2008) chama a atenção que o ensino de música era de extrema importância não somente para o aprendizado da doutrina, mas também para a participação nas mais variadas formas da vida religiosa. Notando a ineficácia da educação catequista adotada, até mesmo porque os grupos indígenas não foram, como um todo, submetidos à fé cristã, houve a reestruturação das estratégias que até então eram postas em prática. Foi necessário repensar as especificidades de cada capitania e as relações dos Colégios com os moradores portugueses, indígenase governadores. É importante destacarmos, conforme análise dos escritos de viajantes, de Deise Regina Stormowski (2007), que, no Rio Grande do Sul, as mulheres indígenas Guarani demonstravam muito amor para seus filhos e que estas eram responsáveis B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 26 pela manutenção dos laços familiares. A infância indígena, - no caso do Rio Grande do Sul dos grupos Charrua, Minuano, Kaingang e Guarani, esteve marcada pela afeição familiar e pelas tarefas de aprendizagens nos núcleos familiares. A mentalidade era de total desapego para com a criança. Além do sofrimento ocasionado às crianças indígenas, houve também a exploração das crianças portuguesas que viviam em condições paupérrimas. Nas embarcações vindas para o Brasil, era constante o recrutamento de crianças, muitas das quais judias. Fábio Pestana Ramos (2008, p. 23) ressalta que enquanto “[...] os ingleses procuraram suprir a falta de mão-de-obra adulta livre em seus navios por meio da utilização de escravos e negros alforriados, os portugueses optaram pela utilização de crianças”. As crianças eram submetidas às mais diversas explorações tais como a realização, a bordo, de tarefas comumente realizadas por um homem, explorações sexuais, e a sua alimentação era restrita. Era comum, nas embarcações, a presença de pajens2 que ajudavam nas tarefas diárias e de meninas órfãs de pai. Estas meninas eram de camadas extremamente pobres. Sobre isto Ramos (2008, p. 33) considera que “[...] podemos supor que existiu uma espécie de sequestro de meninas pobres, principalmente menores de 16 anos, em Portugal”. Em decorrência do fato das meninas serem apenas órfãs de pais a Coroa resolvia desta forma dois problemas. Limpar a sociedade das prostitutas e das meninas ciganas (pois não estavam dispostas a se converterem ao cristianismo) e as enviarem para outros Continentes com o objetivo de amancebar-se com os nativos constituindo famílias. Foram poucas as crianças que sobreviveram às adversidades da viagem e aquelas que resistiram, viram seu universo infantil sufocado e apagado pelos deveres e pelas explorações dos adultos. O recrutamento de crianças para as viagens transoceânicas visava sanar os problemas de abastecimento, sendo que os grumetes (meninos) ingeriam menos alimentos e substituíam os adultos em inúmeras tarefas. 2 Os pajens comumente provinham das famílias de classe média e trabalhavam nas embarcações como acompanhantes e/ou serviçais de passageiros mais abastados ou nobres. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 27 Eles trabalhavam na cozinha, preparando ou salgando alimentos, limpavam os pavimentos ou as dependências dos oficiais e, nos momentos de conflito, eram “porta-cartuchos”, ou seja, aqueles que levavam a carga de projeção e a estopilha para serem colocadas nos canhões e nas demais armas de fogo das embarcações (VENÂNCIO, 2008, p. 194). A autora Mary Del Priore (2008b) ressalta que, no Brasil Colônia, a infância era um momento sem importância, apenas considerado um tempo de transição. Onde o “meúdo”, “ingênuo”, “infante” (assim eram denominadas as crianças) havia sobrevivido a primeira idade do homem em que a morte era tão comum. A infância no Brasil Colônia e posteriormente no Brasil Império foi marcada por um alto índice de mortalidade; referimo-nos não apenas às crianças que foram expostas. Havia, desde o momento do nascimento da criança, toda uma preocupação quanto a sua proteção. Seu corpinho molengo era banhado em líquidos espirituosos, como vinho ou cachaça, limpo com manteiga e outras substâncias oleaginosas e firmemente enfaixados. A cabeça era modelada e o umbigo recebia óleo de rícino misturado à pimenta com fins de cicatrização (DEL PRIORE, 2008b, p. 86). O rebento vinha ao mundo cercado de preces e grande preocupação devido à presença de bruxas. Pesquisando a questão, temos: [...] crianças doentes e raquíticas eram tidas como chupadas pelas bruxas. Para afugentá-las, queimavam-se solas de sapatos velhos, penduravam-se espadas nuas na cabeceira dos berços. [E ainda] era comum associar dificuldades na amamentação e infanticídio provocado pelas bruxas (SOUZA, 2000, p. 202). O infanticídio no Brasil, assim como na Europa, assombrou durante muito tempo as pessoas. Chupar o sangue, assoprar, olhar, e ou tocar, eram características dos feitiços das bruxas lançadas às crianças. Por isso era necessário, logo após o nascimento, fazer todo um “ritual” de proteção dos rebentos, mesmo para aqueles que eram batizados pela fé Cristã. As mães, por sua vez, cuidavam para preservar a função simbólica da sujeira do corpo infantil como uma forma de proteção contra o mau-olhado ou bruxarias. Partes como o umbigo ou as unhas, que poderiam ser utilizadas para malefícios contra os vulneráveis filhinhos, eram cuidadosamente enterradas no quintal. Já a urina e os primeiros B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 28 excrementos, considerados santos remédios e poderoso exorcismo, eram cuidadosamente usados para curar manchas ou infecções de adultos (DEL PRIORE, 2008b, p. 87). A infância, nas primeiras décadas do século XIX, esteve marcada por inúmeras incertezas. Desde o nascimento até a criança completar os sete anos, eram momentos de muita expectativa, devido às inúmeras doenças como a tuberculose, a febre amarela, a febre palustre, a meningite, a congestão pulmonar e a pneumonia, entre tantas outras doenças menos letais. É notório que, com o advento da profilaxia, no século XIX, fica evidente que não são as bruxas responsáveis pelo alto índice de mortalidade infantil. Mas, sim, as diversas doenças, a falta de higiene, os próprios hábitos (crenças) das mães. A fase do higienismo mesclado com interesses políticos dos republicanos inaugurou um período ainda maior de preocupação com a higiene. A este respeito, ressaltamos: Mesmo com a adoção de novos cuidados, a situação das crianças teve apenas melhoras parciais. A higiene pessoal dos meninos, por exemplo, não melhorou muito, nesses novos estabelecimentos totais. No dia-a-dia, as crianças viviam sujas, malcheirosas, maltrapilhas. Nos internatos de expostos, já em pleno século XX, como havia falta de água encanada, as crianças tinham pouca água para seus banhos, que antes da invenção dos chuveiros, eram feitos em tanques ou, em casos especiais, em banheiras (MARCÍLIO, 2006b, p. 284). A esse respeito afirmamos que, no século XIX, as influências dos higienistas foram sentidas em vários aspectos da relação entre pais e filhos. A influência dos higienistas se fará sentir, desde então, nos vários campos da vida e mais especificamente nas práticas de higiene e saúde pública, das quais a puericultura é um bom exemplo. Essa influência, somada às propostas - também profiláticas - dos juristas, introduz, embora de forma não radical, mudanças no trato com a infância (TRINDADE, 1999, texto digital). A morte na infância era comum, devido aos fatores já mencionados, mas os pais em sua maioria estavam atrelados a “cuidar” dos demais filhos, assim a morte na infância passou a ser algo corriqueiro. E, também, as famílias tinham muitos filhos em curtos espaços de tempo entre uma e outra gestação. Este fato foi um determinante para a utilização da ama de leite. Sendo que a amamentação estava B DU – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 29 vinculada a uma tarefa extenuante, pois as amas passaram a desempenhar o trabalho do aleitamento. As crianças provenientes da elite tinham uma infância coordenada e determinada pelos espaços “adultos”. Termos como menina, menino, criança e adolescente tornam-se decorrentes, não apenas nos dicionários da época, mas também nas conversas entre famílias. A elite oitocentista instituiu novos significados para a infância, institucionalizando as representações simbólicas acerca da criança e de sua infância. Como fonte para análise, Mauad (2008) utilizou fotografias, destacando que as crianças eram vestidas conforme a moda francesa. Ou seja, usava-se o melhor desde a roupa ao sapato, a fim de eternizar o período tão importante que era a infância. É importante ressaltarmos que o século XIX, em relação à família, apresenta as seguintes características: [...] nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada família burguesa, agora marcada pela valorização da intimidade e da maternidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo representam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social imprescindível (D´INCAO, 2008, p. 223). A educação dos filhos da elite iniciava-se em casa, sendo que a escola somente poderia exercer seu papel se a educação familiar tivesse cumprido a sua parte, que era educar a criança, fazendo uso dos princípios morais. “Portanto era no lar que a base moral deveria ser plantada, sem confundir educação com instrução” (MAUAD, 2008, p. 150). Cada vez mais é reforçada a idéia de que ser mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro da esfera familiar “burguesa e higienizada”. Os cuidados e supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa época, ganha força a idéia de que é muito importante que as próprias mães cuidem da primeira educação dos filhos e não os deixem simplesmente soltos sob influencia de amas, negras ou “estranhos”, “moleques” da rua (D’INCAO, 2008, p. 229). Ainda observamos o seguinte: B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 30 Os meninos da elite iam para a escola aos sete anos e só terminavam sua instrução, dentro ou fora do Brasil, com um diploma de doutor, geralmente de advogado. Num colégio conceituado como o Externato Pedro II, freqüentado por quase todos os filhos da aristocracia cafeicultora imperial e pela elite urbana, havia um rol exaustivo de disciplinas [...], distribuídas ao longo de sete anos (MAUAD, 2008, p. 152). A educação feminina voltava-se, sobretudo à valorização das desenvolturas manuais e dos dotes sociais. [...] a educação feminina, iniciada aos sete anos e terminada na porta da igreja, aos 14 anos, supervalorizava o desempenho feminino na vida social. Na Corte imperial, das meninas da alta sociedade, exigia-se perfeição no piano, destreza em língua inglesa e francesa, e habilidade no desenho, além de bordar e tricotar (MAUAD, 2008, p. 154). Os espaços da vida da criança eram preestabelecidos pelos pais, a educação e a escola instruíam meninas e meninos para os seus futuros lugares quando adultos. Aos meninos, uma educação voltada para o desenvolvimento de uma postura viril e poderosa, aliada a uma instrução, civil ou militar, garantindo- lhe o desenvolvimento pleno da capacidade intelectual. [...], a educação das meninas, padecia de ambigüidades, pois ao mesmo tempo que as circunscrevia no universo doméstico, incentivando-lhes a maternidade e estabelecendo o lar como seu domínio, as habilitava para a vida mundana, fornecendo-lhes elementos para brilhar em sociedade (MAUAD, 2008, p. 155). Em relação ao espaço da criança no lar observamos: Essa questão da participação da criança em todas as atividades pode ser entendida também pelas relações que se estabeleciam entre espaços públicos e espaços privados. Estes se configuravam como uma das características da organização familiar. A distribuição dos espaços e os níveis de privacidade das casas muitas vezes não permitiam uma circulação de grupos em diferentes ambientes. Além disso, as famílias eram numerosas, as casas tornavam-se local de toda a produção material do que seria utilizado pela família no cotidiano. A organização das atividades girava em torno das tarefas domésticas envolvendo pessoas e dividindo os espaços por onde circulavam crianças, adultos, empregados. Nesse ambiente tornava-se mais complicado determinar ou estabelecer divisões do que seria local destinado para este ou aquele grupo, fazendo com que a convivência familiar ocupasse todos os locais da casa (SARAT, 2007, p. 90). Além da infância proveniente das elites, também ressaltamos a infância das crianças escravas. No auge dos navios negreiros, desembarcavam, em média, duas B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 31 crianças entre dez cativos, muitas morriam na viagem e as que sobreviviam, escapando da morte prematura, logo estariam órfãs. As crianças escravas logo seriam “adestradas” ao mundo do adulto escravo. O aprendizado da criança escrava se refletia no preço que alcançava. Por volta dos quatro anos, o mercado ainda pagava uma aposta contra a altíssima mortalidade infantil. Mas ao iniciar-se no servir, lavar, passar, engomar, remedar roupas, reparar sapatos, trabalhar em madeira, pastorear e mesmo em tarefas próprias do eito, o preço crescia (FLORENTINO; GÓES, 2008, p. 181-182). Sobre crianças escravas órfãs, Manolo Florentino e José Roberto Góes (2008, p. 181) ressaltam que “[...] menino crioulo sobrevivente não ficava só. A consolá-lo, existia uma rede de relações sociais escravas, em especial as de tipo parental”. Ou seja, havia uma rede de relações familiares, tios, tias, padrinhos e madrinhas, todos destinados, desde seu nascimento, a manter os laços. As crianças recrutadas para a guerra também marcaram a “falta de sensibilidade” dos adultos diante da fragilidade infantil. Em uma primeira fase, após a independência, recrutou-se crianças para a Marinha, valorizando, no entanto, a formação prévia daqueles que tinham estudado nas Companhias de Aprendizes Marinheiros; em um segundo momento, marcado pela Guerra do Paraguai, os burocratas imperiais assumiram uma postura arcaica, enviando inúmeras crianças sem treinamento algum aos campos de batalha (VENÂNCIO, 2008, p. 192). Eram recrutadas as crianças pobres, órfãs e enjeitadas, estas que até o século XVIII não recebiam nenhum tipo de treinamento, ficando à mercê dos perigos do mar e/ou da guerra. No século XIX, exigiram-se limites etários mínimos para o ingresso nas Armadas e, assim, determinavam-se conhecimentos prévios para a realização das atividades. Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o recrutamento de meninos da Casa da Roda também foi frequente. Podemos observar, a partir do ofício expedido pela Provedoria da Santa Casa, datado de 1858 (Anexo A) no qual eram encaminhados os meninos Alexandre (7 anos) e Felippi (7 anos) para que fossem recolhidos ao Arsenal de Guerra da Província do Rio Grande do Sul (OFÍCIO de 1858). B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 32 Ainda,sobre este fato, temos (Anexo B) o documento de 6 de março de 1854 remetido ao Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho (Presidente e Comandante das Armas da Província) o qual dizia que na Casa da Roda existiam dois meninos na idade de serem encaminhados ao Arsenal de Guerra. Segundo o requerimento, os meninos Sebastião e Joaquim poderiam ser admitidos na Classe dos Aprendizes menores (OFÍCIO de 06/03/1854). Os Arsenais de Guerra constituíam para aquelas crianças deixadas na roda dos expostos, um meio para que aprendessem um ofício, mesmo com as sérias restrições alimentares e higiênicas das referidas incorporações. Neste capítulo, observamos que o conceito de infância surge na transição da Idade Média para a Idade Moderna. Sendo que o Renascimento exerceu forte influência para perpetuar novas relações familiares, não apenas calcada na preocupação da manutenção familiar (linhagem), mas também visando ao bem estar da criança. Foi com o advento da escolarização que se solidificou o conceito de infância. Sendo que, no século XIX, mais precisamente nos núcleos familiares burgueses europeus, a criança passou a ocupar um papel de destaque dentro da estrutura familiar – já inserida num sistema de coletividade familiar. Como vimos, no Brasil, a conceitualização de infância passou por etapas, seguindo o ordenamento europeu. Ainda é importante salientarmos que a família burguesa revogou a concepção de que a criança deveria ser moldada para perpetuar os núcleos familiares. E, que o modelo de família burguesa deveria enquadrar-se nos moldes estabelecidos pela religião. Neste sentido, não somente aos preceitos Católicos, mas também ao Protestantismo visto que, a cidade de Porto Alegre recebeu inúmeros imigrantes protestantes alemães. Neste sentido, ainda apontamos que crianças provenientes de relacionamentos que não eram legalmente e moralmente instituídos não eram aceitas dentro destes núcleos familiares. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 3 A CIDADE DE PORTO ALEGRE: ESPAÇO, POPULAÇÃO E POBREZA 3.1 Povoamento açoriano na província do Rio Grande de São Pedro Devido às circunstâncias e dificuldades em fazer cumprir as determinações régias de demarcação e distribuição de terras, em decorrência do Tratado de Madri, começaram a chegar, à Vila de Rio Grande, (atualmente denominada cidade de Rio Grande) as primeiras levas de colonos vindos das Ilhas dos Açores (Portugal). Em 1751, conforme Cleusa Maria Gomes Graebin (2006), chegaram, à Província, os primeiros casais açorianos e, seguindo as designações da Coroa Portuguesa, estes deveriam estabelecer-se nos espaços da vila do Rio Grande. Sendo estes casais reacomodados nas terras ao longo do ribeiro de Castilhos Grande, os casais açorianos também deveriam ser encaminhados pelas margens do rio Negro e do Ibicuí, além dos Sete3 Povos da Companhia de Jesus e demais localidades estabelecidas pelo Tratado. Iniciando pela vila do Rio Grande, os açorianos foram alcançando, por caminhos terrestres e fluviais, outros espaços, numa linha estratégica traçada pela Coroa portuguesa para a fixação de povoadores, garantindo o avanço luso na ocupação e posse de territórios (GRAEBIN, 2006, p. 203). 3 São Francisco de Borja, São Luiz Gonzaga, São Nicolau, São Miguel, São João Baptista, São Lourenço Mártir e Santo Ângelo Custódio (SEVERAL, 1998). B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 34 Visando a racionalizar a distribuição territorial dos colonos, o chefe da comissão da Coroa Portuguesa e governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, foi incumbido para estabelecer as decisões do Tratado de Madri. Isto é, de organizar, por meio do alistamento, uma tropa que ficaria responsável pela exploração de novas terras e rios e a condução de algumas famílias para os Campos de Viamão. Nesta vila, os casais açorianos aguardariam no Porto de Ornelas a transferência para as Missões. Devido aos conflitos indígenas (1754 a 1756) nos Sete Povos, Gomes Freire de Andrada não pôde consolidar a instalação dos casais açorianos nas Missões. Em decorrência disso, parte dos colonos tiveram que permanecer arranchados no porto do Ornelas (distrito de Viamão), sendo estes mantidos pela Fazenda Real. Gomes Freire de Andrada mandou, ainda, transportar algumas daquelas famílias açorianas que se encontravam arranchadas no porto de Viamão (ou do Ornelas), para acomodá-las em terras próximas à fortificação construída em Rio Pardo. No entanto, não houve a demarcação e regularização de posse das datas de terras, nem subsídios, instrumentos para a lavoura, animais, ou sementes. Esses casais viveram por sua própria conta e risco, improvisando a sobrevivência, desde a sua chegada ao porto do Ornaleas, em 1752, até a demarcação de terras, iniciada somente a partir de 1764 (GRAEBIN, 2006, p. 206). Estas pessoas que vieram para os Campos de Viamão perfaziam aproximadamente sessenta famílias que se estabeleceram nas terras já demarcadas no Morro Sant’Ana. Entretanto, devido à escassez de água, a população fixou-se próximo ao porto, que viria a ser denominado Porto dos Casais. É importante informar que Fábio Kühn (2004) ao analisar os róis de confessados, constatou que a população de Viamão era formada por cento e trinta e seis fogos, cerca de setecentos habitantes. Ou seja, mesmo havendo uma redução da colonização lusa no período, este foi um momento de estabelecimento das primeiras estâncias de criação. Segundo Graebin (2006), dentre as famílias açorianas que se estabeleceram na região dos Campos de Viamão, podemos destacar as várias profissões, como alfaiates, carpinteiros, sapateiros, ferreiros, peões do exército, tropeiros e casais de colonos. A área de terras ocupada por parte dos casais vindos de Portugal, havia B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 35 sido desapropriada do sesmeiro Jerônimo de Ornellas. Estas famílias receberam individualmente os lotes de terras em 1772. O primeiro logradouro estabelecido na região foi a construção do cemitério e as vilas do Menino Deus e dos Navegantes e a Aldeia dos Anjos (atualmente Gravataí). Luiz Ricardo Michaelsen Centurião (1999), no trabalho “A cidade colonial no Brasil”, ressalta que os sesmeiros foram de extrema importância para o projeto colonizador. Embora a obra aborde o Brasil como um todo, é possível depreender que, na Província do Rio Grande do Sul, os sesmeiros tiveram a missão de efetuar o projeto colonizador colonial. [...] o empreendimento particular ficava atrelado, [...], com rédea legalmente curta, ao poder central. E, de fato, correspondia este procedimento ao modelo de dominação estamental e patrimonial empregado pela Coroa portuguesa. De acordo com esse modelo, o processo colonizador deveria permanecer estreitamente vinculado à política centralizadora do poder absolutista. Nesse contexto, mantinha o Estado o poder de conceder privilégios e oportunidades individuais de ganhos a particulares, o que, em última instância, dava oportunidade à formação de fortunas privadas, consistindo nisso a recompensa do empreendedor particular (CENTURIÃO, 1999, p. 195). Em 1772, a atual cidade de Porto Alegre foi estabelecida como Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, sendo que, um ano depois, seu nome foi alterado recebendo a denominação de Nossa Senhora daMadre de Deus de Porto Alegre. Em 1773, Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre se tornou a capital da capitania com a instalação oficial do governo de José Marcelino de Figueiredo. Em 1772, o governador José Marcelino de Figueiredo designou o capitão- engenheiro Alexandre Montanha para demarcar as ruas e lotes dos colonos, para a abertura das primeiras estradas, ligando a Viamão, para delimitar o centro cívico da cidade e para elaborar um mapa da localidade (PESAVENTO, 1999, p. 249). B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 36 Na figura 1, observamos o mapa de Porto Alegre de julho de 1772 projetado pelo Capitão engenheiro Alexandre José Montanha. O governador Figueiredo, ainda neste período, transferiu a capital de Viamão para Porto Alegre (denominada de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre). Figura 1 - A capital Porto Alegre em 1772. Fonte: MONTANHA. (1772). Com a elevação do povoamento à freguesia em 1772, este separa-se de Viamão, formando uma jurisdição eclesiástica independente do antigo vilarejo pertencente. Devido à ascensão e à freguesia, Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre, e do posicionamento fronteiriço da Província de São Pedro, a cidade cresceu rapidamente constituindo característica de “burgo-refúgio”. B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 37 3.2 De vila à cidade: o surgimento de Porto Alegre Porto Alegre, considerada capital da Província no século XIX, assumiria dentro do processo administrativo iniciado pela Corte, grande representatividade regional. Para Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos (2006), na Freguesia logo estabeleceu-se a organização de uma vida social, pública ou privada harmônica com os grupos emergentes. Estes, segundo a autora, formados por militares, funcionários públicos, estancieiros e comerciantes. É importante destacar que a cidade é o resultado dos personagens que nela estão inseridos, por isso devemos levar em consideração que o processo de urbanização está fundamentalmente ligado ao processo histórico das ocupações. E, como afirma Centurião (1999, p. 196), a “política urbanizadora na colônia portuguesa só encontraria expressão concreta pela existência ou inexistência da possibilidade de construir-se uma forte rede urbana”. [...] a cidade é, em parte, a expressão física da sociedade à qual ela pertence, e reflexo de seus valores culturais. Concepções de poder, hierarquias sociais, profissões e economia, o modo de vida de um povo, as noções de sagrado e profano, as relações entre os sexos e, enfim, todas as heterogêneas manifestações de uma determinada sociedade e suas especificidades, encontraram sua expressão física no traçado das ruas, na arquitetura das edificações e na disposição destas, na distribuição de áreas públicas e privadas e em outros aspectos de sua configuração (CENTURIÃO, 1999, p. 215). No século XIX, houve a introdução de grandes quantidades de imigrantes alemãs e posteriormente italianos no espaço rio-grandense. A chegada destes esteve relacionada com a industrialização da capital. [...] chamada burguesia imigrante, a qual, uma vez estabelecida, passa a investir capital e técnica em atividades industriais [...], com base nessas constatações, no Rio Grande do Sul a produção artesanal e manufatureira e o desenvolvimento industrial foram ampliados pela imigração/colonização estrangeiras (RAMOS, 2006, p. 424-425). O processo imigratório colonizador iniciado em 1824, e que se estendeu até as primeiras décadas do século XX, foi marcado por políticas do governo colonial brasileiro. Até então, o Brasil abastecia seu mercado interno com mão de obra escrava, mas este uso não ia ao encontro das necessidades da economia, visto que B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 38 os escravos não faziam parte do mercado consumidor. Então houve a necessidade de substituir o trabalho escravo pela mão de obra do homem branco que viria a ser o futuro consumidor do acelerado mercado interno, outro fator era objetivo é o desejo do governo em branquear a população e ocupar novas áreas de terras. Foram vários os fatores que “forçaram” os imigrantes alemães a se aventurarem pelas terras sulinas, conforme a autora Hilda Agnes Hübner Flores (2004, p. 13-17) há motivos múltiplos, como causas externas, sendo estas: a servidão europeia que atrelava o trabalhador à terra do proprietário; o impedimento legal de poder caçar e ou pescar; o morgadio, quando a propriedade é herdada somente pelo filho mais velho, ficando os demais sem direitos a heranças; a grande explosão demográfica que resultou em desemprego; a obrigação aos serviços militares; as sanções impostas pela Igreja; a exploração e cobrança de altos impostos, mesmo daqueles donos de “minúsculas frações de terras”; a industrialização que substituiu a mão de obra artesanal, gerando insatisfações sociais e desemprego e, por fim, o resultante de todos os fatores anteriores que foi a precária situação sócio-ecônomica na qual se encontravam as pessoas que decidiam emigrar. Decididos a emigrar, homens e suas respectivas famílias aguardavam, com dúvidas e incertezas, o momento da viagem. Como destaca Flores (2004, p. 21), a “[...] viagem desdobrava-se em etapas sucessivas, desde o local de resistência a ser deixado para trás até o lote rural onde deviam forjar um novo lar”. A viagem durava de três a quatro meses e os navios, que tinham capacidade para não mais de quatrocentas pessoas viajavam com superlotação. Sendo que as viagens transatlânticas eram significadamente mais confortáveis em comparação às viagens com os navios costeiros no Brasil. A alimentação servida nos navios transatlânticos dispunha de alimentos suficientes para prover as famílias, ao contrário dos navios costeiros nos quais embarcavam os imigrantes de Rio de Janeiro a Porto Alegre. Nessas embarcações, crianças e velhos ficavam vulneráveis à subnutrição, e acabavam por morrer durante a viagem. Ao chegar ao Rio Grande do Sul, as famílias eram arregimentadas e levadas às respectivas regiões a serem colonizadas. Passo de São Leopoldo (atual B D U – B ib lio te ca D ig ita l d a U N IV AT E S (h tt p: //w w w .u ni va te s.b r/ bd u) 39 município de São Leopoldo) recebeu a primeira leva de famílias, cerca de trinta e oito pessoas, os quais recebiam os lotes de terras que inicialmente eram de setenta e sete hectares. O minifúndio agrário caracterizou-se como um movimento de chefes de família em demanda de terra em uma nova pátria. Curiosamente os imigrantes acabaram por preencher postos no comércio, em prestação de serviços e profissões liberais. Em contraste com a comunidade lusa rural, de baixa ocupação demográfica, a área de minifúndio era mais densamente povoada, logo surgindo comunidades religiosas e associações escolares, esportivas e culturais (FLORES, 2004, p. 12). Os complexos coloniais dos imigrantes alemães localizavam-se dispersos dos centros urbanos lusos, isso fez com que formassem comunidades bem estruturadas, conservando os valores e costumes da pátria “abandonada”. Ao estudar a família imigrante alemã, mais especificamente famílias que se estabeleceram na cidade de Curitiba (Estado do Paraná), a autora Cacilda da Silva Machado observou que as relações familiares baseavam-se numa família extensa.
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