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Elementos_lacanianos_para_uma_psicanálise

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Prévia do material em texto

Roland Chemama 
• 
Roland Chemama 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise 
no cotidiano 
\M/ 
fDIT()Píl 
Porto Alegre, 2002 
facebook.com/lacanempdf
Título original: Éléments lacaniens pour une psychanalyse au quotidien. 
© Association freudienne internationale, Paris, 1994 
Tradução: Francisco Franke Settineri (p. 15-213; 303-309 e 331-347) 
Patrícia Ramos (p. 11-14; 215-302 e 311-330) 
Revisão técnica: Conselho Científico e Roland Chemama 
Revisão final: Robson de Freitas Pereira, Mario Fleig 
e Conceição B. Fleig 
Revisão de língua portuguesa: Elisingela Rosa dos Santos 
e Maria Folberg 
Editoração eletrônica: Caio Beltrão Schasiepen 
Capa e desenhos: Arquiarte - Webdesign e Design Gráfico 
Impressão: Metrópole 
C517e 
Chemama, Roland 
Elementos lacanianos para uma psicanálise 
no cotidiano/ Roland Chemama. - Porto Alegre: 
CMC Editora, 2002. 
352 p.; 14x2lcm 
ISBN: 85-88640-02-3 
l. Lacan, Jacques, 190 I-i"98 l. Título 
CDD: 150.195 
Reservado todos os direitos de publicação em língua portuguesa para 
CMCEditora 
Rua Mostardeiro, 291/403 
90430-001 - Porto Alegre, RS 
51 3346 8793 
cmceditora@myway.com.br 
www.cmcedicora.com.br 
Proibida a reprodução total ou parcial 
Depósito legal 
Impresso no Brasil 
Printed in Brazil 
Lacan dizia: "O inconsciente é o social". É 
verdade que não há recalcamento pessoal que não 
participe, mais ou menos, do recalcamento coletivo; 
é mesmo por essa via que um sujeito introduz-se 
na vida da polis, ou seja, em nossos tempos, em 
uma economia de troca generalizada. 
Em que lugar, então, tratar o sintoma? Caso 
escolha o tratamento, o sujeito pode temer encon-
trar-se, no final, exilado ou desarmado; caso prefi-
ra a ação coletiva, pode saber, hoje, que ela leva ao 
pior. 
A aposta lançada aqui é a da difusão de um 
discurso: o analítico, se é verdade que ele torna 
possível um laço social que não estaria mais enodado 
pela perversão. 
O discurso psicanalítico1 
Nota 
I Le Discours psychanalytique, coleção das Éditions de 
l 'Association freudienne internationale, na qual o presente livro 
foi originalmente publicado. 
Conselho Científico 
Robson de Freitas Pereira 
Associação Psicanalírica de Porco Alegre 
- Porto Alegre -
Anna Carolina Lo Bianca 
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica 
e Universidade Pedcral do Rio de Janeiro 
- Rio de Janeiro -
Bernard V:mdermersch 
Association lacanienne inrernationale 
-Paris-
Janine Vandermersch 
Association lacanienne internationale 
-Paris-
Letícia Patriota Fonseca 
Association lacanienne imernationale 
e Cemru de Estudos Freudianos do Recife 
- Recife-
Lucia Serrano Pereira 
Association lacanienne inrernationale 
e Associação Psicanalítica de Porco Alegre 
- Porto Alegre -
Maria Belo 
Association lacanienne internationale 
e Centro Português de Psicanálise 
-Lisboa-
Com a colaboração de Ivan Corrêa (Centro de Estudos Freudianos do 
Recife, Recife), Adão Luiz Lopes da Costa (Associação Psicanalítica de Porto 
Alegre e Hybris - Clínica de Psicanálise e Psiquiatria, Porto Alegre) e Esther Tellerman 
(Association lacanienne internationale, Paris). 
Sumário 
Apresentaç.-'io ............................................................................................... 07 
Prefacio à edição brasileira..................................................................... 11 
lntroduç.-'io ................................................................................................... 15 
1. A prática da letra................................................................................... 19 
O real em uma palavra ....................................................................... 19 
A experiência do provérbio e o discurso psicanalítico............ 37 
O demônio da interpretação............................................................ 53 
To,n sobre tom ..................................................................................... 67 
Pós-escrito: Escrita litedria, alfabeto inconsciente.................. 75 
II. Leituras lacanianas ............................................................................... 81 
O método psicanalítico: comentários de Lacan relatívos 
às proposições de Freud ......................................................................... 81 
Ler Balint com Lacan .......................................................................... I 03 
O ato psicanalítico a partir do semigrupo de Klein ................ l I 7 
Do erotismo feminino ...................................................... 137 
III. Três textos clínicos . . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . .. 14 7 
A propósito do discurso do histérico .................................. 147 
O assujeitamento histérico ................................................ 171 
A perspectiva lacaniana sobre a fobia e a questão 
da perversão ...................................................................... 181 
IV. A experiência psicanalítica ............................................... I 95 
/\ idéia de contrato na psicanálise ........................................ 195 
\obre a interpretação ou a prova pelo significante .................. 203 
O que é inconsciente no fantasma? .................................... 215 
A questão do tempo nas depressões neuróticas ................. 223 
Pós-escrito: paradoxos da prática analítica ...................... 233 
V. O sujeito na história ...................................................... 241 
A historicização da Revolução e o sujeito moderno ......... 241 
Um sujeito para o objeto .................................................. 251 
Os "casos" ....................................................................... 255 
VI. A sexuação ................................................................... 275 
O continente branco: identificação sexual masculina 
e posição perversa ............................................................ 277 
Clivagem masculina, divisão feminina . . . .. .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . 287 
VII. Ficções ....................................................................... 295 
Uma mãe suficientemente bom ....................................... 297 
A AIDS no século ........................................................... 303 
O terceiro, outrora e recentemente .................................. 311 
O Carmelo em pintura ................................................... 321 
A paixão segundo Tomek ................................................ 323 
"Assim fica-se sabendo pelo menos" ................................. 327 
VIII. Sobre a transmissão da psicanálise .............................. 331 
A demanda do discípulo ................................................... 331 
Pode reconhecer-se o desejo em operação na passagem 
a analista? .......................................................................... 339 
Apresentação 
Este é um livro que se lê "levantando a cabeça", como 
dizia Roland Banhes no seu Rumor da língua. Ler fazendo pausas 
na leitura, "não por desinteresse, mas ao contrário, por afluxo de 
idéias, excitações, associações". Para os psicanalistas, um texto tor-
na-se mais interessante quando ele consegue viabilizar estas asso-
ciações que remetem aos significantes que o produziram. Neste 
caso, trata-se de uma experiência de leitura que provoca os 
deslizamentos necessários que se endereçam à clínica de cada um. 
Percurso que não procura somente os signos já consagrados da 
identificação, mas que permite um pensamento sobre a prática de 
uma ética. Além disto, possibilita aos leitores pós Freud e Lacan, 
que todos somos, renovar a aposta na surpresa e na interrogação 
fundamental sobre o lugar do analista na direção da cura. Como o 
autor escreveu: um analista espera que lhe seja reenviada alguma 
coisa a propósito deste ato do qual sua prática é o efeito. Isto 
implica a inclusão do analista na clínica que ele promove e, conse-
qüentemente, é aquestão de seu desejo que surge. 
A interrogação é levada a efeito com o auxílio da literatu-
ra, com o mergulho na função da linguagem para dar conta de 
. uma. clínica do real e, não recuando mesmo frente aos discursos 
cotidianos, sociais e políticos. Uma maneira de demonstrar que os 
discursos subjetivos e coletivos deslizam pela mesma estrutura, 
sem perder de vista as modificações contemporâneas. Dessa ma-
neira, os oito capítulos vão tecendo um enlaçamento entre a "Prá-
tica da letra", "Leituras lacanianas" e "Três textos clínicos". ''A 
experiência psicanalíticà' faz uma trama com "O sujeito na histó-
8 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
ria", ''A sexuação", suas "Ficções" e "Sobre a transmissão da psicaná-
lise". Para exemplificar: o leitor logo perceberá que "Paradoxos na 
prática analítica" (p. 233) está relacionado com ''A demanda do 
discípulo" (p. 331). Textos diferentes na temática, mas que perfa-
zem esta articulação tão necessária entre as questões clínicas e as da 
formação/transmissão da psican.ílise. 
Talvez seja devido a este estilo que Roland Chemama, ao 
mencionar a importância de suas viagens ao Brasil, lembre das 
questões e temas que lhe foram colocados como fazendo parte de 
uma interrogação sobre "o vivo da prática", e não por uma preocu-
pação burocrática ou somente destinada a operacionalizar procedi-
mentos. J,í. faz algum tempo que os psicanalistas brasileiros estão 
muito interessados em trocar experiências sobre as vicissitudes da 
psicanálise nos mais diversos âmbitos ou países. Em outras pala-
vras, compartilhar a responsabilidade advinda de suas próprias aná-
lises e da prática de uma ética que os conduz na clínica. 
Assim, este livro é a (con)seqüência de um trabalho, não 
só de revisão e edição. Sendo mais explícitos, seu lançamento em 
português parece-nos trazer para o formato escrito mais um passo 
numa trajetória que vem sendo levada h,i alguns anos. Esta come-
çou com a leitura de textos de Roland Chemarna, traduzidos e 
publicados segundo se apresenrassem nossas questões relativas ao 
exercício da clínica psicanalítica, ou ao lugar ocupado pelo psica-
nalista cm nossa polis. "O demônio da interpretação" foi um des-
tes textos, lidos, relidos e discutidos. Outros o sucederam, mas a 
edição do livro, desde o trabalho com o original, e chegando ao 
contexto da edição brasileira, possibilitou não somente uma visão 
do conjunto da obra, mas principalmente uma intensa troca entre 
o grupo de psicanalistas que cuidou desta publicação. Sem falar 
nas discussões com o autor, no decorrer de suas vindas ao Brasil. 
A ênfase que queremos dar está colocada nisto que consi-
deramos como um dos efeitos do discurso do psicanalista; que 
pode ser verificado até mesmo no aparentemente prosaico traba-
lho de edição de um livro. Esta é nossa aposta. A começar pelo 
cuidado na revisão e elaboração das notas. Uma tradução que es-
tivesse à altura da riqueza de nossa língua, com observações que 
nos pareceram essenciais, a fim de complementar ou mesmo in-
Apresentação 9 
centivar a leitura de um texto psicanalítico. Sem descuidar das dife-
renças de referências entre as línguas e a cultura que elas veiculam; 
pois, em se tratando de um livro que tem como uma de suas preo-
cupações mostrar as conseqüências do aforismo lacaniano "o in-
consciente é o social", explicitar alguns referenciais da história polí-
tica, da literatura e até mesmo dos conceitos introduzidos por Lacan 
nos pareceram fundamentais. Este modo de produzir vem ao en-
contro das palavras do autor, em seu prefácio a esta edição, ao rea-
firmar o trabalho de escuta do sujeito que a linguagem produz e, ao 
mesmo tempo, oportuniza o prosseguimento deste processo de 
interlocução que tem na psicanálise sua via mestra. 
Robson de Freitas Pereira 
Porto Alegre / inverno de 2002 
Prefácio à edição brasileira 
Quando este livro foi publicado na França, há alguns anos, 
uma amiga psicanalista fez uma observação sobre sua composição 
e sobre o percurso que parecia organizá-lo. Nele se via bem, dizia 
ela, como eu partira de uma abordagem literária da psicanálise, 
determinável não só na temática dos primeiros textos, mas tam-
bém em sua forma. Ela me via em seguida dar mais espaço à leitu-
ra dos textos lacanianos, depois à clínica, para enfim abordar pou-
, co a pouco questões relativas à instituição psicanalítica. 
Essa apreciação não é totalmente exata. Com efeito, a or-
dem na qual são apresentados os textos que seguem não é idêntica 
à de sua composição. Em contrapartida, o livro dá idéia de um 
trajeto que foi, em suas linhas gerais, o meu. Mas direi que, se a 
ordem aqui depreendida tem algum interesse, é por indicar algo 
sobre a própria psicanálise, mais ainda do que sobre o autor deste 
livro. 
É verdade que os primeiros textos recorrem à experiência 
literária com a qual os psicanalistas, depois de Freud, aprenderam 
muito. Observar-se-á, entretanto, que dois dos artigos que com-
põem a primeira parte são consagrados a Jean Paulhan. Neles o 
leitor encontrará o ponto de partida de uma reflexão sobre o pro-
vérbio, ao qual Lacan se refere em Mais, ainda' , quando tenta 
"fundar" o significante. Apreciará igualmente até onde pode levar 
o trabalho atento de um autor que introduz, à sua maneira, as 
dimensões (dits-mansion?-, escrevia Lacan) do imaginário, do sim-
bólico e do real. Contudo, talvez seja necessário precisar um pon-
to que pode esclarecer a fecundidade desse método. Entre as di-
versas obras de Paulhan, uma das mais célebres chama-se As Flores 
de Tarbes3. Ela é consagrada ao que ele percebe como uma injusta 
desconfiança na literatura moderna (a partir do século XIX) con-
tra o "poder das palavras". É verdade que, sob o pretexto de de-
12 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
nunciar o verbalismo de seus predecessores, a maioria dos escrito-
res, a partir dessa época, rompeu o pacto que os unia ao trabalho 
da língua. Nisso se condenavam a uma fuga para frente, já que 
todas as formas lingüísticas rapidamente se tornavam, nessa pers-
pectiva, "clichês" a serem prescritos. Já Paulhan deixa entrever a 
possibilidade de um novo acordo entre o homem e sua lingua-
gem, entre o "espírito" da literatura e seu "corpo". Estamos aqui 
tão distantes da atenção que Lacan dedicou à. letra como suporte 
material da linguagem? Poderíamos até mesmo ser mais precisos. 
É verdade que esquecemos um pouco, após um ou dois séculos, a 
que ponto foi importante essa atenção ao tecido do discurso e o 
quanto a velha retórica fora necess,iria para distinguir as diversas 
"figuras de estilo", entre as quais estavam em boa posição a metá-
fora e a metonímia. Esta é uma das principais portas para abordar 
o trabalho do sonho. No que me diz respeito, cu concordaria com 
prazer que a leitura de Paulhan preparou-me para a psicanálise, 
v,írios anos antes de ter lido sequer um texto de Freud. 
Voltemo-nos agora para a parte mais substancial desta obra, 
aquela que concerne à pdtica analítica. É verdade que esta é sem-
pre esclarecida pela leitura de Lacan, à qual são consagrados vários 
capítulos. Essa mesma leitura, entretanto, é sempre "orientada", 
no sentido de esclarecer os fenômenos contemporâneos, sejam eles 
coletivos ou individuais. Observar-se-á, aliás, que, se há nestas 
páginas uma clínica em constituição, não é somente aquela das 
entidades determinadas como cais, quer se trace da histeria ou da 
fobia. É uma clínica do "falasser", isto é, de um sujeito que a 
linguagem produz - e produz primeiramente como homem ou 
como mulher. É também uma clínica do sujeito contemporâneo, 
na medida em que se percebe muito bem até que ponto algumas 
das determinações que o constituem estão se modificando. 
Lacan, como se sabe, retomou o tema freudiano de uma 
clivagem no sujeito masculino. Se este, por um lado, pode estabe-
lecer relações ternas com uma mulher amada, por outro, ele pode 
buscar um objeto decaído. Isso levará o homem a encarnar o objeto 
a emalgumas de suas parceiras, a materializar esse objeto, aproxi-
mando-se conseqüentemente da perversão. O que dizer, então, do 
que se passa do lado feminino? Uma mulher pode parecer deixar 
Prefácio à edição brasileira 13 
um lugar maior à dimensão da falca como tal. Em um exemplo 
dado por Lacan e que aqui retomo4 , aquele de um homem sofren-
do de impotência, nesse caso isso chega a abrir para ele o lugar do 
desejo. Não deixa de ser verdade que a complexidade da situação de 
uma mulher em sua relação com o falo também pode produzir 
inúmeros pontos de tropeço. Veremos o quanto a abordagem 
lacaniana é útil para examimí-los. 
Estas são, evidentemente, balizas ainda mais essenciais uma 
vez que estruturais. No entanto, não vamos opô-las às históricas. 
Pode-se pensar que a história comporta pontos de ruptura que 
modificam o próprio enquadramento de nossa clínica. Essa ques-
tão é diretamente abordada no capítulo que se intitula "Um sujei-
to para o objeto", mas ela não cessa de transparecer ao longo de 
toda a obra. Ver-sc-;Í, por exemplo, que questiono a maneira como 
uma histérica pode recusar a cscansão, a oposição da presença e da 
ausência, ou seja, flnalmrntc a pn'>pria lcígica filica. 5 Penso que se 
deve ir um pouco mais longe, pois o tipo dt.: sujeito que tento 
descrever neste artigo está mais <listante do que cu dizia a respeito 
daquele da época da histérica freudiana. E para interrogar as ques-
tões que ele nos coloca, quem sabe seja necessário remeter um 
, pouco menos à questão do gozo fálico e um pouco mais à do gozo 
Outro. 
Talvez seja o momento de apresentar o que foram, de al-
guns anos para cá, minhas interlocuções com psicanalistas brasi-
leiros, as quais levaram à realização desta edição em língua portu-
guesa. Convidado por associações psicanalíticas e, também, por 
universidades, tive a ocasião de desenvolver certas análises que eu 
ainda não havia apresentado nem mesmo onde trabalho, em Paris. 
Há diferentes razões para isso. Por exemplo, é mais fácil abordar 
detalhadamente certos casos clínicos em um contexto geografica-
mente diferente. Penso, entretanto, que essas não foram as únicas 
razões que me permitiram certos avanços. Eu teria que dar conta 
disso nos próximos anos. 
Em todo caso, para concluir, posso voltar ao que dizia minha 
interlocutora sobre o que, segundo ela, constituía a temática última 
da obra. Trata-se realmente da instituição? De um certo modo, sim. 
Penso que a questão da transmissão, que dá o título à última parte, 
14 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
envolve forçosamente aquela das associações de analistas. Mas se 
verá que essa questão não é tratada no nível do que seriam regras 
formais de funcionamento, que remetem sempre a uma perspecti-
va burocrática. Trata-se, ao contrário, de retomar a questão do passe, 
essa tentativa de Lacan para romper radicalmente com toda prática 
burocrática na "nomeação" dos analistas, e também de interrogar a 
posição do discípulo a fim de evitar que ela leve a uma esterilização 
da psicanálise. E nesse ponto que devo dizer algo sobre o que pude 
constatar no Brasil por ocasião das conferências proferidas. Fui 
questionado sobre a transmissão. Na maioria das vezes, dentro de 
uma perspectiva bastante justa, aquela que interroga o trabalho e o 
desejo do analista, mais do que as regras de funcionamento das 
associações psicanalíticas. Sem dúvida, isso não basta para resolver 
todas as dificuldades institucionais. No entanto, testemunha um 
apego ao que há de mais vivo na experiência psicanalítica, apego 
este que certamente dá todo o valor a nosso trabalho comum. 
Notas 
I J. Lacan, Seminário XX, Encore, Paris, Seuil, 1975. 
2 Lacan propõe este neologismo para dar conta da articulação entre o sujeito 
(falasser, parlêtre), a equivalência dos três registros R S I (Real, Simbólico e 
Imaginário) e a linguagem que os suporta e constitui. Por exemplo, os semi-
nários Encore (Mais, ainda) homofônico com en corps (em corpo) e Les non-dupes 
errent ( Os não-bobos erram), que também apresenta uma homofonia com Les noms 
du pere (Os nomes do pai) são as "diz-mansões", "moradas do dizer", "casas da 
palavra" que constituem as referências do "falasser". Na língua francesa, a 
homofonia entre as expressões permite uma aproximação e uma articulação mais 
direta (dimensions/dit-mansions), à diferença do português, cujo sentido é 
percebido rapidamente, mas que necessita forçar o recurso poético para melhor 
expressar a articulação que se quer mostrar ao fazer a tradução (dits-mansions/ 
dimensões/diz-mansões/ditas-mansões/casas da palavra). (N. de Robson de 
Freitas Pereira) 
3 Les fleurs de Tarbes, ou la terreur dans les lettres. 
(Optamos por apresentar no corpo do texto, em língua portuguesa, os títulos 
das obras citadas pelo autor, independente de estarem publicadas nessa lín-
gua, e em notas de rodapé os títulos em seu original. Nas notas escritas pelo 
autor mantivemos o título na língua em que a obra foi referida, bem como a 
paginação da edição citada. (N. de EE.)] 
4 Cf. "Clivagem masculina, divisão femininà', p. 287. 
5 Cf. ''.Algumas considerações sobre o assujeitamento histérico", p. 171. 
Introdução 
Nesta obra está reunida uma coletânea de artigos que se 
estendem ao longo de 15 anos, constituídos por contribuições a 
jornadas de estudos, colóquios ou congressos, e das quais quis con-
servar o estilo falado. Poder-se-ia pensar que são textos circunstan-
ciais e que sua reunião seja um tanto artificial. No entanto, ao relê-
los, encontro um fio que corre de um a outro, dando a seu conjun-
to uma orientação que me parece essencial. Embora questões 
efetivamente diversas sejam debatidas aqui, elas estão sempre rela-
cionadas a uma interrogação mais fundamental que se refere ao 
próprio analista, ou seja, o lugar do analista na direção do trata-
mento. 
Mesmo assim, não se trata de retomar a oposição estereoti-
pada entre experiência e teoria, concreto e abstrato, clínica e 
formalização; menos ainda de propor um conjunto de procedi-
mentos técnicos. O analista não deve instalar-se em uma posição 
de domínio ou de exterioridade, uma posição que o faria descre-
ver, de fora, os princípios de sua ação. Isso concerne, antes, à clí-
II ica que é a sua. As estruturas clínicas não adquirem seus cantor- 1· 
11os mais precisos senão no quadro da transferência. É no interior 
tio , kílogo analítico que um discurso pode parecer dizer respeito, 
I"'' rxrn1plo, à histeria. Ou melhor, a histeria assumirá diferentes 
101111.t·. rn1 fimção da orientação do analista, ou do ponto em que 
rir r~11,·r1 ,·,11 'il'U próprio percurso. Isso basta para mostrar que o 
Ju.tl1·.1.1 r",Lí 111, li1ído na própria clínica que ele promove. E, quan-
do o.,c 1111c1111r.,1 vl'rdadeiramente a respeito da experiência analíti-
1 .1, l' a q11r\1.-111 d(' seu desejo que não pode deixar de surgir. 
16 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
Aliás, nesta coletânea, limitei o número de textos relativos 
aos tipos clínicos. Incluí apenas um artigo sobre a fobia, porque • 
nele conclui-se sobre alguns problemas específicos relativos à 
direção do tratamento, e dois textos sobre a histeria, distantes cro-
nologicamente, porque se opera, de um a outro, um deslocamen-
to de enfoque e também de estilo, que não deixa de afetar a pró-
pria prática. 
Este livro começa por alguns artigos dedicados à literatura. 
Sabe-se o valor que Lacan, em seqüência a Freud, dava ao texto 
literário. Também se sabe que seu interesse pela literatura não 
estava relacionado com a psican.ílise aplicada. O analista, dizia · 
ele, não deve fazer-se de psicólogo ali onde o artista abre-lhe o 
caminho. No que me concerne, se me permitem dizer, o 
questionamento a respeito da linguagem no campo literário pre-
cedeu o encontro com a psicanálise, o qual, sem dúvida, ele pre-
parou. Isso me levou a uma série de textos, cuja orientação talvez 
requeira ser precisada. Um pós-escrito indica em que poderá de-
sembocar o questionamentoque subjaz a eles. 
Passemos ao que poderá parecer mais central. Vários textos 
são consagrados explicitamente a uma leitura de Lacan, e a maio-
ria dos outros remetem a ela. Porém, poder-se-á ver, com bastante 
facilidade, que não se trata de se apropriar de uma herança teóri-
ca, e muito menos de fazê-la refulgir, em uma contemplação feti-
chista. As teses lacanianas são colocadas aqui a trabalhar, 
interrogadas em função das questões que são as nossas. De fato, 
com a ajuda dessas leituras, desejei interrogar o mais cotidiano de 
nossa prática, uma interpretação que cada um é levado a fazer em 
um momento particular de uma análise, que marca, sem dúvida, 
uma virada, mas aí onde nada permitiria prcwr a importância; às 
vezes, também alguma coisa que constitui obsdculo, quer se trate 
de uma resistência singular ou de uma concepção inoperante do 
trabalho do tratamento. 
Contudo, a psicanálise no cotidiano significa também levar 
em consideração os discursos da cidade, na medida em que o su- · 
jeito acha-se preso a eles e que os mecanismos do assujeitamento 
coletivo e da alienação individual possuem a mesma estrutura. 
Neste livro proponho algumas reflexões sobre o sujeito oriundo 
Introdução 17 
da Revolução Francesa, bem como sobre o "discurso capitalistà' 1 , 
enfim, um questionamento a respeito do que é mais atual, ou seja, 
a maneira como o significante "os negócios" irá designar, na França 
contemporânea, as novas formas que pode assumir um gozo que •· 
fascina o sujeito, conquanto lhe pareça repulsivo. Em todos os dis-
cursos que atravessam a cidade, acreditei poder distinguir alguns 
que apresentam uma relação mais evidente com o que comumenre 
constitui impasse para o sujeito. "O impasse sexual", escreveu Lacan, . 
"secreta as ficções que racionalizam o impossível do qual ele pro-
vém". Em alguns artigos, tive ocasião de comentar as formas que 
algumas dessas ficções podem assumir na atualidade. Isso pressu-
punha, paralelamente, uma retomada da forma pela qual o sujeito 
inscreve-se na "scxuação" do lado homem ou do lado mulher. 
Uma ültima palavra refere-se ao contexto em que esses arti-
gos foram escritos e a maioria dessas intervenções pronunciadas. 
Eles são inseparáveis do desenvolvimento daAssociation frcudicnne 
internationalc, fundada por Charles Melman, com outros, cm 
1982. É essencial dizer até que ponto essa fundação ajudou-nos 
em nosso trabalho, já que nos recusamos a nos misturar com aqueles 
que usurpavam a herança de Lacan a fim de nela assentarem seu 
pequeno negócio. 
Notas 
I Além dos quatro discursos (do mestre, do histérico, da universidade e do 
psicanalista), Lacan propõe um quinto discurso, o do capitalista, em confe-
rência proferida cm Milão (1972). O discurso do capitalista é derivado de 
uma inversão operada no discurso do mestre, a partir da qual o sujeito fica 
situado fora de qualquer assujeitamento. (N. de Lucia Serrano Pereira) 
I. A prática da letra 
Dos textos que seguem, os dois 
primeiros referem-se a Jean Paulhan, 
e o segundo, com um tema mais par-
ticular, foi escrito antes do primeiro, 
com o qual preferi iniciar esta 
coletânea. 1 
"O demônio da interpretação" 
possui um valor essencialmente 
metodológico. Acrescentei a ele um . 
artigo já antigo sobre Flaubert e um 
O real em 
uma palavra 
pós-escrito que, neste caso, parece in- Paulhan cnou, em 
dispensávelparaprecisaradireçãopara Madagascar, o liceu de 
a qual poderia tender este trabalho. Tananarivo. Foi garimpeiro 
de ouro no rio Ikopa, representou2 na Resistência o papel que se 
sabe. E, no entanto, não é por isso que o considero um aventureiro. 
A aventura, ele a encontrava antes em seu quarto, e era uma aventu-
ra semelhante à de um Descartes; porém, se ela se referia ao Ser, 
aplicava-se a ele de um modo totalmente diferente. 
Aqui não falo apenas dessa interrogação apaixonada sobre a 
linguagem e a literatura que ele perseguiu durante mais de 50 anos. 
Esta constitui seguramente o quadro de sua experiência, e não sepa-
raremos, tanto mais que ele próprio não queria fazê-lo, o gosto · 
pelas palavras e a experiência das coisas. Mais precisamente, Paulhan , 
não nos fala apenas das palavras ou das idéias, mas também dos 
vidros quebrados e da ciática. Do real, em uma palavra. 
Isso não significa, aliás, que tenha vivido uma experiência 
inédita. Todavia, ele prestou atenção à experiência e tentou dar con-
ta <leia, e é nisso que se tornou singular. Eu me arriscaria a imaginar 
que essa experiência tenha sido o equivalente de um tratamento 
analítico. Certamente isso seria excepcional. Certos autores ensi-
nam ao analista: sobre o sonho, sobre o desejo, sobre o fantasma3 , 
20 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
sobre o que se queira. E quanto ao tratamento! Perceber de fora o 
íntimo de sua prática, sob uma luz necessariamente transformada, 
é espantoso, quase inquietante. No entanto, é disso, sem dúvida, 
que se trata. 
Lacan referiu-se várias vezes a Paulhan. Mas era daquele 
jeito dele de indicar uma obra que era própria para ilustrar seu 
pensamenco. Ele dizia: Vão vocês mesmos procurar nela o porquê 
disso. Esse era o estilo lacaniano, naquilo que ele tinha, também, 
de inimitável, em sua maneira de deixar você em suspenso, como 
se pode estar cm um certo momento do tratamento, quando se 
sabe que h,i alguma coisa, sem se saber muito bem o quê. 
Seria possível levar as coisas um pouco mais longe? Aqui se 
falará de Paulhan do ponto de vista da psicanálise, porém apostan-
do que ele nos leva a conclusões que concernem a cada um. 
O imaginário e o real 
Em uma nota que escreveu para a edição de suas Obras4, no 
Cercle du livre précieux (tomo II, p. 7), Paulhan fala de descober-
tas que o teriam "finalmente curado" (perto do final do tomo III). 
Sem maiores esclarecimentos, o que se pode lamentar, pois os 
poucos textos que parece designar, "As dores imaginárias", O claro 
e o escuro, O dom das línguas5 , são suficientemente complexos para 
que se arrisque perceber neles o que moveu a cura. 
Aliás, poderíamos desconfiar disso de um ponto de vista 
ingenuamente racionalista. Não haveria alguma regressão para 
invocar, depois de longas pesquisas, a fusão da coisa, da palavra e 
do pensamento? E não seria trair um segredo apelar para o socorro 
de Plorino, de Santa Tereza ou dos mestres budistas para apoiar 
sua descoberta? 
O que ele tem de mais vivo, no entanto, acha-se um pouco 
aquém. É nada menos que o advento, o encontro do real. 
O leitor de Paulhan recorda-se do episódio do "vidro que-
brado" (C.O., p. 341). Em 1914, Paulhan é encurralado, com 
alguns outros soldados, em uma casa semidemolida, sobre a qual 
se encarniçam duas artilharias ("Ninguém, de fato, sabia ao certo 
1. A pratica da letra 21 
o que havia dentro dela, de sorte que, devido a uma modéstia 
comum aos homens de guerra, cada um pensava ver nela o inimi-
go"). É bastante impressionante ("Luz de eclipse", "explosões ron-
cando à direita e à esquerda", "barulho de órgão" dos obuses e 
depois "um cadáver que olha para você sem ver você", um "cavalo 
estourado", "por toda parte, a desordem e a desagregação"). Impres-
sionante, sim, mas um pouco como um espetáculo: "Tudo isso era 
estranho, mas sob certos aspectos maravilhoso( ... ) quantos fogos 
de artifício! Quantas castanhas e girândolas, sapos e acrobatas, pa-
lhaçadas e desfiles! Figurantes amáveis representavam o morto à 
perfeição( ... ) Teria sido para mim que fora montado tudo isso?". A 
guerra só dâ, aqui, uma impressão de farsa ou de pesadelo - de 
irrealidade. Impressão da qual Paulhan não consegue sair, a não 
ser dando fortes chutes cm um vidro que tinha permanecido in-
tacm. "O vidro fendeu-se, rachou, depois desabou com um gran-
de barulho, e fiquei sabendo muito bem que não sonhava. Reco-
nheci isso e ficava, coisa curiosa, contente- cm todo caso, satisfei-
to". 
É beliscando-se que se tem certeza de que não se está so-
nhando. Paulhan lembra disso mais adiante. J;i era a desordem e a 
desagregação!Por que um vidro quebrado seria tão mais significa-
tivo? Paulhan foz aqui uma experiência para a qual não tem uma 
resposta pronta. 
A questão já tinha sido, no entanto, formulada em um tex-
to anterior, "As dores imaginárias". Este tem como pano de fundo 
a doença, assim como no outro é a guerra. Paulhan sofre de uma 
ciática dolorosa (D.l., p. 309). As doenças têm, certamente, suas 
vantagens ("Deixem eu me fazer um pouco de príncipe"). Na ci-
ática, porém, o lucro é mínimo, dispensando essa doença "de pelo 
menos todos os enterros, e dos bailes, se eu dançasse". Por isso, é 
prl'ciso tentar cur.-í-la por todos os meios possíveis, .os quais os 
11,tdicos propõem em quantidade. "Tive o corpo queimado por 
1.1in.~. afogado em espermas. Entro, rodas as manhãs, em um cole-
ll' lk aço, como um chefe de gângsteres! Em uma pequena cidade-
la, como um general sitiado!". E ainda muitas outras soluções, 
i11l·lusive um acupuntor. Este planta algumas agulhas. 
"- Devo voltar quando? 
22 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
- É inútil, você está curado. 
-Ah! Estou curado? Não sentirei mais dor? 
- Se ainda acontecer de você sofrer, serão dores ima-
ginárias" (D.I., p. 310). 
A partir do dia seguinte, as dores voltaram. Vexatórias ... mas 
ridículas. "Com efeito, afinal, dessa vez elas não eram verdadeiras 
( ... ) eu podia assisti-las com toda a tranqüilidade( ... ). E observava, 
mesmo, sem deixar de me divertir, certos traços que até então tinham 
me escapado. Como seu progresso era regular! Dir-se-ia uma 
experiência de química. Seu desenvolvimento, majestoso! Dir-se-ia 
um quadro de Veronese" (D.I., p. 310). 
Dores imaginárias, tinha dito o acupuntor. Por que não? 
Não que elas sejam fictícias, nem que seja preciso lembrar da ex-
periência da dor em um membro ausente para explicá-las. Elas 
introduziriam, antes, o imaginário no sentido de Lacan, para quem 
toda a imagem tende à regularidade, à majestade: ao quadro ou à 
estátua. 
Ao teatro também: "Eu nem bem havia recebido minha 
chicotada no quadril e me era preciso esperar este curioso fume-
gar do joelho, acompanhado por diversas crepitações da panturrilha 
- elas próprias seguidas, dez ou quinze segundos depois, primeiro 
por uma explosão no tornozelo e, depois, por essa fulguração de 
ardência que vem iluminar todos os meus artelhos, um após o 
outro. Imediatamente, que fagulhas me corroem as unhas? Acre-
dito vê-las. Estranho teatrinho, estranho salão de pinturas; ( ... ) é 
toda uma parte de minha vida que, de fato, acabava de entrar no 
espetáculo-que começava sua carreira estéticà' (D.I., p. 310-311). 
As dores são "imaginárias". Isso significa que elas podem ser 
examinadas, contempladas, que acreditamos por isso dominá-las. 
Ilusão do eu (moí): "Não que eu tenha tanta coragem. Proponho-
me a tê-la, isso é completamente diferente. Gostaria de que me 
pusessem à provà' (D.I., p. 320). 
Não obstante, Paulhan terminaria por se cansar. Os melho-
res espetáculos, quando muito prolongados, podem entediar. ''Aqui 
se mostraram novas dores. ( ... ) Ou melhor, não. Justamente estas 
não se mostravam (. .. ), de forma alguma solenes, antes barrocas 
( ... ) apenas esboçadas (. .. ) uma fina lasca, sob a rótula do joelho 
1. A pratica da letra 23 
(será uma lasca? Ela se dissolve em um instante). Uma fagulha que 
parte do quadril, mas logo se apaga e vai doer em outro lugar" 
(D.I., p. 312). 
Essas dores, Paulhan não pode confundi-las com as outras 
que, aliás, persistem "sempre intactas, sempre decorativas". "Eu 
ainda me dizia: de fato, .estas aqui não conhecem seu ofício, elas 
precisariam aprender com as outras. Em suma, dores que eu não 
teria inventado" (D.I., p. 312). 
Não é mais possível enganar-se: ''Apenas me ocorreu pensar 
irrefletidamente: 'Mas, afinal, essas novas dores, é você quem as 
sente; talvez seja você que as imagina. Quantas ninharias!"' (D.I., 
p. 312). Essas dores não são mais imaginárias, elas são reais. E as 
outras também podem, ao mesmo tempo, voltar a sê-lo. "Que 
alívio! Não quero dizer da dor (que voltou logo, um pouco mais 
dolorosa}. Não, era um alívio geral. (. .. ) É saudável lidar com 
coisas verdadeiras, em lugar de fantasmas" (D.I., p. 313). 
Dores inesperadas chamaram Paulhan ao real. Não por sua 
força ou intensidade, como se poderia supor, mas precisamente 
por seu caráter imprevisível. "O real", diz Lacan, "é o impossível". 
Aqui, impossível de imaginar, sobretudo por sua ausência: seu 
lado pouco decorativo, malfeito. O real está "associado ao pouco, 
à falta" (D.I., p. 328}. 
Além disso, a guerra pode passar por um espetáculo, apesar 
da desordem e da desagregação. Ela o faz em demasia. "Uma guer-
ra é um evento infinitamente diverso e rico, que agita em sua 
alma e também em seu corpo, milhares e milhares de homens( ... ) 
uma admirável ( ... ) organização em profundidade, com pesquisas 
sábias, estudos técnicos, discursos" (C.0., p. 342), ao convocar a 
ciência e a técnica, as multidões e os ministros, os presidentes e os 
deuses, até mesmo Deus, a guerra surgia, finalmente, como uma 
vasta maquinaria- uma maquinaria de teatro. Para trazer de volca 
ao real, um simples vidro quebrado resolve melhor o caso. 
Não é de outra forma que acontece uma análise. O sujeito, 
de saída, está pronto a invocar o social e a história - o universo 
por inteiro - para explicar o que produziu sua vida. Porém, pouco 
tempo depois, se há efetivamente análise, esse discurso mostra-se 
estranhamente falacioso, de algum modo inconsistente, e é em outro 
24 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
lugar (atos falhos, fragmentos de sonhos, lapsos, vidros quebrados, 
fendas) que o sujeito encontra aquilo que tem para ele valor de real. 
O ser contra o pensamento 
Paulhan não é nem psicanalista, nem psicanalisante6. En-
tão, o que é? Ele evoca, naquele momento, com uma modéstia 
que não é apenas maliciosa, a experiência do homem comum, o 
que, de fato, poderia bastar. Para experimentar o real, não é preci-
so a guerra nem a doença. Uma "pequena aventura noturna" (C.O., 
p. 34/i) resolve bem a questão, tal como cada um pode vivê-la em 
seu quarto, ao voltar para casa à noite, sem acender as luzes para 
não despertar, sentindo as arestas dos móveis e os objetos cm sua 
realidade renovada, embora fragmenrária. No entanto, o homem 
comum, geralmente, não guarda nada do que lhe parece somente 
anormal ou doentio. Será que, nesse caso, Paulhan mostra-se mais 
atento, mais reflexivo? Será que ele pensaria a experiência em maior 
profundidade? Seria ele um filósofo? 
Antes de tudo, seria um antifilósofo. A tendência do espíri-
to que pensa enquanto pensa é a mesma que sugere o médico 
acupuntor. "É que ao espírito ( ... ) basta-lhe deixar-se levar por 
sua tendência natural; basta-lhe olhar-se com atenção, e como 
tem idéia de seus amores e de seus ódios, do sol e da lua, das 
árvores e das ruas, conclui-se, com uma lógica irrefutável, que sol, 
amor e ruas são idéias das tantas que ele se faz" (D.I., p. 333). É 
verdade: se nada me é conhecido a não ser pelo pensamento, por 
que haveria outra coisa senão o pensamento? Para o homem que 
pensa, tudo é pensamento, tudo é imaginário. "Eu penso, logo 
tudo poderia ser apenas pensamento. Penso, portanto eu não 
sou" (D.I., p. 333). 
Entretanto, há pensamento e pensamento, assim como h:í 
dor e dor. Se as dores sempre tivessem sido espetaculares, elas não 
teriam parecido reais; medíocres, elas chegam a isso. O mesmo 
acontece com o pensamento: lógico, coerente, rigoroso que pode 
parecer estranho ao real. Para que ele se assegure de encontrá-lo, é 
preciso que o próprio pensamento venha a se rachar. "Se a condi-
1. A pratica da letra 25 
ção do espírito for tal, de fato, que o rigor e a engenhosidade do 
raciocínio, a sutileza dos pensamentos e sua desenvoltura sejam 
próprias a nos lançar na dúvida, é, ao contrário, a privação, a 
incoerência e o absurdo que nos podem convencer de uma verda-
de prestes, a qualquer momento,a nos escapar entre os dedos" 
(C.O., p. 357). 
A experiência do real não se dá, aliás, sem uma inversão 
radical. De acordo com o acupuntor, mas também com sua pró-
pria inclinação, Paulhan esd preste a pensar que ele imagina a si 
próprio sofrendo, que faz para si, como se diz, idéias: percepções 
ilusórias, assim como subjetivas. Em compensação, as dores que 
se impõem a ele um pouco depois são dores que "não reria inven-
tado". Essas novas dores, diz ele, "não sou tanto eu quem as sente, 
são elas que me põem à prova, são elas que me sentem" (D.l., p. 
312). Se ele é sujeito de sua dor, é porque está submetido a ela. A 
psicanálise diz sensivelmente a mesma coisa, desde que se consti-
tuiu a partir dos Estudos sobre a histeria: uma dor sem lesão orgâni-
ca, uma dor histérica conserva rodo o seu peso de real, porque o 
sujeito não pode escapar dela, uma boa alma exortá-la-ia a não "se 
escutar demais". E, se a análise desata o sintoma, é, em primeiro 
lugar, reconhecendo-lhe tal dimensão. 
Essas dores inusitadas, essas dores que o atacavam, Paulhan 
não as percebe por um pensamento "na primeira pessoa", por um 
pensamento que tiraria do eu (moi) palavras de ordem. Ele tenta 
explicá-las com a ajuda de fórmulas que assumem a forma de pro-
, b" (( d - , , l ,, (( d d , -ver 10s: a or nao e um espetacu o , a ver a e e o que nao se 
imaginava" (D.l., p. 317) e outras mais. Não sem comparar as 
frases que lhe vêm com algumas outras que realizam, aliás, urna 
inversão da mesma ordem. Assim como diz Langevin7 : "O cálcu-
lo tensorial conhecia melhor a física do que o próprio físico". De 
Michelangelo: "Minha estátua já está dentro deste bloco de pedra. 
Não preciso nada mais do que encontrá-la". Ou ainda, os Jivan-
Mutkas da Índia: ''A experiência liberadora disso sabe há mais 
tempo que o próprio liberado" (D.I., p. 326). 
Há nisso algo essencial. Se fosse permitido generalizar, seria 
preciso dizer que só se pode dar conta da experiência do n:al na 
forma proverbial. A esta, o sujeito pode aderir, mas o que é 1101;í vd 
26 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
é que nela manifestamente ele não é o enunciador. O provérbio 
constitui na língua, a presença sensível de um Outro irredutível aos 
locutores concretos. No que se refere ao texto ''As dores imaginá-
rias", os poucos aforismos que assumem nele o valor de provérbios 
não constituem apenas enunciados que dizem, sob diversas formas, 
como cada um pode ser ultrapassado pelo ato ao qual se dedica. 
Apresentam-se também como enunciações, ou ainda atos de lin-
guagem, eles próprios realizando aquilo de que falam, o domínio 
do Outro sobre o sujeito.8 Paulhan diz o seguinte a respeito do 
modelo de Langevin ou de Michelangelo: "A ciática sabe mais so-
bre mim do que eu mesmo" (D.I., p. 326). 
A identidade dos contrários 
O claro e o escuro a exemplo de ''As dores imaginárias", rea-
liza a inversão pela qual o sujeito experimenta-se como assujeitado. 
Se inicialmente lhe acontece de escrever, "Eu fiquei sabendo 
que não sonhava, e me encontrava, coisa curiosa", Paulhan deve, 
a seguir, render-se à razão: "Seria mais exato dizer: isso volta, 
isso se impõe (por isso ouço, os obuses, os cadáveres, o cavalo 
estourado) e, se preferirem: isso voltou sobre mim, isso me 
sacudiu, isso me atormentou" (C.0., p. 363). 
No entanto, a página seguinte pode parecer um recuo, um 
retorno a uma concepção intermediária, um compromisso. 
Paulhan renunciaria a escolher entre a atividade e a passividade. 
Ora uma, ora outra: "Ora idéia, sensação, imagem ou sentimento 
- e ora o contrário mesmo de uma sensação, de um sentimento, 
de uma idéia ou de uma imagem; ora uma parte de nós mesmos, 
a mais íntima, e ora, o oposto ( ... ) as coisas enquanto escapam a 
nosso controle, mas pesam sobre nós de fora" (C.0., p. 364). O 
que seria preciso, diz Paulhan, era poder reunir as duas idéias, os 
dois termos, as duas teses: a ingênua, segundo a qual sinto as 
dores ou as coisas e a que a experiência faz descobrir, abrangendo as 
dores que me castigam, as coisas que me surpreendem. 
Porém, é claro que nessa reunião não se trata de compro-
misso. Retomemos então, pois teve lugar a inversão decisiva. Ela se 
1. A pratica da letra 27 
refere, primeiramente, ao real, que não está onde se espera. Não na 
guerra, mas no vidro quebrado (e somente depois na guerra). Não 
em uma doença, mas em um esboço de dor. Naquilo que está rela-
cionado com o pouco, com a falta. Naquilo que tem alguma defi-
ciência. Naquilo que claudica e anda enviesado. No "desser"9 , e 
não no ser. 
Se o real não está onde se espera espontaneamente, é preciso 
mudar de ponto de vista. Olhar para outro lugar. Olhar de outra 
maneira. "Quanto menos está claro, melhor se o vê'' (C.0., p. 
349). Ou então: "Fecha os olhos para vê-lo melhor" (D.I., p. 327). 
''As folhas imóveis deixam-nos contemplá-las à vontade sob todos 
os seus aspectos e em todas as suas formas - coaguladas, fixas, 
regulares". Mas elas nada me ensinarão - menos, em todo caso, do 
que esta outra, "a única na árvore a agitar-se debilmente (e que 
logo pára)" (D.I., p. 327). 
O real está na falta. A claridade está na obscuridade. Vê-se 
que não se trata, portanto, de um compromisso. Trata-se de uma 
outra lógica, pela qual um termo encontra-se idêntico ao termo 
contrário. Em O dom das línguas, é a linguagem que dá o modelo 
mais explícito o qual é próprio para justificar, no retorno, as intui-
ções dos textos anteriores. Com efeito, não é suficiente dizer que 
as palavras que empregamos têm vários sentidos. O mais espanto-
so é essa propriedade das palavras "as mais decisivas", aquelas que 
marcam "a articulação do pensamento", de significar uma idéia e 
seu contrário. Este é o caso de "jamais" (jamais], que pode querer 
dizer "sempre" ("Mulheres, fechem para sempre [pour jamais] os 
olhos à vaidade") ou de mas [mais], que pode significar "mais" 
[davantage] (a polícia não pode fazer mais) 10 e ainda de outros dez 
exemplos (D.I., p. 413-415). 
Um termo pode significar seu contrário. Por que o obscuro 
não seria fonte de claridade, a falta não seria signo do real e o 
sujeito, finalmente, índice do objeto? Eu senti, diz Paulhan: mas é 
o contrário, também, "o contrário até mesmo de uma sensação, de 
um sentimento, de uma idéia ou de uma imagem" (C.O., p. 364). 
É a coisa e não mais apenas a idéia. Nosso pensamento preguiçoso 
opõe, correntemente, a palavra e a idéia, a idéia e a coisa: "Quem 
não pode brilhar por um pensamento quer se fazer notar por uma 
28 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
palavrà' (D.I., p.401). "O pior perigo para o espírito é tomar suas 
idéias por realidades" (D.I., p. 402). Essas fórmulas são de Voltaire, 
porém, com certeza pensa-se no terror nas letras. Paulhan aconselha 
a abandonar esse gênero de oposições; sabe-se que foi finalmente 
assim que pensou resolver a questão da literatura e, ao mesmo tem-
po, da linguagem: "Toda palavra é uma idéia, toda idéia uma coisa, 
toda coisa uma palavra" (D.I., p. 421). 
A faca e o pênis 
Se o dilaceramento no imaginário e o choque contra o real 
encontram seu correspondente na psicanálise, a polissemia e a 
identidade dos contrários nos são igualmente familiares. Devido 
ao fato do significante ser polissêmico que o sujeito pode sus-
tentar, além daquilo que ele acredita querer dizer, e com as mes-
mas palavras, um discurso completamente diferente. Freud, in-
clusive, já destacava que o inconsciente reúne os contrários e re-
presenta-os em um só objeto. E ele se regozijava, por isso, com o 
que Abel avançara sobre os sentidos opostos nas palavras primiti-
vas. T;1lvez seja a ocasião de reparar um mal-entendido. 
Em 1924, Paulhan cons::igra a Fn·ud um texto intitulado: 
"Freud: reserv::is sobre um ponro", curto o suficiente para citar 
aqm suas passagens essenc1a1s: 
"A obsessão de uma jovem consiste cm impedir com muito 
cuidado que o travesseiro coque na madeira de seu leito. 11 Ora, 
Freud observa, primeiramente,que p;u-a essa jovem a madeira é 
macho e o travesseiro, fêmea, e que a madeira representa seu pai e 
o travesseiro, sua mãe; enfim que, secretamente apaixonada pelo 
pai, ao separar o travesseiro da madeira, realiza uma ação mágica, 
própria para impedir seus pais de se unirem. Freud, no entanto, 
revela à jovem ou a leva a descobrir pensamentos de incesto e 
ciúme. Imediatamente, a obsessão desaparece( ... ). Este é, de for-
ma muito simplificada, o caso típico da observação freudiana. O 
que ele prova? Que o travesseiro e a madeira do leito, diz Freud, 
explica-se pelo pensamento anterior do incesto; é a linguagem que 
mantém esse pensamento recalcado ( ... ). Porém ( ... ), não se trata 
I. A prática da letra 29 
em absoluto de incesto em geral, mas do próprio incesto da jo-
vem, e dessa forma ele lhe explica, inicialmente, seu desagrado e 
seu horror da madeira do leito e do travesseiro. Trata-se de um 
incesto que é um progresso dessa madeira e desse travesseiro, que 
os pressupõe, que é explicado por eles, longe de explid-los ( ... ) o 
travesseiro explica o incesto, não o incesto o travesseiro. E as ser-
pentes, balões e cutelo de sonho bem poderiam dar conta do açoi-
te, não o açoite das serpentes, balões ou cutelo". 12 
Não falta ao texto fineza. É curto e medido. Paulhan não 
nega que a psicanfüse possa curar. Absolutamente, não a descarta 
(as serpentes, balões ou cutelo de sonho bem poderiam explicar). 
Dessa forma ele a interroga mais do que muitas das críticas da 
psicanálise que, muitas vezes, quanto mais ineptas, mais são defi-
nitivas. 
Não nos apressemos, todavia, a conceder demais a Jean 
Paulhan. Em primeiro lugar, não é verdade que seja o travesseiro 
o que explica o incesto (ou o medo do incesto). Com efeito, o 
sintoma pode desaparecer (isso se vê), ou ser substituído por ou-
tro. A história do sujeito em seus elementos constitutivos (Papai-
Mamãe, para ficarmos no elementar) forma o pano de fundo so-
bre o qual somente as novas figuras adquirem sentido. 
Ao mesmo tempo, a prática analítica é menos unívoca do 
que Paulhan a imagina. O discurso inconsciente freqüentemente 
se revela reversível. Assim S., que queria desfazer-se de penosas 
obsessões, procura a causa no comportamento de sua mãe, quan-
do ele era criança. Não cessa de voltar a esse período, mudando 
continuamente o ponto de vista adotado, modificando a perspec-
tiva, deslocando seu interesse de episódio para episódio. Pouco a 
pouco, desenha-se a figura da mãe, sobredetermi nada, quase 
compósita. E ficamos a pensar que não é cerco que tudo isso seja 
verdadeiramente a explicação linear do sintoma: para causa anti-
ga, efeito atual. Não é certo que esta ou aquela lembrança "expli-
que" esta ou aquela obsessão. Porém, ao associar, ao articular seu 
sintoma a construções fanrasmáricas, S. elimina alguma coisa de 
.~ua parte fixada e abrupta, reinserindo-a em sua existência, tempe-
rando seus efeitos devastadores. 
No caso de A., de origem estrangeira, ela se queixa, desde o 
30 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
começo de seu tratamento, de ter sido rejeitada na infância por seus 
amiguinhos, os quais acusa de racistas. E depois, em dado momen-
to, durante algumas semanas, ela relata toda uma série de sonhos 
em que é perseguida por alguns inimigos. O contexto ("eles correm 
atrás de mim", etc.) quase não deixa dúvidas sobre a dimensão se-
xual da questão. Entretanto, A. associa já em seu registro familiar a 
hostilidade da qual viria a ser vítima. Será preciso, então, tentar 
fazê-la ouvir outra coisa, nem que seja para evitar ver a análise atolar 
na repetição? Talvez, à condição de não anular uma das direções 
interpretativas em proveito de outra. Com efeito, o que é impor-· 
tante não é tanto que os homens a desejem, mas sim, que esses que 
a desejam não possam aparecer, no momento, senão como inimi-
gos, sob os traços ameaçadores desses indivíduos que a perseguem. 
Há algo de verdade no texto de Paulhan. Por que a faca deve-
ria representar, sempre a verga e esta jamais a faca? Pulsões de morte 
e pulsões sexuais, com certeza, são contrárias. Contudo, para a psi-
canálise, assim como para Paulhan, obscuramente, os termos con-
trários podem equivaler-se. 
Melhor ainda: sem dúvida, o conceito mais decisivo para a 
teoria analítica é o de falo, sendo, ao mesmo tempo, um conceito 
definitivamente bastante curioso. Em Freud, esse conceito permi-
te a equivalência de termos aparentemente díspares, como a cri-
ança e as fezes. Funciona como significante do desejo, tanto em 
um sexo como no outro (enquanto não se reduz ele próprio a um 
órgão). Enfim, é símbolo, no inconsciente, tanto do interdito como 
do desejo. A cada vez, reúne os contrários. Essa análise não é evi-
dente. Ela supõe uma lógica à qual não estamos habituados. Sal-
vo, talvez, se tivermos lido Jean Paulhan. 
O sujeito e o objeto 
Em Paulhan, a identidade dos contrários refere-se, particu-
larmente, ao sujeito e ao objeto, o sujeito que encontra a coisa 
onde antes acreditava estar reduzido a impressões. 
Seria necessário mostrar aqui que o processo psicanalítico não 
tem outro fim. Este não se conclui na contemplação narcisista de 
1. A prática da letra 31 
uma profundidade intra-subjetiva. Antes, leva o sujeito ao encon-
tro com 13 um objeto que constitui para ele, real, um objeto certa-
mente bizarro o bastante para que Lacan tenha precisado inventar-
lhe um nome: objeto a. A análise leva-o a se dar conta de que ele é 
esse objeto. 
A identificação com um objeto que, aliás, tem algo de 
inominável (o seio ou o cíbalo, o olhar ou a voz constituem ape-
nas uma aproximação) não deixa de ter efeito sobre o sujeito. Lacan 
chama esse efeito de destituição subjetiva, uma vez que tal desco-
berta não deixa de desorganizar aquilo que tinha sido ordenado 
para cada um, o que estava instituído. O sujeito não é mais o que 
imaginava, não é mais o que pensava. Ou, ainda, ele é onde não 
pensa. Oposição do eu sou e do eu penso, que é a mesma de ''As 
dores imaginárias". 
No entanto, não é a esse texto que Lacan faz referência quan-
do introduz a idéia de destituição subjetiva, mas a uma narrativa 
muito anterior, O guerreiro aplicado14 • "O guerreiro aplicado", 
escreve, "é a destituição subjetiva na sua salubridade". 15 
É verdade que há muitos pontos comuns entre o narrador 
desse relato, Jacques Maast, e o autor de ''As dores imaginárias". 
Lembremo-nos deles ou a eles nos reportemos. Depois de duas 
frases de apresentação - "Eu parecia maior do que minha idade. 
Eu me chamo Jacques Maast e tenho dezoito anos" -, ele explica 
como foi se engajar. "Quando chegou a terceira semana de guer-
ra, todo o mundo, e as meninas da cidade em que passo minhas 
li:rias de estudante me perguntam: 'Você não vai?' Esses campo-
neses conhecem-me desde meus avós: eles tinham a meu respeito 
uma opinião antiga, que eu respeitava( ... ). Estavam, pois, surpre-
sos porque eu não partia( ... ). Com esse ar um tanto selvagem, sou 
111;1is sensível do que ninguém às opiniões das pessoas". 16 E Jacques 
fld .1.1st parte para a guerra. A narrativa continua dessa forma, até o 
lf'1 i111l·nto pelo obus, sem a menor pretensão ao heroísmo. Não 
• p•r 11 11arrador renegue o ato que o fez partir, sob o pretexto de que 
111111 n lnia da opinião das outras pessoas. É bem dele que se trata, 
111.1, ctdim, é inútil tentar acrescentar algo mais sobre esse ponto-
I M -r 'l "al" 'd .. 1np1cs aast quase nao raz um JU gamento pesso a respeito o 
<111c csd an111tccendo. Assim como Paulhan, mais tarde: "Eu pos-
Elementos lacanianos 
Sl ________ ...... p_a_r_a_u_m_a.......,_p_s_ic_a_n_a_' l_is_e_n_o_c_o_ti_d_ia_n_o 
so, pelo menos, fazer-me esta justiça: é que sempre evitei, na medi-
da de minhas forças, acrescentar uma visão pessoal além de todas as 
que já correm pelo mundo" 17• Dir-se-ia que aqui se trata, sobretu-
do, de opor à expressão "opiniões", seu exame, sua explicação e, de 
alguma forma, sua ciência. Porém, ainda há outra coisa: 
Informadosobre o que teria que fazer de acordo com as "cir-
cunstâncias" e com a opinião dos camponeses, Jacques Maast reali-
zou os gestos cotidianos da guerra sem ardor, nem entusiasmo par-
. l 1. ' f' l "l ' l" d' l ucu ar, mas tamoem sem ·urtar-se a e cs. mpass1vc , 1z e e, e 
l ' " 1· d " (' f' E l -tam Jcm ap tca o . .,omo se sua tare a o superasse. • e e tenra na.o 
se mostrar demasiado desigual. 
É também nessa distância do homem com sua tarefa que 
reside o pouco, a falra. "Não falo de mim com prazer escreve 
Paulhan em A ponte atrtwessr1.dr1, "não me sinto espesso" 18 • Ê uma 
experiência desse tipo que a obra não cessa de retomar 
(perlaboração, dizem os psicanalistas) das primeiras narrativas até 
os últimos ensaios. É essa experiência, sem dúvida, que informa a 
escrita, seus parágrafos curtos, fragmentados, suas frases "transpa-
rentes", pelas quais pode passar a luz. É ela que lhe dá seu tom e 
essa discrição, à qual cada um é sensível. 
Paradoxos 
Sobre a destituição subjetiva, Lacan diz que ela faz "ser( ... ) 
singularmente, e forte" 19• Se Paulhan esclarece essa fórmula, é por 
meio de um paradoxo: apenas um ser cm nada muito espesso po-
derá verdadeiramente ser. A condição da força sustenta-se em uma 
cerra fraqueza. 
Tentemos, no entanto, manter os dois termos desse parado-
xo. "As dores imaginárias" como O claro e o escuro instruem-nos 
sobre nossa dependência fundamental. Onde creio que minhas 
dores sejam imaginárias, que as invento, dou-me conta de que 
elas são reais. Elas me sentem quando eu, na verdade, acreditava 
que as sentia. Onde acredito ter idéias, são as idéias que já me ela-
boraram: sou feito. 
Todavia - levemos a sério a identidade dos contrários! -, é 
1. A prática da letra 33 
nesse assujeitamento que o sujeito pode apreender-se. É nessa desti-
tuição, nessa falta a ser que ele pode, finalmente, encontrar sua 
realidade: não somente o vidro quebrado, mas a guerra, os exérci-
tos e seu próprio lugar no meio de tudo isso. Acreditava-se ativo, 
era passivo; apreendendo o que constituía sua passividade, pode, 
enfim, agir. 
Há uma outra forma de dizê-lo. A experiência do real faz-
nos perceber fora aquilo que nosso pensamento situava esponta-
neamente cm nós mesmos. Isso distancia nossas emoções (sem 
fugir delas, elas continuam nossas vizinhas). Isso lhe retira o paté-
tico com o qual às vezes nos deleitamos. E, ao mesmo tempo, isso 
lhe dá relevo. Serão lidas ainda algumas linhas de Paulhan, em 
que ele chama de pudor essa qualidade que acredito não devia 
faltar-lhe, não talvez porque fizesse parte de sua personalidade, 
mas porque era comandada por sua experiência. "O que é o pu-
dor? 1:, em primeiro lugar, uma recusa. É pudico o homem que 
mantém à distância suas emoções, sua vontade, seus desejos. Que 
os trata pelo mistério: sendo belo, dissimula seu corpo; forte, sua 
potência; enamorado, seu desejo. Que lhes concede, desde o pri-
meiro instante, o mesmo distanciamento e o destaque que a re-
cordação às vezes lhes dá, - e que nos impunham brutalmente o 
quebrar de um vidro, a batida de uma porta de armário, a bofeta-
da do budista zen ou a perna quebrada", (Não sendo necess,írio 
explicar aqui a bofetada do lmdi.\la zen ou a perna quebrada, que 
a seu modo repetem o vidro q1wl1rado 011 a volta em um quarto 
escuro.) (C.O., p.361). 
Seria bom que o a11;ilis1:1 1:11nlH:111 f;,ssc pudico. Mas em 
que sentido? Não demonstrar srns sc11timrntos: isso e: Gcil, ele o 
aprendeu e chama de neutrali<lade esse seu ar de não se deixar aba-
L1r; 11iío exibir muito seus pensamentos ou suas opiniões: assim 
1 01110 para qualquer um, os pensamentos o atravessam, antes mes-
1110 dl' prod111.i-los. Então, talvez o mais difícil e ao mesmo tempo 
o mais essencial, seja tampouco exaltar em si o próprio 
assujeitamento. A dor sente-me e o significante comanda-me. 
Reconhecê-lo, entretanto, seria renunciar ao humor? Paulhan não 
carecia dele, e suponho até mesmo que ele o tinha cada vez mais (a 
ponto de, após haver escrito "As dores imaginárias", fingir que sua 
34 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
cura não era devida à sua descoberta, mas ao porre do colete de aço, 
"pequena couraça", "colete de hussardo"). Talvez tenha sido por sa-
ber um pouco sobre o real, aquele mesmo que o processo analítico 
pode encontrar. 
Notas 
I Este texto foi publicado, pela primeira vez, nos Ct1hiers Jean Paulhan, Gallimard, 
1984. 
2 Jean Paulhan (1884-1968), escritor francês, ocupou o lugar de eminência parda 
da literatura francesa tanto como teórico da língua e da literatura quanto como 
crítico de arte. Em 1940, abandona a direção da Nouvelle Revue Française (NRF) e 
funda na clandestinidade, sob a ocupação alemã, as Lettres Françaises. (N. de EE.) 
3 Em francês fantasme. De acordo com o parecer do Conselho Científico desta 
obra, "fantasma" é uma escolha que visa a uma diferenciação tanto da fantasia 
kleiniana quanto do sentido comum de fantasia, como devaneio, aludindo a algo 
que não se situa no campo do conhecimento, ainda que outros prefiram "fan tasià', 
equivalente quase perfeito do termo alemão Phantasie. (N. de EE.) 
4 CEuvres. 
., . A prática da letra 35 
·; "Les douleurs imaginaires", Le clair et L'obscur, Le don des langues, doravante 
designados no texto pelas siglas D.I., C.O. e D.L., seguidos da paginação na edição 
do Cercle du livre précieux. 
6 Psycana!ysant e ana!ysant, com freqüência, são traduzidos do francês para o 
português por "analisando". Não parece ser uma tradução gramaticalmente correta, 
pois analysant é o particípio presente e "analisando" é o gerundivo. Ana!ysant devia 
ser traduzido por "analisante". Esta pequena diferença gramatical implica numa 
grande diferença na forma como se considera o processo analítico. De fato, o 
gerundivo é o particípio do futuro passivo e indica que o sujeito que se submete a 
uma análise é o objeto para ser analisado por outro (o analista). Enquanto que 
"analisante" é o particípio presente ativo que coloca o sujeito numa posição de ator-
sujeiro de sua própria análise. A psicanálise não é um exercício de vidência (cf. M. 
Fleig) que o termo "analisando" implicaria. (N. de Ivan Corrêa) 
7 Paul Langevin (1872-1946), físico francês e professor na Universidade de 
Paris. Foi pioneiro da física teórica moderna na França e um dos primeiros 
defensores e divulgadores da teoria da relatividade. (N. de J anine Vandermersch 
e Bernard Vandermersch) 
8 yer;,adiante, o capítulo sobre ''A experiência do provérbio e o discurso psicana-
lítico . 
9 Désêtre, neologismo introduzido por Lacan para dar conta da queda do 
sujeito suposto saber do lado do analista como correlato da destituição subjetiva 
do lado do analisante. Trata-se da queda da consistência (do ser) do analista na 
situação de fim de an.ílise e passagem do analisante para a posição de analista. 
Esse termo é empregado por Lacan no discurso proferido sobre o passe na École 
freudienne de Paris, cm 1967 (Cf. Scilicet 2/3, Seuil, 1970). (N. de Mario fleig) 
10 Em francês, la police n'en peut mais. (N. T) 
11 Em suas Conferências introdutórias sobre psicandlise (l 916-l 917a), Freud discu-
te este caso clínico cm "O sentido dos sintomas", conferência XVII. Refere dois 
exemplos da análise de um sintoma obsessivo, com o propósito de evidenciar que os 
sintomas têm um sentido e relacionam-se com as experiências dos analisantes. (N. 
de Lucia Serrano Pereira) 
12 Jean Paulhan, "Freud: réserves sur un point", em CEuvres, Cercle du livre précieux, 
t. IV, p. 417-418. 
13 Mantivemos a expressão "ao encontro com", quando o correto seria "ao encontro 
de" ou "no encontro com", para salientar o encontro com o real que implica ao 
mesmo tempo o sentido de "ir ao encontro" e de "dar de frente com". (N. de EE.) 
14 Le guerrier appliqué, em CEuvres, Cercle du livre précieux. t. II. 
15 J. Lacan, "Discours à!' E.F.P.", em Scilicet2/3, Seuil, 1970. 
1'' Jean Paulhan, Le guerrierappliqué, op. cit. II, p. 103. 
1 • Jean Paulhan, Note, em CEuvres, Cercledu livre précieux, t. II, p. 8. 
1" Jean Paulhan, Le pont traversé, em CEuvres, Cercle du livre précieux, t. I, p. 87. 
,., .J. Lacan, "Discours à l' E.F.P.", em Scilicet 2 e 3, Seuil, p. 20. 
A experiência do provérbio 
e o discurso psicanalítico 
Quando o homem dos lobos, no divã de Freud, fazia um 
lapso, escondia-se atrás de sua origem estrangeira (sua língua ma-
terna era o russo), nada querendo saber daquilo que, no entanto, 
havia sido dito. Da mesma forma, quando Jean Paulhan, passan-
do alguns anos cm Madagascar, relata algumas de suas dificulda-
des cm falar malgaxc, poderíamos ser tentados a atribuir essa falta 
de jeito à aprendizagem, longa e complicada, de uma língua es-
trangeira. Assim, Rabe diz a Paulhan, em malga:xc: "Como queres 
que me defenda contra essas pessoas? O boi morto não se protege 
das moscas". "Mas você ainda é um boi bem vivo e sólido", res-
ponde Paulhan. Ao que Rahaja, que se dirige a ele com benevo-
lência, como que salientando algo de mau gosto: "Como você 
pode chamar Rabe de boi?". Há nisso apenas uma oportunidade 
para se perceber uma falta de jeito bem compreensível a um sujei-
to que domina mal uma língua estrangeira? Antes disso, a con-
frontação com uma língua estrangeira permite ver, de uma ma-
neira mais evidente, aquilo que é a própria essência da linguagem: 
o mal-entendido. É por não ter negligenciado esse mal-entendido 
que Paulhan pôde fazer, em "A experiência do provérbio" 1 , uma 
abordagem do significante que interessa muito de perto o discur-
so psicanalítico. 
38 
1 
Elementos lacanianos 
para urna psicanálise no cotidiano 
Na literatura analítica não faltam referências aos provérbios. 
Entretanto, os artigos que abordam essa questão, em geral, o fazem 
indiretamente. 
Assim, Jean-Paul Valabrega2 procura as leis que presidem a 
formação e a estruturação desses dois "intermediários" entre o in-
consciente e o consciente que são a pulsão e o fantasma. 3 Insiste 
naquilo que chama de "lei de inversão". No artigo4 sobre ''As lem-
branças encobridoras", lembra, é pela virada ao avesso que Freud 
estabelece o "fantasma'' por tds da lembrança, "levar flores a uma 
jovem", significando "tomar-lhe sua flor, deflorá-la". Da mesma 
forma, prossegue ele, a interpretação do fantasma clássico "bate-
se em uma criança'' gira em torno da virada ao avesso do geschlagen 
[bater], um pouco como se aplicasse o provérbio: "Quem ama 
bem castiga bem", ou seu inverso "Quem bate muito gosta mui-
to", ou até "Quem bate bem beija bem". Isso o leva, então, a uma 
observação de ordem mais geral sobre os provérbios: "Estejamos 
· certos, aliás, de que o estudo dos provérbios não seria o último a 
nos esclarecer a respeito do virar ao avesso". Porém, Jean-Paul 
Valabrcga deixa essa questão apenas esboçada. 
Em um artigo intitulado "Linguagem e satisfação, ou da 
interpretação"5 , Moustapha Safouan pergunta-se sobre o que pode 
agir na interpretação e apresenta um exemplo retirado de um ana-
lista americano chamado Norman Reider. Esre tem uma paciente 
"cujas associações deixam transparecer o temor fantasmático de 
que saia algo da boca do analista, que a surpreenda, além da medi-
da". Alguma coisa ... o quê? "O pênis", interpreta Reider, que se 
ouve recusado através de uma grande quantidade de sarcasmos, 
movimentos de mau humor e até mesmo de amor. Apesar da in-
sistência do analista, a interpretação é assim refurada, até o dia em 
que Reider cita um provérbio japonês: "O cego não tem medo das 
serpentes". A partir desse dia a analisante põe-se a verbalizar como 
verdades tudo aquilo que até então ela havia rechaçado. O que 
teria operado, nesse caso? Tanto para Safouan como para Reider, 
1. A prática da letra 39 
essa questão trás ao seguinte: Nos bastidores, o que a metdfora ope-
ra, dado que, aparentemente, ela não acrescenta nada? Comores-
ponder? O analista americano, muito embaraçado, invoca o gosto 
de sua paciente pelas coisas japonesas. Tudo se passaria como se o 
fato de ter afinidade ou gostos comuns na mesma área cultural 
tivesse tornado a paciente, que era histérica, sensível à influência. 
Quanto a Moustapha Safouan, este retoma, naquela oportunida-
de, um estudo mais geral da metáfora. "O nervo da metáfora está 
na substituição como tal", e não nos termos que são substituídos 
um pelo outro. Assim, no paciente o desejo acha-se "reconhecido 
como tal, isto é, reconhecido sem ser conhecido". Desse modo, 
diferentemente do analisante demasiado apressado em encontrar a 
significação deste ou daquele elemento de seu sonho, de um alber-
gue, por exemplo, onde verá um seio6 , o analista preocupa-se em 
manter aberra a hiância que seu paciente pode apressar-se em querer 
tapar. Observad, por exemplo, que se trata certamente de um al-
bergul'., mas de um albergue "tal como não existe na realidade"7• 
/\ssim, nada obturará o desejo. Da mesma forma, continua Safouan, 
a diferença entre dizer a uma paciente "você não quer ver a verdade" 
e dizer-lhe "o cego não tem medo das serpentes" é a diferença entre 
o imperativo "você deve saber" e o convite "você pode saber". Pode-
se citar integralmente algumas linhas, que nos farão chegar à beira 
de nossa questão: "No primeiro caso, o desejo do analista, quanto 
a esse assunto, parece estar obstaculizado até o mandamento e esse 
mandamento dirige-se à marionete falante que tenho na minha fren-
te, ao passo que o 'Você' de que se trata, em 'Você pode saber', tem 
uma significação totalmente diferente, esse Você é, propriamente 
falando, um Ele. E quem é esse Ele? ... Quem quer." Entendemos 
que, enquanto insistia em fazê-la admitir sua interpretação, o 
analista mantinha com sua paciente uma relação dual. A relação 
imaginária do eu (moi) com o outro, constituía uma barreira para 
que surgisse o que quer que fosse do inconsciente. Para que tal 
possibilidade seja aberta, é preciso ir além do eu (moi) assim como 
do você. O inconsciente, como discurso do Outro, tem essa 
dimensão que Safouan designa como dimensão do Ele. Porém, é 
inessencial que seja a enunciação de um provérbio que opere 
esse apagamento da pessoa do analista, correlativo de um discurso 
40 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
que não se dirige mais a um outro, mas ao Outro? 
Não tentemos responder logo. Detenhamo-nos ainda em 
uma terceira abordagem, a de Octave Mannoni. Em um artigo 
sobre "A elipse e a barra"8, retoma uma questão essencial para 
um psicanalista: a "pressão paradigmática". Para ele, trata-se de 
saber como funciona efetivamente, na análise, o significante com 
seus equívocos, suas próprias leis de homofonia e o que elas 
induzem. Desta forma, um analisante cuja mulher chama-se 
Laurence e cuja irmã chama-se Florence vem um dia dizer-lhe: 
"Não pode haver mais semelhança entre minha mulher e minha 
irmã do que entre um ovo [oetef] e um boi [boeiif]". Para Mannoni, 
o que se impõe inicialmente, quando o paciente pronuncia essa 
frase, é a homologia de relações, por um lado, entre boi e ovo e, 
por outro, entre Florence e Laurence. Contudo, não é isso que 
surpreende o analisante. Ele não se dá conta da importância do 
que disse senão ao se referir ao provérbio "Quem rouba um ovo 
rouba um boi". Certamente, há muito tempo ele havia observado 
a semelhança entre o nome de sua mulher e o de sua irmã, sem 
dar a isso a devida importância, e ainda desta vez, sem dúvida, 
não teria sido surpreendido pela semelhança significante, pela 
analogia literal, se não fosse o provérbio. Eis, pois, Mannoni 
pronto para se interrogar sobre a importância específica do 
provérbio. No entanto, ele também deixa de lado esse problema 
para ir diretamente à questão do desejo: "o jogo com os 
significantes", diz ele, "não se manifesta no discurso neurótico 
senão quando algo do recalcado é posto em questão" (se quem 
rouba um ovo rouba um boi, quem deseja Laurence pode muito 
bem desejar Florence). Entretanto, é à memória de Jean Paulhan 
que Mannoni dedica a terceira parte de seu artigo. Acreditamos 
ser Paulhan quemnos dá os meios de ir mais longe no estudo do 
provérbio. 
Lacan, em compensação, refere-se explicitamente ao artigo 
do qual partimos. Em seu semin.írio do ano 1972-73'!, interroga-
se sobre o que seria o significante. Aliás, destaca as dificuldades de 
uma totalização. O significante não seria dizer demais? E, até mes-
mo, um significante não pressupõe que o significante já pode ser 
coletivizado, que se pode fazer dele uma coleção, falar dele como 
1. A prática da letra 41 
de algo que se totaliza? Ainda que, em particular para o lingüista, 
seja bastante difícil coletivizar o significante, fundá-lo, certamen-
te, não se pode limitá-lo ao fonema nem tampouco à palavra, que 
não tem outro ponto onde possa ser feira sua coleção a não ser no 
dicionário. Antes, seria preciso interrogar a locução ou, ainda, o 
provérbio "pelo qual um determinado artigo de Paulhan, que re-
centemente me caiu nas mãos, fez-me interessar mais vivamen-
te"!º. 
Vejamos, pois. 
II 
A experiência do provérbio é, de fato, o relato de uma expe-
riência. Paulhan, ao tentar aprender a língua malgaxe, vê-se con-
fronrado com diversas dificuldades e com algumas questões refe-
rentes ao papel que nela representam os provérbios. Conta-nos, 
um pouco, como as coisas apresentaram-se para ele, sem temer os 
desvios sinuosos, sem sistematizar demais o que não é, além disso, 
senão a descrição de um itinedrio. O conjunto tem como que um 
cunho de verdade, insubstituível para o psicanalista. É preciso 
apresentar o que ele próprio diz de seu percurso. 
Paulhan relata que, para aprender o malgaxe, quase não se 
incomodou com a sintaxe ou com o vocabuHrio, mas principal-
mente com a impressão de que faltava às suas palavras "um certo 
peso, um valor, um tom de convicção". O que lhe falta então? 
Não tan.la a pensar que não tem acesso a uma espécie de "segunda 
língua" malgaxe, que tem força de lei, que pode pôr fim a todas as 
querelas. Essa língua é, antes de tudo, constituída de provérbios. 
É interessante observar, de imediato, o que permite a Paulhan 
reconhecê-los como tais. Segundo ele, ao responder a um provér-
bio como a uma frase qualquer, "falo no vazio e apenas por mim". 
Assim aconrece com "o respeito se compra". Acreditando perceber 
facilmente seu sentido, Paulhan responde que prefere ficar à von-
tade e que o respeitem um pouco menos. Porém, não é entendido. 
Na fórmula "o respeito se comprá', o essencial não era o sentido. É 
como se àquele que diz "ao bom entendedor, salvação" se replicasse 
42 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
"nem sempre, porque, se viu o perigo, sabe-se evitá-lo". "Esse pro-
vérbio", diz Paulhan, "não se levantava de maneira alguma contra a 
hipótese de que o bom entendedor podia não ser salvo". Inútil, 
portanto, precipitar-se sobre o sentido aparente. 
Então, como compreender ou como tomar o provérbio? 
Quando o autor pergunta aos malgaxes sobre o sentido de um 
provérbio que ouviu, para explicá-lo, seus anfitriões precisam sa-
ber em que contexto foi empregado. Ou ainda, se Paulhan não 
pode citar o contexto, eles inventam uma pequena ficção, uma 
situação na qual o provérbio poderia muito bem surgir. De qual-
quer modo, suas respostas tendem antes a justificar o emprego do 
provérbio nesse ou naquele caso: parecem pressupor que Paulhan, 
de fato, conhece o provérbio em si mesmo. 
Alguma coisa poderia tranqüilizar o narrador inquieto. É 
que os jovens malgaxes, educados à européia, quase nunca conse-
guem situar melhor do que ele o valor dos provérbios, tomando-
os por "frases". Aliás, os próprios malgaxes mais velhos, quando 
utilizam uma locução proverbial, às vezes a vêem cair no vazio. 
De tudo isso, Paulhan tira, sobretudo, a idéia de que é preciso 
superar grandes dificuldades. 
A terceira parte do texto apresenta o autor já de posse de 
alguns provérbios, que pode citar inocentemente e que também 
podem, em uma discussão, vir em apoio de sua causa. Não que 
possa dizer como os adquiriu. O progresso fez-se nele de forma 
obscura. Ele apenas observa o que deve fazer para conserv,í-los 
como provérbios: não modificá-los em nada. Assim, "zomba-se 
daqueles que dançam sem tambor" é provérbio, mas não "já se viu 
dançar sem tambor", nem "há do que rir: ele dança sem tambor". 
É preciso lembrar não da imagem, e sim da frase inteira, como se 
ela fosse apenas uma única palavra. Freqüentemente, é a estrutura 
abstrata da frase que a faz manter-se, ou até mesmo o que permite 
formar novas. Assim, a partir de "como o cego desvia-se: é quando 
foi tocado que ele se inclina de lado", será formado "como o ca-
mundongo esquiva-se dos golpes: é quando foi cocado que salta 
de lado". 
Durante essa aprendizagem, Paulhan observa um outro fe-
nômeno curioso. Enquanto certos provérbios interessam-no par-
I. A prática da letra 43 
ticularmente por sua sutileza, seu aspecto paradoxal, sua malícia, 
ou mesmo sua estrutura de pequeno drama, são aqueles que lhe 
parecem mais desprovidos de interesse que ele emprega mais cor-
rentemente. "Enfim, tudo se passava, para mim, como se tivesse 
havido antinomia entre o sentido do provérbio e o uso que dele se 
faz". 
Passa-se um pouco mais de um ano. A linguagem de Paulhan 
é tão rica em provérbios como a de um malgaxe. Mesmo assim, 
não foram esclarecidos os problemas que apresentam, muito pelo 
contrário. Por exemplo, a confiança que Paulhan ames ligava ao 
emprego do provérbio pelos malgaxes, atualmente parece-lhe es-
tar mais ligada, pelo menos no que lhe concerne, à verdade de 
suas palavras. Em suma, "o provérbio só funciona bem com a 
condição de não ser tido por provérbio". Mas, então, como abordá-
lo? A partir disso, o autor descreve dois tipos de situações muito 
diferentes. Em certos casos, Paulhan prepara de antemão provér-
bios, tendo em vista uma discussão. O provérbio parece, então, 
ser <!xpressão. A questão é: "Como o provérbio quererá dizer isso?" 
Às vezes, o provérbio também se apresenta de uma forma total-
mente diferente, bem mais interessante. Paulhan explica, por exem-
plo, que em uma discussão, ele emprega mal um dos provérbios. 
A partir de então, precisa voltar sobre suas palavras para esclarecê-
las, para justificá-las, para mostrar que era realmente isso, há uma 
inversão. Agora, não se trata de saber "como o provérbio quered. 
dizer isso", mas "como isso quererá dizer o provérbio". 
Passemos ao modo como Paulhan explica essa inversão. O 
provérbio, diz ele, não é mais, nessa última abordagem, frase que 
deve exprimir um fato, é foto que as frases devem exprimir, é uma 
coisa. Percebe-se o quanto tais formulações são tributárias de uma 
concepção que se poderia muito bem dizer pré-saussuriana da lin-
guagem. Esta aparece como uma relação entre dois termos, mas 
trata-se de palavras e de coisas, em vez de significante e significa-
do. O importante é que a inversão operada por Paulhan deixa-se 
retomar nos termos que agora são os nossos; embora se pudesse 
crer, ingenuamente, que a seqüência significante proverbial era 
simples artifício de linguagem, vindo a dar sua expressão mais forte 
a uma significação já existente, o que se passaria de fato, é bem o 
44 
Elementos lacanianos 
para uma psicanálise no cotidiano 
contrário. Nessa perspectiva, cada provérbio deveria ser tomado 
como um significante, enigméÜÍco enquanto tal e em relação ao 
qual toda significação só poderia ser secundária. Todo o problema 
seria ver como os sujeitos falantes - os falasseres - podem acomo-
dar-se com esse significante, tomando-o por sua conta, comentan-
do-o, dando-lhe sentido. Seria possível sustentar que o artigo de 
Paulhan faria, de alguma forma, uma abordagem "experimental" 
daquilo que, com Lacan, se pode chamar a relação do sujeito com 
o Outro como lugar do significante. 11 Abordagem insubstituível, 
paralela à experiência do tratamento, e substituto vantajoso de uma 
arriscada descrição genética sobre os passos do in-fans tornando-se 
fahL'iSCr. 
III 
É, pois, munido dessa hipótese que se pode reler

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