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Introdução Enigmas

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INTRODUÇÃO 
 
«A vida sem exame não vale a pena ser vivida». 
Releia-se a Apologia de Sócratesi, uma ou mil vezes, e a 
famosa frase ainda fará tremer, guardando intacto o seu 
poder sobre nós. À sua maneira, porém, os que nos 
antecederam já haviam prevenido – do sofista ao mais 
sublime dos filósofos soixante-huitardsii: nunca há, de 
fato, repetiçãoiii. Trememos, mas nunca pelas mesmas 
razões. Assim é, que o que um dia apareceu como ousada 
declaração de rebeldia – convite endereçado por Sócrates 
aos que podiam entendê-lo e provocação lançada aos 
demais – pode, em seguida, assumir a forma resignada de 
uma confissão – admissão de uma culpa evidente e sem 
apelações. 
«A vida sem exame não vale a pena ser vivida»: Platão 
sabia, por experiência própria, que as palavras que 
colocou na boca de seu mestre eram feitas para separar 
radicalmente a polis ateniense nestas duas categorias – a 
dos que prefeririam morrer a deixar de se interrogar, e a 
dos que prefeririam morrer a se deixar interrogar. Neste 
limite extremo quis situar a relação com a filosofia. Sem 
dúvida não estava errado. 
Da perspectiva do destino individual, as palavras 
póstumas do filósofo decerto propõem um desafio diante 
do qual já não é mais possível permanecer indiferente: 
sou eu contra mim, que devo decidir de que lado me 
ponho, mas sobretudo sou eu diante do velho dilema do 
sentido da vida, que é preciso construir para poder viver. 
Da perspectiva coletiva, no entanto, a frase e o 
contexto anunciam a ruptura como eminente: assim, o 
pior dos males, que é a divisão interna da polis a separar 
irmão contra irmão, cidadão contra cidadão, torna-se 
realidade inevitável, e a morte de Sócrates só faz anunciá-
lo. Agora sou eu contra o outro, ou melhor, nós contra 
eles. A bela unidade está desfeita, a pintura idealizada 
deixa ver, por detrás das rachaduras, sua verdadeira 
face iv . Mas não será esta a própria natureza da 
democracia? 
Stásis: no vocabulário grego, o nome para a dissensão 
interna, o fantasma que Nietzsche reafirma, ao 
considerar, no eco do mesmo Platão, que a guerra mais 
temível é aquela que nos opõe a nós mesmos. Mas, se só 
somos verdadeiramente vencidos por nós mesmos, 
porque é tão difícil reler, atualmente, a Apologia? 
«A vida sem exame não vale a pena ser vivida», Platão 
escutou a lição, e a história testemunha o resultado de 
seus esforços: o «filósofo fora da cidade» construiu uma 
posteridade organizada, cada vez mais… em seitas. «A 
vida sem exame não vale a pena ser vivida»: o que, de 
fato, Sócrates, pela voz de Platão, estaria a propor a seus 
discípulos? A tentação romântica se desvanece diante da 
perspectiva da morte ou da vida à margem. Que mestre 
ousaria, em toda sinceridade, propô-las como únicas 
alternativas a seus alunos? 
«A vida sem exame não vale a pena ser vivida»: quem 
pode, hoje, ouvir tais palavras? Que lugar reservar para a 
filosofia, em um mundo que, por tudo e em tudo, se 
indispõe a recebê-la? Valeria a pena expor os que ainda 
têm ouvidos para escutar a condenação que a injunção 
parece, mais do que nunca, fazer pesar sobre a reflexão? 
Porque a stásis, a dissidência, parece tão excluída, e 
cada vez mais, do ethos que instituímos! Quando o 
cálculo pragmático sobre a vida parece ter-se imposto 
como atitude a tal ponto generalizada que o 
questionamento sobre os valores se afigura como 
insensatez, como então ousar propor a reflexão como 
caminho viável? Em nossa pobre realidade, a «bela 
unidade» não é mais um recurso retórico, senão uma 
triste constatação de uma lógica vitoriosa. A stásis, mais 
do que nunca, é conjurada, não tanto pelos discursos, mas 
pelas práticas sem discurso, e se por acaso ainda 
sobrexiste, no mundo atual, é evidente que ela se 
restringe ao combate interno dos que levaram a sério a 
Apologia. Será este o preço a ser pago para continuar 
acreditando no exame? 
Mas não há filosofia sem interrogação ética! Não há 
interrogação verdadeira, que não coloque em perigo todo 
o mundo instituído como bela unidade, em nosso interior. 
O destino da filosofia é sombrio, mas não seria mais 
sombrio o destino do mundo sem exame? 
A estas questões é confrontado o professor de 
Filosofia e, mais humildemente, o militante da filosofia 
no meio dos educadores. Diante de todos os preconceitos 
que pesam contra a teoria – feita utopia, feita pensar 
crítico ou, o que é mais comum, feita argumento de 
autoridade – como defender, ainda, a reflexão? Em nome 
do que anunciar o valor do exame, como sentido mais 
sublime da existência, e portanto como instrumento 
indispensável para a prática pedagógica? 
Mas existe apenas educação sem discussão sobre 
valores? Para um educador, é possível uma existência, e 
uma prática, sem exame? Educar é passar da perspectiva 
individual à coletiva: é ter que tomar partido, é ter que 
lidar contra as falácias da «bela unidade» não apenas 
interiormente, mas publicamente. 
É possível a educação sem a ética? Toda a herança da 
modernidade, todo o testemunho da atualidade parecem 
conspirar para esta certeza. E, no entanto, «A vida sem 
exame não vale a pena ser vivida».Vale a pena escrever 
uma tese, ainda. Para falar do exame. Para falar da 
filosofia e da educação. 
(Lílian do Valle, Introdução a Enigmas da educação. Belo 
Horizonte, Autêntica, 2000.) 
 
 
NOTAS 
 
i Platão, Apologia de Sócrates. Pará de Minas: Virtual Books online, 
M&M Editores, 2000. Versão eletrônica: Acrópolis 
(http://www.revistaliteraria.com.br/plataoapologia.pdf) 
 
 
ii Referência à geração de filósofos que participou ativamente dos 
movimentos de revolta que uniram estudantes e operários em Paris, em 
maio de 1968. Para mais detalhes sobre o assunto, ver 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0103-
207019980002&lng=pt&nrm=iso 
iii Referência a Heráclito, que teria afirmado que «ninguém entra duas 
vezes no mesmo rio» (cf. Platão, Crátilo, 402 a) e a Gilles Deleuze (que 
dedicou à questão um livro: Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 
2009) 
iv «M.I.Finley relembra o estranho processo através do qual a palavra 
stásis, que, etimologicamente, não designa mais do que uma «posição» 
política, carrega-se de conotações pejorativas, ao ponto de tomar o 
sentido de «sedição». Acreditamos, como o autor, que a explicação para 
este fenômeno não deve ser buscada na filologia, mas na própria 
sociedade grega, que se recusa a admitir que a escolha política possa, 
legitimamente, depender de considerações ou de interesses de classe, 
atribuindo ao Estado objetivos intemporais e universais. Seria necessário, 
inclusive, ir mais longe, e reconhecer que tal atitude não é adotada 
apenas por escritores hostis à democracia: na medida em que ignoram 
instituições tão contestadas como a mistoforia ou o sorteio, em que 
instalam a polis na eternidade de uma imagem estereotipada…, ou que 
fazem de Atenas uma physis que nada, nem mesmo a instituição do 
político, poderia atingir, também os oradores oficiais contribuem para 
transformar a democracia em uma bela totalidade harmoniosa. Uma 
representação de Atenas que não deixa de ser compósita – razão pela 
qual se expõe às ironias de Platão – mas que pretende, primordialmente, 
transmitir segurança: sob esta perspectiva, a stásis é um mal, o mal 
absoluto. E, no entanto, no início do século IV, autores como Lísias e 
Platão bem consagram um desenvolvimento de seus épitaphioi às lutas 
civis de fins do século precedente; sem dúvida, era-lhes tão difícil ignorá-
las quanto, para a democracia restaurada, esquecer inteiramente que, um 
dia, a polis estivera dividida em dois. Exaltar a unidade da polis sem 
 
 
calar as dissensões intestinas: tarefa paradoxal,que coloca em jogo todos 
as artimanhas da eloquência oficial… Ao imaginar uma outra Atenas, 
uma Atenas não democrática, ou ao criticar a Atenas real, os escritores 
conservadores não têm dificuldades em tratar da stásis: basta imputar 
toda responsabilidade à democracia, ou a seus chefes… – o que, 
frequentemente, resulta no mesmo.» (Nicole Loraux, A Invenção de 
Atenas. Rio de Janeiro: 34, 1994, p. 58).

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