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Melman Novas formas clínicas no início do terceiro milênio

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Charles Melman 
Novas formas clínicas 
no início do terceiro 
milênio 
Porto Alegre, 2003 
facebook.com/lacanempdf
© de Associação Psicanalítica de Curitiba e Biblioteca 
Freudiana de Curitiba 
Execução e organização das transcrições: Rosane Weber 
Licht, Ana Maria Zanetti, Antonio Brunetti, Ângela Dai 'Vesco, 
Gustavo Volasco, Tâmara Enns, Ruth Pacheco e Alicia Tuaf 
Revisão ortográfica: Rosane Weber Licht, Dayse Stoklos 
Malucelli e Maria Angélica Carreras 
Revisão técnica e organização do texto e do sumário: Leda 
Mariza Fischer Bernardino 
Revisão final: Conceição Beltrão Fleig e Mario Fleig 
Editoração eletrônica: Caio Beltrão Schasiepen 
Capa: Flávia e Helena--www.arquiarte.arq.br 
M524s Melman, Charles 
Novas fo1mas clínicas no início do terceiro milênio/ 
Charles Melman. -Po110 Alegre: CMC Editora, 2003. 
Textos transcritos do seminário realizado em Curitiba, 
em abril de 2002. 
160p.; 13x21cm 
ISBN: 85-88640-06-6 
1. Psicanálise. 2. Organização social. 
I. Título. II. Título: Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio. 
CDU 159.964.2:316.35 
gação na publicação: Evelin Stahlhoefer Cotta - CRB 10/1563 
Reservado todos os direitos de publicação em 
língua portuguesa para: 
CMCEditora 
Rua Mostardeiro, 291/403 - 90430-001 Porto Alegre, RS 
( 51) 3346-8793 
cmceditora@terra.com.br 
www.cmceditora.com.br 
Proibida a reprodução total ou parcial 
Depósito legal 
Impresso no Brasil - Printed in Brazil 
Charles M:elman 
Entregamos ao leitor esta obra de Charles Melman. 
Para muitos dispensa apresentações, mas para outros talvez 
se constitua em um primeiro encontro com o trabalho deste 
psicanalista. 
Neste texto, não revisado pelo autor, optamos por 
conservar as peculiaridades de sua fala. Como guia para o 
leitor que se inicia no estudo cm Freud e Lacan, colocamos em 
notas as referências dos textos mencionados. Dentre a extensa 
publicação do autor, fizemos apenas algumas indicações de 
acordo com o assunto abordado. 
Entre chaves e em itálico, encontram-se as 
observações dos colegas que transcreveram o texto. 
Ressaltamos o trabalho dos membros da Associação 
Psicanalítica de Curitiba e da Biblioteca Freudiana de Curitiba 
rcsponsúveis pela organização do seminário, através de Dayse 
Stoklos Malucclli, Leda Mariza Fischer Bernardino e Maria 
Angélica Carrnras, assim como agradecemos as sugestões do 
Centro de Estudos Freudianos do Recife, através de Letícia 
Patriota Fonseca, e o apoio de Denise Sainte Fare Garnot, da 
Association lacanienne intemationale. 
Então, passamos às suas mãos este livro, para que siga 
seu curso e, assim como uma cm1a, possa chegar a seu destino. 
Os Editores 
Sumário 
INTRODUÇAO......................................................... 07 
"-'Parte ! ...................... ~................................................ 13 
Os desafios da psicanálise diante da mutação cultural 
cm curso 
Primeiro elemento de escândalo: um homem e uma 
mulher, em nosso dispositivo cultural, não foram feitos 
um para o outro? 
Segundo elemento de escândalo: o que causa o desejo, 
no homem e na mulher, não é uma pessoa, é um objeto 
Parte 11..................................................................... 23 
Respondcn<lo perguntas sobre: feminilidade, Internet, 
objeto a e falo, miséria social, posição do psicanalista 
Parte 111.................................................................... 33 
Existe um sujeito feminino? 
O que faz com que os casais se mantenham juntos? 
Parte IV..................................................................... 43 
Respondendo perguntas sobre: S 1 e S 2 como 
heterotópicos, gozo Outro, significante da falta no Outro, 
o que um analista pode propor ao analisante, o último 
tema de trabalho de Freud e Lacan foi o Pai 
Parte V....................................................................... 51 
Primeiro grande traço da mutação cultural em curso: a 
forclusão do Outro 
' Parte VI ................................................................... 59 
Respondendo perguntas sobre: na ideologia liberal todo 
gozo é permitido, a concepção moderna do Real como 
esférico e o cross-cap, o "politicamente correto", a 
adoção de filhos por casais homossexuais, o pai da horda, 
o fanatismo, as utopias 
'--- Parte VII................................................................... 75 
As cenas de horror na televisão 
O declínio da função paterna 
"'Parte VIII................................................................. 83 
Segundo grande traço da mutação cultural cm curso: 
a promoção do gozo objetal sobre o gozo fálico 
O comunitarismo 
Parte IX.................................................................... 97 
Primeira questão clínica: a depressão 
Segunda questão clínica: a histe1ia 
Terceira questão clínica: as toxicomanias 
Parte X...................................................................... 109 
Um real problema teórico e prático 
Respondendo perguntas sobre: a formação do analista, 
os laboratórios de psicofármacos, psicanálise e ciência 
têm o mesmo objeto, a felicidade social, o sagrado hoje, 
psicanálise e universidade, o mercado, pai real, influência 
social do psicanalista, pedofilia, pagamento da análise 
Parte XI.................................................................... 135 
O gozo do toxicôrnano 
O gozo Outro 
Quarta questão clínica: a psicose 
, __ Parte XII .................................................................. 147 
A condição subjetiva moderna 
Um comentálio sobre algumas correntes religiosas 
O estatuto do inconsciente hoje 
A atopia do sujeito moderno 
Uma nova forma de organização social 
-INTRODUÇAO 
Em abril de 2002, durante três dias, por dezoito horas, 
cerca de trezentas pessoas encontraram-se em Curitiba para 
participar do seminário ministrado pelo psicanalista Charles 
Melman, cm um evento que chegou a ser nomeado pelos 
presentes como um Congresso Lacaniano Brasileiro. 
Foi um privilégio usufruir desta interlocução, no 
ver<la<leiro sentido do termo, promovida pela fala experiente, 
fascinante e, ao mesmo tempo, provocante deste aluno e 
parceiro de Jacques Lacan na Écolc freudienne de Paris. A 
reverberação de suas palavras provocou perguntas, discussões 
nos intervalos, em estudantes, analistas em formação e nos 
muitos analistas presentes, vindos das mais diversas partes do 
Brasil: Brasília, Belém, Campo Grande, Recife, Salvador, Rio 
de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre e 
Florianópolis, para citar algumas. 
Com seu estilo tranqüilo e bem humorado, Charles 
Melman passeou pelos mais densos conceitos da psicanálise 
lacaniana, sem sair de sua cadeira no centro do palco, 
demonstrando total domínio do público e do tema que se 
propunha a trabalhar. 
Melman trouxe para o Brasil suas inquietantes 
inte1rngações sobre a modernidade, propondo construções 
teóricas particulares, sustentadas na teoria freudo-lacaniana e 
em sua prática pessoal como psicanalista. Da mesma fom1a, 
com muita cmiosidade, aguardou a fonnulação de perguntas e 
Patrícia
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Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
acatou-as com júbilo, sem esconder seu orgulho por ter 
provocado tanto o público. 
Neste seminário, ao mesmo tempo em que apresenta 
idéias novas e até mesmo revolucionárias para o discurso 
psicanalítico, como a proposta da heterotopia entre S1 e S2, 
Charles Melman retoma pontos já desenvolvidos em outros 
livros, atualizando de maneira 1igorosa temas que lhe são caros, 
como a paranóia, o alcoolismo e a toxicomania. 
Além disso, Charles Mclman continua dando 
testemunho de atos corajosos, nos quais não hesita em tomar 
posição publicamente, pronunciando-se sobre questões cmciais 
para a modernidade, como a pedofilia, a adoção por casais 
homossexuais,
como outrora o fez com relação ao uso 
consentido de drogas de substituição pelos toxicômanos, sempre 
provocando o incômodo que--- wmo ele mesmo diz- é o efeito 
que o psicanalista deve sempre causar cm tudo aquilo que se 
enrijece, como a ditadura intelectual do "politicamente con-eto". 
Tendo como fio condutor a mutação cultural cm curso 
e suas conseqüências na vida social, política, e também na prá-
tica do psicanalista, Melman revisita a clínica psicanalítica para 
apresentar as novas faces da depressão, da histeria, da 
toxicomania e da psicose. 
A grande questão que ele levantou ---- e que manteve 
em suspenso, para abordá-la somente ao final do seminário -
foi se ainda haveria lugar para o inconsciente neste novo 
dispositivo cultural. 
Suas próprias palavras: "As leis da linguagem retomam 
sempre sua potência", proferidas em relação aos impasses das 
relações de casal, da subjetividade moderna, dos 
comportamentos aditivos contemporâneos, servem também 
como um contraponto - e, quem sabe, dão uma tonalidade de 
esperança - ao quadro de miséria social e subjetiva que 
contemplamos. E não deixam de ser um alento para os 
Patrícia
Nota
Heterotopia (aglutinação de hetero = outro + topia = espaço) é um conceito da geografia humana elaborado pelo filósofo Michel Foucault que descreve lugares e espaços que funcionam em condições não-hegemônicas.
Patrícia
Nota
deparamo-nos com o significante-mestre, o qual é representado pela sua qualidade denullcomando e, portanto, de unicidade. (QUINET, 2009). Além disso, podemos compreender onullS1 como aquele significante da primeira experiência de satisfação, a qual nunca pode sernullretomada de forma plena. Tal impossibilidade é negligenciada, visto que há uma repetiçãonulldo S1, o que configura o S2 (http://www.psicanalise.ufc.br/hot-site/pdf/Trabalhos/33.pdf)
Patrícia
Nota
é representado pela busca infindávelnullda primeira experiência de satisfação, busca esta constituinte da própria cadeia de nullsignificantes, isto é, o saber inconsciente (QUINET, 2009
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Introdução 9 
psicanalistas, à medida que enfatizam a relevância do lugar da 
psicanálise para o campo social. 
Foram momentos únicos da história da psicanálise no 
Brasil, que podem agora ter um registro e uma maior difusão, a 
pm1ir desta iniciativa conjunta da CMC Editora e das instituições 
promotoras do evento: Associação Psicanalítica de Curitiba e 
Biblioteca Freudiana de Curitiba 1 • 
O que se lerá a seguir são as palavras pronunciadas 
neste seminário, após um trabalho de transcrição e edição de 
texto. Procurou-se respeitar as escansões das intervenções, 
dividindo-as segundo os intervalos que aconteceram. Foram 
propostos títulos, de acordo com a seqüência da fala e a ênfase 
colocada por Charles Melman nos pontos abordados, a fim de 
melhor situar o leitor. Como cm toda transformação de 
linguagem, como já dizia Freud, há uma mudança de registro. 
I ~ essa transferência, como dizia Lacan, carrega um impossível, 
o que implica que --de um registro a outro----- há uma perda. 
Entretanto, nosso esforço foi grande no sentido de 
tentar pem1itir, ao leitor, uma transposição para essa atmosfera 
de troca, de cordialidade e de humor sutil que Charles Melrnan 
soube promover com sua vinda, pondo em ato um estilo de 
transmissão comprometido com os acontecimentos, no qual a 
prática da psicanálise adquire novo vigor. 
Leda Mariza Fischer Bemardino2 
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Apresentação 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
Tenho a honra de estar ao lado de Charles Melman, 
um dos mais conhecidos psicanalistas da França, autor de uma 
obra imensa, na qual percorre praticamente todos os aspectos 
da psicanálise. Seus textos nos têm servido de guia, 
especialmente para pensar as misérias da modernidade e da 
atualidade. 
Quero lhe agradecer vivamente por estar entre nós e 
agradecer, da mesma forma, a nossos colegas que aceitaram o 
convite para estes três dias de trabalho e de debate, nos quais 
seguramente surgirão idéias que irão revitalizar sobretudo a 
nossa prática clínica, mas também a discussão dos impasses 
políticos e sociais que nos interpelam, queiramos ou não. 
Um bom trabalho para todos nós! 
Dayse Stoklos Malucelli3 
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ll 
A Biblioteca Freudiana de Curitiba e a Associação 
Psicanalítica de Curitiba desejam-lhes as boas vindas, com a 
esperança de qµe estes três dias de trabalho com Charles 
Mclman criem um campo propício à troca de experiências. 
Um bom dia também a nosso convidado, por nos brindar com 
sua presença. 
Charles Melman é amplamente conhecido através de 
suas obras, orais e escritas, entre as quais se destacam os já 
clássicos Novos estudos sobre a histeria, Estrutura 
lacaniana das psicoses, Novos estudos sobre o inconsciente 
e outros. Foi colaborador próximo de Lacan e ocupou a direção 
de ensino da École freudienne de Paris, sendo membro fundador 
da Association lacanienne internationale e da Fondation 
européenne pour la psychanalyse. A trajetória de seu percurso 
dispensa apresentações,já que ela se encontra inscrita na história 
das últimas décadas da psicanálise freudiana e lacaniana 
francesa e internacional. 
Desejo, sim, destacar do ensino de Melman, o 
compromisso com a descoberta freudiana e Jacaniana, na qual 
ele, corno poucos, soube reformular a pergunta: O que é a 
Psicanálise? Saber de psicanalista que emana da prática e que 
faz dela ética de um estilo. Deixo então a palavra a Charles 
Melman para que nos fale da singularidade atual do iITemediável 
mal-estar na cultura. 
Maria Angélica Carreras4 
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Notas 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
1 Agradeço a Rosane Weber Licht, minha colega da Seção de 
Publicações da APC --Associação Psicanalítica de Curitiba, pela 
dedicação na execução e organização das transcrições, bem como 
aos colegas da BFC - Biblioteca Freudiana de Curitiba que 
trabalharam na transcrição de uma parte do material: Ana Maria 
Zanetti, Antonio Brunetti, Ângela Dai 'Vesco, Gustavo Volasco, 
Tâmara Enns, Ruth Pacheco e Alicia Tuaf. A revisão ortográfica 
foi realizada por Rosane Weber Licht (APC), Dayse Stoklos 
Malucelli (APC) e Maria Angélica Carreras (BFC). (N. de Lcd:1 
Mariza Fischer Bernardino) 
2 Psicanalista,Associação Psicanalítica de Curitiba. (N. da Revisão 
final) 
3 Psicanalista,Associação Psicanalítica de Curitiba. (N. da Revisão 
final) 
4 Psicanalista, Biblioteca Freudiana de Curitiba. (N. da Rcvisüo 
final) 
Parte 1 
Os desafios da psicanálise diante 
da mutação cultural em curso 
Agradeço vivamente às minhas duas amigas e devo 
dizer que me sinto em uma posição de devedor com essas 
colegas diante dos senhores. Primeiramente, devedor para com 
os colegas que tive o prazer de encontrar aqui e que aprecio já 
há muitos anos: os colegas vindos de Recife, de Salvador, do 
Rio de Janeiro e de Porto Alegre. Para mim é um grande pra-
zer reencontrá-los aqui. Sinto-me tamb6m devedor diante dos 
inúmeros jovens que se encontram nessa sala e que ainda não 
tive o prazer de conhecer. Acredito que para eles é imp011ante 
saber se a psicanálise é capaz de responder aos novos desafi-
os colocados pela transformação cultural à qual assistimos. 
O desafio é muito simples: consiste cm saber se so-
mos capazes de preservar aquilo que é a característica da hu-
manidade, isto é, a possibilidade de análise, reflexão e escolha 
de suas condutas, em uma mutação cultural que se apresenta 
imperativa em relação às condutas e deixa pouco lugar à escolha 
e à reflexão. Portanto, o desafio que se apresenta à psicanálise 
não é pequeno e vai depender de todos nós saber se somos ou 
não capazes de
responder a isso. 
Como os senhores sabem, Freud falava de um mal-f estar na cultura e atribuía-o ao excesso de recalcamento sexual. 
) Os senhores sabem, ele falava de um recalcamento originário 
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Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
\ -J!..0~~1".c(riingunff - que queria dizer que quando a criança 
l entrava no mundo, era levada necessariamente a sofrer o 
/ recalcamento do que podia nela ser sexual. Em outras palavras, 
!':!. çriança era levada a contribuir, de maneira secundária, com 
esse recalcamento originário. O que quer dizer isso, que havia 
um recalcamento originário? 
Isso quer dizer que, na _!l_ossa cultura, o sexual não era 
exibido, havia essa dimensão que se chamava pudor. Mas, em 
contrapartida, o sexual fündamentava tudo o que era significado. 
Além de todos os bens materiais que eu poderia evocar, havia 
a dimensão do sexual que viria relativizar todos esses bens. A 
esses significados Freud havia chamado de libido. O escândalo 
provocado por Freud foi dizer que se pode1ia falar de qualquer 
coisa, na realidade era sempre de sexo que se tratava,já que o 
sexual o falo, na teoria de Lacan -· organizava todo o 
significado. 
Nesse 1~1al-estar na. cultura, do qual Freud falava, o 
que operava era sempre o limit.e. Havia o mundo das 
rçprcscntações, onde o sexo era escondido, dissimulado pelo 
nudor, e então havia este limite, que seria necessário transpor 
p~ra se ter acesso ao gozo sexual. , 
Como os senhores sabem, a função do pai; - Lacan 
formulou isso com muita precisão- era de autorizar o sujeito a 
Jranspor esse limite e a dizer: "o gozo sexual é bom, ele está 
fora do limite, mas é bom". E isso era a função paterna. O que 
quer dizer que quando o pai vinha interditar a seu filho a mãe, 
~le introduzia o filho no desejo sexual colocando esse limite, 
e~e interdito, mas também lhe dizendo que além desse limite, 
Q gozo sexual é bom. 
Fre_1:1~ dizia que a neurose estava ligada ao excesso de 
r~calcamento. J?e onde poderia vir esse excesso de 
recalcamento? Esse excesso de recalcamento não vinha senão 
de uma coisa: da idéia de que, se para participar do mundo das 
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Nota
libido
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Parte I 15 
representações, se para ser admitido no campo das represen-. 
tações, era necessário aceitar recalcar o sexual, então o sujei-
_to era levado a pensar que deveria sacrificar o sexual, seja 
para Deus, ou, talvez, para um pai imaginário, mas que, elr! 
~odo caso, era amado por Deus ou pelo pai quanto mais sacri-
ficasse o sexual. 
Os senhores notem em relação a essa proposta, que 
há em Lacan uma dissociação entre Deus e o pai real,.aqu.ele 
que está no lar.e que possui a mãe,.Eü;_~qui o mal-estar na. 
çultura que Freud isolou. Ele estava convencido de que, para 
~~n:ar a neurose contemporânea, seria preciso se autorizar a 
s.cxualidadc. Para ele, a _realização da genitalidade, associada 
$ reprodução, constituía a norma, ou, dito de outro modo, ele 
p~nsava que havia uma norma de conduta humana. E ele a via 
nessa realização completa da genitalidade associada à 
reprodução. 
Freud, cm sua vida privada, foi muito fiel a essa norma: 
ele teve muitos filhos e sua esposa não estava muito contente 
com o que ele chamava de "a nom1a". Há uma carta dele a 
seu amigo Fliess - nesta época ele tinha mais ou menos 40 
anos-·- na qual ele diz que, para ele, a atividade de procriação 
estava naquele momento concluída. 
Então, os senhores vêem que Freud tinha uma 
concepção bastante estrita e restritiva daquilo que chamava de 
"norma sexual". Portanto, Freud estava convencido de que a 
consumação do ato sexual entre um homem e uma mulher era 
a condição da felicidade, com esta pequena restrição: seria 
preciso, de certo modo, pagar o preço dessa relação, aceitando 
o filho que era capaz de fazer vir ao mundo. 
Como os senhores sabem, é, entretanto, com a 
realização da vida sexual que começam as verdadeiras 
dificuldades. Toda clínica nos mostra que é na realização da 
vida sexual, conjugal, genital, que começam os aborrecimentos 
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Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
do homem e da mulher, e que suas vidas sexuais são domina-
das pelo sintoma, pelo fato de que nunca é como deveria ser. 
Já Lacan, em relação a isso, foi mais longe, com uma expressão 
decisiva, que daqui a pouco, entre nós, explicaremos: "Não há 
relação sexual". Ali onde Freud termina!ma obra, dizendo: "há 
uma felicidade possível entre um homem e uma mulher", Lacan 
diz: "é aí que os verdadeiros aborrecimentos começam". É 
importante para nós sabermos por que, pois podemos pensar 
que a mutação cultural que está ocorrendo tenta responder à 
falta de relação sexual, tenta curar esse sintoma. 
Então, se os senhores quiserem, vamos passar alguns 
minutos tratando desse problema. 
Primeiro elemento de escândalo: um homem 
e uma mulher, em nosso dispositivo cultural, 
não são feitos um para o outro? 
l'.'. um escândalo. Por quê? 
Vamos corne<,;ar com o que acontece para uma mulher. 
Freud já tinha observado o seguinte: o que uma mulher demanda 
a seu marido, é o que sua mãe não lhe deu. Não é o que concerne 
ao homem, é o que concerne ao que sua mãe não lhe deu, o 
amor que ela não lhe deu. E esse amor tem um signo: o falo, 
ele se chama falo. Por que sua mãe, em testemunho de amor 
por sua filha, não lhe deu o falo que ela supõe que sua mãe 
tem? Ela tem, por exemplo, aquele do pai. E por que ela não dá 
nada a sua filha? 
É por isso que aquilo que a mulher vai demandar a seu 
marido é que lhe dê esse instrumento que a mãe não lhe deu. 
Ela quer que esse instrumento seja como se fosse o seu próprio, 
que ele esteja a seu inteiro dispor. 
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Parte I 17 
Eu não sei se os senhores viram, no Brasil, um filme 
japonês que se chama "O Império dos Sentidos". É um filme 
que mostra um fato que aconteceu no Japão, nos anos 30, e 
que conta a histó1ia verídica de uma mulher que amava muito 
seu amante e que, com ele, tinha relações sexuais muito felizes, 
apaixonadas. Ela o adorava, só pensava nele, queria-o 
inteiramente para si, não podia separar-se dele. Não podia 
suportar que houvesse uma distância entre os dois, o que fez 
com que um dia, nessa paixão amorosa- aqueles que viram o 
filme conhecem a história-, ela pegue uma faca e retire-lhe o 
sexo, para tê-lo em seu bolso. Esse sexo tão amado, tão 
desejado, cm seu próprio bolso. Ela foi encontrada pela polícia 
vagando pelas ruas, completamente perdida, desorientada, e 
em seu bolso foi encontrado o sexo maravilhoso de seu amante, 
envolvido em um pano. 
Acontece que esse filme, por muito tempo, foi proibido 
na França, e houve uma apresentação privada. Lacan 1 
convidou alguns de seus alunos para ver esse filme. Então, tive 
a oportunidade de vê-lo com ele. Estava totalmente claro que, 
para ele, esse ato da mulher representava a realização de seu 
fantasma2 , do fantasma próprio ao amor e ao desejo de uma 
mulher. Só que, como sabemos, esse ato pc1111anece como 
excepcional em sua realidade física, não é dos mais freqüentes. 
Em sua realidade imaginária é outra história. Mas em sua 
realidade fisica, ele é raro. O que faz com que -à medida que 
uma mulher tem o sentimento de que o homem que ela ama e 
deseja não é capaz de colocar inteiramente à sua disposição o 
signo de amor que ela deseja - ela fique obrigatória e 
regularmente ciumenta, já que tem sempre o sentimento de 
que há algo - é muito fácil pensar que é uma outra mulher, ou 
que é ele que não quer se resolver a agir-, e nesse momento 
ela fica com ciúmes dele. 
É deste modo que o ciúme feminino é um componente 
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Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
comum da relação conjugal. Portanto,já vemos que para uma 
mulher a consumação genital deixa uma insatisfação. 
Agora, vamos ver as coisas pelo lado do homem. O 
problema para um homem é que quanto mais ele ama sua mulher... 
Eu ainda vou dizer mais duas coisas escandalosas, mas se os 
senhores não estiverem de acordo, podemos discutir e então vão 
me mostrar se estou errado. Eu só peço para estar errado, estou 
pronto para ser convencido do contrário. Mas, o problema para o 
homem é que quanto mais ele ama sua mulher, mais deseja outra. 
Isso é um verdadeiro escândalo. Por que será que somos 
construídos dessa maneira? 
É a isso que Lacan tenta responder. Somos construídos 
lk:ssa forma, porque a estrutura do fantasma em um homem e do 
desejo cm um homem ·- os senhores conhecem a esc1ita que 
l ,acan dú ao fantasma: $<>a-, quer dizer que é de ser sempre 
ai imcntado por uma outra coisa. Em outras palavras, quanto mais 
a mulher que ele ama e adora está próxima, quanto mais for familiar, 
mais ela perde seu caráter de alte1idade, mais é amada e menos 
desejada [Ah·oroç·o do público]. Os senhores se interessam por 
isso? Sim, é rreciso se escandalizar! 
Ú por isso que a mulher amada sempre fica surpresa ao 
ver o olhar de seu marido fixado em uma outra ... Uma outra! O 
que está cm causa aqui é o problema do Outro da outra. Portanto, 
se obse1vamos a clínica da vida conjugal poderemos ve1ificar corno 
ela é dominada pelos sintomas e pelos esforços que são feitos pelo 
homem e pela mulher para que tudo fique bem entre eles. 
Eles se acusam a si próprios, antes de acusar o cônjuge, 
por não serem capazes de viver o ideal da conjugalidade. Os 
senhores perceberão que o que estou lhes dizendo esta manhã, e 
admiro-me que suportem isso, não se conta para muita gente. 
Mantém-se isso justamente sob o recalcamento. 
Então, há um segundo elemento que deve, creio, nos 
revoltar. Se eu estou falando tudo isso é para compreender o 
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Parte I 19 
caminho de Lacan e porque ele buscou uma saída possível do 
sintoma, que não fosse o segundo mal-estar na cultura, ao qual 
assistimos, e do qual falarei. 
Segundo elemento de escândalo: o 
que causa o desejo no homem e na mulher, 
não é uma pessoa, é um objeto 
Isso é completamente estranho no reino animal, no qual 
nunca se viu um objeto poder ser causa do desejo. 
O que é um objeto? Será que - aqui juntos vamos 
discutir todos os conceitos --- não vamos considerar que eles 
sejam de domínio público, que os compreendamos e que sejam 
fáceis de compreender? Quando leio a palavra objeto, pergunto: 
o que é um objeto? Como os senhores definem um objeto? 
Para me ajudar, será que os senhores têm um início de resposta? 
Têm? Fala-se o tempo todo de objeto, mas o que é o objeto? 
Os senhores sabem que os romancistas, quando 
descrevem os objetos familiares, sempre lhes emprestam uma 
subjetividade. Por exemplo, quando tem uma chalÇ.irn no fogo, 
eles dizem: a chaleira ronca, ou a chaleira apita, ou a chaleira 
treme. T~illQ-~ÇJn_pxe.aJendência para emprestamos objetos. 
Lima subjetividade e muita dificuldade em pensá-los como_ 
desprovidos de alma. Pouco importa a razão, não é iss_o que, 
nos interessa aqui, senão que, no fantasma, o objeto é 
precisamente o que renunciou a toda subjetividade. A 
manutenção da subjetividade constitui um limite à consumação 
do gozo. 
Pois bem, no fªl)_1ª§.mª.,_Q_g)?j~!o é q_ q_~_~_r~mJ.ncioµ.a 
tQ.Q-ª_§!,(bj_~tividade e, portanto, a todo limite colocado ao g9z.o. 
É o que explica a pppµlaridade do fantasma sádic_o: tratar o 
parceiro, ou ser tratado como um objeto, não como um sujeito. 
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Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
Essa dimensão é, igualmente, um elemento de escân-
dalo na realização sexual. É bem comum que uma mulher rei-
vindique ser tratada como um sujeito e não como um objeto. 
Ela tende a achar que é degradante para ela ser tratada como 
um objeto, e tanto quer se afirmar como ~ujeito que faz ouvir a 
reivindicação, que é sempre o próprio de um sujeito, porque o 
sujeito se caracteriza sempre por uma demanda, pelo testemu-
nho de uma insatisfação. Um sujeito não se mantém na ex-
sistência senão com a condição de estar insatisfeito. 
Permito-me lembrar que o que estou dizendo aqui 
continua sendo a escrita de Lacan em relação ao fantasma. 
Quer dizer que$, o sujeito, não se mantém na ex-sistência 
senão com a condição de que o objeto a seja mantido à distância. 
Se o sujeito do desejo for perfeita e totalmente pn.:cnchido pelo 
objeto a, ele desaparece como sujcito. Foi u quc aconteceu 
com essa mulher que teve esse gesto com seu amante. Ela 
consumou seu fantasma e estava despersonalizada, pcrdida, 
ncm mais sabia sua identidade. P,2.rt~mt_o, o sujeito somente sc 
Q..11!.ntém com a condição de pemianecer insatisfeito. O que 
quer dizer simplesmente que quanto mais uma mulher tenta 
Jt1zer reconhecer sua ex-sistência de sujeito, mais é votada a 
ser insatisfeita. E, como sabemos pela clínica, é o caso mais 
comum. 
Portanto, os senhores vêem que há algo errado na nossa 
organização sexual, uma disfunção, um erro. Temos que levar 
isso em consideração para interpretar os fenômenos culturais 
a que assistimos. Tomemos uma situação favorável, por 
exemplo, aquela do marido que é um bom rapaz. Há muitos 
bons rapazes! Isso sempre me surpreende! Ele quer satisfazer 
a demanda de sua mulher, quer que ela seja feliz, sente-se 
culpado por não poder assegurar sua felicidade. Portanto, vai 
agir com ela como se estivesse inteira e efetivamente a seu 
dispor e como se seu próprio sexo fosse também dela; pl'lo 
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Parte I 21 
menos, que ela tivesse perfeito domínio desse sexo. Ele não 
tem chance de êxito, P,Q!:9,_ll:e a demanda feminina não é tanto 
de ter o objeto, mas de poder, como o homem, ser marcada por_ 
un1a castração, quer dizer, ser definitivamente p1ivada do objeto 
causa do desejo. O que ela quer não é tanto o objeto, mas a 
ÇQJ_1stituição, para ela, de uma falta de objeto. 
E os senhores sabem que quanto mais o marido tenta 
satisfazer sua mulher, mais é complicado para ela. Há uma 
bela análise que Lacan faz desse problema, que concerne a 
um sonho citado por Freud em Die 1,·aumdeutung3. É o sonho 
da "bela açougueira". Uma mulher, que é bela e casada com 
um açougueiro, que é f01ie, um belo homem, muito rico; ele 
quer que sua mulher seja feliz. Ele lhe dá tudo que uma mulher 
pode desejar. E essa mulher sonha. f~.soniJ.9 ela tem?_EJa. 
tem sonhos de insatisfação: é isso que ela poderia querer, isto 
-·-·-- ...... 
é, que seu próprio desejo estivesse estruturado por urna 
ir1_~a!jsfação fundadora, como é o caso para o homem. 
Eis aqui, portanto, um lembrete para nos esclarecer de 
que maneira Freud -- a quem creio que todos amamos, 
respeitamos, e que é genial - fechou a psicanálise em um 
impasse, fazendo da felicidade genital, associada à procriação, 
a culminância da nonnalidade. É por isso que aprendemos a 
considerar a..12r_~§egça do sintoma como central na vida sexual. 
Esse arranjo mal feito entre o homem e a mulher, esse 
fato -- como diz Lacan - de não haver relação sexual, agora 
entendemos sua expressão: porque a relação da mulher é feita 
com o falo, que é o que lhe interessa. E a relação do homem é 
feita com o objeto a, que estrutura o fantasma. 
Nem um nem outro podem encontrar-se porque eles 
não estão falando da mesma coisa, não têm o mesmo objeto e 
nem a mesma estrutura lógica. Eles assistem ao mesmo 
espetáculo e não vêem o mesmo filme. Cada um vê o filme à 
sua maneira. E os senhores sabem que quando acontece -por 
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exceção ... -que um homem e uma mulher briguem, ninguém 
entende o que o outro está falando, as acusações do outro; 
tem-se sempre o sentimento de que se está falando com um 
outro. Quer dizer, nenhum deles têm o sentimento de ser 
reconhecido em sua ex-sistência, de ser reconhecido como 
sujeito,já que para um e para outro é um objeto que causa o 
desejo e que dá o preço ao corpo do parceiro. 
Proponho que agora possamos discutir. 
Notas 
1 l ,acan laz referência a essa sessão de cinema, para a qual convida 
algulllas pessoas, no Seminário 23, Le sintlw111e, lição de 
16.03.1976 (inédita). (N. da Revisão final) 
" Em francês .fú111as111e. "Fantasma" é uma escolha que visa a 
diferenciação tanto da fantasia klciniana quanto do sentido comum 
de fantasia, como devaneio, aludindo a algo que não se situa no 
campo do conhecimento, ainda que outros prefiram "fantasia", 
equivalente quase perfoito do termo alemão Plwntasíe. (N. da 
Revisão final) 
·
1 S. Freud, A i11teqJretaçâo dos sonhos, 1900a, no capítulo sobre 
"A deformação dos sonhos". O sonho referido por Freud como 
do "salmão defumado" é retomado por Lacan em "A direção do 
tratamento e os princípios de seu poder", no capítulo 5, "É preciso 
tomar o desejo ao pé da letra", em Escritos, Rio de Janeiro, J. 
Zahar, 1998. Mas é no seminárioAs.fbrnwç<Jes do inconsciente, 
na lição de 09.04.1958, que Lacan batiza esse sonho de "o sonho 
da bela açougueira", retomando-o inúmeras vezes ao longo de 
seu ensino. (N. da Revisão final) 
Parte II 
Respondendo perguntas sobre: 
feminilidade, Internet, objeto a e 
falo, miséria social, posição do 
psicanalista 
L. Cardon: A primeira questão: queria entender sua 
posição cm relação à leitura de Frcud,já que aquilo que o senhor 
mencionou a n.:speito da normalidade, cu situaria antes ao rcuor 
de 191 O, cm especial no m1igo "O porvir da terapia analítica" 1, 
no qual Freud nos convida a uma resistência à hipocrisia social, 
em urna posição muito diferente da que tomará a partir dos 
anos 20, especialmente a pat1ir 1923, com as questões do falo 
e da sexualidade feminina. Esse seria um dos aspectos a ser 
discutido. 
A segunda diz respeito a algo dessa linguagem diforente, 
visto que atualmente vemos uma menor relação entre os sexos 
e uma maior relação com os computadores, e, mais do que 
nunca, as piadinhas que circulam na Internet tratam da diferença 
dos sexos. 
Como terceira questão, pergunto se sua interpretação 
do filme mudaria em algo se eu lhe recordasse que a partir da 
encenação das perversões e dos atos sexuais, os amantes 
passam a uma relação do orgasmo com a m01te, culminando 
com a morte do homem e o encontro dela pela polícia, nua, 
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pintada de sangue e com o pênis na vagina! 
Ch. Melman: Agradeço sua pergunta. A posição de 
Freud sobre a sexualidade é muito clara cm sua notável obra 
de 1915, que é a Introdução à psicanálise~. Nessa obra ele 
busca uma sistematização da psicanális~ e diz muito bem que o 
sintoma está ligado à manutenção, no sttjeito, de uma sexualidade 
infantil, portanto perversa, e que se ele tem acesso à genitalidade, 
chega à normalização e portanto, à queda do sintoma. 
Por outro lado, no texto de Freud sobre a feminilidade 
--- que, creio, é mais tardio, creio que é de 19253 -, ele sustenta 
uma concepção da mulher que é muito difícil de aceitar; não 
por razões éticas, mas por razões clínicas. Efetivamente, nesse 
texto ele faz da mulher um menino que renunciou a uma pane 
de sua virilidade. Ele faz dela uma criatura que é 
fundamentalmente idêntica ao homem, mas que aceitou 
renunciar a uma pa1te de sua virilidade, e ele diz bem que não 
é a toda virilidade, é a uma parte da virilidade, para aceitar um 
gozo vaginal. Então, em relação a isso, todo esse texto mostra 
a dificuldade que Freud tem para tratar essas questões. 
O que o senhor levanta em relação à Internet é 
efetivamente um fenômeno muito importante, o qual serei 
levado a retomar, se puder. Para dizer uma palavra 
imediatamente em relação a isso, o que permite essa 
comunicação generalizada, como as pessoas poderiam se 
entender, se posso falar assim, quando se realiza uma 
comunicação generalizada desse modo? O que há de comum 
entre todos os interlocutores da Internet? Com efeito, para 
podermos falar juntos, é necessário termos algo em comum, 
caso contrário não podemos nos entender. O que têm em comum 
esses interlocutores da Internet? Se me permitir, vou abordar 
esse assunto mais tarde. 
Em relação ao que o senhor evocou sobre o filme, tem 
razão de dizer que há um gozo com a morte, quer dizer, por 
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exemplo, manobras da mulher de estrangulamento do homem 
durante as trocas sexuais. Mas será que não poderíamos 
reconhecer - com base na fóm1ula do fantasma que Lacan 
nos dá - que aquele que quer ir ao ponto final do gozo, quer 
dizer, ao ponto em que ele consiga pegar o objeto a, ele 
efetivamente se expõe à morte, quer dizer, ao desaparecimento 
do sujeito da subjetividade? 
É o problema da pulsão de morte que, como sabemos, 
Freud quis separar da pulsão libidinal: colocar Eros de um lado 
e Thanatos de outro. É uma posição muito estranha a de Freud. 
O mínimo que se pode dizer é que ela nos aproxima das filosofias 
orientais tradicionais. O que Lacan tenta mostrar, com a escrita 
do fantasma, é que a pulsão de m011e é interna à pulsão libidinal. 
A. Jerusalinsky: Não estou seguro de que hoje a 
maior freqüência seja de escutar a mulher reclamar ser tratada 
como sujeito. 
Ch. Melman: Tudo depende dos lugares que você 
freqüenta ... 
A. Jerusalinsky: A afluência às academias de 
ginástica, à cirurgia estética, denota um viés do sintoma no 
qual há uma demanda de ser tratada como objeto. Conhecemos 
a popularidade erótica do personal trainer. Nesse ponto, a 
mulher é mais sintônica com a atual tendência do discurso de 
situar o sujeito diante de uma produção supletiva, do objeto 
como assegurador do laço, a mulher parece estar mais inclinada 
a reclamar - ao mesmo tempo - ser tratada como sujeito e 
como objeto, ou seja, como "toda". Daí a desorientação dos 
homens. 
Ch. Melman: Alfredo, você tem razão. É verdade 
que nós nos engajamos efetivamente nesse estilo. Porém, 
percebam o seguinte: vemos cada vez mais escritoras. Em Paris, 
temos um amigo que durante muito tempo ocupou uma função 
de editor, e ele me falou de sua surpresa em constatar que na 
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primeira parte de suas vidas, as mulheres se ocupavam de seus 
filhos e na segunda parte de suas vidas elas se ocupavam de 
seus livros. O que uma mulher vai buscar nessa escrita? 
Penso que é algo bastante simpático e creio ser a 
tentativa de c1iar uma subjetividade especificamente feminina. 
Um ponto de vista em relação ao mundo que seria 
especificamente feminino, uma escrita que permitiria que se 
reconhecesse imediatamente a feminilidade. O ser feminino, 
que 6 obrigatoriamente enigmático, encontrmia sua realização 
na manifestação de uma subjetividade específica. Esta é a 
objeção, se você aceitar, totalmente parcial, que eu faria em 
relação à sua observação, com uma questão que vou abordar 
daqui a pouco: será que há uma subjetividade feminina? 
Sabemos que essa questão é muito antiga, pertence à 
tL:ologia, e as discussões de teólogos a esse respeito s:10 muito 
cultas. Parece-me interessante que tenhamos sempre as 
mesmas questões, e depois, na continuidade, veremos de que 
maneira podemos, creio, respondê-las.
T. Nazar: O senhor fez uma referência à quest~1o da 
mutação cultural dos novos tempos e pergunto qual a relação 
dessa mutação cultural -me parece que tem a ver com o próprio 
movimento do processo de civilização e que seria talvez na 
direção de uma destruição da experiência de discurso, que é a 
experiência do sujeito -- com o surgimento de novas formas 
sacrificiais? 
Ch. Melman: Você tem toda razão, mas o que 
veremos justamente é de que maneira a mutação cultural lenta 
resolver esses sintomas que estou evocando. Creio que esse é 
o preço dessa mutação cultural e por isso não podemos tratú-la 
apenas com uma espécie de recuo apavorado. Veremos, 
efetivamente, que essa mutação cultural implica outros 
sintomas. Como acontece sempre: o que, por um lado, cstú 
curado, por outro, passa a ser sofrido. E tentaremos vcr,juntos, 
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Parte II 27 
quais são os tipos desses novos sintomas com os quais temos 
que lidar. 
M. do Rio Teixeira: O comentário do senhor sobre 
a não relação sexual me fez lembrar seu seminário publicado 
sob o título: Livre co111pag11on de R S14, no qual distingue dois 
tipos de desejo: um suscitado pelo objeto a e o outro suscitado 
pelo falo. Parece-me que o senhor não usava essa expressão, 
mas eu entendi que o desejo suscitado pelo objeto a seda mais 
arcaico. Sempre tive dificuldade em entender essa distinção, 
apesar de achar que havia algo aí, mas não encontrava muitas 
pistas na teoria. Tive a surpresa de ver em outra conferência 
sua, mais recente, novamente uma referência a essa distinção 
entre o objeto a e o falo, desta vez entre dois tipos de gozo, na 
qual o senhor frisava bastante essa distinção. Peço-lhe, se 
possível, para aprofundar essa distinção entre dois tipos de gozo 
e dois tipos de desejo, um do lado do falo e outro do objeto a. 
Ch. Melman: Se somos racionalistas, ternos um ~ 
fenômeno a explicar: por que, no reino animal, somos os únicos 
cujo desejo é constituído pela perda do objeto essencial e mais 
caro? Por exemplo, para urna criança, o fato de ter que renunciar 
à sua mãe. Então, insisto, se somos racionalistas lemos que 
primeiramente explicar esse fenômeno que não tem nada de 
natural. Na natureza nunca vemos isso. Então, quais são os 
mecanismos que nos condenam a uma experiência tão complexa 
e infeliz? 
Freud respondeu a isso colocando o complexo de Édipo 
no centro dessa organização. Mas, Freud tem uma grande 
dificuldade em passar do gozo infantil e perverso-que concerne 
sempre a um objeto - ao gozo genital que vai concernir a uma 
pessoa. Ele passa por isso rapidamente, mas percebemos bem 
que ele não consegue fazer junção entre um gozo objetal - que 
a teoria chamou de gozo parcial - e a escolha de uma pessoa. 
Por outro lado, a temia freudiana coloca a culpa no pai. Nossa 
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infelicidade sexual é o que nós devemos ao pai. E temos o 
direito de pensar que o descrédito atual da figura paterna não é 
. estranho à difusão do freudismo, vemos o resultado disso na 
clínica. É que o descrédito da figura paterna não ajuda de 
maneira alguma os adolescentes, os jovens, a encontrar sua 
identidade sexual e a realizar sua consumação genital. 
Lacan procede de modo bem diferente e isso é 
desenvolvido no texto que ele colocou no início dos Escritos, o 
"Seminário sobre 'A carta roubada "'5. O que é que diz Lacan? 
Ele diz: o jogo da linguagem irnplicaaquedaregulareordenada 
de uma letra. E à medida que o jogo dos significantes remete a 
um puro nada, esse nada vai ser habitado pelo cmvo dessa 
letra. O que povoa o Real é a letra, que vem, portanto, dar 
corpo ao objeto possível de um gozo. Por que possível? E qual 
é a função do falo nessa operação? 
O falo, como instância una, como tra~·o unúrio na teoria 
de Lacan, cuja repetição jamais permite faltar o ol~jcto; 6 esse 
traço unário, o falo, que pode dar valor sexual a esse objeto a, 
porque esse objeto a, cuja queda está ligada a fisiologia da 
linguagem, pode muito bem não ter sentido nenhum, pode não 
ter nenhum valor sexual. 
I lá, então, de ce110 modo, uma cumplicidade entre falo 
e objeto a, para dar primeiramente sentido sexual a esse objeto 
que a cadeia significante busca, sem nunca encontrá-lo; porque 
um significante só remete a outro significante. É o objeto a que 
vai constituir o corpo do objeto do desejo, a causa do desejo e 
o que lhe dá um corpo. O desejo é instaurado pelo foto de a 
cadeia significante remeter ao que escapa sempre, e que 6, 
p011anto, o nada, mas no lugar ocupado por esse nada, o desejo 
encontra este objeto singular que é a letra, que é o corpo do 
gozo, o corpo real. 
Há pouco, respondendo a Alfredo Jcrusalinsky, 
mencionava essas mulheres que investem na escrita, mas é 
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verdade que há um gozo da letra, da letra como tal. 
Nesse "Seminário sobre 'A carta roubada"', Lacan 
evoca o caráter feminilizante da _letra: naquele que é habitado 
pela letra, que tem a letra como objeto principal de interesse, 
sente-se um efeito de feminilização. E também poderia lembrar-
lhes de que maneira, na religião hebraica, para nossa grande 
surpresa, o objeto sagrado é a letra. A letra como organizadora 
da ordem e da constituição do mundo. Os senhores sabem que 
na religião hebraica é proibido destruir uma letra. Creio que, 
com essa resposta, pude lhes dar uma idéia desta relação 
estranha entre o falo, que se escreve como 1, e a letra, que se 
escreve como a, e com a impossibilidade lógica de jamais fazê-
los se reunirem. 
O que representa muito bem a letra é a seqüência dos 
números reais -- números csc1itos entre O e 1. Os senhores 
sabem que podem ir tão longe quanto quiserem nessa escrita, 
mas nunca vão conseguir juntar o 1 e a seqüência de números 
reais. Os senhores podem escrever 0,999 ... , quantos noves 
quiserem, nunca vão chegar ao 1. E isso é uma imagem para 
fazê-los sentir a heterogeneidade essencial entre o traço unário, 
o I e o objeto a. 
Pergunta: Questão ligada ao mal-estar na cultura 
atual, particularmente relativo à pobreza e ao modo de 
constituição <las famílias, com muitos filhos e diferentes pais. 
Ch. Melman: Estou contente de ver que os jovens 
que eu não conheço, me ouviram muito bem, e vou dizer porque. 
É um fenômeno geral que nos países ou nas zonas mais 
deserdadas a natalidade seja maior e também, freqüentemente, 
o número de mulheres. Infelizmente, as razões para isso são 
simples. Por que esses homens a quem o estatuto social não 
reconhece, que são desprezados e não têm outros meios de 
verificar sua dignidade de homem senão tendo, justamente, 
filhos, e, eventualmente, muitas mulheres? É a única maneira 
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que dispõem para verificar, aos próprios olhos, sua humanida-
de. Portanto, digo que esse é um fenômeno de todo geral e, 
assim sendo, espero que todos sejamos sensíveis ao que é a 
miséria social. Mas há uma miséria mental, que é mais grave. 
Lacan tem uma fonnulação surpreendt::nte. Ele diz que aquilo 
do qual o trabalhador permanecerá servo, não é do mestre, 
mas do gozo, quer dizer, quando o progresso se inscreve ape-
nas no número da produção de bens, podemos apreciar que a 
miséria social diminui, mas podemos temer que a miséria men-
tal se agrave. E é por isso que a psicanálise está diante de um 
desafio: será que ela pode preservar o espaço de pensamento 
no qual um homem possa refletir
sobre sua conduta, suas es-
colhas, sua maneira de viver e não ser apenas um indivíduo 
feliz na massa? 
Hoje assistimos, ao lado da pobreza social, também à 
felicidade de massa, a gozos de massa, a prazeres de massa. 
Portanto, concordo plenamente com você, !alvc;1, sejamos a 
única disciplina - e fico meio preocupado de pensar nisso -
que dispõe de conceitos para não ser inteiramente dominada 
por esses mecanismos. Teremos oportunidade, durante estas 
jornadas, de falar seriamente sobre isso. 
Pergunta: Questão ligada à banalização do discurso 
da psicanálise e à posição de não responder à cultura com o 
discurso psicanalítico, mas procurar falar mais entre 
psicanalistas sobre a questão da psicanálise. 
Ch. Melman: Concordo plenamente e posso dizer-
lhe que a psicanálise não pode ser uma psicoterapia social. Ela 
não pode trazer remédios ou soluções em uma escala social e 
não pode de maneira alguma se apresentar como um guia de 
conduta social. Assim sendo, quando um psicanalista vem a 
público e respeita a psicanálise, esta tem urna vittude subversiva, 
uma virtude incômoda, que provoca m1icária. Era o papel que 
a filosofia tinha na Antiguidade, uma maneira de fazer com que 
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as pessoas tivessem um pouco de espanto em relação a sua 
existência. 
Se um psicanalista, que intervém em público, não tenta 
nem agradar nem seduzir, mas sim dizer frontalmente quais 
são suas posições, ele vai ser hoje um dos raros a poder manter 
uma oposição que não seja apenas leviana. Por exemplo, há 
movimentos de oposição à globalização, mas são movimentos 
levianos, quer dizer, que não têm suporte teórico capaz de 
sustentar uma reflexão e de justificar plenamente a oposição. 
Creio que, hoje, no momento em que nos prometem toda 
felicidade e todo progresso, a psicanálise é estranhamente a 
única a dizer: "não, assim a coisa não está funcionando". E 
penso que isso merece ser dito publicamente. 
Notas 
1 S. Freud, 191 Od. (N. da Revisão final) 
2 S. Freud, 1916-17a. (N. da Revisão final) 
3 Charles Melman provavelmente refere-se ao texto de S. Freud, 
"Sexualidade feminina", de 1931. (N. de Leda Mariza Fischer 
Bernardino) 
Neste texto de 1931 b, Freud retoma suas postulações de "Algumas 
conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre sexos", 
l 925j, mas não faz qualquer referência ao ai1igo escrito seis anos 
antes. (N. da Revisão final) 
4 Ch. Melman, lntroduction au séminaire R SI de Jacques Lacem, 
Paris, Association freudienne intemationale, 1991. (N. da Revisão 
final) 
5 J. Lacan, Escritos, op. c:it. (N. da Revisão final) 
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Nota
explicação o que é leviano
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Parte III 
Existe um sujeito feminino? 
Hoje de manhã paramos em uma questão sobre a qual 
gostaria de dizer que, até hoje, não foi perfeitamente resolvida. 
É a questão de saber se existe um sujeito feminino. Como os 
senhores sabem, Lacan diz que um significante é o que repre-
senta um sujeito para um outro significante. O que isso quer 
dizer? Isso quer dizer que - contrariamente ao que fazem os 
lingüistas - Lacan não faz do significante o representante de 
um objeto como, por exemplo, Saussure. Ele também não faz 
do significante o meio de uma significação. O que diz Lacan, a 
partir de sua experiência psicanalítica, é que cada vez que en-
contramos um significante- não um signo - estamos lidando 
com um sujeito; e que o significante é o que representa um 
sujeito para um outro significante. Os senhores conhecem esta 
escrita de Lacan: 
S1 é o que representa um sujeito para um outro 
significante. S1 e S2 não estão no mesmo espaço. Aqui [no 
quadro] eles estão no mesmo plano (S 1 ~ S2), mas na 
realidade, s, pertence ao campo das representações e S2 ao 
espaço do Real. Há, portanto, entre S1 e S2, uma diferença de 
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espaço. Se$, o sujeito, é representado por um significante para 
um outro significante, é porque entre S1 e S2 há sempre um 
corte; esse corte que marca aqui o sujeito: $. Entre S1 e S2 há 
uma falha, e é essa falha que constitui o suporte do sujeito. 
Quando lidamos com significantes,_, é essa falha que eles 
representam. 
Mas os senhores podem dizer: sim, mas por que o sujeito 
nessa falha? Porque é dessa falha que se origina a fala, a 
enunciação. É a partir dessa falha que a voz ocupa seu lugar. 
Então, se um significante é o que representa o sujeito para um 
outro significante, qual é o sexo desse sujeito? Será que ele é 
masculino ou feminino? 
No caso habitual, esse sujeito,$, é n.:prcscntado por 
S1, por aquele que figura no campo das representações. S1 
representa$ para S2, po1tanto, podemos dizer que se o sujeito 
é representado porS1, é um sujeito masculino. Mas, $pode ser 
representado por S2 junto a S1• Isto é, como sujeito, cu posso 
sempre querer que S2, que está do lado do Real - que está do 
lado que suporta a feminilidade -, entre no campo das 
representações e até mesmo o constitua. Isso quer dizer que o 
sujeito da fala não é nem masculino, nem feminino. Ele pode 
ser representado tanto por S 1 junto a S2 -·- e nesse momento 
valer como sujeito masculino --- ou por S2 junto as., e reclamar 
seu direito como sujeito feminino. Mas na estrutura é sempre o 
mesmo sujeito. Porém, a diferença de espaço entre S1 e S2 
acarreta conseqüências clínicas importantes. Com efeito, se o 
$ é representado por S1, pelos significantes que fazem parte do 
campo da representação e que são, portanto, organizados pela 
castração - já que tudo o que para nós pertence ao mundo da 
representação é marcado pela castração-, ele encontra nesse 
lugar que constitui a castração, no limite que ela constitui, a 
autoridade que fundamenta sua argumentação. No campo da 
representação - evoco para aqueles que têm familiaridade com 
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Parte III 35 
a teoria lacaniana - há sempre esta exceção, este "ao menos 
Um", que constitui o referente que dá, então, autoridade ao 
sujeito que se autoriza desse significante. 
Do lado de S2 estamos em um campo onde não há 
castração. O sujeito que tenta se fazer reconhecer como 
feminino, a partir de S2, não encontra a autoridade que 
fundamenta sua palavra e sua existência. É por isso que, em 
geral, o sujeito que tenta fazer ouvir uma voz feminina, isto é, 
que quer ser representado por S2 e que não encontra nesse 
espaço um referente que lhe dê autoridade, é obrigado a elevar 
a voz, a gritar, a insistir. Ele busca a todo preço fazer reconhecer 
uma existência feminina- um sujeito feminino--- mas que não 
tem referente para lhe dar autoridade. 
Temos aí o dispositivo que leva em conta a dificuldade 
do diálogo entre um homem e uma mulher. Porque os 
significantes que o homem reivindica para si, com os quais se 
autoriza, adquirem seu poder em referência a esse "ao menos 
Um", a quem é atribuído o fato de ter causado essa castração. 
Dito de outro modo, o ho1m:rn pode dizer qualquer coisa, ele 
sempre tem razão. [Neste momento, ouve-se o estrondo de 
um trovão. O público ri.] Não se deve cutucar os deuses. 
Uma mulher pode dizer coisas excelentes, mas não há 
autoridade que fundamente os significantes que ela reivindica 
para si. Há ainda uma grande diferença em relação à qual 
chamo a atenção dos senhores: é que do lado masculino, há 
uma lógica potencial que está em ação. O que isso quer dizer? 
O que quer dizer uma lógica? 
Uma lógica quer dizer que, em uma seqüência de signos, 
há um dado momento no qual um signo, um elemento não é 
admissível, deve ser rejeitado, é falso. Todas as lógicas são 
constituídas por um dispositivo dessa ordem, que mostra que, 
em um dado momento,
há um signo, um elemento que é 
rejeitado. Quer dizer que, do lado masculino, há uma validação 
36 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
do "sim" e do "não"; do "é isso" e do "não é isso". 
Do lado feminino, onde a castração não funciona, nesse 
campo onde se acha S2, o "sim" e o "não" não são logicamente 
fundamentados. Quer dizer que uma mulher tem a tendência 
de não dar muito crédito ao encaminhai:nento lógico da fala, ela 
pode fazer com que propostas contraditórias se sigam uma às 
outras. E ela não está errada, porque de seu lado é correto. De 
seu lado não há um elemento caído que venha a suportar o que 
é interdito, o que não é possível. 
Portanto, como os senhores vêem, a questão do sexo 
do sujeito e a questão de saber se há um sujeito feminino, é 
inteiramente renovada por essa escrita, já que ela nos mostra 
que esse mesmo sujeito, esse sujeito único pode perfeitamente 
ser feminino. Mas, nesse caso, ele não se autoriza senão dele 
mesmo. Agora, o que acabo de anotar no quadro (p.33) pode 
nos servir para avançarmos na questão relativa à conjugalidade 
e, também, para que coloquemos a questão Je uma outra 
maneira. 
O que faz com que os casais se mantenham 
juntos? 
Enfim, há alguns casais que se mantêm juntos. O que 
faz com que os casais se mantenham juntos? Então, podemos 
responder: é o gozo que eles encontram, um com o outro. É 
uma resposta que gostaríamos de dar, porque seria agradável 
pensar assim, seria uma coisa boa. O problema é que isso nem 
sempre é verdadeiro. Temos até a surpresa de constatar, quando 
escutamos rapazes e moças no que diz respeito à organização 
de sua vida amorosa e da escolha do cônjuge, que aquck ou 
aquela que foi escolhido não é obrigatoriamente aquck com 
quem eles encontraram o melhor gozo. Isso é muito L·urioso. 
Parte Ili 37 
Não é raro que, por exemplo, uma moça encontre um homem 
com quem ela seja sexualmente muito feliz, mas não é com 
este que ela vai ficar. E não é raro constatar que para o rapaz 
freqüentemente ocmTa a mesma coisa. 
Mas, então, o que faz com que o casal se mantenha 
junto? Podemos falar, claro, que é o dever. E é verdade. É 
verdade que o dever, as obrigações materiais da vida, os filhos, 
o respeito pela religião, fazem com que um casal fique unido 
apesar do fracasso de seu gozo. 
Contudo, será que é esse fracasso do gozo que segura 
o casal junto? Se assim for, será ao preço, como sabemos, de 
reivindicações recíprocas, e é isso que mostra bem nossa 
barbárie. Para mim, a barbárie é a incapacidade de levar cm 
conta as leis da linguagem, pois nesta há leis. Cada vez que 
desconhecemos as leis da linguagem, na minha opinião, entramos 
na barbárie. Se for esse fracasso o que organiza a manutenção 
do casal, entramos no domínio das reivindicações recíprocas. 
Quer dizl:.r, a mulher, no casal, vai se tornar uma mãe, o que 
para ela é a única maneira de ser falicamente reconhecida. É 
por isso que a maternidade tem um papel tão importante no 
futuro das mulheres. E para o homem, que vai ter em casa 
mais uma mãe do que uma mulher, é freqüente que sua 
sexualidade se torne delinqüente, que escape justamente à 
nonna do casal, que vá buscá-la fora da vida do casal. É a 
reivindicação recíproca,já que a mulher criticará o homem por 
não ser um verdadeiro homem, porque ele não conseguirá, além 
de tê-la feito mãe, fazer dela uma verdadeira mulher. E quando 
o homem não é um verdadeiro homem, é freqüente, que a 
mulher se devote a tentar fazer dele um verdadeiro homem. 
'J;:odos conhecemos as situações nas quais a vocação feminina 
é ;~târ faz.e"i;dõ"côrijlige uni verdadeiro homem. . 
Não vou continuar mais na lista de reivindicações 
recíprocas. Em todo caso, ou a mulher conserva sua alteridade, 
Patrícia
Realce
38 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
e nesse caso o homem a critica por ela permanecer estranha, 
ou então ela aceita se tornar familiar e semelhante e, nesse 
caso, como falei hoje de manhã, é o desejo que se encontra 
enfraquecido. Também não podemos esquecer que a 
conjugalidade vem se inscrever em pós em uma tradição 
religiosa judaico-cristã que, como sabemos, coloca as relações 
sob o signo do dom e da caridade, de tal modo que o homem, 
nesse tipo de casamento, se desembaraça desse instrumento 
que lhe é reclamado. Ele o dá, cede-o, deixa-o, "pegue-o", ele 
diz a sua mulher. E depois ele se torna seu filho. E sabemos 
que certamente é a solução menos conflituosa, mas da qual 
podemos pensar que certamente não seja nem a última nem a 
melhor possível. 
Antes de evocar o que seria um funcionamento que 
poderia estar em confom1idade com as leis da linguagem e que 
seria menos bárbaro, gostaria de evocar um último ponto, que 
espero que os senhores ainda tolerem. 
Eu o evoco porque nos esclarece muito sobre o que é 
a paranóia. O que é uma situação paranóica? É uma situação 
na qual recusam reconhecer minha dignidade fálica. Esta é 
sempre a fonte das organizações paranóicas: uma situação na 
qual recusam reconhecer minha dignidade fálica. Os senhores 
vêem como na situação conjugal há sempre a possibilidade de 
surgir uma paranóia em um ou no outro, de recriminar o cônjuge 
por não reconhecer a dignidade fálica. 
_-.,. Enfim, o que é que pode manter juntos um homem e _ 
uma mulher? Na melhor das hipóteses, isso se chama o 
Simbólica. E se segui todo esse caminho com os senhores, é 
para introduzir o que nos permitirá compreender, mais tarde, a 
mutação cultural que está ocorrendo, incluindo a mutação das 
relações entre os sexos. 
· Qque quer dizer o Simbólico? O Simbólico quer dizer 
que o significante é sempre o símbolo de uma falta. Quando 
.,.·l 
Patrícia
Realce
Patrícia
Realce
Patrícia
Realce
Patrícia
Realce
Parte Ili 39 
. Freud evoca o Simbólico, ele evoca a bandeira corno símbolo 
_da pátria. E ele diz que um solclaclo pode sacrificar sua visla 
rwra defender um puro símbolo. ~as o significante não é o 
símbolo desta entidade que representa, por exemplo, a pátüa, 
ou que pode representar Deus. Como sabemos, há vários 
símbolos ele Deus no nosso mundo. O significante é o símbolo 
de uma pura falta, que é o motor do desejo. A questão, p01tanto, 
que é hoje colocada por ocasião dessa mutação cultural, é saber 
se um casal estaria em condições de respeitar essa falta 
geradora do desejo, não para acusar o cônjuge de ser o 
responsável pela falta, mas para juntos se autorizarem a dar 
lodo valor a essa falta, à medida que essa falta autoriza o des~jo 
e o gozo. 
N,µo se trata ele cultivar a falta ele gozo, mas ele 
reconhecê-la como sendo a oportunidade. o motor e, portanto, 
o. que mereceria que parceiros que respeitassem as leis da 
Jin,\/Jl,igcn1 dela tirassem proveito para se manterem juntos por 
boas razões. Seria, efetivamente, a rçalização recíproca ele seu 
gozo, sem que fosse sustentada pelo conflito, mas prganizad~.1 
por esse procedimento, por esse pacto mútuo. E não há senão 
o Simbólico que pode fazer pacto entre S 1 e S2, quer dizer, 
colocar entre eles esse gozo que os separa, mas que também é 
capaz de reuni-los, se eles quiserem. 
O curioso é que a simplicidade do que estou evocando 
- um certo modo ele pôr um termo ao sintoma-, cm geral, não 
é compartilhada. E eu diria que é isso que causa problema. 
Porque l]Jll!.G.c;mnp~11tilhamos tão facilmente é o sin_tonwe não 
,~possihi liclacle ele resolvê-lo. Por que eu me autorizo a dizer o 
que pode se parecer com uma utopia e talvez o seja? Mas era 
o próprio objetivo da busca de Lacan. Como lhes mostrei há 
pouco, Freud faz da genitalidade a consumação da normalidade, 
mas com todo o preço que conhecemos, todos os sintomas que 
evoquei no casal, e o fato ele que os neuróticos busquem antes 
Patrícia
Realce
Patrícia
Realce
Patrícia
Realce
40 
Novas formas clínicas no início
do terceiro milênio 
de tudo evitar o sexual, defender-se contra o sexual, porque 
de é causa de todas essas dificuldades. Toda a busca de Lacan 
resultou na questão de saber se era ou não possível que a 
conjugalidade, as relações entre homem e mulher pudessem 
escapar do sintoma, pois, apesar de tud,o, esse é o grande mal-
estar na cultura. 
Portanto, como os senhores vêem, essa questão de 
Lacan merece ser compartilhada, sem que sejamos 
imediatamente obrigados a restringi11110-nos a isso, ou a se1mos 
dominados por isso. Não é esse o caso. Antes de passar ao 
piimciro grande traço dessa mutação cultural, que nos interessa 
e que busca responder a estas dificuldades, urna última 
observação, que ainda concerne ao objeto a. 
Imagino que os senhores se perguntaram, lendo Lacan, 
por que ele dizia que o objeto a é um objeto perdido, quando 
acontece de pode1111os encontrá-lo por meio do fantasma. Ora, 
ou o objeto li está perdido ou é um objeto real que posso 
encontrar pelo viés do fantasma. Se Lacan diz que o objeto a é 
um objdo definitivamente perdido, é para salientar que o objeto 
li somente adquire valor pelo fato de ser suposto desejado pelo 
Outro- · cu lhes falarei do Outro, mas até agora vamos tomá-lo 
assim·· , o objeto a somente adquire seu valor porque o sujeito 
pensa que cedê-lo ao Outro, faz o gozo do Outro. O problema 
é que não há nenhum objeto que possa assegurar o gozo do 
Outro, porque o Outro não existe. Suponho, então, que o objeto 
que lhe dou é capaz de lhe dar um gozo. Mas, na realidade, não 
há objeto algum que seja capaz de satisfazê-lo, de assegurar 
seu gozo. É por isso que Lacan diz que o objeto a está 
definitivamente perdido, já que não há nenhum objeto que me 
pennita entrar em um acordo com o Outro, visto que todos os 
objetos que eu lhe cedo e que mantêm meu fantasma, são objetos 
que servem de tampão para obturar a demanda do Outro. Eu 
me permiti assinalar-lhes esse último ponto, porque ck vai ter 
Parte Ili 41 
um certo papel na continuidade do que vamos estudar, se os 
senhores não estiverem deprimidos demais com o que venho 
falando. Vejam, apesar de tudo, concluí com uma nota que 
pode1ia dar esperança! 
Já contei várias vezes que Lacan, quando fez confe-
rências nas universidades da América do Norte1, perguntou 
a seu auditório: "o que os levou à psicanálise?", ou colocando 
de outro modo, "qual é o sintoma que os levou à psicanálise'?". 
Para mim, diz Lacan, o que me levou à psicanálise é que não 
há relação sexual. Como os senhores podem supor, os estu-
dantes norte-americanos que estavam na sala 1iram disso: não 
hú relação sexual? Mas, se tivéssemos pedido a cada um deles 
que contasse a sua vida, do que eles teriam falado? Pelo me-
nos Lacan não pensava que o sintoma que o tinha levado à 
anúlisc era um sintoma universal e que todo mundo deveria 
necessariamente compmtilhar. 
Como há muitos jovens aqui, creio que não sabem que 
no início da psicanúlisc a grande questão era saber se o 
complexo de Édipo era universal. Dizendo de outro modo: se o 
mundo inteiro era marcado pelo mesmo sintoma. As respostas 
que foram dadas- claro, buscamos do lado dos antropólogos····-
foram questionadas e principalmente aquela de um brilhante 
antropólogo chamado Malinowski, que conclui que não, o 
complexo de Édipo não é universal. ~ão há sintoma universal_ 
e cada um pode vir à análise pelo que diz respeito a seu própii? 
~intoma, sem que seja obrigatoriamente o sintoma de Lacan .. 
Mas Lacan fundamentava-se em uma clínica que concerne a 
todos nós. Então, se os senhores ainda estão em forma, será 
que têm alguma contestação a propor sobre o que eu evoquei? 
Ou será que estão mais ou menos de acordo? 
Cuidado, se os senhores não disserem nada, vou 
acreditar que estão de acordo! 
Patrícia
Realce
42 
Notas 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
1 Trata-se da conferência proferida na Yale lJ11ivcrsity, em 
24.11.1975, publicada em Scilicet n. 6-7, 1975. (N. da Revisão 
final) 
Parte IV 
Respondendo perguntas 
sobre: S1 e S2 como 
heterotópicos, gozo Outro, 
significante da falta no Outro, o 
que um analista pode propor ao 
analisante, o último tema de 
trabalho de Freud e Lacan foi o Pai 
L. Cardon: Quando o senhor coloca dessa forma S1 
e S2, para mim foi uma novidade. Significante de abertura, S1, 
cqmo de representação; significante do saber inconsciente ou 
do gozo, S2, como significante do Real. O senhor os colocou 
em uma heterotopia, de uma forma muito interessante e, como 
eu nunca tinha ouvido, gostaria de pedir-lhe que esclareça. Essa 
é uma novidade, que me complicou com uma outra questão: 
Freud, no texto Feminilidade 1, diz que as mulheres estariam 
em um estágio anterior por sua relação "pão-pão, queijo-queijo" 
com as coisas. O senhor as coloca em um outro plano, lógico. 
Ch. Melman: Obrigado. Creio, efetivamente, manter 
presente na mente que, como o senhor disse muito bem, S1 e 
S2 são heterotópicos~ 1 está no can:po -~~ Simb~lico, __ sz.~~~~---
~ campo._ c!9. g.eii}. Qy_~i:_ êhzer que tudo _ocorre para nós como .. 
se tivéssemos que dominar constantemente o Real. Quer dizer, 
nomear o que vem do Real e o que está no Real. É o que fa~ 
~~m que S2 encontre a justificação dessa heterotopia. Lembro 
44 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
também que oJ3:~ªI.c!~ ~I' 110 en,_sino de Lacan, é o lugar_4~ 
agente, e que o lugar de S2 é o lugar do gozo .. É uma maneira 
de nos lembrar que~-~º lugar do Real, do que vem do Real q~~--
o gozo se suporta. Agora, dizer, como Freud, que as mulheres 
são "pão-pão, queijo-queijo" com as coisas, é uma metáfora de. 
Freud, talvez uma maneira de dizer que uma mulher se dive1te 
i:1º ver os homens amarem o discurso. Os homens amam as 
palavras e acredito que as mulheres sempre riem um pouco 
disso. Mas é porque nas palavras o homem encontra o seu 
estatuto vi1il. Ora, nas palavras uma mulher não encontra, nem 
obrigatoriamente, seu estatuto feminino. Outro dia estava 
discutindo com um filósofo que trnbalha conosco e que conhece 
bem a psicanálise. As mulheres não têm nenhum lugar nessa 
atividade preocupante que constitui a filosofia, cm nenhum lugar 
a lilosolia nos fala da mulher. Ú porque quando os homens 
falam, eles querem se mostrar mestres do Real. E os senhores 
conhecem as mús relações de Sócrates com sua esposa. 
Sócrates era formidável, mas sua mulher tinha um gênio ruim, 
porque ele contava, a admiração que provocava, era para um 
grupo de homossexuais. Mas, pelo menos, Sócrates nunca 
falava de mulhe1; exceto cm O Banquete, onde não foi Sócrates, 
mas Platão quem deu a palavra a urna mulher para falar sobre 
o amor. Po1tanto, se podemos dizer que as mulheres são "pão-
pão, queijo-queijo", é, mas dependendo do caso e nem sempre 
é o caso. Elas se sentem maltratadas pelo discurso. 
Há uma outra coisa que deve ser observada: é que do 
lado masculino temos uma relação com o Real, isto é, com o 
que podeiia ser apavorante, surpreendente, traumatizante; pois 
é isso o Real. Q_B.eal é o que faz irr~1pção nesta sala e não 
---··-·-····--···"·-·· . - ··--
sabemos o que é, ou seja, não sabemos_nC>IJ~~~~_!o._A partir do. 
n:i(_)rnento em que posso nomeá-lo,já tenho a idéia de que po~~-º 
99miná-lo. Do lado masculino temos uma relação com o ReaJ 
mediatizada pelo significante. Isto é, inventam-se conceitos, 
.----·--
. --·---·-··········-·-··· .... ..... - - -----··· 
Parte IV 45 
cada conce_üo é inventado para responder a uma irrupção do 
- .. ·-· 
Real. Mas, do lado feminino, temos uma relação mais direta y 
imediata com o Real, menos protegida pela nominação; isto é, 
uma mulherJem com o Real um modo de gozo que aqueles que 
estão do lado masculino não conhecem. E Lacan deu um nome 
a esse gozo: gozo Outro. 
Com freqüência nos perguntamos: que gozo Outro é .
esse de que fala Lacan e que seria reservado às mulheres'? É 
que elas têm uma relação com o falo, gozo fálico, e também 
esta relação direta, não com uma instância - o falo é uma 
instância--, mas com o Real, que Lacan chamou de gozo Outro. 
O~(:.b.2.rçs vão me dizer: mas por que é que as mulheres.não 
falam disso? Justamente porque é um gozo fora do conceito, 
para falar dele é preciso nomeá-lo, é necessário o conccit?. 
Ora, é o gozo cm uma relação direta com o Real; dispensa·º 
-~onccito. E se prestarem atenção em condutas e 
comportamentos fomininos - não vou dizer-lhes quais, seria 
trapaccar·--que são especificamente femininos, os senhores 
vão ter uma pequena idéia de que há neles um gozo que não é 
um gozo fülico, que não tem nada a ver com o objeto a, e que 
é um gozo do corpo. Não é um gozo parcial, mas do corpo 
tomado em sua totalidade, em uma relação com o Real. 
A. Jerusalinsky: A respeito da relação do sujeito 
con1 o Outro e da esperança ou desesperança,,Lacan nos propõe 
no texto "A ~-1?.Y.~[_SªQ. P.O .. s.ujeito e dialética do desejo no 
incon.sçientc frcudiano"2, na_.r~!a,ção do sujeito com a demanda 
d~ Outro, que são possíveis duas respostas: a do significante 
d.a falta no Outro S(X), ou a do significado no Outro s(A). Eu 
entendi isso como respondendo com um significante, ou seja, a 
resposta do significante da falta no Outro: S(,i() ~ S; e na 
resposta que vem pelo lado do significado no Outro, uma 
resposta ao Outro através do objeto a: s(A) ~ a. Ou seja, no 
primeiro caso uma tentativa de satisfazer o Outro oferecendo 
~ 
46 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
um significante; e no segundo caso uma tentativa de oferecer 
um objeto. Parece-me que o fracasso se apresenta mais no 
segundo caso e que na alternativa de oferecer um significante 
para acalmar o Outro, o sujeito tem mais chances,justamente 
pela polivalência semântica que o protege do fracasso. Eu queria 
. saber o que é que o senhor pensa dessa distinção. 
Ch. Melman: Talvez eu seja breve nesse ponto. O 
significante de uma falta no Outro, isto é, S~), o que se poderia 
dizer é que cada significante representa uma falta no Outro. 
Foi o que tentei dizer há pouco, evocando as particularidades 
do Simbólico. Cada significante é o representante de uma fal1ª_ . 
e @da me impede de acrescentar ... no Outro. O que quer dizer 
e:Iinicamentc essa falta no Outro? Quer dizer que não encontro. 
no Outro resposta à minha interrogação, para saber o que é_ 
bem falar e o que é bem fazer. Sou. um animal desnaturado. Os 
animais sempre sabem qual é a conduta certa. O animal humano 
sempre se pergunta o que é fazer bem e o que é falar bem. E 
essas questões vêm do fato de que no Outro há essa falta, que 
--······- -
!!ão há nada para responder, para concluir a minha interrogação: 
o_que é que eu quero'L_Para saber o que quero, o que desejo, 
preciso receber a indicação correta do Outro .. Mas o Outro 
n~1_nca responde à minha questão. Ele responde sempre, como _ 
s~lienta Lacan: Che vuoi'! O que é que você quer? O sujeito 
pe_rgunta ao Outro: o que é que você quer? E estamos prontos 
a fazer muitas coisas para satisfazê-lo. E do Outro vem a 
re~po.sta: O que é que você quer? 
Portanto, esse S(X) teste~un~a a _ausê_!lcia, no Outr_o, 
de...9.m1Jquer conclusão.)'Jão há última palavrçi. E, aliás, como 
você disse muito bem, posso tentar tapar essa falta no Outro,---
oferecendo-lhe uma pai1e de meu corpo: uma libra de carne._ 
Recomendo-lhes a leitura dessa peça de Shakespeare, O 
Mercador de Veneza. É uma peça inteligente e excepcional, 
na qual todos esses problemas já estão escritos. Cedo ao Ou-
.-----·- ·-------
Parte IV 47 
~o uma parte do meu corpo, com a idéia de satisfazê-lo. Isso 
se toma possível pela relação primordial do filho com a mãe, e 
sabemos que o filho imagina que seus excrementos são o . 
presente que vai satisfazer o Outro, que é a mãe. Por que a 
mãe é um Outro para o filho? Porque é dela que ele recebe sua 
própri~ mensagem e, portanto, ele a coloca no lugar do Outro. 
E se o filho evoca, por muito tempo, a saudade desse fato, é 
porque este imagina ter com o Outro uma relação perfeita, 
bem sucedida. Ele lhe dá o que a mãe quer, o que ela pede, há 
assim uma cumplicidade que se estabelece entre a mãe e o 
filho, que deixa saudade de uma época na qual o sujeito realizou 
o essencial de seu voto -- quer dizer, o acordo com o Outro - e 
vai guardar sempre saudade disso. 
Pergunta: Tomando a última parte de sua exposição, 
quando o senhor fala do sujeito chegando com seu sintoma em 
análise, parece-me que a elaboração de Freud, no que ele pôde 
falar sobre homem e mulher, resultou de sua clínica. Da mesma 
forma Lacan, que pôde, a partir de sua clínica, fazer algumas 
elaboraçõcs_quc seriam comuns e que dizem respeito ao homem 
e à mulher. Como é que ficamos nós, na clínica, para que isso 
não sirva - o fantasma feminino, o fantasma masculino - para 
o analista como uma escuta prévia, na qual tudo já estaria 
resolvido de saída, e que se possa preservar o espaço da 
subjetividade e do caminho de cada sujeito em análise? 
Ch. Melrnan: Creio que preservar o caminho do 
sujeito na análise é deixá-lo encontrar sua própria solução, mas 
com a condição que o sujeito saiba que talvez haja urna solução. 
Em outras palavras, não há obrigatoriamente urna condenação 
ao mal-estar. Evidentemente, somos seres caídos, caímos de 
um lugar onde tudo estava bem. Mas,justamente, se estivermos 
atentos a essas leis da linguagem, poderemos dar a entender 
ao sujeito que busca suas soluções, que talvez possa buscar 
além, ou seja, que obrigatoriamente não está condenado ao 
48 
Novas formas clínicas no início 
do terceiro milênio 
sintoma. Penso que é o que podemos fazer de menos mal para 
ele. Estranho também que isso que estou tratando hoje sirva de 
base para a literatura romanesca. Isto é, gostamos desses 
fracassos, gozamos com eles. Será que não temos o direito de 
gozar desses fracassos? Claro que temos o direito! Quando 
recebemos em análise pessoas com uma ce1ia idade que, por 
exemplo, estão na faixa dos 50 anos, elas têm a impressão de 
terem sonhado sua vida. Têm a impressão de que sua vida foi 
um sonho, e que um diretor dirigiu o filme, no qual elas não 
estavam nem mesmo na posição de espectador, para, no filme, 
se verem interpretando. 
'falvcz seja possível funcionar de outra maneira do que 
ricar ú espera do acesso à verdadeira vida, um dia, depois da 
morte, por exemplo. Entrar, enfim, na verdadeira vida. l~ um 
ponto que, aliás, não deixa de impressionar o analista: constatar 
como as existências se desenrolam, como diz Lacan, com 
"semblantes". Portanto, o que podemos propor para alguém 
que vem buscar uma análise? Se ele se encontra em um certo 
desconforto, mas em uma modalidade de existência que lhe 
convém, o analista não poderá pressioná-lo. Mas o problema é 
este, é Q_fínal no qual Freud te1minou e o final no qual Lacan 
terminou. Não são os mesmos finais. Lacan, nos últimos anos. 
c,!e sua vida, quando já começava a ficar um pouco afetado d(? 
ponto de vista neurológico, lutou com todas as suas forças para_ 
tentar responder a essa questão, que estou evocando com o~ 
senhores, e procurou matematizar com o nó borromeano. 
Parece-me que devemos fazer uma pausa, mas antes 
cu gostaria de contar uma pequena história, engraçada. 
Uma história engraçada: no último livro que Freud 
publicou, Moisés e o Monoteísmo3, o homem Moisés, um 
romance histórico, o que é que ele diz? Ele diz que o mito 
religioso da filiação divina de um povo, quer dizer, a afümação 
de um laço de parentesco entre um povo e seu ancestral, é uma 
Parte IV 49 
afirmação historicamente inexata. Freud diz que Moisés, como 
os senhores sabem, era um egípcio, portanto não era da mesma 
família, era um estrangeiro. Assim, seria conveniente

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