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Charles Melman Novas formas clínicas no início do terceiro milênio Porto Alegre, 2003 facebook.com/lacanempdf © de Associação Psicanalítica de Curitiba e Biblioteca Freudiana de Curitiba Execução e organização das transcrições: Rosane Weber Licht, Ana Maria Zanetti, Antonio Brunetti, Ângela Dai 'Vesco, Gustavo Volasco, Tâmara Enns, Ruth Pacheco e Alicia Tuaf Revisão ortográfica: Rosane Weber Licht, Dayse Stoklos Malucelli e Maria Angélica Carreras Revisão técnica e organização do texto e do sumário: Leda Mariza Fischer Bernardino Revisão final: Conceição Beltrão Fleig e Mario Fleig Editoração eletrônica: Caio Beltrão Schasiepen Capa: Flávia e Helena--www.arquiarte.arq.br M524s Melman, Charles Novas fo1mas clínicas no início do terceiro milênio/ Charles Melman. -Po110 Alegre: CMC Editora, 2003. Textos transcritos do seminário realizado em Curitiba, em abril de 2002. 160p.; 13x21cm ISBN: 85-88640-06-6 1. Psicanálise. 2. Organização social. I. Título. II. Título: Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. CDU 159.964.2:316.35 gação na publicação: Evelin Stahlhoefer Cotta - CRB 10/1563 Reservado todos os direitos de publicação em língua portuguesa para: CMCEditora Rua Mostardeiro, 291/403 - 90430-001 Porto Alegre, RS ( 51) 3346-8793 cmceditora@terra.com.br www.cmceditora.com.br Proibida a reprodução total ou parcial Depósito legal Impresso no Brasil - Printed in Brazil Charles M:elman Entregamos ao leitor esta obra de Charles Melman. Para muitos dispensa apresentações, mas para outros talvez se constitua em um primeiro encontro com o trabalho deste psicanalista. Neste texto, não revisado pelo autor, optamos por conservar as peculiaridades de sua fala. Como guia para o leitor que se inicia no estudo cm Freud e Lacan, colocamos em notas as referências dos textos mencionados. Dentre a extensa publicação do autor, fizemos apenas algumas indicações de acordo com o assunto abordado. Entre chaves e em itálico, encontram-se as observações dos colegas que transcreveram o texto. Ressaltamos o trabalho dos membros da Associação Psicanalítica de Curitiba e da Biblioteca Freudiana de Curitiba rcsponsúveis pela organização do seminário, através de Dayse Stoklos Malucclli, Leda Mariza Fischer Bernardino e Maria Angélica Carrnras, assim como agradecemos as sugestões do Centro de Estudos Freudianos do Recife, através de Letícia Patriota Fonseca, e o apoio de Denise Sainte Fare Garnot, da Association lacanienne intemationale. Então, passamos às suas mãos este livro, para que siga seu curso e, assim como uma cm1a, possa chegar a seu destino. Os Editores Sumário INTRODUÇAO......................................................... 07 "-'Parte ! ...................... ~................................................ 13 Os desafios da psicanálise diante da mutação cultural cm curso Primeiro elemento de escândalo: um homem e uma mulher, em nosso dispositivo cultural, não foram feitos um para o outro? Segundo elemento de escândalo: o que causa o desejo, no homem e na mulher, não é uma pessoa, é um objeto Parte 11..................................................................... 23 Respondcn<lo perguntas sobre: feminilidade, Internet, objeto a e falo, miséria social, posição do psicanalista Parte 111.................................................................... 33 Existe um sujeito feminino? O que faz com que os casais se mantenham juntos? Parte IV..................................................................... 43 Respondendo perguntas sobre: S 1 e S 2 como heterotópicos, gozo Outro, significante da falta no Outro, o que um analista pode propor ao analisante, o último tema de trabalho de Freud e Lacan foi o Pai Parte V....................................................................... 51 Primeiro grande traço da mutação cultural em curso: a forclusão do Outro ' Parte VI ................................................................... 59 Respondendo perguntas sobre: na ideologia liberal todo gozo é permitido, a concepção moderna do Real como esférico e o cross-cap, o "politicamente correto", a adoção de filhos por casais homossexuais, o pai da horda, o fanatismo, as utopias '--- Parte VII................................................................... 75 As cenas de horror na televisão O declínio da função paterna "'Parte VIII................................................................. 83 Segundo grande traço da mutação cultural cm curso: a promoção do gozo objetal sobre o gozo fálico O comunitarismo Parte IX.................................................................... 97 Primeira questão clínica: a depressão Segunda questão clínica: a histe1ia Terceira questão clínica: as toxicomanias Parte X...................................................................... 109 Um real problema teórico e prático Respondendo perguntas sobre: a formação do analista, os laboratórios de psicofármacos, psicanálise e ciência têm o mesmo objeto, a felicidade social, o sagrado hoje, psicanálise e universidade, o mercado, pai real, influência social do psicanalista, pedofilia, pagamento da análise Parte XI.................................................................... 135 O gozo do toxicôrnano O gozo Outro Quarta questão clínica: a psicose , __ Parte XII .................................................................. 147 A condição subjetiva moderna Um comentálio sobre algumas correntes religiosas O estatuto do inconsciente hoje A atopia do sujeito moderno Uma nova forma de organização social -INTRODUÇAO Em abril de 2002, durante três dias, por dezoito horas, cerca de trezentas pessoas encontraram-se em Curitiba para participar do seminário ministrado pelo psicanalista Charles Melman, cm um evento que chegou a ser nomeado pelos presentes como um Congresso Lacaniano Brasileiro. Foi um privilégio usufruir desta interlocução, no ver<la<leiro sentido do termo, promovida pela fala experiente, fascinante e, ao mesmo tempo, provocante deste aluno e parceiro de Jacques Lacan na Écolc freudienne de Paris. A reverberação de suas palavras provocou perguntas, discussões nos intervalos, em estudantes, analistas em formação e nos muitos analistas presentes, vindos das mais diversas partes do Brasil: Brasília, Belém, Campo Grande, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre e Florianópolis, para citar algumas. Com seu estilo tranqüilo e bem humorado, Charles Melman passeou pelos mais densos conceitos da psicanálise lacaniana, sem sair de sua cadeira no centro do palco, demonstrando total domínio do público e do tema que se propunha a trabalhar. Melman trouxe para o Brasil suas inquietantes inte1rngações sobre a modernidade, propondo construções teóricas particulares, sustentadas na teoria freudo-lacaniana e em sua prática pessoal como psicanalista. Da mesma fom1a, com muita cmiosidade, aguardou a fonnulação de perguntas e Patrícia Realce 8 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio acatou-as com júbilo, sem esconder seu orgulho por ter provocado tanto o público. Neste seminário, ao mesmo tempo em que apresenta idéias novas e até mesmo revolucionárias para o discurso psicanalítico, como a proposta da heterotopia entre S1 e S2, Charles Melman retoma pontos já desenvolvidos em outros livros, atualizando de maneira 1igorosa temas que lhe são caros, como a paranóia, o alcoolismo e a toxicomania. Além disso, Charles Mclman continua dando testemunho de atos corajosos, nos quais não hesita em tomar posição publicamente, pronunciando-se sobre questões cmciais para a modernidade, como a pedofilia, a adoção por casais homossexuais, como outrora o fez com relação ao uso consentido de drogas de substituição pelos toxicômanos, sempre provocando o incômodo que--- wmo ele mesmo diz- é o efeito que o psicanalista deve sempre causar cm tudo aquilo que se enrijece, como a ditadura intelectual do "politicamente con-eto". Tendo como fio condutor a mutação cultural cm curso e suas conseqüências na vida social, política, e também na prá- tica do psicanalista, Melman revisita a clínica psicanalítica para apresentar as novas faces da depressão, da histeria, da toxicomania e da psicose. A grande questão que ele levantou ---- e que manteve em suspenso, para abordá-la somente ao final do seminário - foi se ainda haveria lugar para o inconsciente neste novo dispositivo cultural. Suas próprias palavras: "As leis da linguagem retomam sempre sua potência", proferidas em relação aos impasses das relações de casal, da subjetividade moderna, dos comportamentos aditivos contemporâneos, servem também como um contraponto - e, quem sabe, dão uma tonalidade de esperança - ao quadro de miséria social e subjetiva que contemplamos. E não deixam de ser um alento para os Patrícia Nota Heterotopia (aglutinação de hetero = outro + topia = espaço) é um conceito da geografia humana elaborado pelo filósofo Michel Foucault que descreve lugares e espaços que funcionam em condições não-hegemônicas. Patrícia Nota deparamo-nos com o significante-mestre, o qual é representado pela sua qualidade denullcomando e, portanto, de unicidade. (QUINET, 2009). Além disso, podemos compreender onullS1 como aquele significante da primeira experiência de satisfação, a qual nunca pode sernullretomada de forma plena. Tal impossibilidade é negligenciada, visto que há uma repetiçãonulldo S1, o que configura o S2 (http://www.psicanalise.ufc.br/hot-site/pdf/Trabalhos/33.pdf) Patrícia Nota é representado pela busca infindávelnullda primeira experiência de satisfação, busca esta constituinte da própria cadeia de nullsignificantes, isto é, o saber inconsciente (QUINET, 2009 Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Introdução 9 psicanalistas, à medida que enfatizam a relevância do lugar da psicanálise para o campo social. Foram momentos únicos da história da psicanálise no Brasil, que podem agora ter um registro e uma maior difusão, a pm1ir desta iniciativa conjunta da CMC Editora e das instituições promotoras do evento: Associação Psicanalítica de Curitiba e Biblioteca Freudiana de Curitiba 1 • O que se lerá a seguir são as palavras pronunciadas neste seminário, após um trabalho de transcrição e edição de texto. Procurou-se respeitar as escansões das intervenções, dividindo-as segundo os intervalos que aconteceram. Foram propostos títulos, de acordo com a seqüência da fala e a ênfase colocada por Charles Melman nos pontos abordados, a fim de melhor situar o leitor. Como cm toda transformação de linguagem, como já dizia Freud, há uma mudança de registro. I ~ essa transferência, como dizia Lacan, carrega um impossível, o que implica que --de um registro a outro----- há uma perda. Entretanto, nosso esforço foi grande no sentido de tentar pem1itir, ao leitor, uma transposição para essa atmosfera de troca, de cordialidade e de humor sutil que Charles Melrnan soube promover com sua vinda, pondo em ato um estilo de transmissão comprometido com os acontecimentos, no qual a prática da psicanálise adquire novo vigor. Leda Mariza Fischer Bemardino2 Patrícia Realce Patrícia Realce 10 Apresentação Novas formas clínicas no início do terceiro milênio Tenho a honra de estar ao lado de Charles Melman, um dos mais conhecidos psicanalistas da França, autor de uma obra imensa, na qual percorre praticamente todos os aspectos da psicanálise. Seus textos nos têm servido de guia, especialmente para pensar as misérias da modernidade e da atualidade. Quero lhe agradecer vivamente por estar entre nós e agradecer, da mesma forma, a nossos colegas que aceitaram o convite para estes três dias de trabalho e de debate, nos quais seguramente surgirão idéias que irão revitalizar sobretudo a nossa prática clínica, mas também a discussão dos impasses políticos e sociais que nos interpelam, queiramos ou não. Um bom trabalho para todos nós! Dayse Stoklos Malucelli3 Patrícia Realce ll A Biblioteca Freudiana de Curitiba e a Associação Psicanalítica de Curitiba desejam-lhes as boas vindas, com a esperança de qµe estes três dias de trabalho com Charles Mclman criem um campo propício à troca de experiências. Um bom dia também a nosso convidado, por nos brindar com sua presença. Charles Melman é amplamente conhecido através de suas obras, orais e escritas, entre as quais se destacam os já clássicos Novos estudos sobre a histeria, Estrutura lacaniana das psicoses, Novos estudos sobre o inconsciente e outros. Foi colaborador próximo de Lacan e ocupou a direção de ensino da École freudienne de Paris, sendo membro fundador da Association lacanienne internationale e da Fondation européenne pour la psychanalyse. A trajetória de seu percurso dispensa apresentações,já que ela se encontra inscrita na história das últimas décadas da psicanálise freudiana e lacaniana francesa e internacional. Desejo, sim, destacar do ensino de Melman, o compromisso com a descoberta freudiana e Jacaniana, na qual ele, corno poucos, soube reformular a pergunta: O que é a Psicanálise? Saber de psicanalista que emana da prática e que faz dela ética de um estilo. Deixo então a palavra a Charles Melman para que nos fale da singularidade atual do iITemediável mal-estar na cultura. Maria Angélica Carreras4 Patrícia Realce 12 Notas Novas formas clínicas no início do terceiro milênio 1 Agradeço a Rosane Weber Licht, minha colega da Seção de Publicações da APC --Associação Psicanalítica de Curitiba, pela dedicação na execução e organização das transcrições, bem como aos colegas da BFC - Biblioteca Freudiana de Curitiba que trabalharam na transcrição de uma parte do material: Ana Maria Zanetti, Antonio Brunetti, Ângela Dai 'Vesco, Gustavo Volasco, Tâmara Enns, Ruth Pacheco e Alicia Tuaf. A revisão ortográfica foi realizada por Rosane Weber Licht (APC), Dayse Stoklos Malucelli (APC) e Maria Angélica Carreras (BFC). (N. de Lcd:1 Mariza Fischer Bernardino) 2 Psicanalista,Associação Psicanalítica de Curitiba. (N. da Revisão final) 3 Psicanalista,Associação Psicanalítica de Curitiba. (N. da Revisão final) 4 Psicanalista, Biblioteca Freudiana de Curitiba. (N. da Rcvisüo final) Parte 1 Os desafios da psicanálise diante da mutação cultural em curso Agradeço vivamente às minhas duas amigas e devo dizer que me sinto em uma posição de devedor com essas colegas diante dos senhores. Primeiramente, devedor para com os colegas que tive o prazer de encontrar aqui e que aprecio já há muitos anos: os colegas vindos de Recife, de Salvador, do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. Para mim é um grande pra- zer reencontrá-los aqui. Sinto-me tamb6m devedor diante dos inúmeros jovens que se encontram nessa sala e que ainda não tive o prazer de conhecer. Acredito que para eles é imp011ante saber se a psicanálise é capaz de responder aos novos desafi- os colocados pela transformação cultural à qual assistimos. O desafio é muito simples: consiste cm saber se so- mos capazes de preservar aquilo que é a característica da hu- manidade, isto é, a possibilidade de análise, reflexão e escolha de suas condutas, em uma mutação cultural que se apresenta imperativa em relação às condutas e deixa pouco lugar à escolha e à reflexão. Portanto, o desafio que se apresenta à psicanálise não é pequeno e vai depender de todos nós saber se somos ou não capazes de responder a isso. Como os senhores sabem, Freud falava de um mal-f estar na cultura e atribuía-o ao excesso de recalcamento sexual. ) Os senhores sabem, ele falava de um recalcamento originário Patrícia Realce 14 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio \ -J!..0~~1".c(riingunff - que queria dizer que quando a criança l entrava no mundo, era levada necessariamente a sofrer o / recalcamento do que podia nela ser sexual. Em outras palavras, !':!. çriança era levada a contribuir, de maneira secundária, com esse recalcamento originário. O que quer dizer isso, que havia um recalcamento originário? Isso quer dizer que, na _!l_ossa cultura, o sexual não era exibido, havia essa dimensão que se chamava pudor. Mas, em contrapartida, o sexual fündamentava tudo o que era significado. Além de todos os bens materiais que eu poderia evocar, havia a dimensão do sexual que viria relativizar todos esses bens. A esses significados Freud havia chamado de libido. O escândalo provocado por Freud foi dizer que se pode1ia falar de qualquer coisa, na realidade era sempre de sexo que se tratava,já que o sexual o falo, na teoria de Lacan -· organizava todo o significado. Nesse 1~1al-estar na. cultura, do qual Freud falava, o que operava era sempre o limit.e. Havia o mundo das rçprcscntações, onde o sexo era escondido, dissimulado pelo nudor, e então havia este limite, que seria necessário transpor p~ra se ter acesso ao gozo sexual. , Como os senhores sabem, a função do pai; - Lacan formulou isso com muita precisão- era de autorizar o sujeito a Jranspor esse limite e a dizer: "o gozo sexual é bom, ele está fora do limite, mas é bom". E isso era a função paterna. O que quer dizer que quando o pai vinha interditar a seu filho a mãe, ~le introduzia o filho no desejo sexual colocando esse limite, e~e interdito, mas também lhe dizendo que além desse limite, Q gozo sexual é bom. Fre_1:1~ dizia que a neurose estava ligada ao excesso de r~calcamento. J?e onde poderia vir esse excesso de recalcamento? Esse excesso de recalcamento não vinha senão de uma coisa: da idéia de que, se para participar do mundo das Patrícia Realce Patrícia Nota libido Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte I 15 representações, se para ser admitido no campo das represen-. tações, era necessário aceitar recalcar o sexual, então o sujei- _to era levado a pensar que deveria sacrificar o sexual, seja para Deus, ou, talvez, para um pai imaginário, mas que, elr! ~odo caso, era amado por Deus ou pelo pai quanto mais sacri- ficasse o sexual. Os senhores notem em relação a essa proposta, que há em Lacan uma dissociação entre Deus e o pai real,.aqu.ele que está no lar.e que possui a mãe,.Eü;_~qui o mal-estar na. çultura que Freud isolou. Ele estava convencido de que, para ~~n:ar a neurose contemporânea, seria preciso se autorizar a s.cxualidadc. Para ele, a _realização da genitalidade, associada $ reprodução, constituía a norma, ou, dito de outro modo, ele p~nsava que havia uma norma de conduta humana. E ele a via nessa realização completa da genitalidade associada à reprodução. Freud, cm sua vida privada, foi muito fiel a essa norma: ele teve muitos filhos e sua esposa não estava muito contente com o que ele chamava de "a nom1a". Há uma carta dele a seu amigo Fliess - nesta época ele tinha mais ou menos 40 anos-·- na qual ele diz que, para ele, a atividade de procriação estava naquele momento concluída. Então, os senhores vêem que Freud tinha uma concepção bastante estrita e restritiva daquilo que chamava de "norma sexual". Portanto, Freud estava convencido de que a consumação do ato sexual entre um homem e uma mulher era a condição da felicidade, com esta pequena restrição: seria preciso, de certo modo, pagar o preço dessa relação, aceitando o filho que era capaz de fazer vir ao mundo. Como os senhores sabem, é, entretanto, com a realização da vida sexual que começam as verdadeiras dificuldades. Toda clínica nos mostra que é na realização da vida sexual, conjugal, genital, que começam os aborrecimentos Patrícia Realce Patrícia Realce 16 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio do homem e da mulher, e que suas vidas sexuais são domina- das pelo sintoma, pelo fato de que nunca é como deveria ser. Já Lacan, em relação a isso, foi mais longe, com uma expressão decisiva, que daqui a pouco, entre nós, explicaremos: "Não há relação sexual". Ali onde Freud termina!ma obra, dizendo: "há uma felicidade possível entre um homem e uma mulher", Lacan diz: "é aí que os verdadeiros aborrecimentos começam". É importante para nós sabermos por que, pois podemos pensar que a mutação cultural que está ocorrendo tenta responder à falta de relação sexual, tenta curar esse sintoma. Então, se os senhores quiserem, vamos passar alguns minutos tratando desse problema. Primeiro elemento de escândalo: um homem e uma mulher, em nosso dispositivo cultural, não são feitos um para o outro? l'.'. um escândalo. Por quê? Vamos corne<,;ar com o que acontece para uma mulher. Freud já tinha observado o seguinte: o que uma mulher demanda a seu marido, é o que sua mãe não lhe deu. Não é o que concerne ao homem, é o que concerne ao que sua mãe não lhe deu, o amor que ela não lhe deu. E esse amor tem um signo: o falo, ele se chama falo. Por que sua mãe, em testemunho de amor por sua filha, não lhe deu o falo que ela supõe que sua mãe tem? Ela tem, por exemplo, aquele do pai. E por que ela não dá nada a sua filha? É por isso que aquilo que a mulher vai demandar a seu marido é que lhe dê esse instrumento que a mãe não lhe deu. Ela quer que esse instrumento seja como se fosse o seu próprio, que ele esteja a seu inteiro dispor. Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte I 17 Eu não sei se os senhores viram, no Brasil, um filme japonês que se chama "O Império dos Sentidos". É um filme que mostra um fato que aconteceu no Japão, nos anos 30, e que conta a histó1ia verídica de uma mulher que amava muito seu amante e que, com ele, tinha relações sexuais muito felizes, apaixonadas. Ela o adorava, só pensava nele, queria-o inteiramente para si, não podia separar-se dele. Não podia suportar que houvesse uma distância entre os dois, o que fez com que um dia, nessa paixão amorosa- aqueles que viram o filme conhecem a história-, ela pegue uma faca e retire-lhe o sexo, para tê-lo em seu bolso. Esse sexo tão amado, tão desejado, cm seu próprio bolso. Ela foi encontrada pela polícia vagando pelas ruas, completamente perdida, desorientada, e em seu bolso foi encontrado o sexo maravilhoso de seu amante, envolvido em um pano. Acontece que esse filme, por muito tempo, foi proibido na França, e houve uma apresentação privada. Lacan 1 convidou alguns de seus alunos para ver esse filme. Então, tive a oportunidade de vê-lo com ele. Estava totalmente claro que, para ele, esse ato da mulher representava a realização de seu fantasma2 , do fantasma próprio ao amor e ao desejo de uma mulher. Só que, como sabemos, esse ato pc1111anece como excepcional em sua realidade física, não é dos mais freqüentes. Em sua realidade imaginária é outra história. Mas em sua realidade fisica, ele é raro. O que faz com que -à medida que uma mulher tem o sentimento de que o homem que ela ama e deseja não é capaz de colocar inteiramente à sua disposição o signo de amor que ela deseja - ela fique obrigatória e regularmente ciumenta, já que tem sempre o sentimento de que há algo - é muito fácil pensar que é uma outra mulher, ou que é ele que não quer se resolver a agir-, e nesse momento ela fica com ciúmes dele. É deste modo que o ciúme feminino é um componente Patrícia Realce 18 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio comum da relação conjugal. Portanto,já vemos que para uma mulher a consumação genital deixa uma insatisfação. Agora, vamos ver as coisas pelo lado do homem. O problema para um homem é que quanto mais ele ama sua mulher... Eu ainda vou dizer mais duas coisas escandalosas, mas se os senhores não estiverem de acordo, podemos discutir e então vão me mostrar se estou errado. Eu só peço para estar errado, estou pronto para ser convencido do contrário. Mas, o problema para o homem é que quanto mais ele ama sua mulher, mais deseja outra. Isso é um verdadeiro escândalo. Por que será que somos construídos dessa maneira? É a isso que Lacan tenta responder. Somos construídos lk:ssa forma, porque a estrutura do fantasma em um homem e do desejo cm um homem ·- os senhores conhecem a esc1ita que l ,acan dú ao fantasma: $<>a-, quer dizer que é de ser sempre ai imcntado por uma outra coisa. Em outras palavras, quanto mais a mulher que ele ama e adora está próxima, quanto mais for familiar, mais ela perde seu caráter de alte1idade, mais é amada e menos desejada [Ah·oroç·o do público]. Os senhores se interessam por isso? Sim, é rreciso se escandalizar! Ú por isso que a mulher amada sempre fica surpresa ao ver o olhar de seu marido fixado em uma outra ... Uma outra! O que está cm causa aqui é o problema do Outro da outra. Portanto, se obse1vamos a clínica da vida conjugal poderemos ve1ificar corno ela é dominada pelos sintomas e pelos esforços que são feitos pelo homem e pela mulher para que tudo fique bem entre eles. Eles se acusam a si próprios, antes de acusar o cônjuge, por não serem capazes de viver o ideal da conjugalidade. Os senhores perceberão que o que estou lhes dizendo esta manhã, e admiro-me que suportem isso, não se conta para muita gente. Mantém-se isso justamente sob o recalcamento. Então, há um segundo elemento que deve, creio, nos revoltar. Se eu estou falando tudo isso é para compreender o Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte I 19 caminho de Lacan e porque ele buscou uma saída possível do sintoma, que não fosse o segundo mal-estar na cultura, ao qual assistimos, e do qual falarei. Segundo elemento de escândalo: o que causa o desejo no homem e na mulher, não é uma pessoa, é um objeto Isso é completamente estranho no reino animal, no qual nunca se viu um objeto poder ser causa do desejo. O que é um objeto? Será que - aqui juntos vamos discutir todos os conceitos --- não vamos considerar que eles sejam de domínio público, que os compreendamos e que sejam fáceis de compreender? Quando leio a palavra objeto, pergunto: o que é um objeto? Como os senhores definem um objeto? Para me ajudar, será que os senhores têm um início de resposta? Têm? Fala-se o tempo todo de objeto, mas o que é o objeto? Os senhores sabem que os romancistas, quando descrevem os objetos familiares, sempre lhes emprestam uma subjetividade. Por exemplo, quando tem uma chalÇ.irn no fogo, eles dizem: a chaleira ronca, ou a chaleira apita, ou a chaleira treme. T~illQ-~ÇJn_pxe.aJendência para emprestamos objetos. Lima subjetividade e muita dificuldade em pensá-los como_ desprovidos de alma. Pouco importa a razão, não é iss_o que, nos interessa aqui, senão que, no fantasma, o objeto é precisamente o que renunciou a toda subjetividade. A manutenção da subjetividade constitui um limite à consumação do gozo. Pois bem, no fªl)_1ª§.mª.,_Q_g)?j~!o é q_ q_~_~_r~mJ.ncioµ.a tQ.Q-ª_§!,(bj_~tividade e, portanto, a todo limite colocado ao g9z.o. É o que explica a pppµlaridade do fantasma sádic_o: tratar o parceiro, ou ser tratado como um objeto, não como um sujeito. Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce 20 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio Essa dimensão é, igualmente, um elemento de escân- dalo na realização sexual. É bem comum que uma mulher rei- vindique ser tratada como um sujeito e não como um objeto. Ela tende a achar que é degradante para ela ser tratada como um objeto, e tanto quer se afirmar como ~ujeito que faz ouvir a reivindicação, que é sempre o próprio de um sujeito, porque o sujeito se caracteriza sempre por uma demanda, pelo testemu- nho de uma insatisfação. Um sujeito não se mantém na ex- sistência senão com a condição de estar insatisfeito. Permito-me lembrar que o que estou dizendo aqui continua sendo a escrita de Lacan em relação ao fantasma. Quer dizer que$, o sujeito, não se mantém na ex-sistência senão com a condição de que o objeto a seja mantido à distância. Se o sujeito do desejo for perfeita e totalmente pn.:cnchido pelo objeto a, ele desaparece como sujcito. Foi u quc aconteceu com essa mulher que teve esse gesto com seu amante. Ela consumou seu fantasma e estava despersonalizada, pcrdida, ncm mais sabia sua identidade. P,2.rt~mt_o, o sujeito somente sc Q..11!.ntém com a condição de pemianecer insatisfeito. O que quer dizer simplesmente que quanto mais uma mulher tenta Jt1zer reconhecer sua ex-sistência de sujeito, mais é votada a ser insatisfeita. E, como sabemos pela clínica, é o caso mais comum. Portanto, os senhores vêem que há algo errado na nossa organização sexual, uma disfunção, um erro. Temos que levar isso em consideração para interpretar os fenômenos culturais a que assistimos. Tomemos uma situação favorável, por exemplo, aquela do marido que é um bom rapaz. Há muitos bons rapazes! Isso sempre me surpreende! Ele quer satisfazer a demanda de sua mulher, quer que ela seja feliz, sente-se culpado por não poder assegurar sua felicidade. Portanto, vai agir com ela como se estivesse inteira e efetivamente a seu dispor e como se seu próprio sexo fosse também dela; pl'lo Patrícia Realce Patrícia Realce Parte I 21 menos, que ela tivesse perfeito domínio desse sexo. Ele não tem chance de êxito, P,Q!:9,_ll:e a demanda feminina não é tanto de ter o objeto, mas de poder, como o homem, ser marcada por_ un1a castração, quer dizer, ser definitivamente p1ivada do objeto causa do desejo. O que ela quer não é tanto o objeto, mas a ÇQJ_1stituição, para ela, de uma falta de objeto. E os senhores sabem que quanto mais o marido tenta satisfazer sua mulher, mais é complicado para ela. Há uma bela análise que Lacan faz desse problema, que concerne a um sonho citado por Freud em Die 1,·aumdeutung3. É o sonho da "bela açougueira". Uma mulher, que é bela e casada com um açougueiro, que é f01ie, um belo homem, muito rico; ele quer que sua mulher seja feliz. Ele lhe dá tudo que uma mulher pode desejar. E essa mulher sonha. f~.soniJ.9 ela tem?_EJa. tem sonhos de insatisfação: é isso que ela poderia querer, isto -·-·-- ...... é, que seu próprio desejo estivesse estruturado por urna ir1_~a!jsfação fundadora, como é o caso para o homem. Eis aqui, portanto, um lembrete para nos esclarecer de que maneira Freud -- a quem creio que todos amamos, respeitamos, e que é genial - fechou a psicanálise em um impasse, fazendo da felicidade genital, associada à procriação, a culminância da nonnalidade. É por isso que aprendemos a considerar a..12r_~§egça do sintoma como central na vida sexual. Esse arranjo mal feito entre o homem e a mulher, esse fato -- como diz Lacan - de não haver relação sexual, agora entendemos sua expressão: porque a relação da mulher é feita com o falo, que é o que lhe interessa. E a relação do homem é feita com o objeto a, que estrutura o fantasma. Nem um nem outro podem encontrar-se porque eles não estão falando da mesma coisa, não têm o mesmo objeto e nem a mesma estrutura lógica. Eles assistem ao mesmo espetáculo e não vêem o mesmo filme. Cada um vê o filme à sua maneira. E os senhores sabem que quando acontece -por Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce 22 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio exceção ... -que um homem e uma mulher briguem, ninguém entende o que o outro está falando, as acusações do outro; tem-se sempre o sentimento de que se está falando com um outro. Quer dizer, nenhum deles têm o sentimento de ser reconhecido em sua ex-sistência, de ser reconhecido como sujeito,já que para um e para outro é um objeto que causa o desejo e que dá o preço ao corpo do parceiro. Proponho que agora possamos discutir. Notas 1 l ,acan laz referência a essa sessão de cinema, para a qual convida algulllas pessoas, no Seminário 23, Le sintlw111e, lição de 16.03.1976 (inédita). (N. da Revisão final) " Em francês .fú111as111e. "Fantasma" é uma escolha que visa a diferenciação tanto da fantasia klciniana quanto do sentido comum de fantasia, como devaneio, aludindo a algo que não se situa no campo do conhecimento, ainda que outros prefiram "fantasia", equivalente quase perfoito do termo alemão Plwntasíe. (N. da Revisão final) · 1 S. Freud, A i11teqJretaçâo dos sonhos, 1900a, no capítulo sobre "A deformação dos sonhos". O sonho referido por Freud como do "salmão defumado" é retomado por Lacan em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", no capítulo 5, "É preciso tomar o desejo ao pé da letra", em Escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar, 1998. Mas é no seminárioAs.fbrnwç<Jes do inconsciente, na lição de 09.04.1958, que Lacan batiza esse sonho de "o sonho da bela açougueira", retomando-o inúmeras vezes ao longo de seu ensino. (N. da Revisão final) Parte II Respondendo perguntas sobre: feminilidade, Internet, objeto a e falo, miséria social, posição do psicanalista L. Cardon: A primeira questão: queria entender sua posição cm relação à leitura de Frcud,já que aquilo que o senhor mencionou a n.:speito da normalidade, cu situaria antes ao rcuor de 191 O, cm especial no m1igo "O porvir da terapia analítica" 1, no qual Freud nos convida a uma resistência à hipocrisia social, em urna posição muito diferente da que tomará a partir dos anos 20, especialmente a pat1ir 1923, com as questões do falo e da sexualidade feminina. Esse seria um dos aspectos a ser discutido. A segunda diz respeito a algo dessa linguagem diforente, visto que atualmente vemos uma menor relação entre os sexos e uma maior relação com os computadores, e, mais do que nunca, as piadinhas que circulam na Internet tratam da diferença dos sexos. Como terceira questão, pergunto se sua interpretação do filme mudaria em algo se eu lhe recordasse que a partir da encenação das perversões e dos atos sexuais, os amantes passam a uma relação do orgasmo com a m01te, culminando com a morte do homem e o encontro dela pela polícia, nua, Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce 24 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio pintada de sangue e com o pênis na vagina! Ch. Melman: Agradeço sua pergunta. A posição de Freud sobre a sexualidade é muito clara cm sua notável obra de 1915, que é a Introdução à psicanálise~. Nessa obra ele busca uma sistematização da psicanális~ e diz muito bem que o sintoma está ligado à manutenção, no sttjeito, de uma sexualidade infantil, portanto perversa, e que se ele tem acesso à genitalidade, chega à normalização e portanto, à queda do sintoma. Por outro lado, no texto de Freud sobre a feminilidade --- que, creio, é mais tardio, creio que é de 19253 -, ele sustenta uma concepção da mulher que é muito difícil de aceitar; não por razões éticas, mas por razões clínicas. Efetivamente, nesse texto ele faz da mulher um menino que renunciou a uma pane de sua virilidade. Ele faz dela uma criatura que é fundamentalmente idêntica ao homem, mas que aceitou renunciar a uma pa1te de sua virilidade, e ele diz bem que não é a toda virilidade, é a uma parte da virilidade, para aceitar um gozo vaginal. Então, em relação a isso, todo esse texto mostra a dificuldade que Freud tem para tratar essas questões. O que o senhor levanta em relação à Internet é efetivamente um fenômeno muito importante, o qual serei levado a retomar, se puder. Para dizer uma palavra imediatamente em relação a isso, o que permite essa comunicação generalizada, como as pessoas poderiam se entender, se posso falar assim, quando se realiza uma comunicação generalizada desse modo? O que há de comum entre todos os interlocutores da Internet? Com efeito, para podermos falar juntos, é necessário termos algo em comum, caso contrário não podemos nos entender. O que têm em comum esses interlocutores da Internet? Se me permitir, vou abordar esse assunto mais tarde. Em relação ao que o senhor evocou sobre o filme, tem razão de dizer que há um gozo com a morte, quer dizer, por Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte li 25 exemplo, manobras da mulher de estrangulamento do homem durante as trocas sexuais. Mas será que não poderíamos reconhecer - com base na fóm1ula do fantasma que Lacan nos dá - que aquele que quer ir ao ponto final do gozo, quer dizer, ao ponto em que ele consiga pegar o objeto a, ele efetivamente se expõe à morte, quer dizer, ao desaparecimento do sujeito da subjetividade? É o problema da pulsão de morte que, como sabemos, Freud quis separar da pulsão libidinal: colocar Eros de um lado e Thanatos de outro. É uma posição muito estranha a de Freud. O mínimo que se pode dizer é que ela nos aproxima das filosofias orientais tradicionais. O que Lacan tenta mostrar, com a escrita do fantasma, é que a pulsão de m011e é interna à pulsão libidinal. A. Jerusalinsky: Não estou seguro de que hoje a maior freqüência seja de escutar a mulher reclamar ser tratada como sujeito. Ch. Melman: Tudo depende dos lugares que você freqüenta ... A. Jerusalinsky: A afluência às academias de ginástica, à cirurgia estética, denota um viés do sintoma no qual há uma demanda de ser tratada como objeto. Conhecemos a popularidade erótica do personal trainer. Nesse ponto, a mulher é mais sintônica com a atual tendência do discurso de situar o sujeito diante de uma produção supletiva, do objeto como assegurador do laço, a mulher parece estar mais inclinada a reclamar - ao mesmo tempo - ser tratada como sujeito e como objeto, ou seja, como "toda". Daí a desorientação dos homens. Ch. Melman: Alfredo, você tem razão. É verdade que nós nos engajamos efetivamente nesse estilo. Porém, percebam o seguinte: vemos cada vez mais escritoras. Em Paris, temos um amigo que durante muito tempo ocupou uma função de editor, e ele me falou de sua surpresa em constatar que na Patrícia Realce Patrícia Realce 26 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio primeira parte de suas vidas, as mulheres se ocupavam de seus filhos e na segunda parte de suas vidas elas se ocupavam de seus livros. O que uma mulher vai buscar nessa escrita? Penso que é algo bastante simpático e creio ser a tentativa de c1iar uma subjetividade especificamente feminina. Um ponto de vista em relação ao mundo que seria especificamente feminino, uma escrita que permitiria que se reconhecesse imediatamente a feminilidade. O ser feminino, que 6 obrigatoriamente enigmático, encontrmia sua realização na manifestação de uma subjetividade específica. Esta é a objeção, se você aceitar, totalmente parcial, que eu faria em relação à sua observação, com uma questão que vou abordar daqui a pouco: será que há uma subjetividade feminina? Sabemos que essa questão é muito antiga, pertence à tL:ologia, e as discussões de teólogos a esse respeito s:10 muito cultas. Parece-me interessante que tenhamos sempre as mesmas questões, e depois, na continuidade, veremos de que maneira podemos, creio, respondê-las. T. Nazar: O senhor fez uma referência à quest~1o da mutação cultural dos novos tempos e pergunto qual a relação dessa mutação cultural -me parece que tem a ver com o próprio movimento do processo de civilização e que seria talvez na direção de uma destruição da experiência de discurso, que é a experiência do sujeito -- com o surgimento de novas formas sacrificiais? Ch. Melman: Você tem toda razão, mas o que veremos justamente é de que maneira a mutação cultural lenta resolver esses sintomas que estou evocando. Creio que esse é o preço dessa mutação cultural e por isso não podemos tratú-la apenas com uma espécie de recuo apavorado. Veremos, efetivamente, que essa mutação cultural implica outros sintomas. Como acontece sempre: o que, por um lado, cstú curado, por outro, passa a ser sofrido. E tentaremos vcr,juntos, Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte II 27 quais são os tipos desses novos sintomas com os quais temos que lidar. M. do Rio Teixeira: O comentário do senhor sobre a não relação sexual me fez lembrar seu seminário publicado sob o título: Livre co111pag11on de R S14, no qual distingue dois tipos de desejo: um suscitado pelo objeto a e o outro suscitado pelo falo. Parece-me que o senhor não usava essa expressão, mas eu entendi que o desejo suscitado pelo objeto a seda mais arcaico. Sempre tive dificuldade em entender essa distinção, apesar de achar que havia algo aí, mas não encontrava muitas pistas na teoria. Tive a surpresa de ver em outra conferência sua, mais recente, novamente uma referência a essa distinção entre o objeto a e o falo, desta vez entre dois tipos de gozo, na qual o senhor frisava bastante essa distinção. Peço-lhe, se possível, para aprofundar essa distinção entre dois tipos de gozo e dois tipos de desejo, um do lado do falo e outro do objeto a. Ch. Melman: Se somos racionalistas, ternos um ~ fenômeno a explicar: por que, no reino animal, somos os únicos cujo desejo é constituído pela perda do objeto essencial e mais caro? Por exemplo, para urna criança, o fato de ter que renunciar à sua mãe. Então, insisto, se somos racionalistas lemos que primeiramente explicar esse fenômeno que não tem nada de natural. Na natureza nunca vemos isso. Então, quais são os mecanismos que nos condenam a uma experiência tão complexa e infeliz? Freud respondeu a isso colocando o complexo de Édipo no centro dessa organização. Mas, Freud tem uma grande dificuldade em passar do gozo infantil e perverso-que concerne sempre a um objeto - ao gozo genital que vai concernir a uma pessoa. Ele passa por isso rapidamente, mas percebemos bem que ele não consegue fazer junção entre um gozo objetal - que a teoria chamou de gozo parcial - e a escolha de uma pessoa. Por outro lado, a temia freudiana coloca a culpa no pai. Nossa Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce 28 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio infelicidade sexual é o que nós devemos ao pai. E temos o direito de pensar que o descrédito atual da figura paterna não é . estranho à difusão do freudismo, vemos o resultado disso na clínica. É que o descrédito da figura paterna não ajuda de maneira alguma os adolescentes, os jovens, a encontrar sua identidade sexual e a realizar sua consumação genital. Lacan procede de modo bem diferente e isso é desenvolvido no texto que ele colocou no início dos Escritos, o "Seminário sobre 'A carta roubada "'5. O que é que diz Lacan? Ele diz: o jogo da linguagem irnplicaaquedaregulareordenada de uma letra. E à medida que o jogo dos significantes remete a um puro nada, esse nada vai ser habitado pelo cmvo dessa letra. O que povoa o Real é a letra, que vem, portanto, dar corpo ao objeto possível de um gozo. Por que possível? E qual é a função do falo nessa operação? O falo, como instância una, como tra~·o unúrio na teoria de Lacan, cuja repetição jamais permite faltar o ol~jcto; 6 esse traço unário, o falo, que pode dar valor sexual a esse objeto a, porque esse objeto a, cuja queda está ligada a fisiologia da linguagem, pode muito bem não ter sentido nenhum, pode não ter nenhum valor sexual. I lá, então, de ce110 modo, uma cumplicidade entre falo e objeto a, para dar primeiramente sentido sexual a esse objeto que a cadeia significante busca, sem nunca encontrá-lo; porque um significante só remete a outro significante. É o objeto a que vai constituir o corpo do objeto do desejo, a causa do desejo e o que lhe dá um corpo. O desejo é instaurado pelo foto de a cadeia significante remeter ao que escapa sempre, e que 6, p011anto, o nada, mas no lugar ocupado por esse nada, o desejo encontra este objeto singular que é a letra, que é o corpo do gozo, o corpo real. Há pouco, respondendo a Alfredo Jcrusalinsky, mencionava essas mulheres que investem na escrita, mas é Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte II 29 verdade que há um gozo da letra, da letra como tal. Nesse "Seminário sobre 'A carta roubada"', Lacan evoca o caráter feminilizante da _letra: naquele que é habitado pela letra, que tem a letra como objeto principal de interesse, sente-se um efeito de feminilização. E também poderia lembrar- lhes de que maneira, na religião hebraica, para nossa grande surpresa, o objeto sagrado é a letra. A letra como organizadora da ordem e da constituição do mundo. Os senhores sabem que na religião hebraica é proibido destruir uma letra. Creio que, com essa resposta, pude lhes dar uma idéia desta relação estranha entre o falo, que se escreve como 1, e a letra, que se escreve como a, e com a impossibilidade lógica de jamais fazê- los se reunirem. O que representa muito bem a letra é a seqüência dos números reais -- números csc1itos entre O e 1. Os senhores sabem que podem ir tão longe quanto quiserem nessa escrita, mas nunca vão conseguir juntar o 1 e a seqüência de números reais. Os senhores podem escrever 0,999 ... , quantos noves quiserem, nunca vão chegar ao 1. E isso é uma imagem para fazê-los sentir a heterogeneidade essencial entre o traço unário, o I e o objeto a. Pergunta: Questão ligada ao mal-estar na cultura atual, particularmente relativo à pobreza e ao modo de constituição <las famílias, com muitos filhos e diferentes pais. Ch. Melman: Estou contente de ver que os jovens que eu não conheço, me ouviram muito bem, e vou dizer porque. É um fenômeno geral que nos países ou nas zonas mais deserdadas a natalidade seja maior e também, freqüentemente, o número de mulheres. Infelizmente, as razões para isso são simples. Por que esses homens a quem o estatuto social não reconhece, que são desprezados e não têm outros meios de verificar sua dignidade de homem senão tendo, justamente, filhos, e, eventualmente, muitas mulheres? É a única maneira Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce 30 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio que dispõem para verificar, aos próprios olhos, sua humanida- de. Portanto, digo que esse é um fenômeno de todo geral e, assim sendo, espero que todos sejamos sensíveis ao que é a miséria social. Mas há uma miséria mental, que é mais grave. Lacan tem uma fonnulação surpreendt::nte. Ele diz que aquilo do qual o trabalhador permanecerá servo, não é do mestre, mas do gozo, quer dizer, quando o progresso se inscreve ape- nas no número da produção de bens, podemos apreciar que a miséria social diminui, mas podemos temer que a miséria men- tal se agrave. E é por isso que a psicanálise está diante de um desafio: será que ela pode preservar o espaço de pensamento no qual um homem possa refletir sobre sua conduta, suas es- colhas, sua maneira de viver e não ser apenas um indivíduo feliz na massa? Hoje assistimos, ao lado da pobreza social, também à felicidade de massa, a gozos de massa, a prazeres de massa. Portanto, concordo plenamente com você, !alvc;1, sejamos a única disciplina - e fico meio preocupado de pensar nisso - que dispõe de conceitos para não ser inteiramente dominada por esses mecanismos. Teremos oportunidade, durante estas jornadas, de falar seriamente sobre isso. Pergunta: Questão ligada à banalização do discurso da psicanálise e à posição de não responder à cultura com o discurso psicanalítico, mas procurar falar mais entre psicanalistas sobre a questão da psicanálise. Ch. Melman: Concordo plenamente e posso dizer- lhe que a psicanálise não pode ser uma psicoterapia social. Ela não pode trazer remédios ou soluções em uma escala social e não pode de maneira alguma se apresentar como um guia de conduta social. Assim sendo, quando um psicanalista vem a público e respeita a psicanálise, esta tem urna vittude subversiva, uma virtude incômoda, que provoca m1icária. Era o papel que a filosofia tinha na Antiguidade, uma maneira de fazer com que Patrícia Realce Patrícia Realce Parte li 31 as pessoas tivessem um pouco de espanto em relação a sua existência. Se um psicanalista, que intervém em público, não tenta nem agradar nem seduzir, mas sim dizer frontalmente quais são suas posições, ele vai ser hoje um dos raros a poder manter uma oposição que não seja apenas leviana. Por exemplo, há movimentos de oposição à globalização, mas são movimentos levianos, quer dizer, que não têm suporte teórico capaz de sustentar uma reflexão e de justificar plenamente a oposição. Creio que, hoje, no momento em que nos prometem toda felicidade e todo progresso, a psicanálise é estranhamente a única a dizer: "não, assim a coisa não está funcionando". E penso que isso merece ser dito publicamente. Notas 1 S. Freud, 191 Od. (N. da Revisão final) 2 S. Freud, 1916-17a. (N. da Revisão final) 3 Charles Melman provavelmente refere-se ao texto de S. Freud, "Sexualidade feminina", de 1931. (N. de Leda Mariza Fischer Bernardino) Neste texto de 1931 b, Freud retoma suas postulações de "Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre sexos", l 925j, mas não faz qualquer referência ao ai1igo escrito seis anos antes. (N. da Revisão final) 4 Ch. Melman, lntroduction au séminaire R SI de Jacques Lacem, Paris, Association freudienne intemationale, 1991. (N. da Revisão final) 5 J. Lacan, Escritos, op. c:it. (N. da Revisão final) Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Nota explicação o que é leviano Patrícia Realce Parte III Existe um sujeito feminino? Hoje de manhã paramos em uma questão sobre a qual gostaria de dizer que, até hoje, não foi perfeitamente resolvida. É a questão de saber se existe um sujeito feminino. Como os senhores sabem, Lacan diz que um significante é o que repre- senta um sujeito para um outro significante. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que - contrariamente ao que fazem os lingüistas - Lacan não faz do significante o representante de um objeto como, por exemplo, Saussure. Ele também não faz do significante o meio de uma significação. O que diz Lacan, a partir de sua experiência psicanalítica, é que cada vez que en- contramos um significante- não um signo - estamos lidando com um sujeito; e que o significante é o que representa um sujeito para um outro significante. Os senhores conhecem esta escrita de Lacan: S1 é o que representa um sujeito para um outro significante. S1 e S2 não estão no mesmo espaço. Aqui [no quadro] eles estão no mesmo plano (S 1 ~ S2), mas na realidade, s, pertence ao campo das representações e S2 ao espaço do Real. Há, portanto, entre S1 e S2, uma diferença de Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce 34 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio espaço. Se$, o sujeito, é representado por um significante para um outro significante, é porque entre S1 e S2 há sempre um corte; esse corte que marca aqui o sujeito: $. Entre S1 e S2 há uma falha, e é essa falha que constitui o suporte do sujeito. Quando lidamos com significantes,_, é essa falha que eles representam. Mas os senhores podem dizer: sim, mas por que o sujeito nessa falha? Porque é dessa falha que se origina a fala, a enunciação. É a partir dessa falha que a voz ocupa seu lugar. Então, se um significante é o que representa o sujeito para um outro significante, qual é o sexo desse sujeito? Será que ele é masculino ou feminino? No caso habitual, esse sujeito,$, é n.:prcscntado por S1, por aquele que figura no campo das representações. S1 representa$ para S2, po1tanto, podemos dizer que se o sujeito é representado porS1, é um sujeito masculino. Mas, $pode ser representado por S2 junto a S1• Isto é, como sujeito, cu posso sempre querer que S2, que está do lado do Real - que está do lado que suporta a feminilidade -, entre no campo das representações e até mesmo o constitua. Isso quer dizer que o sujeito da fala não é nem masculino, nem feminino. Ele pode ser representado tanto por S 1 junto a S2 -·- e nesse momento valer como sujeito masculino --- ou por S2 junto as., e reclamar seu direito como sujeito feminino. Mas na estrutura é sempre o mesmo sujeito. Porém, a diferença de espaço entre S1 e S2 acarreta conseqüências clínicas importantes. Com efeito, se o $ é representado por S1, pelos significantes que fazem parte do campo da representação e que são, portanto, organizados pela castração - já que tudo o que para nós pertence ao mundo da representação é marcado pela castração-, ele encontra nesse lugar que constitui a castração, no limite que ela constitui, a autoridade que fundamenta sua argumentação. No campo da representação - evoco para aqueles que têm familiaridade com Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte III 35 a teoria lacaniana - há sempre esta exceção, este "ao menos Um", que constitui o referente que dá, então, autoridade ao sujeito que se autoriza desse significante. Do lado de S2 estamos em um campo onde não há castração. O sujeito que tenta se fazer reconhecer como feminino, a partir de S2, não encontra a autoridade que fundamenta sua palavra e sua existência. É por isso que, em geral, o sujeito que tenta fazer ouvir uma voz feminina, isto é, que quer ser representado por S2 e que não encontra nesse espaço um referente que lhe dê autoridade, é obrigado a elevar a voz, a gritar, a insistir. Ele busca a todo preço fazer reconhecer uma existência feminina- um sujeito feminino--- mas que não tem referente para lhe dar autoridade. Temos aí o dispositivo que leva em conta a dificuldade do diálogo entre um homem e uma mulher. Porque os significantes que o homem reivindica para si, com os quais se autoriza, adquirem seu poder em referência a esse "ao menos Um", a quem é atribuído o fato de ter causado essa castração. Dito de outro modo, o ho1m:rn pode dizer qualquer coisa, ele sempre tem razão. [Neste momento, ouve-se o estrondo de um trovão. O público ri.] Não se deve cutucar os deuses. Uma mulher pode dizer coisas excelentes, mas não há autoridade que fundamente os significantes que ela reivindica para si. Há ainda uma grande diferença em relação à qual chamo a atenção dos senhores: é que do lado masculino, há uma lógica potencial que está em ação. O que isso quer dizer? O que quer dizer uma lógica? Uma lógica quer dizer que, em uma seqüência de signos, há um dado momento no qual um signo, um elemento não é admissível, deve ser rejeitado, é falso. Todas as lógicas são constituídas por um dispositivo dessa ordem, que mostra que, em um dado momento, há um signo, um elemento que é rejeitado. Quer dizer que, do lado masculino, há uma validação 36 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio do "sim" e do "não"; do "é isso" e do "não é isso". Do lado feminino, onde a castração não funciona, nesse campo onde se acha S2, o "sim" e o "não" não são logicamente fundamentados. Quer dizer que uma mulher tem a tendência de não dar muito crédito ao encaminhai:nento lógico da fala, ela pode fazer com que propostas contraditórias se sigam uma às outras. E ela não está errada, porque de seu lado é correto. De seu lado não há um elemento caído que venha a suportar o que é interdito, o que não é possível. Portanto, como os senhores vêem, a questão do sexo do sujeito e a questão de saber se há um sujeito feminino, é inteiramente renovada por essa escrita, já que ela nos mostra que esse mesmo sujeito, esse sujeito único pode perfeitamente ser feminino. Mas, nesse caso, ele não se autoriza senão dele mesmo. Agora, o que acabo de anotar no quadro (p.33) pode nos servir para avançarmos na questão relativa à conjugalidade e, também, para que coloquemos a questão Je uma outra maneira. O que faz com que os casais se mantenham juntos? Enfim, há alguns casais que se mantêm juntos. O que faz com que os casais se mantenham juntos? Então, podemos responder: é o gozo que eles encontram, um com o outro. É uma resposta que gostaríamos de dar, porque seria agradável pensar assim, seria uma coisa boa. O problema é que isso nem sempre é verdadeiro. Temos até a surpresa de constatar, quando escutamos rapazes e moças no que diz respeito à organização de sua vida amorosa e da escolha do cônjuge, que aquck ou aquela que foi escolhido não é obrigatoriamente aquck com quem eles encontraram o melhor gozo. Isso é muito L·urioso. Parte Ili 37 Não é raro que, por exemplo, uma moça encontre um homem com quem ela seja sexualmente muito feliz, mas não é com este que ela vai ficar. E não é raro constatar que para o rapaz freqüentemente ocmTa a mesma coisa. Mas, então, o que faz com que o casal se mantenha junto? Podemos falar, claro, que é o dever. E é verdade. É verdade que o dever, as obrigações materiais da vida, os filhos, o respeito pela religião, fazem com que um casal fique unido apesar do fracasso de seu gozo. Contudo, será que é esse fracasso do gozo que segura o casal junto? Se assim for, será ao preço, como sabemos, de reivindicações recíprocas, e é isso que mostra bem nossa barbárie. Para mim, a barbárie é a incapacidade de levar cm conta as leis da linguagem, pois nesta há leis. Cada vez que desconhecemos as leis da linguagem, na minha opinião, entramos na barbárie. Se for esse fracasso o que organiza a manutenção do casal, entramos no domínio das reivindicações recíprocas. Quer dizl:.r, a mulher, no casal, vai se tornar uma mãe, o que para ela é a única maneira de ser falicamente reconhecida. É por isso que a maternidade tem um papel tão importante no futuro das mulheres. E para o homem, que vai ter em casa mais uma mãe do que uma mulher, é freqüente que sua sexualidade se torne delinqüente, que escape justamente à nonna do casal, que vá buscá-la fora da vida do casal. É a reivindicação recíproca,já que a mulher criticará o homem por não ser um verdadeiro homem, porque ele não conseguirá, além de tê-la feito mãe, fazer dela uma verdadeira mulher. E quando o homem não é um verdadeiro homem, é freqüente, que a mulher se devote a tentar fazer dele um verdadeiro homem. 'J;:odos conhecemos as situações nas quais a vocação feminina é ;~târ faz.e"i;dõ"côrijlige uni verdadeiro homem. . Não vou continuar mais na lista de reivindicações recíprocas. Em todo caso, ou a mulher conserva sua alteridade, Patrícia Realce 38 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio e nesse caso o homem a critica por ela permanecer estranha, ou então ela aceita se tornar familiar e semelhante e, nesse caso, como falei hoje de manhã, é o desejo que se encontra enfraquecido. Também não podemos esquecer que a conjugalidade vem se inscrever em pós em uma tradição religiosa judaico-cristã que, como sabemos, coloca as relações sob o signo do dom e da caridade, de tal modo que o homem, nesse tipo de casamento, se desembaraça desse instrumento que lhe é reclamado. Ele o dá, cede-o, deixa-o, "pegue-o", ele diz a sua mulher. E depois ele se torna seu filho. E sabemos que certamente é a solução menos conflituosa, mas da qual podemos pensar que certamente não seja nem a última nem a melhor possível. Antes de evocar o que seria um funcionamento que poderia estar em confom1idade com as leis da linguagem e que seria menos bárbaro, gostaria de evocar um último ponto, que espero que os senhores ainda tolerem. Eu o evoco porque nos esclarece muito sobre o que é a paranóia. O que é uma situação paranóica? É uma situação na qual recusam reconhecer minha dignidade fálica. Esta é sempre a fonte das organizações paranóicas: uma situação na qual recusam reconhecer minha dignidade fálica. Os senhores vêem como na situação conjugal há sempre a possibilidade de surgir uma paranóia em um ou no outro, de recriminar o cônjuge por não reconhecer a dignidade fálica. _-.,. Enfim, o que é que pode manter juntos um homem e _ uma mulher? Na melhor das hipóteses, isso se chama o Simbólica. E se segui todo esse caminho com os senhores, é para introduzir o que nos permitirá compreender, mais tarde, a mutação cultural que está ocorrendo, incluindo a mutação das relações entre os sexos. · Qque quer dizer o Simbólico? O Simbólico quer dizer que o significante é sempre o símbolo de uma falta. Quando .,.·l Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce Parte Ili 39 . Freud evoca o Simbólico, ele evoca a bandeira corno símbolo _da pátria. E ele diz que um solclaclo pode sacrificar sua visla rwra defender um puro símbolo. ~as o significante não é o símbolo desta entidade que representa, por exemplo, a pátüa, ou que pode representar Deus. Como sabemos, há vários símbolos ele Deus no nosso mundo. O significante é o símbolo de uma pura falta, que é o motor do desejo. A questão, p01tanto, que é hoje colocada por ocasião dessa mutação cultural, é saber se um casal estaria em condições de respeitar essa falta geradora do desejo, não para acusar o cônjuge de ser o responsável pela falta, mas para juntos se autorizarem a dar lodo valor a essa falta, à medida que essa falta autoriza o des~jo e o gozo. N,µo se trata ele cultivar a falta ele gozo, mas ele reconhecê-la como sendo a oportunidade. o motor e, portanto, o. que mereceria que parceiros que respeitassem as leis da Jin,\/Jl,igcn1 dela tirassem proveito para se manterem juntos por boas razões. Seria, efetivamente, a rçalização recíproca ele seu gozo, sem que fosse sustentada pelo conflito, mas prganizad~.1 por esse procedimento, por esse pacto mútuo. E não há senão o Simbólico que pode fazer pacto entre S 1 e S2, quer dizer, colocar entre eles esse gozo que os separa, mas que também é capaz de reuni-los, se eles quiserem. O curioso é que a simplicidade do que estou evocando - um certo modo ele pôr um termo ao sintoma-, cm geral, não é compartilhada. E eu diria que é isso que causa problema. Porque l]Jll!.G.c;mnp~11tilhamos tão facilmente é o sin_tonwe não ,~possihi liclacle ele resolvê-lo. Por que eu me autorizo a dizer o que pode se parecer com uma utopia e talvez o seja? Mas era o próprio objetivo da busca de Lacan. Como lhes mostrei há pouco, Freud faz da genitalidade a consumação da normalidade, mas com todo o preço que conhecemos, todos os sintomas que evoquei no casal, e o fato ele que os neuróticos busquem antes Patrícia Realce Patrícia Realce Patrícia Realce 40 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio de tudo evitar o sexual, defender-se contra o sexual, porque de é causa de todas essas dificuldades. Toda a busca de Lacan resultou na questão de saber se era ou não possível que a conjugalidade, as relações entre homem e mulher pudessem escapar do sintoma, pois, apesar de tud,o, esse é o grande mal- estar na cultura. Portanto, como os senhores vêem, essa questão de Lacan merece ser compartilhada, sem que sejamos imediatamente obrigados a restringi11110-nos a isso, ou a se1mos dominados por isso. Não é esse o caso. Antes de passar ao piimciro grande traço dessa mutação cultural, que nos interessa e que busca responder a estas dificuldades, urna última observação, que ainda concerne ao objeto a. Imagino que os senhores se perguntaram, lendo Lacan, por que ele dizia que o objeto a é um objeto perdido, quando acontece de pode1111os encontrá-lo por meio do fantasma. Ora, ou o objeto li está perdido ou é um objeto real que posso encontrar pelo viés do fantasma. Se Lacan diz que o objeto a é um objdo definitivamente perdido, é para salientar que o objeto li somente adquire valor pelo fato de ser suposto desejado pelo Outro- · cu lhes falarei do Outro, mas até agora vamos tomá-lo assim·· , o objeto a somente adquire seu valor porque o sujeito pensa que cedê-lo ao Outro, faz o gozo do Outro. O problema é que não há nenhum objeto que possa assegurar o gozo do Outro, porque o Outro não existe. Suponho, então, que o objeto que lhe dou é capaz de lhe dar um gozo. Mas, na realidade, não há objeto algum que seja capaz de satisfazê-lo, de assegurar seu gozo. É por isso que Lacan diz que o objeto a está definitivamente perdido, já que não há nenhum objeto que me pennita entrar em um acordo com o Outro, visto que todos os objetos que eu lhe cedo e que mantêm meu fantasma, são objetos que servem de tampão para obturar a demanda do Outro. Eu me permiti assinalar-lhes esse último ponto, porque ck vai ter Parte Ili 41 um certo papel na continuidade do que vamos estudar, se os senhores não estiverem deprimidos demais com o que venho falando. Vejam, apesar de tudo, concluí com uma nota que pode1ia dar esperança! Já contei várias vezes que Lacan, quando fez confe- rências nas universidades da América do Norte1, perguntou a seu auditório: "o que os levou à psicanálise?", ou colocando de outro modo, "qual é o sintoma que os levou à psicanálise'?". Para mim, diz Lacan, o que me levou à psicanálise é que não há relação sexual. Como os senhores podem supor, os estu- dantes norte-americanos que estavam na sala 1iram disso: não hú relação sexual? Mas, se tivéssemos pedido a cada um deles que contasse a sua vida, do que eles teriam falado? Pelo me- nos Lacan não pensava que o sintoma que o tinha levado à anúlisc era um sintoma universal e que todo mundo deveria necessariamente compmtilhar. Como há muitos jovens aqui, creio que não sabem que no início da psicanúlisc a grande questão era saber se o complexo de Édipo era universal. Dizendo de outro modo: se o mundo inteiro era marcado pelo mesmo sintoma. As respostas que foram dadas- claro, buscamos do lado dos antropólogos····- foram questionadas e principalmente aquela de um brilhante antropólogo chamado Malinowski, que conclui que não, o complexo de Édipo não é universal. ~ão há sintoma universal_ e cada um pode vir à análise pelo que diz respeito a seu própii? ~intoma, sem que seja obrigatoriamente o sintoma de Lacan .. Mas Lacan fundamentava-se em uma clínica que concerne a todos nós. Então, se os senhores ainda estão em forma, será que têm alguma contestação a propor sobre o que eu evoquei? Ou será que estão mais ou menos de acordo? Cuidado, se os senhores não disserem nada, vou acreditar que estão de acordo! Patrícia Realce 42 Notas Novas formas clínicas no início do terceiro milênio 1 Trata-se da conferência proferida na Yale lJ11ivcrsity, em 24.11.1975, publicada em Scilicet n. 6-7, 1975. (N. da Revisão final) Parte IV Respondendo perguntas sobre: S1 e S2 como heterotópicos, gozo Outro, significante da falta no Outro, o que um analista pode propor ao analisante, o último tema de trabalho de Freud e Lacan foi o Pai L. Cardon: Quando o senhor coloca dessa forma S1 e S2, para mim foi uma novidade. Significante de abertura, S1, cqmo de representação; significante do saber inconsciente ou do gozo, S2, como significante do Real. O senhor os colocou em uma heterotopia, de uma forma muito interessante e, como eu nunca tinha ouvido, gostaria de pedir-lhe que esclareça. Essa é uma novidade, que me complicou com uma outra questão: Freud, no texto Feminilidade 1, diz que as mulheres estariam em um estágio anterior por sua relação "pão-pão, queijo-queijo" com as coisas. O senhor as coloca em um outro plano, lógico. Ch. Melman: Obrigado. Creio, efetivamente, manter presente na mente que, como o senhor disse muito bem, S1 e S2 são heterotópicos~ 1 está no can:po -~~ Simb~lico, __ sz.~~~~--- ~ campo._ c!9. g.eii}. Qy_~i:_ êhzer que tudo _ocorre para nós como .. se tivéssemos que dominar constantemente o Real. Quer dizer, nomear o que vem do Real e o que está no Real. É o que fa~ ~~m que S2 encontre a justificação dessa heterotopia. Lembro 44 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio também que oJ3:~ªI.c!~ ~I' 110 en,_sino de Lacan, é o lugar_4~ agente, e que o lugar de S2 é o lugar do gozo .. É uma maneira de nos lembrar que~-~º lugar do Real, do que vem do Real q~~-- o gozo se suporta. Agora, dizer, como Freud, que as mulheres são "pão-pão, queijo-queijo" com as coisas, é uma metáfora de. Freud, talvez uma maneira de dizer que uma mulher se dive1te i:1º ver os homens amarem o discurso. Os homens amam as palavras e acredito que as mulheres sempre riem um pouco disso. Mas é porque nas palavras o homem encontra o seu estatuto vi1il. Ora, nas palavras uma mulher não encontra, nem obrigatoriamente, seu estatuto feminino. Outro dia estava discutindo com um filósofo que trnbalha conosco e que conhece bem a psicanálise. As mulheres não têm nenhum lugar nessa atividade preocupante que constitui a filosofia, cm nenhum lugar a lilosolia nos fala da mulher. Ú porque quando os homens falam, eles querem se mostrar mestres do Real. E os senhores conhecem as mús relações de Sócrates com sua esposa. Sócrates era formidável, mas sua mulher tinha um gênio ruim, porque ele contava, a admiração que provocava, era para um grupo de homossexuais. Mas, pelo menos, Sócrates nunca falava de mulhe1; exceto cm O Banquete, onde não foi Sócrates, mas Platão quem deu a palavra a urna mulher para falar sobre o amor. Po1tanto, se podemos dizer que as mulheres são "pão- pão, queijo-queijo", é, mas dependendo do caso e nem sempre é o caso. Elas se sentem maltratadas pelo discurso. Há uma outra coisa que deve ser observada: é que do lado masculino temos uma relação com o Real, isto é, com o que podeiia ser apavorante, surpreendente, traumatizante; pois é isso o Real. Q_B.eal é o que faz irr~1pção nesta sala e não ---··-·-····--···"·-·· . - ··-- sabemos o que é, ou seja, não sabemos_nC>IJ~~~~_!o._A partir do. n:i(_)rnento em que posso nomeá-lo,já tenho a idéia de que po~~-º 99miná-lo. Do lado masculino temos uma relação com o ReaJ mediatizada pelo significante. Isto é, inventam-se conceitos, .----·-- . --·---·-··········-·-··· .... ..... - - -----··· Parte IV 45 cada conce_üo é inventado para responder a uma irrupção do - .. ·-· Real. Mas, do lado feminino, temos uma relação mais direta y imediata com o Real, menos protegida pela nominação; isto é, uma mulherJem com o Real um modo de gozo que aqueles que estão do lado masculino não conhecem. E Lacan deu um nome a esse gozo: gozo Outro. Com freqüência nos perguntamos: que gozo Outro é . esse de que fala Lacan e que seria reservado às mulheres'? É que elas têm uma relação com o falo, gozo fálico, e também esta relação direta, não com uma instância - o falo é uma instância--, mas com o Real, que Lacan chamou de gozo Outro. O~(:.b.2.rçs vão me dizer: mas por que é que as mulheres.não falam disso? Justamente porque é um gozo fora do conceito, para falar dele é preciso nomeá-lo, é necessário o conccit?. Ora, é o gozo cm uma relação direta com o Real; dispensa·º -~onccito. E se prestarem atenção em condutas e comportamentos fomininos - não vou dizer-lhes quais, seria trapaccar·--que são especificamente femininos, os senhores vão ter uma pequena idéia de que há neles um gozo que não é um gozo fülico, que não tem nada a ver com o objeto a, e que é um gozo do corpo. Não é um gozo parcial, mas do corpo tomado em sua totalidade, em uma relação com o Real. A. Jerusalinsky: A respeito da relação do sujeito con1 o Outro e da esperança ou desesperança,,Lacan nos propõe no texto "A ~-1?.Y.~[_SªQ. P.O .. s.ujeito e dialética do desejo no incon.sçientc frcudiano"2, na_.r~!a,ção do sujeito com a demanda d~ Outro, que são possíveis duas respostas: a do significante d.a falta no Outro S(X), ou a do significado no Outro s(A). Eu entendi isso como respondendo com um significante, ou seja, a resposta do significante da falta no Outro: S(,i() ~ S; e na resposta que vem pelo lado do significado no Outro, uma resposta ao Outro através do objeto a: s(A) ~ a. Ou seja, no primeiro caso uma tentativa de satisfazer o Outro oferecendo ~ 46 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio um significante; e no segundo caso uma tentativa de oferecer um objeto. Parece-me que o fracasso se apresenta mais no segundo caso e que na alternativa de oferecer um significante para acalmar o Outro, o sujeito tem mais chances,justamente pela polivalência semântica que o protege do fracasso. Eu queria . saber o que é que o senhor pensa dessa distinção. Ch. Melman: Talvez eu seja breve nesse ponto. O significante de uma falta no Outro, isto é, S~), o que se poderia dizer é que cada significante representa uma falta no Outro. Foi o que tentei dizer há pouco, evocando as particularidades do Simbólico. Cada significante é o representante de uma fal1ª_ . e @da me impede de acrescentar ... no Outro. O que quer dizer e:Iinicamentc essa falta no Outro? Quer dizer que não encontro. no Outro resposta à minha interrogação, para saber o que é_ bem falar e o que é bem fazer. Sou. um animal desnaturado. Os animais sempre sabem qual é a conduta certa. O animal humano sempre se pergunta o que é fazer bem e o que é falar bem. E essas questões vêm do fato de que no Outro há essa falta, que --······- - !!ão há nada para responder, para concluir a minha interrogação: o_que é que eu quero'L_Para saber o que quero, o que desejo, preciso receber a indicação correta do Outro .. Mas o Outro n~1_nca responde à minha questão. Ele responde sempre, como _ s~lienta Lacan: Che vuoi'! O que é que você quer? O sujeito pe_rgunta ao Outro: o que é que você quer? E estamos prontos a fazer muitas coisas para satisfazê-lo. E do Outro vem a re~po.sta: O que é que você quer? Portanto, esse S(X) teste~un~a a _ausê_!lcia, no Outr_o, de...9.m1Jquer conclusão.)'Jão há última palavrçi. E, aliás, como você disse muito bem, posso tentar tapar essa falta no Outro,--- oferecendo-lhe uma pai1e de meu corpo: uma libra de carne._ Recomendo-lhes a leitura dessa peça de Shakespeare, O Mercador de Veneza. É uma peça inteligente e excepcional, na qual todos esses problemas já estão escritos. Cedo ao Ou- .-----·- ·------- Parte IV 47 ~o uma parte do meu corpo, com a idéia de satisfazê-lo. Isso se toma possível pela relação primordial do filho com a mãe, e sabemos que o filho imagina que seus excrementos são o . presente que vai satisfazer o Outro, que é a mãe. Por que a mãe é um Outro para o filho? Porque é dela que ele recebe sua própri~ mensagem e, portanto, ele a coloca no lugar do Outro. E se o filho evoca, por muito tempo, a saudade desse fato, é porque este imagina ter com o Outro uma relação perfeita, bem sucedida. Ele lhe dá o que a mãe quer, o que ela pede, há assim uma cumplicidade que se estabelece entre a mãe e o filho, que deixa saudade de uma época na qual o sujeito realizou o essencial de seu voto -- quer dizer, o acordo com o Outro - e vai guardar sempre saudade disso. Pergunta: Tomando a última parte de sua exposição, quando o senhor fala do sujeito chegando com seu sintoma em análise, parece-me que a elaboração de Freud, no que ele pôde falar sobre homem e mulher, resultou de sua clínica. Da mesma forma Lacan, que pôde, a partir de sua clínica, fazer algumas elaboraçõcs_quc seriam comuns e que dizem respeito ao homem e à mulher. Como é que ficamos nós, na clínica, para que isso não sirva - o fantasma feminino, o fantasma masculino - para o analista como uma escuta prévia, na qual tudo já estaria resolvido de saída, e que se possa preservar o espaço da subjetividade e do caminho de cada sujeito em análise? Ch. Melrnan: Creio que preservar o caminho do sujeito na análise é deixá-lo encontrar sua própria solução, mas com a condição que o sujeito saiba que talvez haja urna solução. Em outras palavras, não há obrigatoriamente urna condenação ao mal-estar. Evidentemente, somos seres caídos, caímos de um lugar onde tudo estava bem. Mas,justamente, se estivermos atentos a essas leis da linguagem, poderemos dar a entender ao sujeito que busca suas soluções, que talvez possa buscar além, ou seja, que obrigatoriamente não está condenado ao 48 Novas formas clínicas no início do terceiro milênio sintoma. Penso que é o que podemos fazer de menos mal para ele. Estranho também que isso que estou tratando hoje sirva de base para a literatura romanesca. Isto é, gostamos desses fracassos, gozamos com eles. Será que não temos o direito de gozar desses fracassos? Claro que temos o direito! Quando recebemos em análise pessoas com uma ce1ia idade que, por exemplo, estão na faixa dos 50 anos, elas têm a impressão de terem sonhado sua vida. Têm a impressão de que sua vida foi um sonho, e que um diretor dirigiu o filme, no qual elas não estavam nem mesmo na posição de espectador, para, no filme, se verem interpretando. 'falvcz seja possível funcionar de outra maneira do que ricar ú espera do acesso à verdadeira vida, um dia, depois da morte, por exemplo. Entrar, enfim, na verdadeira vida. l~ um ponto que, aliás, não deixa de impressionar o analista: constatar como as existências se desenrolam, como diz Lacan, com "semblantes". Portanto, o que podemos propor para alguém que vem buscar uma análise? Se ele se encontra em um certo desconforto, mas em uma modalidade de existência que lhe convém, o analista não poderá pressioná-lo. Mas o problema é este, é Q_fínal no qual Freud te1minou e o final no qual Lacan terminou. Não são os mesmos finais. Lacan, nos últimos anos. c,!e sua vida, quando já começava a ficar um pouco afetado d(? ponto de vista neurológico, lutou com todas as suas forças para_ tentar responder a essa questão, que estou evocando com o~ senhores, e procurou matematizar com o nó borromeano. Parece-me que devemos fazer uma pausa, mas antes cu gostaria de contar uma pequena história, engraçada. Uma história engraçada: no último livro que Freud publicou, Moisés e o Monoteísmo3, o homem Moisés, um romance histórico, o que é que ele diz? Ele diz que o mito religioso da filiação divina de um povo, quer dizer, a afümação de um laço de parentesco entre um povo e seu ancestral, é uma Parte IV 49 afirmação historicamente inexata. Freud diz que Moisés, como os senhores sabem, era um egípcio, portanto não era da mesma família, era um estrangeiro. Assim, seria conveniente
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