Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
- ... - I PSICANÁLISE I A psicopatologia da drogadicçio: uma abordagem psicanalítica* VICTOR EDUARDO SILVA BENTO·· 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 3. Conclusão. o objetivo deste trabalho foi discutir a hip6tese de que a drogadicção expressa diversos componentes psicopatol6gicos: psic6tico, maníaco-depressivo, perverso, obsessivo-compulsivo, etc. Além disso, incluiria também um componente nor- mal. Foi realizada uma abordagem teórica, de orientação psicanalítica. Dis- cutiu-se a idéia de que sexualidade, nas toxicomanias, consiste em quaisquer atividades que impliquem alguma vinculação exagerada, com a finalidade de atingir um prazer muito específico - aquele ligado à reedição imaginária da vinculação com a função materna. Existiriam diversas expressões desta busca imaginária: psicótica, maníaco-depressiva, obsessivo-compulsiva, perversa, etc., as quais constituiriam os diversos componentes psicopatol6gicos das toxico- manias. Apesar de tais diferenças ao nível das manifestações externas, há algo que se mantém inalterado - a busca imaginária da função materna. 1. Introdução A proposta deste artigo é discutir a hipótese de que o toxicômano não pode ser enquadrado numa única categoria diagnóstica. ~ um pouco de tudo, mas nada inteiramente. Mais precisamente, é um pouco neurótico, um pouco psico- pata, um pouco normal. Esta hipótese nasceu a partir da experiência clínico-institucional do autor, no Serviço de Liberdade Assistida (SLA) do Juizado de Menores do Rio de Janeiro.1 Trata-se de um serviço especializado no atendimento psicológico, de • Artigo apresentado à Redação em 12.9.85. U Psicólogo; professor no Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Pa- raná; membro do Comitê de Adolescência da Sociedade Paranaense de Pediatria. (Ende- reço do Departamento de Psicologia da UFPR: Trav. Alfredo Bufren, 140, 1.0 andar - Centro - 80.020 - Curitiba, PR - Te!.: (041) 264-2522, ramal 298; endereço do con- sult6rio: Plastic Clínica - R. General Carneiro, 881 - Centro - 80.060 - Curitiba, PR - Te!.: (041) 262-4021.) 1 Maiores detalhes sobre o SLA do Juizado de Menores do Rio de Janeiro poderão ser encontrados em Bento (1984 e 1986). ~.~r_q~.~b_ra_s_. __ P_si_c~., ________ R __ io __ d_e~Ja_n_e_ir_o~, ________ 3_9~(1~)_:4_1_-5_0~, ______ ~j_an_._/_m_a_r. __ 1_98_7 tipo ambulatorial, a adolescentes delinqüentes. Atendem-se, portanto, todos os tipos de delinqüência juvenil, muito embora o desvio mais freqüente, presente quase que na maioria dos casos, seja a drogadicção. No SLA os adolescentes são inicialmente submetidos a um psicodiagnósti- co. Em seguida um laudo psicológico é enviado ao juiz de menores. Neste é apresentado um diagnóstico estrutural e dinâmico da personalidade do menor, bem como uma indicação terapêutica. Após a aquiescência do juiz, dá-se início ao atendimento psicoterápico indicado no laudo. O que o autor deste trabalho vinha observando, ao longo de seis anos de prática, era a dificuldade de apresentar um único diagnóstico estrutural do ado- lescente drogadicto. Sua estrutura de personalidade, via de regra, se encaixava pelo menos um pouco em cada categoria diagnóstica. Sem dúvida pode-se compreender este fato - ser um pouco de tudo, e não ser inteiramente nada - em função do período etário. Na adolescência dá-se a estruturação da identidade pessoal e, em virtude disto, o indivíduo os- cila entre as mais diversas formas de existir, na busca de si mesmo. Entretanto, apesar desta compreensão, interrogou-se: esta característica - ser um pouco de tudo, e não ser inteiramente nada - não seria própria da toxicomania em geral, independentemente do período etário? Para verificar tal questão, foi realizada uma pesquisa bibliográfica que se encontra com detalhes em Bento (1986) e será sumariamente discutida neste artigo. Antes, porém, cabe destacar a hipótese central deste estudo: "O funcionamento da personalidade do drogadicto não pode ser descrito em termos de uma única categoria diagnóstica. Existem diversos componentes psicopatológicos que se apresentam simultaneamente ou não, e em graus diver- sos, de acordo com cada personalidade." 2. Desenvolvimento 2.1 O conceito de drogadicção na psicologia o termo drogadicção é empregado neste trabalho como sinônimo de toxicoma- nia. Para a OMS (apud Martinez-Pina, 1963), o segundo se refere especifica- mente ao consumo repetido de uma droga, acompanhado pela tendência ao au- mento da dose e estruturação de dependência física e psíquica. Entre os psicó- logos, o referido termo parece ter uma abrangência maior, na medida em que se refere ao consumo repetido e exagerado não apenas de drogas, mas de qualquer coisa: de lazer, de furto, de sexo, de amor, de álcool, de comida, de trabalho, de estudo, etc. Entre os autores que defendem esta idéia pode-se des- tacar Charles-Nicolas e Valleur (1983), Fenichel (1981), Kornblit (1981), Ro- senfeld (1972 e 1974), Garsoli (1981), Savitt (1966), e Martinez-Pina (1983). 2.2 As causas psicológicas da drogadicção: considerações históricas sobre a formação dos componentes psicopatológicos das toxicomanias Muitos autores acreditam na existência de uma relação causal entre certos fe- nômenos psíquicos e a toxicomania. Este é o caso de Claude Olieventein (1983), por exemplo. Este autor considera que o toxicômano passa por certos aconte- 42 A.B.P. 1/87 - .. - - - cimentos na infância, os quais seriam os possiveis responsáveis pela conduta drogadictiva. O termo "possíveis" foi sublinhado para enfatizar a relatividade desta afirmação. Olievenstein (1983) crê que a existência de uma estrutura psíquica toxicomaníaca não garante necessariamente a produção de um toxicô- mano. Para que isto ocorra ele destaca duas condições necessárias e suficientes: 1. a primeira é que o indivíduo encontre a droga; e 2. a segunda é a sua relação com a transgressão da lei. Para explicar a produção da toxicomania, Olievenstein (1983), seg.uindo a linha da Escola Francesa de Psicanálise, propõe a Teoria do Espelho Partido, a qual se baseia na teoria do espelho de Jacques Lacan. Olievenstein (1983) explica que o que ocorre com o futuro toxicômano é o seguinte: no momento em que está diante do espelho, este se parte, refletindo simultaneamente uma imagem e uma fenda. Trata-se, portanto, de uma imagem fragmentada, incompleta. Segundo este autor, as fendas deixadas pelas ausências do espelho só podem remeter ao que existia antes; a fusão mãe-filho, a indiferen- ciação, a inexistência de uma identidade. Concluindo, Olievenstein (1983) coloca que o chamado estádio do espe- lho partido explica a incompletude, a existência parcial do toxicômano, o fato dele não poder ser enquadrado inteiramente em nenhum diagnóstico, muito embora apresente um pouco de cada um deles. Neste sentido, o drogadicto seria um pouco maníaco-depressivo, um pouco psicótico, um pouco perverso, um pouco obsessivo-compulsivo, um pouco normal, etc. Entretanto, apenas um pou- co; nada inteiramente. Esta hipótese que apregoa os diversos componentes psicopatológicos das toxicomanias é compartilhada por vários autores, entre os quais pode-se desta- car Bergeret (1983), Glover (1949), Martinez-Pina (1983), e Versiani (1980). A prop6sito da teoria do espelho partido, caberia interrogar: por que o espelho se parte? Olievenstein (1983) destaca a cinética da relação mãe-filho, sem a participação do pai. Mais especificamente, coloca que quando o genitor encontra-se ausente ou presente de forma negativa (pai frágil), na medida em que se mostra insuficiente para romper o intercâmbio mãe-filho, s6 resta à criança se entregar à busca do prazer total e imediato, simbolizado na relação com a mãe. Segundo o ·referido autor, nesta cinética talvez esteja a causa da homossexualidade, tão freqüente entre os toxicômanos.Outros autores propõem düerentes explicações para a causa psicológica das toxicomanias, entretanto são unânimes em destacar a relação com o símbolo materno, sem a participação do pai. Entre eles pode-se destacar Fenichel (1981), Rosenfeld (1972 e 1974), Savitt (1966), Kalina e Kovadlof (1980), e Ber- geret (t 983) . Na teoria lacaniana, a lei é transmitida pelo pai. Olievenstein (1983) coloca que quando o genitor é vivenciado como frágil (pai idoso, impotente, homos- sexual, ou incapaz de levar a mãe ao orgasmo), tal transmissão torna-se inope- rante, surgindo a mencionada tendência para transgredir a lei, que foi destacada anteriormente como uma das condições necessárias e suficientes para a produ- ção da toxicomania. Esta tendência para transgredir a lei vai caracterizar o chamado Estágio do Exagero, o qual sucede o estágio do espelho partido. Quando o pai não Psicopatologia da drogadicção 43 exerce sua função de transmitir a lei, o não, o limite, e a necessidade da crian- ça desta função paternal não pode ser verbalizada em virtude de alguma cen- sura, é então comunicada por via não-verbal, isto é, por atuações - componente perverso das toxicomanias. O exagero constitui uma atuação na medida em que, ao ultrapassar o limite aceitável, o indivíduo expressa não-verbalmente um pe- dido de limite, isto é, sua carência da função paterna. Olievenstein (1983) considera que o primeiro momento do exagero é a exacerbação da função lúdica, seguido pela exacerbação da masturbação, até culminar no encontro do indivíduo com a droga e na conseqüente produção do quadro toxicomaníaco. Quando a droga é encontrada, produz-se o que Olievenstein (1983) cha- ma de fissão nuclear para se referir a um choque muito intenso. Segundo este autor, tal choque se refere à reconstituição da unidade no prazer. Explica que a droga parece ter a finalidade de preencher os espaços vazios do espelho par- tido, como se fosse um cimento nas fendas de um muro. Desta forma, a realida- de da incompletude é anulada, e o toxicômano encontra, no auge da escansão, a unidade identificatória. Pelo menos neste único instante tem a sensação de ser possuidor de existência completa. No caso da heroína, por exemplo, Olievenstein (1983) considera que suas propriedades caloríferas fazem com que o indivíduo se sinta como se estivesse num casulo, num banho de água morna e pegajosa, numa atmosfera pré-genital. Coloca que a partir daí passa a acreditar que encontrou o paraíso, isto é, a uni- dade. Nesse sentido, conclui que a droga tem a finalidade de levar o indivíduo a alucinar a realidade, revivendo ou recolocando-se numa posição de lactente, sem culpa e sem sexualidade, portanto, sem problema - componente psicótico das toxicomanias. Olievenstein (1983) considera que a enorme dimensão da ansiedade do toxicômano resulta justamente do sentimento de estar impossibilitado de poder controlar o tempo, fazendo com que persista aquela dimensão temporal arcaica, a fim de garantir a unidade existencial, bem como a satisfação total e imediata de suas necessidades. Como .iá foi dito, a possibilidade de anular o tempo vivido e produzir um tempo idealizado ocorre apenas pelo espaço de um instante, isto é, no auge da escansão, no auge do prazer produzido pela droga. Entretanto, o preço que o toxicôman0 paga por este instante é o sofrimento causado pela constatação de que tudo tem um fim, que tudo morre. O efeito da droga acaba passando e o tempo escoando. Se esta vivência de morte não puder ser suportada, o progn6stico será a morte do corpo. Olievenstein (1983) coloca que é muito freqüente a busca de uma saída através do suicídio quando o efeito da droga passa. Segundo coloca, aí residiria o grande paradoxo da vida do toxicômano: passar toda a sua vida fu- gindo da morte para acabar provocando-a. 2.3 Os componentes psicopato16gicos das toxicomanias 2.3.1 0 componente psic6tico Para Preud (1974) a psicose está ligada à questão do narcisismo, isto é, rela- ciona-se ao fato do indivíduo retirar sua libido dos objetos, desviando-a na dire- 44 A.B.P. 1/87 - , - .. .. ção de si mesmo. Assim, deixa de se interessar no mundo externo, preocupando- se apenas com o interno. Coloca também o mesmo autor que o narcisismo é normal quando aparece nos primórdios do desenvolvimento sexual infantil, e quando não ultrapassa certa medida no adulto. Entretanto, destaca-o como anor- mal quando é tão intenso, a ponto de configurar os quadros psicóticos, os quais caracterizam-se basicamente por dois tipos de sintomas: as alucinações e os delírios. Muitos autores destacam o componente psicótico das toxicomanias. Para Kalina e Kovadloff (1980) a droga dicção é uma conduta psicótica que tem a estrutura de um estado delirante. Tal estado se expressa pelo fato do adicto não perceber a droga objetivamente, mas sim de acordo com o seu desejo. Dito de outra maneira, a droga não é vista tal como é, mas sim como possuidora de um poder mágico de suprir todas as suas necessidades. Tudo funciona como se o adicto projetasse na droga a imagem idealizada de um peito provedor de todos os desejos. Charles-Nicolas e Valleur (1983) destacam o componente psic6tico das toxicomanias quando analisam a drogadicção como uma conduta ordálica. Littré (apud Charles-Nicolas e Valleur, 1983) define a ordália como a prova judi- ciária usada na Idade Média em nome do julgamento divino. Este autor con- sidera que a ordália, como Deus, separava o bem do mal: condenava à morte- ou apontava triunfalmente aquele que estivesse ao lado de Deus, aquele que tivesse sido o escolhido do Senhor, numa decisão transcendente a toda justiça humana. Com fins ilustrativos, Charles-Nicolas e Valleur (1983) citam uma ordália existente bem antes da Idade Média, entre os celtas. Estes autores contam que as crianças suspeitas de não serem legítimas eram lançadas à água. Se o bebê se afogasse, isso era interpretado como uma prova do nascimento culposo. Caso contrário, a legitimidade da criança estava comprovada de maneira absoluta . Como se pode ver, trata-se de uma interpretação delirante. Charles-Nicolas e Valleur (1983) definem como condutas ordálicas todos os comportamentos que impliquem um risco de vida e uma crença delirante de que driblando a morte, ultrapassando gloriosamente a prova ordálica, atinge- se a posição de escolhido do Senhor, o que garantiria o paraíso nirvânico, o or- gasmo permanente. A drogadicção constituiria uma conduta ordálica devido ao fenômeno da sobredose. O adicto aumentaria cada vez mais o consumo tóxico, como se desejasse ir de encontro à morte, não para morrer, mas para alcançar a sobrevivência miraculosa, o prazer total e permanente, o paraíso nirvânico - reedição imaginária da vinculação com a função materna. Olievenstein (1983) destaca o componente psicótico das toxicomanias quando analisa a vivência temporal do adicto. Como já foi dito, este autor coloca que o toxicômano usa a droga com a finalidade de negar a realidade temporal presente, e de alucinar ou reviver um tempo passado, onde se sinta na posição de um bebê, sem culpa, sem sexualidade, sem problema de espé- cie alguma. Ingold (1983) aborda o componente psicótico das toxicomanias quando coloca que a droga tem duas funções: 1. anestésica - anulação da realidade exterior dolorosa; 2. facilitar a alucinação de um corpo idealizado. Psicopatologia da drogadicçao 45 2.3.2 O componente maníaco-depressivo Segundo Fenichel (1981), a depressão, em grau ligeiro, ocorre em quase toda neurose, e em grau mais elevado, aparece no estado psicótico da melancolia. Se- gundo coloca, ela está relacionada à fixação no estádio em que a auto-estima e a existência são reguladas por proyisões externas. Neste sentido, quando o indivíduo não tem suas necessidades narcísicas satisfeitas, sua auto-estima diminui,e ele cai em depressão. Este processo relaciona-se com a idéia do amor utilitário: o sujeito só consegue se sentir amado enquanto estiver sendo provido ou satis- feito plena e imediatamente em suas necessidades narcísicas. A mania, para Fenichel (1981), é o oposto da depressão. Este autor coloca que tudo que o depressivo busca, isto é, as provisões capazes de suprir plena- mente todas as suas necessidades narcísicas, são imaginadas possíveis na mania. Fenichel (1981) chama atenção para a relação entre a adicção de drogas e os estados maníaco-depressivos. Este autor considera que o ego frágil dos adictos faz com que eles não suportem a tensão, o sofrimento, a frustração e a expectativa. Segundo coloca, a droga é usada com a finalidade de fugir destes efeitos desagradáveis. Entretanto, este fim só é alcançado por alguns instantes, pois quando o efeito tóxico passa, o sofrimento e a frustração retomam, cada . vez de forma mais intensa, o que induz ao aumento do consumo da droga. De acordo com o mesmo autor, este aumento é também favorecido pelo fato de uma mesma quantidade t6xica diminuir seus efeitos ao longo do tempo. Neste sentido, para produzir a exaltação desejada, deve-se consumir uma maior quan- tidade de droga. Assim, aos poucos, todos os demais interesses do toxicômano vão sendo substituídos pelo desejo farmacotóxico. Foi justamente a propósito desta busca de um efeito maníaco que Fenichel (1981) destacou a relação da adicção de drogas com os estados maníaco-depres- sivos. Este autor considera que nas fases finais da doença, os adictos oscilam entre sentimentos de exaltação produzidos artificialmente com drogas, e senti- mentos de depressão, que surgem quando o efeito tóxico acaba. Para o mesmo autor, este quadro é muito semelhante ao de um bebê, durante os estados de fome e saciedade. Outros autores também apontam o componente maníaco-depressivo das toxicomanias, abordando o problema muitas vezes de forma bastante semelhan- te à de Fenichel (1981), o que permite que se destaque a existência de um certo consenso sobre esta questão. 2.3.3 O componente perverso Fenichel (1981) define o componente perverso das toxicomanias como uma atuação impulsiva, calcada numa busca hedonista. O componente psicótico também está relacionado com tal busca, entretanto difere do primeiro pela in- tensidade da mesma, que é maior. Cabe distinguir também a perversão da compulsão. Fenichel (1981) consi- dera que muitas vezes as atividades dos perversos e os impulsos dos psicopatas são chamados erroneamente de sintomas compulsivos, devido ao componente impulsivo, presente nas duas patologias. Entretanto, este autor aponta algumas diferenças entre elas. Primeiramente, destaca o fato das perversões e dos impul- sos mórbidos serem prazerosos, enquanto que os atos compulsivos são penosos, 46 A.B.P. 1/87 - - • - sendo praticados na esperança de eliminar um sofrimento. Os sentimentos de culpa acompanham estes últimos, enquanto que os atos perversos nada têm a ver com culpa, relacionando-se apenas com o prazer. Em segundo lugar, Fenichel (1981) considera que a diferença mais carac- terística está na maneira pela qual se sente a impulsão. Segundo coloca, o neu- rótico obsessivo sente-se forçado a fazer uma coisa que não gosta, enquanto que o pervertido sente-se obrigado a "gostar" de sua ação. Muitos autores compartilham a tese do componente perverso das toxico- manias. Entre eles destacam-se: Tornnellier (1983), Martinez-Pina (1963), Olie- venstein (1983), etc. Este último chegou a definir a toxicomania como uma sucessão de atuações, com a constância de um imaginário, através do qual o toxicômano reviveria instantes privilegiados de sua infância. Mostra ainda este autor o quanto que a orientação psíquica do viciado está voltada para o prazer exagerado. Liberman (apud Kalina e Kovadloff, 1980) estudou o psicopata, denomi- nando-o "pessoa de ação". Sua hipótese é que a psicopatia se origina de um de- senvolvimento falho na maneira de empregar instrumentalmente os símbolos ver- bais, durante um período anterior ao estabelecimento do Complexo de :edipo. Este autor considera que neste período a criança deve adquirir a capacidade de reconhecer suas necessidades e comunicá-las verbalmente, independente da ação ou atuação. Segundo coloca, o psicopata foi uma criança que neste período pré- edípico 'introjetou figuras parentais que percebiam suas necessidades, antes delas serem verbalizadas. A partir daí aprenderia a não ter que esperar para ser compreendido, e a manejar a realidade externa por intermédio da ação muscular, e da utilização dos símbolos não-verbais exclusivamente como ação que exige uma resposta imediata a algum pedido. Kalina e Kovadloff (1980) consideram que a personalidade drogadictiva não suporta esperar, da mesma maneira como a personalidade do psicopata. Colo- cam que a droga tem a função de eliminar a ansiedade da espera e a angústia da frustração. Admitem também que a utilização de drogas injetáveis, por exemplo, é provocada por uma forte intolerância à espera. Explicam que, neste caso, o adicto busca um efeito tão imediato que nem sequer consegue aguardar o tempo indispensável para que a droga incorporada por outras vias faça efeito. O símbolo verbal funciona como mediação, isto é, como uma ponte entre o objeto almejado e a satisfação. Desta forma, impõe uma demora, por mais breve que seja. Esta demora é intolerável para o adicto, que quer a plena sa- tisfação dos seus desejos, imediatamente. Kalina e Kovadloff (1980) consideram ainda que este componente psico- pático da drogadicção também está relacionado com a dificuldade do adicto para suportar a dor e a frustração. Colocam que o viciado substitui a reflexão pela ação impulsiva (atuação), porque não suporta pensar. Através do pensamento tomaria contato com sentimentos que produzem sofrimento. Como é impotente para sofrer, opta por não pensar e toma por lema atuar sempre para evitar o desprazer. ' A repetição da atuação drogadictiva aparece justamente porque o adicto, impossibilitado de pensar, não consegue recordar, e, com isto, elaborar seus sentimentos. Resulta daí que também não consegue escoar suas tensões em re- lação ao traumático, tendo que reatualizá-Io compulsivamente, da maneira como pode, isto é, por atuações drogadictivas. Psicopatologia da drogadicção 47 2.3.4 O componente obsessivo-compulsivo Segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1975), o termo obsessão expressa uma preocupação com determinada idéia, que domina doen- tiamente o espírito. De acordo com este autor, trata-se de uma idéia fixa, uma mania. O termo compulsão é definido pelo mesmo autor como tendência à repetição. No próprio termo toxicomania já está denotada a idéia de obsessão: mania de tóxico (tóxico mania). A compulsividade se refere à tendência para repetir esta mania. Fenichel (1981) considera que nas compulsões e obsessões o ego perma- nece alienado na medida em que não se sente livre para usar sua força orien- tadora; ao contrário, acredita que deve usá-la conforme certo comando estra- nho, de agência mais poderosa, que lhe contradiz o juízo. Além disso, admite que os rituais compulsivos constituem o traço ou sintoma mais característico da neurose obsessiva. Esta, segundo o autor, se estrutura a partir de uma regressão anal, e se relaciona com o fato do superego se tomar mais sádico. Charles-Nicolas e Valleur (1983) destacam o componente obsessivo-com- pulsivo das toxicomanias quando colocam tais patologias como condutas ordá- licas. Como já foi dito, estas condutas implicam um risco de morte em nome do julgamento divino. Nesta perspectiva, constituiriam rituais, com caracterís- ticas sádicas. Além disso, se baseariam na alienação do indivíduo, isto é, no fato do seu destino ser determinado poruma força exterior mais poderosa - o julgamento divino. As condutas ordálicas já foram estudadas antes como ligadas ao compo- nente psicótico das toxicomanias. Podem, portanto, se apresentar em ambos os níveis, psicótico ou neurótico, conforme o grau de alienação psíquica, ou por outro lado, de afastamento da realidade exterior. Chebabi (1980) também se refere ao componente obsessivo-compulsivo das toxicomanias quando aborda a relação da alienação social com a alienação produzida pelas drogas. Segundo este autor, a drogadicção tem a finalidade de substituir a primeira forma de alienação pela segunda. O indivíduo permanece alienado, mas pelo menos tem a sensação de ter optado por este estado, bem como de ter obtido um controle onipotente sobre os eventos da vida. A busca de tal controle constitui uma das características da neurose obsessiva. Funciona como uma formação reativa, isto é, visa se opor ao sentimento de impotência diante de alguma força mais poderosa do exterior, que exerça função de co- mando. Segundo Fenichel (1981), a defesa reativa é bem característica da neurose em questão. Sobre o controle onipotente, Charles-Nicolas e Valleur (1983) consideram que alguns autores admitem que a repetição da ingestão da droga, além de repe- tição da necessidade, constitui também uma tentativa de dominar ou controlar a impressão demasiadamente forte criada pelo primeiro encontro com o prazer da droga, o primeiro flash. Olievenstein (apud Charles-Nicolas e Valleur, 1983) acredita que no flash, o fantasma é o de gozar consigo mesmo, e de nascer desse gozo. Supõe que tal sensação narcísica seja vivida como algo inteiramente novo, e que o indi- víduo tenda a repetir a experiência para obter controle sobre este estado. Quan- 48 A.B.P. 1/87 - .. - do o êxtase passa a ser produzido pela ingestão da droga, o toxicômano tem a sensação de poder controlar ou determinar seu orgasmo. 3. Conclusão Este trabalho atingiu seu objetivo de realizar um estudo teórico sobre a psico- patologia da drogadicção. Foi realizada uma abordagem eminentemente te6rica, de orientação psicanalítica. Em virtude do limite espacial, não foi possível ilus- trar com casos clínicos o tema em questão, nem apresentar uma discussão de- talhada. Abstract The purpose of this study was to discuss the idea that the drugaddicted presents many psychopathological componentes such as psychotic, psycophathic, depres- sive, maniac, obsessive, etc. It was done a theorical approach with psychoana- lytic orientation. Referências bibliográficas Bento, V. E. S. Os componentes psicopato16gicos das toxicomanias. Dissertação de mes- trado em psicologia. Rio de Janeiro, ISOP/FGV, 1983. _-o A psicologia no Serviço de Liberdade Assistida do Juizado de Menores da comarca do Rio de Janeiro. In: Miranda Rosa, F. A. de et aliL Direito e mudança social. Rio de Janeiro, OAB/Uerj, 1984. p. 189-99. _-o Os componentes psicopato16gicos das toxicomanias. Curitiba, Edição do autor, 1986 . Bergeret, J. Toxicomania e personalidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. Charles-Nicolas, A. & VaUeur, M. As condutas ordálicas. In: Olievenstein, C. et alli. A vida do toxic6mano. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. capo 5, p. 87-105. C'hebabi, W. de L. Percurso prefaciante. In: Kalina, E. & Kovadloff, S. Drogadicção: indivíduo, família e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1980. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Ja- neiro, Nova Fronteira, 1975. Fenichel, O. Teoria psicanalítica das neuroses. Rio de Janeiro-São Paulo, Atheneu, 1981. Freud, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: A hist6ria do movimento psi- canalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago (Edição Standard Brasileira), 14(1914-16):85-119, 1974. Garzoli, E. H. Sobre la adicción de transferencia. Psicoanalisis. Buenos Aires, Associación Psicoanalítica de Buenos Aires, 3(1):193-229, 1981. . Glover, E. Psychoanalysis. Londres, Staples Press, 1949. Jngold, R. O estado de dependência. In: Olievenstein, C. et aliL A vida do toxic6mano. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. capo 3, p. 51-73. Kalina, E. & Kovadloff, S. Drogadicção: indivíduo, família e sociedade. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1980. Komblit, A. Puntuaciones semânticas en el anâlisis de las relaciones familiares. Revista Argentina de Psicologia, Associación de Psicólogos de Buenos Aires, 12(30):157-82, set. 1981. Martinez-Pina, A. Delimitación y analisis fenomenológico deI concepto toxicofilia. Revista de Psiquiatria y Psicologia Médica de Europa y América Latina, Barcelona, Scientia, 6(4): 270-89, oct./dic. 1963. Olievenstein, C. A infância do toxicômano. In: Olievenstein, C. et aliL A vida do toxi- c6mano. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. capo 1, p. 7-36. Rosenfeld, D. El paciente drogadicto: guia clínica y evolución psicopatológica en el tra- tamiento psicoanalítico. Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires, Associación Psicoanalítica Argentina, 29(1):99-135, ene./mar. 1972. Psicopatologia da drogadicção 49 _. --o Adicción a las drogas, omnipotencia narcisista, trastornos en la pieI y esquema corporal: aportes a la dialéctica de los grupos. Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires, Asso- ciación Psicoanalítica Argentina, 31(1-2):365-402, ene./jun. 1974. Savitt, R. A. Estudios psicoanalíticos sobre la adicción: la estructura deI yo en la adicción a narcóticos. Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires, Associación Psicoanalítica Argentina, 23(3) :334-44, jul./set. 1966. Tornnellier, H. A saída. In: Olievenstein, C. et aliL A vida do toxicômano. Rio de Ja- r.eiro, Zahar, 1983. capo 6, p. 106-13. Versiani, M. Incongruências na atual abordagem do abuso de drogas. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, Cidade, 29(6):379-83, nov./dez. 1980. Primeiro livro brasileiro que trata da aplica- ção e interpretação do Teste de Apercepção Temática de Murray (TAT), tema pouco abordado por sua complexidade e profun- dos conhecimentos teóricos que implica. O material utilizado foi a terceira revisão da ~érie original da Clínica Psicológica de Har- vard, composta de 29 lâminas impressas e uma em branco. A autora, ex-discípula de Helena Antipoff, foi uma das primeiras técnicas que integraram a equipe do Dr. Mira y López com a criação do ISOP - Instituto Superior de Estudos e Pesquisas Psicossociais, da Fundação Ge- tulio Vargas. Elaborou o presente manual com vários estudos de caso, e explanações teóricas adaptadas à realidade brasileira. NAS liVRARIAS DA FGV ou pelo reembolso posta! 50 A.B.P. 1/87
Compartilhar