Buscar

A ajuda atrapalha

Prévia do material em texto

Entrevista: James Shikwati 
A ajuda atrapalha 
 
O economista queniano diz que as doações internacionais 
só atrasam o desenvolvimento da África. 
Nascido em um país conhecido por produzir grandes fundistas, o economista queniano
James Shikwati, de 35 anos, nunca se destacou como um bom atleta. Certa vez, quando era
adolescente, inscreveu-se para uma prova de corrida no colégio. Sob o olhar de centenas de
pessoas na arquibancada, Shikwati foi deixado muito para trás pelos outros competidores.
Isso não o impediu de correr com todas as forças – para delírio dos espectadores, que
passaram a torcer para o lanterninha. O episódio revela um dos valores mais caros para
Shikwati, hoje um estudioso de políticas de desenvolvimento para a África: a livre
concorrência. Para ele, não importa que os países africanos larguem muito atrás na corrida
da globalização. Só o que não pode acontecer é os africanos serem tratados como
coitadinhos. Para Shikwati, as doações para fins humanitários dos países ricos impedem a
África de se firmar por conta própria. Formado pela Universidade de Nairóbi, no Quênia, e
diretor da Rede Econômica Inter-regional, um instituto de pesquisas com o objetivo de
promover idéias de livre mercado, Shikwati é casado e tem três filhos. Ele falou a VEJA de
seu escritório, em Nairóbi. 
Veja – No mês passado, os sete países mais ricos concordaram em aumentar para 50
bilhões de dólares por ano a ajuda humanitária para a África. É uma boa notícia, não? 
Shikwati – É bom para os países ricos, como manobra de relações públicas. Como medida
útil para a criação de riqueza, que é o que os países africanos precisam, as doações não
ajudam em nada. Se você der dinheiro a um mendigo e voltar a vê-lo na rua no dia
seguinte, não se pode dizer que você o tenha ajudado. Ele continua mendigando. É isso que
está acontecendo na África. Os países ricos anunciam mais e mais doações a cada ano.
Temos de parar com isso. É preciso tirar o mendigo da rua. Temos de descobrir os
potenciais desse mendigo, pois isso sim poderá melhorar sua vida. A África necessita é de
uma chance para ser capaz de administrar e comercializar as próprias riquezas. 
Veja – Por que as doações internacionais são ruins para a África?
"Se os países ricos e a ONU continuarem a agir como 
babás, os africanos se tornarão uns inúteis que não 
sabem fazer nada" 
Página 1 de 5O - MAXIMIZE ESTA JANELA PARA MELHOR VIZUALIZAÇÃO - MAXIMIZE ...
12/9/2006http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/ajuda_atrapalha.htm
Shikwati – Na década de 80, a África Subsaariana recebeu 83 bilhões de dólares em auxílio.
No mesmo período, o padrão de vida na região caiu 1,2% ao ano. A doação só tornou os
países africanos mais dependentes de ajuda. Precisamos conquistar a capacidade de
resolver nossos problemas sozinhos. Minha mensagem é: "Por favor, não dificultem as
coisas para nós. Não nos impeçam de pensar por nossa própria conta com essa política de
nos afundar em dinheiro fácil". 
Veja – De que maneira, exatamente, o dinheiro atrapalha? 
Shikwati – O dinheiro da ajuda internacional prejudica o setor produtivo e a livre-iniciativa.
No Quênia, parte do dinheiro que veio de doações internacionais foi investida no setor de
telecomunicações, controlado pelo Estado de forma ineficiente. Desse modo, fica difícil para
o setor privado competir com as empresas estatais. A situação na agricultura é ainda pior. O
envio de toneladas e toneladas de alimentos atrapalha os produtores locais. Eles param de
produzir o pouco que têm, porque são incapazes de competir com os alimentos distribuídos
gratuitamente à população. Assim, criam-se novas famílias de pessoas pobres, que passam
a depender da ajuda internacional. É uma espiral sem fim, que também desestimula o
comércio de alimentos entre os países africanos. Se falta comida no Quênia, devido a uma
seca, em vez de tentarmos fazer negócios com os países vizinhos, como Uganda e Tanzânia,
pedimos comida aos países europeus ou aos Estados Unidos. Tudo o que nossos líderes
precisam fazer é desenvolver estratégias para garantir que a ajuda financeira continue
chegando. 
Veja – O que o leva a pensar dessa forma? 
Shikwati – Eu venho de uma região rural do Quênia e tive uma infância pobre. Quando
entrei na faculdade, passei a me interessar pelos problemas africanos. Comecei a entender
que capitalismo não é feito apenas com dinheiro, mas também com recursos humanos. Se
você me der bilhões de dólares e eu não estiver preparado para saber o que fazer com isso,
será dinheiro jogado fora. É sob essa perspectiva que eu interpreto os problemas da África. 
Veja – Não é crueldade deixar sem ajuda os milhões de famintos da África? 
Shikwati – Não é. Se você deixar a África lidar com seus problemas sozinha, o continente
não vai fracassar ou morrer. Se os governos dos países desenvolvidos continuarem agindo
como nossas babás, no entanto, nunca conseguiremos entrar na economia global. O
caminho para o nosso desenvolvimento é ter acesso livre a outros mercados e conseguir
investimentos externos. 
Veja – Como fazer isso? 
Shikwati – Os problemas que impedem a África de criar riqueza são, na verdade,
institucionais. Eles limitam a capacidade do continente de expandir o próprio mercado. As
alíquotas de importação de alimentos entre os países africanos são, em média, de 33%,
comparados aos 12% que os produtos importados da Europa pagam por aqui. Se
conseguíssemos abrir a África para os africanos, muitos dos problemas de desnutrição
nunca chegariam a um nível crítico. Temos de convencer nossos governantes a abrir os
mercados e a estimular a população a produzir. Os 50 bilhões de dólares que os países ricos
querem nos dar serão um presente de grego. O único efeito será impedir o desenvolvimento
do mercado interno africano. Vamos continuar para sempre dependentes de ajuda
internacional. 
Veja – O que a África tem para oferecer no mercado global? 
Página 2 de 5O - MAXIMIZE ESTA JANELA PARA MELHOR VIZUALIZAÇÃO - MAXIMIZE ...
12/9/2006http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/ajuda_atrapalha.htm
Shikwati – Concordo que não há na África um setor produtivo comparável ao de outras
regiões. O pouco que existe está sendo destruído pela ajuda internacional. Em 1997, havia
137 000 empregados na indústria têxtil da Nigéria. Em 2003, eram apenas 57 000. Porque
os países ricos nos inundam com roupas doadas, que vão abastecer os mercados de rua nas
cidades africanas. O que temos a oferecer são riquezas naturais, como ouro, petróleo,
diamantes e um povo com um potencial que merece receber investimento. 
Veja – O governo dos Estados Unidos anunciou que só fará doações aos países africanos
menos corruptos. Essa é uma boa estratégia? 
Shikwati – Antes de tudo, é preciso perguntar o que causa a corrupção. Os países ricos
dizem que os pobres são corruptos. De onde vem o dinheiro roubado pelos corruptos? No
caso da África, esse dinheiro vem dos Estados Unidos e da Europa. Boa parte dos alimentos
doados é revendida pelos políticos nos armazéns de suas tribos. Americanos e europeus têm
boas intenções, mas a ajuda internacional corrompe os governantes africanos. Concordo
que a corrupção é um problema crônico no continente, mas ela não está no gene africano.
Os próprios africanos precisam aprender a policiar a roubalheira de seus governantes. 
Veja – É possível um país ter ao mesmo tempo desenvolvimento e dirigentes políticos
corruptos? 
Shikwati – É uma raridade. Quanto maior o fluxo de informações em um país, mais difícil é
para as autoridades cometer atos ilícitos. Os países desenvolvidos são aqueles em que há
liberdade na divulgação de notícias. Um dos motivos da corrupção na África é a falta de
informação. Pergunte a um africano quanto de ajuda financeira seu país recebe por ano. Ele
não saberá responder, porque o governo não divulga os dados. Na África, damos poder
demais aos nossos governantes, e isso estimulaa corrupção. 
Veja – Como os regimes ditatoriais são afetados pelas doações internacionais? 
Shikwati – Sem os donativos seria mais fácil se livrar dos ditadores. A ajuda financeira vem
sempre acompanhada de uma política equivocada. Os governos usam o dinheiro para a
guerra e para a compra de votos. Se um ditador tem apoio financeiro garantido, ele
dificilmente vai se importar com a situação de seus cidadãos. Jeffrey Sachs (diretor do
programa Metas de Desenvolvimento para o Milênio, da ONU) diz que o dinheiro deveria ser
entregue não aos políticos, mas à população. O que ele quer? Uma África sem líderes? Não
é uma questão de entregar o dinheiro nas mãos de políticos ou nas de cidadãos. A solução é
não dar dinheiro algum. 
Veja – O pensador americano Francis Fukuyama diz que a causa do subdesenvolvimento é a
falência do Estado. O senhor acha que seria mais proveitoso se os países ricos ajudassem os
pobres a construir as próprias instituições e leis, em vez de dar ajuda em dinheiro? 
Shikwati – De forma alguma. Um país não pode ajudar o outro a construir o seu Estado.
Isso se chama interferência. Se for do interesse das empresas dos países ricos lucrar nos
países pobres, não devemos impedi-las. Mas não podemos permitir que governos venham
fazer negócios em nome dessas companhias. O conhecimento técnico deve ser levado por
empresas dispostas a se instalar na África. É preciso também permitir que os cidadãos de
países em desenvolvimento circulem livremente pelos países ricos. Nossos jovens precisam
viajar e estudar no Primeiro Mundo. Só assim estarão preparados para construir o próprio
país. 
Veja – Jeffrey Sachs diz que muitos problemas da África têm soluções bem simples, como a
distribuição de mosquiteiros e a adoção de programas de educação sexual. O senhor
Página 3 de 5O - MAXIMIZE ESTA JANELA PARA MELHOR VIZUALIZAÇÃO - MAXIMIZE ...
12/9/2006http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/ajuda_atrapalha.htm
concorda? 
Shikwati – Sachs sabe muito bem o que os países ricos fizeram para combater a malária no
tempo em que a doença existia na Europa. Eles não utilizaram mosquiteiros. Então por que
prescrever isso para a África? Os mosquitos não esperam a pessoa dormir para picá-la.
Deveríamos investir em projetos para erradicar o mosquito, porque ele sim é a causa da
malária. Quanto aos programas de educação sexual, não precisamos que Sachs venha nos
dizer isso. É por essa razão que critico a tendência da ONU de assumir o papel de babá dos
pobres. Se isso acontecer, os africanos se tornarão uns zumbis, uns inúteis que não sabem
de nada. 
Veja – Por que só a África fica de fora do crescimento global? 
Shikwati – A pobreza na África é artificial. Ou seja, é criada pelas guerras e por governantes
corruptos. Os líderes lutam por causas nacionalistas, passando por cima das fronteiras,
impedindo o desenvolvimento do comércio regional. Dessa forma se multiplica o número de
pobres. Note que a ajuda financeira à África está baseada em estatísticas exageradas. Se os
dados sobre a aids fossem corretos, todos os quenianos estariam mortos. Recentemente se
descobriu que não são 3 milhões de infectados, e sim 1 milhão. A aids tornou-se uma
doença política, usada como apelo de marketing para atrair mais dinheiro em doações
externas. É triste que isso esteja acontecendo, porque as pessoas estão realmente
morrendo. 
Veja – No fim da II Guerra, a Alemanha estava em ruínas. Recuperou-se em poucos anos 
com a ajuda financeira dos Estados Unidos. Um Plano Marshall seria uma solução para a
África? 
Shikwati – A Alemanha, antes da guerra, não estava no mesmo estágio em que se encontra
hoje a África. Era um país industrializado, com instituições consolidadas. Bastou injetar
dinheiro e iniciar a reconstrução para a indústria alemã retomar a produção. A África não
mudou quase nada desde a independência. É preciso começar do zero, o que complica
qualquer plano de desenvolvimento. 
Veja – Por que o senhor acha que a Europa está tão empenhada em ajudar os países
africanos? 
Shikwati – Primeiro, porque os europeus foram os colonizadores e pretendem se manter
influentes no continente. Há interesses concretos, como conquistar o apoio africano nas
negociações na Organização Mundial do Comércio. A forma encontrada para garantir essa
influência é inundar os governos africanos com dinheiro. Há outra razão, talvez mais
emocional. Os países ricos querem se sentir bem. É como se dissessem: "Nós somos os
mocinhos, estamos ajudando". 
Veja – O Brasil busca o apoio da África para sua candidatura a um assento permanente no
Conselho de Segurança da ONU. Isso o coloca na categoria dos países que querem exercer
influência na África? 
Shikwati – Pelo menos no caso do Brasil isso é feito às claras. O país não esconde suas
intenções. Um dos meus argumentos contra as doações é que os representantes dos países
ricos não vêm aqui e dizem: "Olha, meu amigo, eu lhe dou esse dinheiro e você me dá seu
apoio na ONU". É uma negociação, mas eles disfarçam. Se for do interesse da África aceitar
a ajuda brasileira em troca de um voto na ONU, que seja assim. Isso é normal nas relações
internacionais. O que não se pode é esconder isso da população. 
Página 4 de 5O - MAXIMIZE ESTA JANELA PARA MELHOR VIZUALIZAÇÃO - MAXIMIZE ...
12/9/2006http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/ajuda_atrapalha.htm
 
Fonte: Rev. Veja, Diogo Schelp, ed. n. 1917, 10/8/05.
Opiniões sobre os artigos ... 
Coletânea de artigos 
Home
Página 5 de 5O - MAXIMIZE ESTA JANELA PARA MELHOR VIZUALIZAÇÃO - MAXIMIZE ...
12/9/2006http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/ajuda_atrapalha.htm

Continue navegando