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Psicanalise de transtornos alim - Cybelle Weinberg

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Sumário
“O bêbado e o equilibrista”
Aline Eugênia Camargo
O estatuto do corpo e a anorexia nervosa
Ana Paula Gonzaga
A relevância da interação da equipe multidisciplinar
fora das instituições
Ana Tereza Arantes De Almeida Alonso
Corpo e virtualidade
Camila Deneno Perez
Patricia Gipsztejn Jacobsohn
Bulimia: o objeto “necessário”
Camila Peixoto Farias
Marta Rezende Cardoso
Notas sobre o abandono do tratamento
Flávia Machado Seidinger-Leibovitz
Carla Maria Vieira
Larissa Rodrigues
Relação mãe-filha
Christiane Baldin Adami-Lauand
Fabiana Elias Goulart de Andrade Moura
Rosane Pilot Pessa
As marcas no corpo
Cybelle Weinberg
Cinderelas contemporâneas
Fabiana Maria Gama Pereira
Elisa Gan
Considerações psicanalíticas sobre a compulsão
alimentar
Fernanda Kalil
Revisitando a técnica psicanalítica no atendimento a
pacientes com transtornos alimentares
Gabriela Malzyner
Anorexia
Jaqueline Pinto Cardoso
Que conversa é essa?
Marina Fibe De Cicco
A anorexia e a bulimia em Freud
Maria Helena Fernandes
Dos transtornos alimentares aos transtornos
dismórficos corporais
Marina Ramalho Miranda
Entrelaces psíquicos entre mães e filhas
Marina F. R. Ribeiro
Sobre o exercício da clínica dos transtornos
alimentares
Patricia Gipsztejn Jacobsohn
A construção simbólica em pacientes com fome de
estórias
Talita Azambuja Nacif
Thais Fonseca de Andrade
Autores
Apresentação
“O método psicanalítico tem sido alvo de questionamentos e
discussão no que diz respeito à sua atualidade como prática
terapêutica que se mostre eficaz na escuta e contenção das
formas de sofrimento e gozo assumidas pelas subjetividades
contemporâneas.”
Com estas palavras, o saudoso Prof. Homero Vettorazzo Filho
iniciou o texto da contracapa do primeiro volume do Psicanálise de
Transtornos Alimentares, em 2010, no qual afirmou “que a
atualidade e a vitalidade da Psicanálise dependem de que os
psicanalistas tenham sua experiência clínica como espaço para
levantar interrogantes que lhes permitam questionar e revisar as
teorias psicanalíticas, separando elementos fecundos e insaturados
de conceitos repetidos como convicções estéreis”.
Este segundo volume vem comprovar que a Psicanálise pode ser
viva, frutífera e servir de base para novas pesquisas, quando
trabalhada em um grupo de estudos e atendimento, nos moldes da
CEPPAN.
Com muito orgulho, podemos afirmar que um dos nossos
objetivos iniciais, a divulgação de conhecimentos adquiridos sobre
os transtornos alimentares, tem se mantido e consolidado nos
últimos anos, abrindo espaços de interlocução com profissionais
envolvidos com essa temática.
Agradecemos, aqui, a esses profissionais que aceitaram nosso
convite para participar desta publicação, compartilhando conosco
sua experiência clínica e suas pesquisas metapsicológicas. Com
eles, nós da CEPPAN nos sentimos fortalecidos para continuar no
caminho da compreensão e da sustentação da Psicanálise no
campo dos transtornos alimentares.
– Cybelle Weinberg
Coordenadora da CEPPAN
“O BÊBADO E O EQUILIBRISTA”
Atuações e comportamentos autocalmantes no devir
dos quadros de transtornos alimentares
Aline Eugênia Camargo
Sobre os deslocamentos dos sintomas alimentares
No dia a dia da clínica, é comum nos depararmos com os ecos de
problemáticas alimentares vividas por nossos pacientes no passado,
frequentemente na adolescência, às vezes também na infância.
Muitos relatos revelam sintomas de anorexia ou de bulimia
propriamente ditas, ou mesmo de outras manifestações sintomáticas
ligadas à inibição ou aos excessos no campo alimentar. Tais ecos
nos trazem informações de uma época em que corpo,
comportamento e relação com o outro faziam parte de uma mesma
unidade. Embora superada ao longo da vida, essa sintomática deixa
suas marcas em uma história de traumatismos precoces. A
presença desses traumatismos e seus efeitos sobre o psiquismo
pode ser reconhecida na vida do sujeito muitos anos depois,
manifestando-se clinicamente de diferentes formas.
Podemos acompanhar no processo analítico o deslocamento dos
sintomas quando estes se constituem em expressões simbólicas
dos conflitos, que, como nos sonhos, revelam movimentos de
elaboração. Quando isso não acontece, observamos na análise uma
série infindável de atuações, as quais, no entanto, podem ir
adquirindo um aspecto de mudança, construindo uma trilha
elaborativa que respeita o caminho, ainda a ser percorrido, da ação
ao pensamento. A clínica, tal como se apresenta na atualidade, tem
nos ensinado e desafiado a seguir investigando na direção de uma
maior compreensão desses processos que remetem à dimensão do
arcaico, daquilo que se encontra aquém do universo da
representação, bem como o caminho desses processos psíquicos
ao longo da análise.
A diversidade de manifestações sintomáticas encontrada na
clínica atual, em suas muitas possibilidades de composição, nos
remete à investigação do campo que se estende para além da
neurose, nas patologias ligadas às falhas estruturais na formação do
psiquismo. Dessa condição resultam funcionamentos psíquicos,
como as neuroses mal focalizadas, funcionamentos nos quais
convivem diversos mecanismos psíquicos em arranjos pouco
estáveis, que se alteram ao longo da vida em face das experiências
e em virtude dos laços afetivos. Entendemos esse funcionamento
como o resultado de um equilíbrio que, embora alcançado, constitui
um arranjo precário, metaforizado na dupla formada pelo bêbado e o
equilibrista. Escutar na clínica esses ecos e acompanhar seu
percurso e suas transformações pode ser muito esclarecedor,
auxiliando nas difíceis trilhas que o analista tem a percorrer no corpo
a corpo de determinados casos.
Encontramos, na literatura sobre transtornos alimentares, o tema
de que no devir desses casos, ao longo da análise ou pelo conjunto
de tratamentos a eles dedicados, os sintomas da problemática
alimentar saem de foco. Desse modo, abrem espaço para a
estruturação psíquica por trás deles, suas organizações e
desorganizações, bem como seus arranjos defensivos com os quais
o sujeito agora tem de se deparar. O desenrolar desses elementos
revela uma busca do equilíbrio pela ação e pelas sensações vividas
no corpo, ou seja, pelo embate em um registro corporal (JEAMMET,
1999).
É nesse sentido que apresentamos um caso no qual vemos a
possibilidade de relacionar vários aspectos desse vasto campo que
envolve a vida contemporânea e seus excessos, em que um
sintoma de transtorno alimentar na adolescência repercute no
momento atual. No trabalho de análise, consideramos fundamental
a compreensão de como a reedição de elementos arcaicos da
constituição psíquica em suas reorganizações no momento da
puberdade e adolescência influi na formação posterior dos sintomas.
Lembramos a importância para a psicanálise da investigação por
meio dos casos clínicos e de como o estudo de caso
pode ser revelador da subjetividade e das manifestações
idiossincráticas do viver e do adoecer […] constituindo um
campo de observação particular que permite tanto a
construção, verificação e transformação da teoria como o
desenvolvimento de dispositivos terapêuticos específicos
para o tratamento com cada paciente (SOARES et al., 2015,
p. 11).
A análise se processa em meio às atuações da paciente com
relação a uma busca de mudança, que envolvia trabalho, estilo de
vida na direção de maior prazer e de uma rotina mais “saudável”.
Acompanhamos as idas e vindas dos excessos, as angústias
decorrentes destes, e os deslocamentos de certo comportamento
aditivo, bem como a passagem para comportamentos de risco.
Maria procura análise por dificuldades no trabalho. Relata que
tudo o mais vai bem: casamento, relações familiares, amizades,
lazer. Exercendo suas atividades profissionais no mundo
corporativo, diz que o emprego “suga” suas energias; conta que
perdeu o apetite e emagreceu; nota que seus cabelos começaram a
cair em grande quantidade, que ficou irritadiça e dorme mal.
Aparece, em primeiro plano, uma problemática muito relevante
que remete ao universo das psicopatologias do trabalho. Noâmbito
das questões contemporâneas, trata-se de um campo importante de
investigação, e a psicanálise tem muito a contribuir na compreensão
dos excessos no trabalho. Tal problemática mostra-se
especialmente no universo corporativo, em que são frequentes as
manipulações das relações de trabalho, com elementos psicológicos
envolvidos na exploração do empregado, levando a certos efeitos
psicopatológicos hoje bem conhecidos (DEJOURS, 2007) que
produzem efeitos de comportamentos aditivos e de somatizações.
Mulher jovem, bonita, muito inteligente, chega demonstrando
bastante familiaridade com a análise. Se, por um lado, se mostra
dona de si e sabedora do que busca, por outro, transmite muita
fragilidade, da qual não se dá conta. Apesar de sua postura
assertiva, demonstra também uma posição passiva, de impotência,
de certo modo vitimizada. Entende que vive uma situação de
exploração no trabalho, o que lhe provoca muita raiva. Demonstra
clareza em sua compreensão das questões do trabalho, sua
sujeição e a dos colegas, algo que, segundo ela, se dá por meio de
promoções e ganho monetário cuja contrapartida é de exigências
desmedidas de eficiência e dedicação em termos de carga horária.
Afirma sentir-se como que capturada e escravizada por forças muito
além das suas, as quais a submetem ao fascínio das benesses
daquele trabalho em termos de poder aquisitivo e status.
Maria declara gostar de seu emprego, mas nunca haver se
sentido plenamente realizada, tendo escolhido sua profissão por
motivos financeiros. Cumpre suas obrigações profissionais da
melhor forma possível, sem conseguir, entretanto, sentir muito
prazer ao trabalhar. Conta que trabalha desde os 19 anos, sempre
intensamente, e acha que escolheu a profissão errada. Revela
gostar mesmo de culinária, e que chegou a fazer cursos mas
desistiu da ideia quando percebeu que era uma atividade de muito
sacrifício pelos horários e que lhe proporcionava pouco retorno
econômico.
Teve várias experiências de terapias, a primeira delas na
adolescência, época em que apresentava bulimia; segundo ela,
melhorou justamente quando passou a ter uma dedicação excessiva
aos estudos e ao trabalho e relaciona os dois fatos. Percebe-se,
assim, que trazia algumas interpretações prontas e, algumas vezes,
fechadas. Acrescenta que gosta muito de agradar aos outros e que
tem preocupação em não decepcionar os pais.
Maria vai mostrando certa compulsão pelo trabalho, sendo que
sua dificuldade reside justamente no fato de procurar atender de
pronto às exigências da chefia: no intuito de agradar, mergulhava
em atividades sem-fim em horário muito estendido. Como reação,
repentinamente surgia uma aversão a tudo, com um colorido
persecutório e uma necessidade de rompimento abrupto; com isso,
vinham os pensamentos e, depois, a decisão de se demitir.
Conteúdo recorrente em suas sessões, a necessidade imperiosa de
deixar o emprego decorria do sentimento de sua sobrevivência física
se achar em risco.
Acompanhavam as queixas com o trabalho fantasias de estar em
vias de ser engolida por ele, fantasias estas de forte conteúdo oral
que ela mesma relacionava com a experiência anterior com a
bulimia, mas tendo muita dificuldade de seguir as associações
nesse sentido e de poder receber as intervenções da analista. Teria
sido seu modo de chegar à análise trazendo prontas as
interpretações e controlando o que desejava “colocar para dentro”?
Vários aspectos da problemática de Maria são muitas vezes
encontrados nos quadros de transtornos alimentares, polaridades
vítimas/algozes, um uso dissociado da inteligência e das
capacidades de trabalho em contrapartida com a precária percepção
de seu corpo e de seu mundo interno. Os investimentos libidinais
apresentam-se ora como investimentos maciços ora como
desinvestimento, transitando do passional ao evitamento, “duas
modalidades relacionais espelhadas que têm em comum o fato de
uma ser a transformação no contrário da outra” (JEAMMET, 1999, p.
32).
É importante lembrar que as manifestações da bulimia se
caracterizam por acessos de hiperfagia frequentemente seguidos de
vômitos, na busca de compensar esse comportamento e de não
ganhar peso, tendo como pano de fundo um ideal de magreza, já
que tanto na bulimia quanto na anorexia mental há uma distorção da
imagem corporal. Sucedem-se episódios de compulsão alimentar da
ordem da impulsão, de uma tendência sem freios e sem mediação
psíquica. Um dos aspectos que caracteriza a bulimia é a forma
como o sujeito se relaciona com o alimento, como este é ingerido
(em grande quantidade, de modo voraz e às escondidas). Delineia-
se um aspecto anárquico nessa ingestão, pois não há prazer nem
fome. Por esse fator e por sua dinâmica, a bulimia é muitas vezes
associada às adições. “Os fatores desencadeantes desses acessos
são diversos, mas frequentemente relacionam-se com sentimentos
de desamparo, fracasso e solidão, ou ao contrário, de excitação e
prazer.” (FERNANDES, 2006, p. 76). Isso aparecia no caso de Maria
no aspecto aditivo.
Outra questão relevante nos casos de bulimia é a
supervalorização da aparência quanto à imagem corporal, mas
também do lado material da vida, bem como das sensações e dos
prazeres imediatos. Esse aspecto associa-se à dimensão do modo
de vida contemporâneo, no qual se faz cada vez mais presente o
individualismo, dissolvendo as experiências de solidariedade, apoio
mútuo e valorização do humano como contrapartida ao universo da
materialidade e do consumo.
Proponho olhar o caso de Maria a partir da perspectiva de
Jeammet (1999), de um funcionamento em patchwork, uma
composição, estando ausente uma organização psíquica dominante,
com níveis de estruturação sobrepostos, o que faz surgir diferentes
faces que se alternam ora em angústias arcaicas ora em rearranjos
relacionais de tipo neurótico.
Era possível notar na transferência essa marca das polaridades:
algumas vezes, mostrava uma excessiva familiaridade, como se
acreditasse de fato haver entre nós um vínculo muito sólido, que
parecia real, e, outras vezes se comportava de um modo
distanciado, como se viesse para a análise só quando tinha
problemas a resolver. Podemos pensar aí em uma recusa a estreitar
o vínculo? Como que correndo um risco narcísico na dificuldade de
administrar a proximidade e a distância do objeto? Para realizar uma
relação utilitária, do tipo “usar e jogar fora”, ou comer e vomitar? Era
como se para ela bastasse ter uma analista, sendo desnecessário
construir uma relação a partir das sessões e de trabalhar sobre seus
afetos. Agia como se a análise fosse um prêt-à-porter, comprar e
pronto.
Casada há pouco tempo, ela e o marido estavam reformando o
apartamento recém-adquirido, algo a que se dedicava bastante e
que resultava dos ganhos no trabalho. Seus pais se orgulhavam
muito de ela, tão jovem, já ter comprado e estar reformando seu
imóvel sem a ajuda econômica deles. Para ela e sua família, o fator
econômico parecia representar, ou melhor, equivaler, a uma
estabilidade emocional, e a sintomatologia por ela apresentada
refletia justamente a eventual ameaça a essa condição.
Por causa da reforma do apartamento, ela e o marido residiam
temporariamente em outro local. Ela falava muito mal dessa moradia
provisória, de propriedade de um avô, sobre quem logo comentou
tratar-se de um alcoolista que transtornou a vida de toda a família,
inclusive de sua mãe. Conta, ainda, que sua mãe enfrentara esse
homem e ajudara a avó a separar-se dele. Um forte componente
familiar de excesso no uso do álcool marca as sucessivas gerações.
Em seu discurso, aparecia um temor de que tudo desse errado,
que fosse acontecer algo terrível, ideias que se tornavam insistentes
e lhe perturbavam o sono. Inesperadamente, entremeava sua fala
com comentários, fantasias sobre situações de muita carência e
desamparo, o que contaminava seus sentimentos com relação ao
futuro e a tudo que parecia ser tão certo em sua vida. Começava a
romper a dissociação e os conteúdos afastados ameaçavam
transbordar. Não vivia as situações contendo dois lados, obem e o
mal, coisas boas e ruins ou das que gostasse e das que não
gostasse. Havia para ela apenas o bom e o “podre” que poderia
estragar tudo o mais.
Aos poucos Maria vai se queixando de falta de afeto. Havia, na
família de Maria, uma dinâmica muito própria, segundo ela, cada um
dos familiares tinha o próprio quadro psicopatológico, o que permitia
vislumbrar o percurso de terapias anteriores e o uso, muitas vezes
estereotipado, que ela fazia delas. Relata a experiência de terapia
familiar que fora realizada por causa do irmão que tem sérios
comprometimentos psíquicos. E, assim, gradativamente, vai
narrando e construindo para si outra versão dessa história familiar, a
qual, até então, só vinha à tona em flashes bem-humorados, como
se não fosse algo a ser levado a sério.
Pai e mãe alcoolistas, ele muito impulsivo e agressivo: quando
brigava, deixava todos tremendo de medo. Muito calado, um silêncio
regado a boas doses diárias de uísque, até que explodia. A mãe
fazia um contraponto na forma de um alcoolismo “festivo”, em um
movimento maníaco no qual “tudo é festa, senão, tudo vira drama”.
Frente aos problemas, oscilava entre ignorá-los ou dramatizar
demais. Maria diz que a incomodava muito nunca saber o que
esperar da reação deles quando lhes contava os fatos de sua vida,
e que passou a ter mais cuidado com isso para se preservar.
Não é incomum nos depararmos com essa modalidade de
relação na qual, diante de problemas e conflitos, se estabelece uma
defesa cerrada contra a percepção indesejada. É um mecanismo de
funcionamento originado quando o comportamento do adulto incita a
criança à dissociação psíquica, ao negar a percepção da realidade.
O irmão, na adolescência, teria trazido muitas preocupações aos
pais com seu comportamento, segundo ela, provocando um grande
tumulto na família – novamente aparece a ideia de um membro da
família que estraga tudo. Maria nada mais desejou do que silenciar
seus problemas e emoções, de modo que viveu a adolescência sem
seus pais acompanharem minimamente esse período e suas
dificuldades, tal como a experiência bulímica que, por muito tempo,
passou despercebida deles. Precisava sentir-se o membro saudável
do grupo, queria agradar ou, ao menos, não decepcionar os pais,
como o irmão fazia.
Os deslocamentos dos sintomas
Embora o tema central de suas queixas ainda fosse o das
dificuldades nos empregos, sempre geradas porque os excessos a
faziam sentir-se adoecendo e esgotada até precisar abandoná-los,
outros acontecimentos foram surgindo. Parecia que toda a
voracidade contida até então emergia e, com ela, um
comportamento de maior atuação, as paixões por trás dos sintomas
começando a se revelar, tal como se vê frequentemente nos
tratamentos das pacientes com anorexia, que quando evoluem e
rompem a dissociação dos afetos passam para um comportamento
de bulimia. “As crises bulímicas representarão no curso de uma
anorexia uma verdadeira solução de compromisso; […] significam
uma perda de controle onipotente dos impulsos e uma ida ao
encontro do objeto.” (FUKS, 2006, p. 44).
Ainda que algumas dificuldades alimentares sempre
aparecessem como pano de fundo, em geral na forma de perda de
apetite e temor de retomada de um apetite voraz, não foram as
questões alimentares que tomaram o primeiro plano quando ela
rompeu com suas defesas mais dissociadas por trás da mulher que
gostava de agradar, de trabalhar, de ganhar dinheiro etc. Em certa
sessão disse que “parecia um robô trabalhando, feliz e sorridente”.
De fato, nesse momento apresentava um sorriso artificial, como que
plantado no rosto. Ela partiu para uma busca desenfreada de prazer,
que foi procurar no sexo, em drogas, e especialmente na bebida e
em uma vida de baladas e excessos.
O marido, que até então representava seu porto seguro diante do
caos emocional de sua família, principalmente por sua estabilidade
afetiva e financeira, passou a ser sentido como frio, distante, alguém
com quem não vivia as emoções que desejava. É interessante notar
que à medida que a relação do casal esfriava, ambos dedicavam-se
cada vez mais às aventuras gastronômicas. O gosto de Maria de
frequentar restaurantes caros, no desejo de degustar comidas e
vinhos especiais, tinha se tornado frequente no final do casamento.
Podemos pensar que esse comportamento respondia a um
deslocamento da busca de prazer, retornando a uma dimensão
oral? Interessante que, neste caso, o excesso ficava do lado da
sofisticação e não da dimensão grosseira e brutal do ataque e da
voracidade bulímicas. Podemos pensar em certa solução de
compromisso, um modo de preencher um vazio que se fazia
presente nessa “comilança de pouca quantidade”?1
A paciente separou-se do marido e passou por uma série de
abandonos de empregos sem conseguir se desligar totalmente de
um tipo de relação insatisfatória. Ia se delineando cada vez mais
como centro da análise sua insatisfação com seus investimentos.
Em todo caso, a meu ver, a cada desligamento, a cada emprego
que largava, Maria, ao seu modo, ia elaborando seu projeto de
mudança de vida e de apropriação de si e de seu corpo, o que
passava por um contato maior com sua fragilidade, voracidade e
violência.
Maria decidiu separar-se, depois de viver um período marcado
por paixões desenfreadas. Foi se desligando destas e procurando
abster-se de tais comportamentos, na tentativa de afastar-se de
paixões e excessos considerados por ela mesma “não saudáveis”.
Quando tudo fica controlado “dentro”, o perigo parece retornar de
fora. Volta então o tema do risco. Aos poucos, vai sendo capaz de
nomear as situações de risco e seu impulso em vivenciá-las. Em
certa ocasião, disse que “a vida fica sem sentido sem correr riscos”.
Foi um tema importante, que remeteu a questões existenciais, e,
com isso, seu modo de pensar em si e na vida se ampliou.
Maria interrompe também o processo de análise, em função de
sua mudança de vida, muda de cidade e convive com um segundo
companheiro. Ela parece não dar importância à interrupção de
nosso vínculo. Posteriormente, me procura de novo, vem em
algumas sessões espaçadas. Depois de alguns meses, retorna,
contando a experiência de um acidente que sofreu praticando um
esporte que envolvia equilíbrio. Lembra-se de algumas intervenções
minhas, com as quais procurei investigar e questionar uma possível
atitude de risco em sua prática esportiva, que, na ocasião, ela
negara. Nesse retorno, disse que queria pensar melhor a respeito.
Comportamentos autocalmantes e comportamentos de risco
Maria frisa ter muito prazer nas atividades esportivas, em
especial por sentir-se fazendo algo saudável em um momento que
se afastara da convivência com os amigos partidários de álcool,
drogas e sexo. Pode-se pensar que a crescente valorização das
atividades físicas na vida de Maria, bem como seu comportamento
de colocar-se em risco, tenham relação com um movimento de
afastamento dos excessos que ressurgem de outro modo?
Podemos entender esse acontecimento como uma atuação que se
dá como um procedimento autocalmante?
Os procedimentos autocalmantes são comportamentos
estudados pelos autores da Escola de Psicossomática de Paris, nos
quais a atividade motora torna-se necessária para efeito de uma
descarga pulsional que se encontra impossibilitada de escoar de
outra forma. Eles são encontrados na necessidade, por parte de
alguns pacientes, de realizar uma atividade repetitiva. Isso pode
acontecer por meio dos esportes, muito comum nas caminhadas,
mas também pode estar presente ao se tocar um instrumento ou na
atividade da dança, quando segue determinadas características.
Cria-se um círculo vicioso em que a necessidade urgente de reduzir
o nível de excitação acaba, de certa maneira, promovendo ações
que a incrementam, e os procedimentos autocalmantes
assemelham-se às condutas aditivas (VOLICH, 2010).
A prática esportiva e os comportamentos de risco fizeram-se mais
presentes em sua vida e pareceram representar uma nova forma
encontrada por Maria na busca de equilíbrio e de prazer. Foi mais
um passo no processo de quebra doselementos psíquicos
dissociados, embora ainda não integrados completamente em sua
vida psíquica, pois os procedimentos autocalmantes são atividades
que ficam apartadas da vida subjetiva e da fantasia. Uma distinção
importante a ser feita para a compreensão dos procedimentos
autocalmantes é que eles representam uma ação estritamente
calmante, que remete às experiências da relação com uma mãe
que, ao embalar seu bebê, não consegue transmitir afeto, não
erotiza.
Entendemos que o acidente de Maria foi um modo de viver uma
experiência de quebra da casca do ovo narcísico, da onipotência,
calcada no corpo e na realidade. Lembremos que as condutas de
risco podem ser entendidas como uma busca mais ou menos
desesperada de tomar posse de si mesmo, de engendrar-se, recriar-
se, renascer após a aproximação com a morte. Algo como uma
busca pela vida e pela autonomia psíquica. Um dos modos de se
apropriar do corpo é pela “possibilidade de se machucar, como na
anorexia, na bulimia, nas automutilações, indo até a tentativa de
suicídio, de autoagressão, a qual, nesses casos, mais do que a
vontade de morrer, exprime, na maior parte das vezes, um desejo
prometeico de se reapropriar do seu destino” (JEAMMET, 2005, p.
140).
Ao analisar uma paciente que apresentava hiperatividade de
marcha, Brusset (1990, p. 155) diz: “Na bulimia, por exemplo, uma
conduta atuada e repetida aparece como formação substitutiva na
busca perdida do prazer e do gozo que não pode ser encontrado por
outras vias”, tornando-se uma toxicomania sem droga. A
hiperatividade, ele continua, é vivida com entusiasmo, e o sujeito
usa várias racionalizações para justificar seu uso; no entanto,
funciona dentro de uma lógica de coação ou de um conjunto de
coações. Algumas vezes, ela surge na passagem da anorexia para
a bulimia e cumpre importante função de neorregulação do
funcionamento psíquico.2
Esse autor enfatiza o quanto, apesar do automatismo, uma
conduta aditiva de marcha pode, por intermédio da análise,
alimentar a elaboração psíquica levando a uma redução da
clivagem. Desse modo, ele apresenta uma dimensão positiva de
ligadura, de objetalização. “Existe no atuar a dimensão de uma
evitação, de uma evasão, mas também de uma substituição: do
ponto de vista dinâmico, uma modalidade diferente do
funcionamento psíquico põe em ação outras defesas e outros gozos
[…], tem um efeito de ruptura […]” (BRUSSET, 1990, p. 165-166).
Retoma a ideia de quão poderosas são a ação e a sensação
corporal em termos de ativação fantasmática.
No caso de Maria, o uso desse tipo de atividade se fez presente
em outra passagem, que foi a do abandono das condutas aditivas.
Concordamos com Brusset que, embora seja uma conduta de
atuação, pode promover um movimento de erotização importante.
Maria foi morar em uma casa que não era nem a do avô alcoolista
nem a dela com o ex-marido a exibir seu status econômico. Foi
buscar uma vida mais simples, com um vínculo que expressava
mais autenticidade e laço afetivo. O esporte no qual se envolveu
está relacionado com o novo vínculo e o prazer do contato com a
natureza.
Após o acidente, Maria pôde viver momentos de maior
depressividade3 na análise, nos quais suportava mais o contato com
seu mundo interno. O tema do cuidado se pôs em relevo. Em certa
sessão, cita um filme que trata da relação mãe/filha, no qual a
personagem é fotógrafa de guerra: nele aparece todo o conflito da
filha ao ver que a mãe não consegue se afastar do perigo.4 Associa
com o que está vivendo em seus impulsos de se arriscar e com a
relação de cuidado mãe-filha que, neste caso, se dá invertida. É a
filha que tem de cuidar da mãe. Na sequência, fala do temor com
relação aos riscos que seu bichinho de estimação corre quando este
sai de casa à noite, tal como o irmão saía, envolvendo-se em perigo,
o que aterrorizava os pais. Maria acompanhava a cena assustada e
sem lugar na atenção deles – ela é que se preocupava com eles. O
que aqui emerge é a preocupação com o outro, assim como
preocupação e cuidado consigo mesma. É o ponto de ligação do
seu retorno para a análise: pela percepção da preocupação da
analista com ela.
Com o caso de Maria, pudemos pensar e acompanhar as ricas
possibilidades de desdobramentos dos sintomas, e como estes vão
ganhando sentido em cada contexto em que são vividos. Maria, com
seu jeito que lembra o “bêbado e o equilibrista”, vem nos ensinar a
sermos os dois, a compreender na carne do corpo a importância do
risco em que consiste o viver.
Notas:
1. Sobre o tema dos transbordamentos das pulsões e das relações entre
genitalidade e oralidade na sexualidade feminina, com referência aos
deslocamentos dos “prazeres da cama” aos “prazeres da mesa”, remetemos o
leitor a A. Gurfinkel (2001).
2. Sobre o tema dos transtornos alimentares em suas relações com a
hiperatividade, indicamos o interessante texto de C. Weinberg e M. Berlinck
(2010), que compreende este aspecto, relacionando-o com a defesa maníaca e
com a repressão da sexualidade.
3. Sobre o conceito de depressividade, ver A. Gurfinkel (2010).
4.Mil vezes boa noite, Noruega, Irlanda e Suécia, 2014, direção de Erik Poppe
Referências
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Primavera Editorial, 2010.
O ESTATUTO DO CORPO E A
ANOREXIA NERVOSA
Um mais aquém da melancolia1
Ana Paula Gonzaga
Há alguns anos acompanhando pacientes com transtornos
alimentares, sobretudo com anorexia nervosa, venho pesquisando
aspectos do funcionamento psicodinâmico que remetem ao trabalho
da melancolia. Pretendo discutir, partindo do texto freudiano, o
movimento regressivo que se instala em pacientes com anorexia
nervosa (que necessariamente não se aplica a todas, mas é
expressivo na clínica), que nos permite essa digressão ao que
proponho como um funcionamento aquém da melancolia.
Luto e melancolia
Em seu artigo Luto e Melancolia [2011(1915)], Freud se ocupa em
apresentar o processo de luto – “reação à perda de uma pessoa
querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria,
liberdade, ideal, etc.” (p. 47) – como um trabalho de desinvestimento
realizado pelo psiquismo sobre o objeto perdido. Considera esse
processo necessário e normal, especialmente pela retirada da libido
que recai sobre o objeto que já não se faz mais presente, deixando-
a, assim, livre para novos investimentos. O caráter de realidade é,
portanto, inquestionável; bem como o envolvimento dos processos
pré-conscientes/conscientes.
Há casos, contudo, em que o processo não se dá assim, em que
além do desânimo, do desinteresse pelo mundo, da perda da
capacidadede amar e da redução da capacidade de trabalhar, há
um expressivo “rebaixamento do sentimento de autoestima que se
expressa em autorrecriminações e autoinsultos” (op. cit., p. 47).
Freud compreende tratar-se de processos melancólicos, em que
sublinha a distinção concernente à alteração da autoestima e
também ao caráter da perda que não recai, necessariamente, na
morte de um ente querido, mas sim na sua natureza ideal, algo que
se perdeu como objeto de amor. Relaciona à melancolia um caráter
fantasmático e inconsciente e nos aponta, tal qual no luto, em que
se faz claro o caráter de trabalho – elaboração psíquica –, o mesmo
atributo. É por essa qualidade de trabalho que a melancolia
possibilita que, internamente, se busca reparar uma perda no ego.
Desse modo, Freud nos ensina que, se soubermos ouvir com
paciência as múltiplas autoacusações do melancólico,
compreenderemos que seus insultos recaem menos à sua própria
pessoa, mas sim a alguém a quem o doente ama, amou ou deveria
amar. “Desse modo, tem-se à mão a chave do quadro clínico, na
medida em que se reconhecem as autorrecriminações como
recriminações contra um objeto de amor, a partir do qual se voltaram
sobre o próprio ego” (op. cit., p. 59).
O processo, o trabalho, que Freud assinala aqui como próprio à
melancolia, tem por base a identificação em que predomina a
escolha narcísica de objeto. Enquanto nos processos normais,
quando se deixa de amar algo ou alguém, há uma retirada da libido
desse objeto e consequente deslocamento para um novo objeto,
aqui há uma transferência ao ego. A libido livre não se volta para o
objeto externo, mas sim, para o próprio ego. Há uma identificação
do ego com o objeto abandonado.
Para compreendermos como esse processo se dá, Freud nos
propõe reconstruí-lo: considera que, se por um lado houve uma forte
fixação no objeto de amor, por outro e, em contradição, pouco
investimento objetal; o que pressupõe que essa escolha tenha sido
feita em bases narcísicas. “A identificação narcísica com o objeto se
torna então um substituto do investimento amoroso e disso resulta
que, apesar do conflito, a relação amorosa com a pessoa amada
não precisa ser abandonada.” E, enfatiza: “Tal substituição do amor
objetal por identificação é um mecanismo importante para as
afecções narcísicas” (op. cit., p. 63). Há, assim, uma regressão para
o narcisismo originário, que encontrará uma rede de significados,
provenientes de investimentos objetais inconscientes, que se
prestarão a figurar essa imagem identificada no ego.
Mas, o que tem um peso diferencial na melancolia é o conflito de
ambivalência. Se, por um lado, há um forte investimento libidinal no
objeto perdido pelo ego, por outro, há um ódio imenso pelo prejuízo
causado por seu abandono. Assim, o ódio e a raiva sobrepõem os
laços amorosos e parte do ego se vê identificado com o objeto que
lhe era tão caro, mas que em função da dor sentida por sua perda,
dispara uma batalha violenta: “ódio e amor combatem entre si: um
para desligar a libido do objeto, outro para defender contra o ataque
essa posição da libido” (op. cit., p. 81).
Encontramos nesse texto a base para discutir, o que suponho,
um mecanismo presente nos quadros dos transtornos alimentares,
especialmente na anorexia nervosa.
A clínica da anorexia nervosa
Não é incomum que esses pacientes, predominantemente
mulheres, associem o início da anorexia a uma perda importante:
uma decepção amorosa, uma mudança, uma perda financeira, a
perda de um lugar ou status, etc. E também, bastante comum, essa
perda se sobrepõe à entrada na adolescência, que por si demanda
um trabalho de luto. O que presenciamos é o que se aproxima, ou
vai além, de um processo melancólico: invariavelmente, essa
paciente acredita que há algo que deve ser modificado em si mesma
para que não venha a perder novamente. Suas autorrecriminações
recaem sobre a forma de seu corpo: crê, por exemplo, que se “não
fosse gorda e cheia de deformações” não teria lhe acontecido tal
sorte. Trata de maneira acusatória e autodepreciativa o que estiver
relacionado à sua imagem, sobretudo sua aparência, e o que possa
derivar para aspectos idealizados. Assim, algo deve ser feito em seu
corpo que altere esse estado de coisas.
Freud (op. cit.) chama a atenção para que “o quadro clínico da
melancolia põe em destaque o desagrado moral com o próprio ego,
acima de outros defeitos. Defeito físico, feiura, fraqueza e
inferioridade social, muito mais raramente são objeto de
autoavaliação […]”. Porém, o que escutaremos, repetidamente,
exaustivamente e com muita aflição e dor desses pacientes é uma
queixa referida à aparência física, destituída de realidade, em que
pesam a deformação, a feiura e a gordura.
O que nos surpreende é que não estamos diante de alguém que
pudesse ser considerada gorda ou deformada por ocasião dessa
proposição. Raramente uma paciente com anorexia iniciou uma
dieta que pudesse ser prescrita por um profissional especializado.
Que representação corporal é essa que se apresenta? Com que
imagem/objeto essa paciente está identificada?
Primeiros tempos
Em trabalho anterior (GONZAGA, 2010), propus uma digressão
que nos permitisse compreender como esse corpo imaginado pela
anoréxica remeteria à construção narcísica de sua identidade.
Nesse sentido, os processos identificatórios se dariam por um
superinvestimento narcísico materno, tornando-a assim, refém das
imagens projetadas nesse enlace e que causariam tanto
estranhamento por ocasião do adoecimento. Um corpo que não
reconhece como seu, que não lhe causa admiração ou prazer.
Silvia Bleichmar (2005), ao postular a constituição do psiquismo,
sublinha a importância de considerarmos o recalque originário como
tempo fundante (p. 109) e como dispositivo analítico para operar
terapeuticamente. E nos faz compreender que o que funda o
aparelho psíquico e fixa o inconsciente (derivando daí o ego e as
instâncias ideais) advém de um outro que, além dos cuidados
primários, inscreve “restos” recalcados de sua própria conflitiva.
Revela, assim, como o agente produtor instaura o psiquismo
incipiente e de onde esse último retira sua força, dada pelo
duplo caráter do funcionamento psíquico parental, do fato de
que os pais produzem inscrições sexualizantes e também
inibições regressivas por estarem atravessadas por dois
sistemas psíquicos em conflito, atravessados por desejos e
proibições. A partir de seus desejos inconscientes, da sua
sexualidade recalcada – não só edípica, mas também
pulsional –, implantam desejos que a partir de seu próprio
narcisismo, desde o ego, desconhecem e recalcam a
posteriori (op. cit., p. 118).
Encerra essa discussão perguntando o que faz com que a
criança não enlouqueça, já que os pais parecem propor aquilo
mesmo que proíbem.
No caso de nossos pacientes com anorexia nervosa, em especial
as meninas, para quem a subjetivação da feminilidade é
atravessada por essa identificação primária resultante dos tempos
fundantes pelo enlace materno, parece haver aí algo que remete a
esse “resto recalcado” que advém do inconsciente parental. Esse
sobreinvestimento que não pode ser metabolizado por um aparelho
ainda incipiente e não clivado, e que, como nos alerta Bleichmar, em
“momentos de regressão tão intensos como são os tempos de
maternagem, tempos em que o corpo está implicado de uma
maneira direta”, sofrerá por não encontrar outras vias de descarga
ou ligação se estiver diante de uma carga excessiva do narcisismo
amoroso da mãe. E assim, a menina “enlouquece”.
Narcisismo e feminilidade
Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), Freud assinala
que a escolha objetal feita pelas mulheres é preferencialmente
narcísica: elas tomam por objeto sexual aqueles que as amam ou
que as convertem em seu ideal; que restituam sua autoestima. Para
ampliar essa compreensão, recorro a Hugo Bleichmar (1989), que
aborda o tema do narcisismo considerando duas ordens de
problema, o da relação entre o ego e o objeto e o da vivência de
perfeição, de autossatisfação, de plenitude. Tomando o narcisismo
primário comoobjetal, uma vez que o próprio corpo ou o “si mesmo”
se ofereceria como objeto de amor para o sujeito, reitera a
importância do outro na construção das representações que serão
base das identificações. Assinala ainda que “identificação e
narcisismo são incompreensíveis se não forem articulados com a
divisão em consciente e inconsciente, essencial para a psicanálise.
Com relação à imagem inconsciente, o ego e o outro são o mesmo”
(p. 36). H. Bleichmar destaca ainda que o amor do narcisismo se
caracteriza pela idealização, o que potencializa os sentimentos de
perfeição, beleza, encantamento e inteligência, entre outras
qualidades associadas aos ideais.
Remete-nos, a partir daí, à constatação de que essas
valorizações implicam uma ordem simbólica que é exterior ao sujeito
e na qual se inscreve. “É o outro quem converte meros objetos
anatômicos em algo digno de ser admirado como belo. Resulta fácil
imaginar as múltiplas situações em que uma mãe pode converter
em adorados os olhos e os cachos de cabelos de sua filha ou em
notáveis as produções intelectuais ou físicas das mesmas” (op. cit.,
p. 38). E assinala, também, que o narcisismo dos pais estará
diretamente referenciado na satisfação de suas próprias
necessidades de hiperestima ao valorar seus filhos.
Freud (1923), ao apresentar e sintetizar suas concepções sobre o
funcionamento mental – trabalhando com o conceito de inconsciente
e sua aplicação às instâncias psíquicas –, afirma que o “o ego é
acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade
de superfície, mas é, ele próprio a projeção de uma superfície”, e
esclarece em nota de rodapé como se constitui, em última análise, a
partir das sensações corporais que ganharão representação mental
no aparelho psíquico.
Assim, não podemos deixar de considerar que o corpo do bebê
nesse primeiríssimo tempo fica à mercê do inconsciente materno e
que poderá fixar, por consequência, marcas, no que virá a ser
representado como ego corporal. Nos casos de pacientes com
anorexia nervosa, podemos levantar a hipótese de que essas
marcas resultam de aspectos fusionados ao narcisismo materno,
muito provavelmente também produto das representações do seu
próprio ego corporal.
Não é raro nos depararmos com mães que apresentam
insatisfações importantes com sua aparência e que se preocupam
excessivamente com seu corpo e sua alimentação. Apresentam
ideais e exigências que muitas vezes recaem não somente sobre si,
mas sobre toda família. Também não é incomum o caráter
transgeracional nessas famílias.
Além disso, temos observado que oito em cada dez pacientes do
sexo feminino que têm anorexia nervosa são filhas únicas ou
primogênitas,2 o que sugere a importância da subjetivação da
feminilidade na dupla mãe-filha.
Dessa forma, a problemática resultante para essa menina parece
ser conseguir superar, separar o que seria um ideal do outro
impingido em seu corpo/psiquismo. Quando por ocasião de uma
nova convocação, também dada pelo corpo, de diferenciação e
consequente independência identificatória, uma falha parece se
impor e nos vemos diante um destino dado ao pulsional que causa
estranhamento e dor: a libido que deveria se desligar de um objeto e
ganhar novos investimentos retorna ao ego, só que, nesse caso, ao
ego corporal que encarnaria representações identificatórias
primitivas.
Em artigo já citado (GONZAGA, 2010), considerei que para poder
continuar vivendo, a anoréxica tem a tarefa de desencarnar esse
objeto intrusivo, incrustrado no que propus ser seu narcisismo
corporal.
A anorexia e o trabalho da melancolia
O que aconteceria então com nossas pacientes que desenvolvem
um quadro de anorexia?
Ao considerarmos a maior incidência dessa patologia na
adolescência das garotas, inevitavelmente remeteremos aos lutos
que demandam elaboração por si nessa fase do desenvolvimento –
luto ao próprio corpo, à identidade infantil, aos pais da infância e à
bissexualidade. O que parece já ser uma tarefa difícil é
potencializada, via de regra, por outras perdas significativas já
citadas (decepção amorosa, mudança, separações, viagens,
intercâmbio, etc.), e então assistimos a essa jovem atribuir a um
suposto “defeito” em seu corpo a causa de seu fracasso.
Parece, sobretudo, que diante do fracasso de um processo de
luto normal, o que poderia ser um trabalho melancólico que lhe
outorgasse a possibilidade de encontrar em representações mentais
a identificação narcísica própria a esse processo vai além e
transfere para o corpo a tarefa de realizar tal processo.
A ambivalência das relações amorosas, que já configura na
melancolia o amor e o ódio dirigidos ao objeto, encontra aqui
peculiar expressão. A entrada na adolescência da menina lhe impõe
a tarefa de desligar as representações próprias ao seu mundo
infantil e, nesse caso, nos parece que a força dos investimentos
impede que esse desligamento siga um processo de luto próprio a
essa etapa evolutiva. Freud (1923, p. 81) enfatiza que, para haver
um trabalho de luto, as representações devem encontrar um
caminho fluido do sistema inconsciente para o pré-
consciente/consciente, e que o mesmo não acontece na melancolia:
“esse caminho está bloqueado para o trabalho melancólico, talvez
em consequência de inúmeras causas ou de uma ação conjunta de
causas”.
Reitero, mais do que um bloqueio que impeça a derivação para
as representações mentais inconscientes – que, no caso,
promoveria um quadro de melancolia –, o que observamos é essa
derivação para representações corporais. Parece que nesse
trabalho regressivo o ego já encontra o próprio objeto encarnado – e
não a “sombra do objeto”, como assinala Freud como característica
central do trabalho da melancolia.
Seguindo o texto freudiano, ao tratar a tendência ao suicídio na
melancolia, teremos que considerar que:
[…] a análise da melancolia nos ensina que o ego só pode
matar a si próprio se puder, por meio do retorno do
investimento de objeto, tratar-se como um objeto, se puder
dirigir contra si a hostilidade que vale para o objeto e que
representa a reação primordial do ego contra os objetos do
mundo externo (op. cit., p. 69).
A confusão que se estabelece no espelho da anoréxica parece
nos contar sobre a falta de discernimento entre ego, objeto e ego
corporal. Confusão essa decorrente do superinvestimento do
narcisismo materno que potencializa o que lhe foi dado como
enunciado inconsciente, e que a impossibilita de realizar um
processo melancólico exitoso, que lhe ofereceria representações
mentais para elaborar seus lutos e que outorgaria ao ego sua
principal atribuição, o discernimento. Ela sucumbe, não percebe que
castiga seu corpo; ao contrário, tem plena certeza que não se
alimentando está cuidando de um corpo deformado pela gordura.
Dito de outra maneira: está tentando pela via motora desinvestir a
libido que recai sobre o objeto de amor e ódio. Reage
maniacamente: luta com toda energia, resultante da retirada da
libido objetal, contra si mesma, mas acreditando que dominou o
inimigo.
O trabalho clínico
Laplanche (2015[2003], p. 194) também enfatiza a importância
das relações inter-humanas na gênese do psiquismo do infans,3
sobretudo por seu caráter assimétrico no que diz respeito à
sexualidade, e atribui a esse encontro uma peculiaridade na
comunicação, comprometida pelo inconsciente, que resultaria em
mensagens enigmáticas.
A situação antropológica fundamental confronta, num diálogo
simétrico/dissimétrico, um adulto que possui um inconsciente
sexual (essencialmente pré-genital) e um infans que ainda
não constituiu um inconsciente, nem a oposição
inconsciente/consciente. O inconsciente sexual do adulto é
reativado na relação com a criança pequena, com o infans
[…] Estas mensagens são, então, enigmáticas, ao mesmo
tempo para o emissor adulto e para o receptor, o infans.
Recorro a essas considerações de Laplanche, pois a partir daí
ele discorrerá sobre o caráter traumático dessa implantação e do
que resultará como trabalho de tradução por esse psiquismo
incipiente, o que constituirá uma tarefa importantea ser elaborada
ao longo da existência. Contudo, nos alerta, essa tarefa pode
fracassar, parcial ou integralmente, e essas mensagens podem
carecer de tradução. Assinala que “o fracasso da tradução pode ter
por resultado especialmente uma transmissão tal qual,
intergeracional, sem nenhuma metabolização” (p. 197). Laplanche
aponta, a partir daí, para a organização do funcionamento psíquico
desde o que consideramos normal ou neurótico até o borderline ou
psicótico, ressaltando que “existiria em todo ser humano uma
espécie de estoque de mensagens não traduzidas: algumas
praticamente impossíveis de traduzir, outras na espera provisória de
tradução” (p. 199).
No trabalho com pacientes com anorexia nervosa, levar em conta
essas considerações me ajudaram a refletir sobre como operar
terapeuticamente com os dispositivos analíticos que referenciam a
clínica. Via de regra, não há como trabalhar classicamente com a
associação livre, interpretações ou análise da transferência.
Percebo-me diante de pacientes que não têm “vocabulário” para
traduzir suas insatisfações ou queixas, que pudessem minimamente
remeter a conflitos com estatuto representacional. O corpo é que
confere esse estatuto e que se apresenta marcado por signos que
carecem dessa tradução.
Acompanhar essas pacientes, desde as queixas corporais, que
não têm veracidade ou realidade, me parece uma forma de dar
alguma possibilidade de conversa sobre algo que não se sabe falar.
Se muito apressadamente tentamos dar um estatuto
representacional ao que está sendo apresentado, fracassamos de
imediato. Ter a delicadeza de reconhecer a falta de repertório que
pudesse atribuir significados ao sofrimento experimentado por esse
corpo percebido como deformado é, a meu ver, uma possibilidade
de trabalho analítico. Perceber que o corpo é o depositário do que
não tem tradução, do que não foi metabolizado, quase sempre por
mais de uma geração, é realmente oferecer recursos para alguma
elaboração. Sentimentos e sensações ganham equivalências
difíceis de serem discernidas, muitas vezes pela paciente e, na
melhor das hipóteses, algumas vezes pelo analista.
A morte não está em questão como possibilidade real para a
anoréxica, ela não tem por intenção morrer. Só poderá viver se
puder matar sua imagem especular. E, assim acredito, temos no
espelho uma imagem fusionada, herança dos primeiríssimos
tempos, em que o ego corporal impede que as representações
mentais possam servir ao psiquismo, conferindo um caráter mais
regressivo ao trabalho da melancolia, que encontra no corpo sua
expressão.
A melancolia que não pode ser elaborada confere ao corpo da
anoréxica um estandarte que denuncia seu sofrimento, mas não
para ela mesma. Estamos quase sempre aquém de algo que possa
demandar um movimento terapêutico. Refletir essa queixa,
transformar em representações que outorguem trabalho psíquico
como nos ensina Freud, requer do analista um passo a mais:
construir pontes para que as palavras possam de fato contemplar
seu objetivo e dar estatuto representacional ao corpo. Capturar as
mensagens em espera de tradução e aí sim poderemos falar sobre
as insatisfações – as autorreprovações dadas pelos ideais –, as
reais mandatárias desse sofrimento. Aí sim poderemos nos
aproximar do objeto que está encarnado ou encravado – na
compreensão de Laplanche – e promover sua “fantasmatização”,
para que a “sombra do objeto recaia sobre o ego” e um trabalho de
luto/melancolia se faça possível.
Notas:
1. Este capítulo é uma modificação do artigo publicado: Anorexia: A failure of the
work of a melancholia. São Paulo, Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, 15(3):649-656, sept 2012 (Suppl.).
2. Dados obtidos na Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia
e Bulimia – CEPPAN.
3. Criança que não fala.
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Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
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sobre o estranhamento na anorexia. In: GONZAGA, A. P.;
WEINBERG, C. (orgs.). Psicanálise de transtornos alimentares. São
Paulo: Primavera, 2010.
_____________. Anorexia: A failure of the Work of Melancholia.
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São
Paulo, 15(3):649-656, sept. 2012 (Suppl.).
A RELEVÂNCIA DA INTERAÇÃO DA
EQUIPE MULTIDISCIPLINAR FORA
DAS INSTITUIÇÕES
SOB A ÓTICA SIMBÓLICA QUE OPERA NO
MANEJO CLÍNICO DOS TRANSTORNOS
ALIMENTARES1
Ana Tereza Arantes de Almeida Alonso
“Gostaria de ser um crocodilo vivendo no Rio São Francisco.
Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas
são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens.”
– Guimarães Rosa
Grande Sertão Veredas
Introdução
Na proposta de falar algo sobre os transtornos alimentares,
devemos ter sempre em mente que estamos tocando em patologias
complexas que têm etiologia multifatorial e não são circunscritas a
fatores socioeconômicos ou culturais. Dentro da tal complexidade,
se faz necessária uma intervenção multidisciplinar para o
tratamento.
Esse consenso compartilhado pelos profissionais que trabalham
com transtornos alimentares e suas síndromes parciais é baseado
em evidências científicas e trabalhos consistentes realizados, na
grande maioria das vezes, em instituições de porte, mantidas com
recursos governamentais.
Esses redutos institucionais são capazes de oferecer um trabalho
simultâneo e integrado da equipe, tendo como tratamento padrão a
participação de médicos clínicos, endocrinologistas, psiquiatras e
psicólogos (atendimento individual e condução de grupos
psicoeducativos com as famílias), nutricionistas e outros
profissionais da saúde. É na riqueza dessas diferentes frentes de
atuação e na interação constante da equipe que os melhores
resultados puderam ser atingidos até hoje.
Ocorre que esses redutos de trabalho têm uma possibilidade
restrita de recepção de pacientes, muitas vezes com fila de espera
e, por serem instituições públicas, precisam se organizar diante da
melhora de cada caso para uma “alta institucional”, disponibilizando
novas vagas para os pacientes mais graves que aguardam. Porém,
a alta institucional não está ligada ao esgotamento da necessidade
de continuidade de trabalho, e sim, às condições possíveis para
aquele paciente seguir sustentando determinados processos com
maior autonomia e fora da instituição.
Esses pacientes são, na grande maioria das vezes,
encaminhados para processos em consultórios particulares:
terapêuticos, acompanhamento nutricional e psiquiátrico. Tal equipe
é única, por se configurar em torno daquele paciente.
Busco aqui apresentar um panorama de algumas questões
psíquicas de complexa densidade e determinantes dos transtornos
alimentares, com as quais os profissionais que se propõem a
trabalhar no atendimento desses pacientes se deparam. E,
conclusivamente, pretendo abordar a potencialidade da riqueza
simbólica a ser trabalhada – na terapia – e na transferência – em um
processo terapêutico integrado a uma equipe multidisciplinar,
constante e atuante. Portanto, o argumento que defendo é a
absoluta relevância da interação da equipe multidisciplinar fora das
instituições, sob a ótica simbólica que opera no manejo clínico
desses casos, articulada com as questõessubjetivas presentes no
funcionamento desses pacientes.
Questões subjetivas relativas aos transtornos alimentares
Os transtornos alimentares apresentam características que se
iniciam em idade muito precoce e por anos correm o risco de
permanecer sem serem notadas, ainda mais na sociedade atual,
que, predominantemente, não oferece um olhar de estranhamento
para um corpo muito emagrecido, para restrições alimentares
severas e até para a exclusão de certos grupos de alimentos com a
intenção de perder peso.
É na adolescência, quando a progressão da doença captura a
atenção de que algo realmente sério está acontecendo na vida
daquela pessoa, que a maioria dos diagnósticos são feitos.
Steinhausen (2002) nos diz que os transtornos alimentares
“acometem cerca de 1% dos adolescentes, podendo chegar a
consequências graves (alta morbidade). Além disso, são
responsáveis por 1% a 18% da mortalidade” (apud BILYC, 2008, p.
1284-1293).
A adolescência é um período de intensas transformações, uma
fase em que o trânsito da dependência para a independência está
em curso. As mudanças na dinâmica familiar, dentro de casa, e
sociais, no contexto escolar – até então os dois universos mais
conhecidos e seguros – estão a todo vapor.
Outra “casa” primordial também muda, transformações corporais
significativas modificam esse corpo conhecido em suas formas,
funcionamentos e reações ante questões internas e externas. Tudo
isso é muito assustador na vivência do sujeito, da família nuclear e
expandida e professores. A velocidade de processamento com que
essas mudanças se darão não é igual interna e externamente,
promovendo angústias, medos e apreensões. Pesquisas e testes
serão atuados na realidade pelo adolescente, na tentativa de
construir e enriquecer o percurso único e autoral da constituição da
própria personalidade. As figuras de identificação até então,
materna e paterna, são vividas com enorme ambiguidade e a família
sente o “curto-circuito” desses novos formatos de relação.
Essas primeiras decolagens da vida em voo solo no sentido da
individuação exigem a diferenciação e a discriminação do que é
sentido como “eu” e como “não eu”.
Tratando-se de pessoas com transtorno alimentar, nas quais a
problemática orbita justamente pela precária possibilidade que
tiveram de se diferenciar do objeto e constituir relação entre eu e
outro (ponto que me debruçarei mais adiante), o corpo que se impõe
com novas formas e possibilidades é sentido como extremamente
ameaçador e já um outro em si. A recusa e/ou a desorganização
diante dessa condição do desenvolvimento humano – adolescência
– desencadeiam o sentimento de grande descontrole, ainda mais
intenso na vivência desses pacientes que têm uma falha na
constituição egoica. Com um ego precariamente estabelecido,
incapaz de ancorar tal volume de angústia, movimentos na tentativa
de interceptar a sensação de desamparo e descontrole são
promovidos e abre-se o caminho para que intensas investidas de
controle se deem no mundo externo e concreto. Portanto, o que
ocorre é uma defesa ante a angústia resultante das intensas
modificações supracitadas.
Exemplifico aqui com a carta de uma adolescente com transtorno
alimentar:
Corpo,
não tenho muito a dizer, você sabe o quanto te odeio por não
ser como eu quero, até aceito não ser alta mas não admito
que não possa ser magra, esquelética do jeito que eu gosto
principalmente nas coxas que é o que eu mais odeio em
você. Não posso ceder às suas vontades porque se eu deixo
você seguir o seu percurso biológico naturalmente sei que
você será maior me deixando com mais curvas e
tornealidade do mesmo jeito que você era quando eu tinha 14
anos (coxas grossas enormes e cheias de celulite)
inadmissíveis na sociedade.
É obvio que não gosto de me sentir cansada, indisposta às
vezes com dores no corpo ou então passar mal, eu sei como
é e o quanto é ruim e o quanto você não me ajuda com
relação a muitas coisas na alimentação e “não” sinto ao lhe
informar que não consigo, não devo, não posso e não vou
parar até encontrar o “meu equilíbrio”, o equilíbrio que quero,
é claro.
Não sei se algum dia vou poder parar, não faço ideia de até
quando vou continuar cavando e jogando terra no mesmo
buraco.
Outra coisa que não te suporto são as vezes em que do nada
me faz sentir fome, aquela fome maior do que o “meu
normal”, isso me incomoda, me deixa com muita raiva e por
isso muitas vezes te burlo e não cumpro os combinados que
faço.
Não te suporto, não vou ficar do jeito que você quer e não
vou permitir essa tragédia na minha vida, vou ser bem
sincera com você, a verdade é que por tempo indeterminado
não conte comigo pois já estou fazendo demais por você.
Muito mal sabe você o inferno interno que eu tenho e muito
menos o demônio que comanda isso tudo e fica falando,
falando, falando e falando coisas dentro da minha cabeça
todos os dias, para que eu nunca me esqueça de que ele
está e sempre estará ali me atormentando e me
“acompanhando” sempre. Por tanto me sinto com todo o
direito de jogar na sua cara que estou pouco me lixando para
você.
Na busca por uma oportunidade representacional que visa a uma
elaboração, funcionamentos obsessivos podem ser atuados em
diversas situações: o grama no peso corporal, o milímetro na
circunferência da coxa, o ritual da alimentação e distribuição do
alimento no prato… Por certo período, uma paciente chegou quase
a ficar careca, pois não admitia que seus cabelos não nascessem
em uma linha perfeita. Ela arrancou progressivamente cada fio, na
esperança de atingir tal linha. Media suas coxas todos os dias com a
mesma fita métrica e, como consequência de uma oscilação
indesejada de milímetro, se punia fisicamente.
Nessa fase, o dano em curso afeta toda a potencialidade de vida
desses indivíduos: aspectos do funcionamento físico, mental e
social são prejudicados. O desenvolvimento nutricional deficitário
muitas vezes compromete o crescimento e a chegada dos
caracteres secundários de gênero. Todos os investimentos libidinais
são tingidos pela dinâmica de sua vida psíquica.
Tal dinâmica detém questões primitivas, datadas do período pré-
edípico. Os aspectos de fusionalidade são frequentes, e a rigidez
superegoica primitiva também se faz presente. McDougall (2000, p.
158-9) relata que:
A doença é uma maneira muda do comunicar pensamentos e
sentimentos que nunca tinham podido ser elaborados
psiquicamente, é uma expressão de temores libidinais
arcaicos e de desejos fusionais acessíveis à consciência,
porém acompanhados de fúria narcísica e de pavor primitivo,
totalmente inconscientes.
Retomo aqui o olhar para as relações primárias do
desenvolvimento psíquico. A relação inaugural que temos com o
mundo se dá através da mãe. É diante da intenção de despender os
cuidados físicos necessários que a experiência de satisfação advirá.
Nessa vivência, como diz Freud (1895), determinada parte do corpo
será alçada a ser uma zona erógena. Existe aqui a marca da
diferença entre uma parte corporal e uma zona erógena, aquela
que, para além do estancamento momentâneo da necessidade
física, vivencia a sensação de prazer, e recebe para sempre a
marca do desejo. Essa primeira relação objetal será de alguma
forma balizadora para todas as relações objetais futuras.
Transitando também por autores, como Aulagnier, Bleichmar,
Laplanche, amplio a importância do primeiro olhar, o materno. Olhar
este que carrega as marcas das vivências da mãe e denuncia a
forma com que ela lidou e o quanto elaborou as próprias pulsões
parciais. Essa relação se dará recoberta pelo próprio narcisismo
materno, que tomará o bebê como objeto sexual, e os cuidados
serão desempenhados sob a convocação do infantil materno.
Laplanche (1999) diz que a sexualidade e a pulsão vêm do outro,
defendendo o inconsciente materno como fundante, o qual
contamina o biológico e inscreve as vivências de satisfação. Mas
aqui, tratando da problemática presente nos transtornos
alimentares, direcionarei minha atenção para a questão da
intensidade e da qualidade com que tudo isso é vivido. A
intensidadee a qualidade de investimento que ele receberá nessa
relação primeva serão determinantes para delinear a amplitude que
o trânsito da pulsão de morte terá dentro do psiquismo do sujeito, e
toda sua possibilidade futura de realizar investimentos libidinais
encontrará, nessa vivência, seu alicerce.
Pierre Bourdieu (1974) chama a atenção para a violência
existente no movimento de introduzir o bebê em uma cultura por
meio do contato materno. Aqui nos deparamos com a violência
simbólica que ocorre no encontro entre a mãe e seu bebê, e que
não é destrutiva, mas importantíssima e constitutiva. A
destrutividade aí estaria ligada à intensidade do investimento, em
que um não investimento ou um hiperinvestimento, são os grandes
perigos.
Para McDougall (2000, p. 44):
À medida que se dá a lenta introjeção do ambiente maternal,
o lactente começará a fazer a diferença entre si mesmo e sua
mãe e a recorrer a ela com total confiança, para que ela lhe
traga reconforto e alívio de seu sofrimento físico ou mental.
Mas quando, por razões inconscientes, uma mãe não
consegue proteger o bebê da superestimulação traumática
(especialmente quando ele está sofrendo), ou quando o
expõe a subestimulação igualmente traumática, isso pode
levá-lo a uma incapacidade de distinguir a representação de
si mesmo da representação do outro. Consequentemente
pode suscitar uma representação arcaica na qual os
contornos do corpo, o investimento das zonas erógenas e a
distinção entre o corpo materno e o corpo da criança
permanece confusa.
Nos pacientes com transtornos alimentares, os estudos
embasados na experiência clínica apontam para um
comprometimento dessa relação, na qual uma vivência de excesso
é tão comprometedora como uma aridez afetiva. As primeiras
relações vividas por eles – ou de mais, ou de menos – acarretarão
uma precariedade no estabelecimento do ego, carregando consigo
uma falha na instauração do aparelho psíquico. A falha no
funcionamento psíquico dos pacientes com transtornos alimentares
reside na precariedade da representação que diferencia sujeito e
objeto. Este prejuízo na vivência do narcisismo primário tem como
herdeiro um ego fragilizado que fica à mercê do funcionamento de
um ideal de ego absolutamente rigoroso e submetido à intensa fúria
narcísica.
Segundo Brusset (2008, p. 54-55):
Esta lógica regressiva tende a se significar aquém da
representação que supõe a diferença de um sujeito e de um
objeto, a triangulação, o terceiro a partir do qual as relações
sujeito-objeto podem ser objetivadas e representadas […] A
boa distância não encontrável, entre o abandono e a intrusão
privada de si, deixa-se ver tanto nos registros da posição
fálica e da castração quanto nos da analidade e oralidade. As
relações conflitivas entre objeto total e objeto parcial mostram
que os autoerotismos remetem à dependência basal de um
objeto, sem poder estabelecer um espaço de investimento
próprio e durável.
A dinâmica familiar
Pessoas que desenvolvem um transtorno alimentar apresentam
geralmente uma dinâmica familiar característica. Por isso, cada vez
mais, o trabalho não só com o paciente mas também com seus
familiares vem tomando lugar de extrema importância no
tratamento. Nossos estudos indicam que a indiferenciação e
consequente identificação com a figura materna têm como
consequência a exclusão da figura paterna. A relação entre mãe e
filha no quotidiano denuncia a fusionalidade, operando com frágeis
aspectos de diferenciação. As famílias dos pacientes com anorexia
tendem a investir muita atenção para não entrarem em conflito e
manterem uma “união” como sistemas aglutinados, rígidos e com
grande evitamento de mudanças, como falam Turkiewicz et al.
(2008, p. 69). As famílias de pacientes bulímicos são mais caóticas,
explicitam muitas críticas e emoções de forma acalorada e se
depreciam constantemente.
Percebemos que os casais estabelecem relações frágeis, sem
espaços privados para interações físicas e psíquicas. Existe
acentuada dificuldade de conversar, se divertir, ter hábitos e
sustentar posicionamentos em comum. Diante disso não
conseguem garantir a hierarquia saudável entre pais e filhos para
ideais, valores e convicções serem recebidos em alto grau e assim
sustentarem uma “voz” ativa, forte, atuante e norteadora.
Salvador Minuchin (1995) estuda as famílias e suas estruturas e
defende que a família exerce o lugar de “matriz de identidade”.
Apresenta a ideia de que a forma como uma pessoa interage, se
relaciona e se comporta está intimamente articulada ao modo como
a família se estrutura.
O benefício transferencial no tratamento dos transtornos
alimentares em um processo de análise como parte integrada a
uma equipe multidisciplinar
Foi em 1905 que Freud se deparou com a potente força da
transferência, necessitando pensar sobre a interrupção do processo
analítico de Dora. Ele se deu conta de que o paciente irá reviver
emoções na intimidade da relação analítica – transferencialmente
projetados na relação e na figura do analista –, sem idade, sem
lugar e sem tempo.
O setting terapêutico, como pensa Balint (2014), tem como
função primordial garantir um espaço protegido de urgências de
tempo, estímulos e isento de julgamento crítico. “[…] Penso que o
analista deve fazer uma aposta no tempo e na relação, e aguentar
esperar que o paciente, sustentado por uma relação analítica
confiável e não invasiva, encontre uma forma de recolocar-se no
caminho do desenvolvimento.” (p. 137).
É nessa relação que considera que o tempo interno é diferente do
tempo externo, que não atende a uma linearidade, que se
estabelece a plenitude da relação entre paciente e analista.
Figueiredo (2002) nos diz que “a figura do analista inserida numa
das constelações psíquicas que o paciente organizou ao longo de
suas experiências emocionais aciona, a um só tempo transferência
e resistência, alavancando a dinâmica do tratamento” (p.2).
Este lugar da intimidade tem como comandante qualquer
pensamento, devaneio ou sonho, porém, na clínica dos transtornos
alimentares, essa potencialidade é extremamente precária.
O benefício de uma análise como parte integrada a uma equipe
multidisciplinar ocorre antes mesmo da chegada em nossos
consultórios e ao longo das primeiras entrevistas, em que a equipe
será responsável por informar a necessidade indispensável do
processo e esclarecer algumas dúvidas tanto do paciente como de
seus familiares, fornecendo, desse modo, o amparo necessário para
a busca da terapia. Muitas vezes é somente com esse firme
sustentar da extrema necessidade do processo psicoterapêutico,
encontro após encontro, com o ritmo das idas e vindas, que a
relação analítica pode se estabelecer, fortalecer e atingir na
transferência todo o potencial do trabalho. O resultante é a
construção do setting terapêutico simbólico capaz de oferecer tal
espaço de intimidade para que o paciente – dentro de seu percurso
autoral da construção de sua própria narrativa – possa vir a ser.
Para podermos nos dedicar ao “mergulho simbólico” em direção à
construção dos aspectos psíquicos, precisaremos contar com o
psiquiatra e o nutricionista atentos ao que é mais concreto, como o
peso que a balança marca semanal ou quinzenalmente, o IMC, as
taxas sanguíneas (anemia, falta de ferro), o sinal vermelho do ritmo
cardíaco, a falta de ar, a necessidade ou não da medicação para
lidar com comorbidades, como depressão, ansiedade, falta de sono,
impulsividade…
Outra questão é a falta do “contorno primordial” e do “tamanho
simbólico” daquele sujeito, questões que assolam seu psiquismo. A
meu ver, a equipe constituída, constante e atuante promove
simbolicamente uma vivência de contorno, uma borda, o traçado
que indicará – principalmente em momentos extremos – o limite, o
risco, a direção a seguir. Outro dia, em uma reunião com a equipe
clínica, uma paciente disse: “Eu não quero, não vai ser fácil, mas,
por outro lado, vejo vocês como meu paraquedas reserva, que,
quando eu não consigo sozinha, não vão deixar eu me esborrachar”.
Assim, a equipe será responsável por acionaralertas vermelhos
para a paciente e para a família que, imersos em formas de se
relacionar por anos a fio, não conseguem apreender os aspectos de
exclusão, controle, onipotência e fusionalidade que operam nas
relações.
A relação analítica, como sabemos, tem como material de
trabalho as resistências, atuações e outros funcionamentos
psíquicos, mas, no que tange a dinâmica familiar, será no contato
com o psiquiatra e o nutricionista que esta questão será trabalhada.
O posicionamento do terapeuta deve salvaguardar a relação do
sujeito com o corpo psíquico que, ainda sem a intensidade dos
contornos e limites psíquicos necessários para o amparar,
escancara a carência nutricional psíquica mediante um intenso vazio
ou um esparramar que transborda e conduz aquilo que poderia vir a
ser um pensamento, para o ralo. A voz “fraca” ou desorganizada,
mas única possível, precisa, de quietude e silêncio de atuações da
família para poder ser “ouvida”, fertilizando devaneios, explicitando
fantasmas e seguindo na direção de provocar questionamentos no
sujeito, para que ele possa se implicar consigo mesmo.
O setting terapêutico deve ser resguardado de invasões e
transbordamentos concretos dos familiares. Quando estamos diante
do convite à fusionalidade, qualquer familiar sendo a voz do
paciente é prejudicial para esses “passos” com traços ainda tão
primitivos.
Gurfinkel (2010, p. 78-79), afirma que
Neste ponto passamos a falar da transferência e seu
complexo interjogo, pensamos que o contexto clínico do
enquadre pode ser entendido como um importante ritual que
regula a aproximação entre o sujeito e seu analista. Enquanto
a representação dos braços da mãe, ele pode auxiliar na
contenção da pulsionalidade e da tendência ao ato ou da
impulsividade, por meio de uma presença do outro que possa
“cuidar”, regulando o excesso de excitação que assola o
sujeito.
Essa constância se repete na análise, e estamos diante da
possibilidade de reeditar, na transferência, aquelas primeiras
vivências que falamos no início, a conquista de reviver essa
dependência e esse olhar libidinizador.
Nosso manejo clínico deve atentar para a problemática da
intensidade de investimento referida anteriormente no texto, nem de
mais, nem de menos, a justa medida entre aridez e excesso
extremos como destruidores. Ponto que corresponde com nossa
postura como analistas, a necessidade de sermos mais ativos, mais
tolerantes com o não saber, e jamais atropelando a construção do
saber sobre eles mesmos. Esses pacientes nos apresentam um
vazio simbólico e, muitas vezes, escassa possibilidade de
associação.
Outra questão potencial no tratamento multidisciplinar é a
vivência do paciente nos diferentes espaços, a experiência
emocional de ser “olhado” e “cuidado”, se “olhar”, se “pensar” e se
“cuidar” dentro de cada especificidade profissional. Será nessa
diversidade de vivências que pode ocorrer uma ampliação de seus
investimentos tão restritos. Aqui menciono que a carta da paciente
para seu corpo citada neste capítulo “nasceu” de uma reflexão entre
ela e a nutricionista e, explicitando a riqueza transferencial e o bom
uso desses diferentes espaços, foi trazida pela paciente para seu
espaço analítico e alimentou suas associações.
Dessa forma, cada profissional em determinado momento do
tratamento poderá – como em uma dança das cadeiras – receber
diferentes projeções predominantemente. Teremos fúria narcísica,
temores, competição, controle, movimentos de reparação, prazer,
desprazer, conquista, fracasso, dar-se conta da falta, do desejo
(amoroso e destrutivo), de necessidade… transitando por este
tripé/equipe, o que traz grande riqueza para a associação,
necessária para a elaboração em análise.
No tratamento desses pacientes, muitas vezes o investimento se
dá na intenção de repetir a relação fusional na terapia e com cada
um dos integrantes da equipe, de excluir um ou mais
espaços/profissionais, como representantes simbólicos da exclusão
do terceiro e da dificuldade diante de tal forma de se relacionar.
Uma equipe experiente, com um discurso e uma forma de pensar
atentos aos mesmos pontos, que convive com as diferenças de
cada área de atuação e que não exclui ninguém, legitima esse
formato de triangulação relacional que, em si, marca a falta, a
necessidade e explicita a não onipotência, abrindo as portas para
maiores possibilidades de maturidade.
Jeammet (2008, p. 47) alerta para um “risco” que habita
simbolicamente a forma com que esses pacientes se relacionam,
em que a instituição teria uma função protetora.
A Abordagem institucional oferece mediações que tornam o
contato objetal menos perigoso e mais suportável do que
uma relação dual na qual ela corre o risco de ser
imediatamente captada pelo outro em razão do mesmo
sobreinvestimento que fazem desta relação.
O analista também cumprirá um papel importante junto à equipe
falando sobre as movimentações psíquicas e defesas atuantes,
favorecendo o entendimento, para elaboração também dos
profissionais. Estes terão que tolerar projeções e atuações
defensivas maciças em um constante alternar dos lugares com que
cada profissional está indentificado naquele momento nas projeções
simbólicas daquele paciente. A transferência é viva e atinge toda a
equipe!
Notas:
1 .Agradeço à Cybelle Weinberg pela leitura.
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