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Roland Chemama • Roland Chemama Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano \M/ fDIT()Píl Porto Alegre, 2002 facebook.com/lacanempdf Título original: Éléments lacaniens pour une psychanalyse au quotidien. © Association freudienne internationale, Paris, 1994 Tradução: Francisco Franke Settineri (p. 15-213; 303-309 e 331-347) Patrícia Ramos (p. 11-14; 215-302 e 311-330) Revisão técnica: Conselho Científico e Roland Chemama Revisão final: Robson de Freitas Pereira, Mario Fleig e Conceição B. Fleig Revisão de língua portuguesa: Elisingela Rosa dos Santos e Maria Folberg Editoração eletrônica: Caio Beltrão Schasiepen Capa e desenhos: Arquiarte - Webdesign e Design Gráfico Impressão: Metrópole C517e Chemama, Roland Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano/ Roland Chemama. - Porto Alegre: CMC Editora, 2002. 352 p.; 14x2lcm ISBN: 85-88640-02-3 l. Lacan, Jacques, 190 I-i"98 l. Título CDD: 150.195 Reservado todos os direitos de publicação em língua portuguesa para CMCEditora Rua Mostardeiro, 291/403 90430-001 - Porto Alegre, RS 51 3346 8793 cmceditora@myway.com.br www.cmcedicora.com.br Proibida a reprodução total ou parcial Depósito legal Impresso no Brasil Printed in Brazil Lacan dizia: "O inconsciente é o social". É verdade que não há recalcamento pessoal que não participe, mais ou menos, do recalcamento coletivo; é mesmo por essa via que um sujeito introduz-se na vida da polis, ou seja, em nossos tempos, em uma economia de troca generalizada. Em que lugar, então, tratar o sintoma? Caso escolha o tratamento, o sujeito pode temer encon- trar-se, no final, exilado ou desarmado; caso prefi- ra a ação coletiva, pode saber, hoje, que ela leva ao pior. A aposta lançada aqui é a da difusão de um discurso: o analítico, se é verdade que ele torna possível um laço social que não estaria mais enodado pela perversão. O discurso psicanalítico1 Nota I Le Discours psychanalytique, coleção das Éditions de l 'Association freudienne internationale, na qual o presente livro foi originalmente publicado. Conselho Científico Robson de Freitas Pereira Associação Psicanalírica de Porco Alegre - Porto Alegre - Anna Carolina Lo Bianca Tempo Freudiano Associação Psicanalítica e Universidade Pedcral do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Bernard V:mdermersch Association lacanienne inrernationale -Paris- Janine Vandermersch Association lacanienne internationale -Paris- Letícia Patriota Fonseca Association lacanienne imernationale e Cemru de Estudos Freudianos do Recife - Recife- Lucia Serrano Pereira Association lacanienne inrernationale e Associação Psicanalítica de Porco Alegre - Porto Alegre - Maria Belo Association lacanienne internationale e Centro Português de Psicanálise -Lisboa- Com a colaboração de Ivan Corrêa (Centro de Estudos Freudianos do Recife, Recife), Adão Luiz Lopes da Costa (Associação Psicanalítica de Porto Alegre e Hybris - Clínica de Psicanálise e Psiquiatria, Porto Alegre) e Esther Tellerman (Association lacanienne internationale, Paris). Sumário Apresentaç.-'io ............................................................................................... 07 Prefacio à edição brasileira..................................................................... 11 lntroduç.-'io ................................................................................................... 15 1. A prática da letra................................................................................... 19 O real em uma palavra ....................................................................... 19 A experiência do provérbio e o discurso psicanalítico............ 37 O demônio da interpretação............................................................ 53 To,n sobre tom ..................................................................................... 67 Pós-escrito: Escrita litedria, alfabeto inconsciente.................. 75 II. Leituras lacanianas ............................................................................... 81 O método psicanalítico: comentários de Lacan relatívos às proposições de Freud ......................................................................... 81 Ler Balint com Lacan .......................................................................... I 03 O ato psicanalítico a partir do semigrupo de Klein ................ l I 7 Do erotismo feminino ...................................................... 137 III. Três textos clínicos . . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . .. 14 7 A propósito do discurso do histérico .................................. 147 O assujeitamento histérico ................................................ 171 A perspectiva lacaniana sobre a fobia e a questão da perversão ...................................................................... 181 IV. A experiência psicanalítica ............................................... I 95 /\ idéia de contrato na psicanálise ........................................ 195 \obre a interpretação ou a prova pelo significante .................. 203 O que é inconsciente no fantasma? .................................... 215 A questão do tempo nas depressões neuróticas ................. 223 Pós-escrito: paradoxos da prática analítica ...................... 233 V. O sujeito na história ...................................................... 241 A historicização da Revolução e o sujeito moderno ......... 241 Um sujeito para o objeto .................................................. 251 Os "casos" ....................................................................... 255 VI. A sexuação ................................................................... 275 O continente branco: identificação sexual masculina e posição perversa ............................................................ 277 Clivagem masculina, divisão feminina . . . .. .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . 287 VII. Ficções ....................................................................... 295 Uma mãe suficientemente bom ....................................... 297 A AIDS no século ........................................................... 303 O terceiro, outrora e recentemente .................................. 311 O Carmelo em pintura ................................................... 321 A paixão segundo Tomek ................................................ 323 "Assim fica-se sabendo pelo menos" ................................. 327 VIII. Sobre a transmissão da psicanálise .............................. 331 A demanda do discípulo ................................................... 331 Pode reconhecer-se o desejo em operação na passagem a analista? .......................................................................... 339 Apresentação Este é um livro que se lê "levantando a cabeça", como dizia Roland Banhes no seu Rumor da língua. Ler fazendo pausas na leitura, "não por desinteresse, mas ao contrário, por afluxo de idéias, excitações, associações". Para os psicanalistas, um texto tor- na-se mais interessante quando ele consegue viabilizar estas asso- ciações que remetem aos significantes que o produziram. Neste caso, trata-se de uma experiência de leitura que provoca os deslizamentos necessários que se endereçam à clínica de cada um. Percurso que não procura somente os signos já consagrados da identificação, mas que permite um pensamento sobre a prática de uma ética. Além disto, possibilita aos leitores pós Freud e Lacan, que todos somos, renovar a aposta na surpresa e na interrogação fundamental sobre o lugar do analista na direção da cura. Como o autor escreveu: um analista espera que lhe seja reenviada alguma coisa a propósito deste ato do qual sua prática é o efeito. Isto implica a inclusão do analista na clínica que ele promove e, conse- qüentemente, é aquestão de seu desejo que surge. A interrogação é levada a efeito com o auxílio da literatu- ra, com o mergulho na função da linguagem para dar conta de . uma. clínica do real e, não recuando mesmo frente aos discursos cotidianos, sociais e políticos. Uma maneira de demonstrar que os discursos subjetivos e coletivos deslizam pela mesma estrutura, sem perder de vista as modificações contemporâneas. Dessa ma- neira, os oito capítulos vão tecendo um enlaçamento entre a "Prá- tica da letra", "Leituras lacanianas" e "Três textos clínicos". ''A experiência psicanalíticà' faz uma trama com "O sujeito na histó- 8 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano ria", ''A sexuação", suas "Ficções" e "Sobre a transmissão da psicaná- lise". Para exemplificar: o leitor logo perceberá que "Paradoxos na prática analítica" (p. 233) está relacionado com ''A demanda do discípulo" (p. 331). Textos diferentes na temática, mas que perfa- zem esta articulação tão necessária entre as questões clínicas e as da formação/transmissão da psican.ílise. Talvez seja devido a este estilo que Roland Chemama, ao mencionar a importância de suas viagens ao Brasil, lembre das questões e temas que lhe foram colocados como fazendo parte de uma interrogação sobre "o vivo da prática", e não por uma preocu- pação burocrática ou somente destinada a operacionalizar procedi- mentos. J,í. faz algum tempo que os psicanalistas brasileiros estão muito interessados em trocar experiências sobre as vicissitudes da psicanálise nos mais diversos âmbitos ou países. Em outras pala- vras, compartilhar a responsabilidade advinda de suas próprias aná- lises e da prática de uma ética que os conduz na clínica. Assim, este livro é a (con)seqüência de um trabalho, não só de revisão e edição. Sendo mais explícitos, seu lançamento em português parece-nos trazer para o formato escrito mais um passo numa trajetória que vem sendo levada h,i alguns anos. Esta come- çou com a leitura de textos de Roland Chemarna, traduzidos e publicados segundo se apresenrassem nossas questões relativas ao exercício da clínica psicanalítica, ou ao lugar ocupado pelo psica- nalista cm nossa polis. "O demônio da interpretação" foi um des- tes textos, lidos, relidos e discutidos. Outros o sucederam, mas a edição do livro, desde o trabalho com o original, e chegando ao contexto da edição brasileira, possibilitou não somente uma visão do conjunto da obra, mas principalmente uma intensa troca entre o grupo de psicanalistas que cuidou desta publicação. Sem falar nas discussões com o autor, no decorrer de suas vindas ao Brasil. A ênfase que queremos dar está colocada nisto que consi- deramos como um dos efeitos do discurso do psicanalista; que pode ser verificado até mesmo no aparentemente prosaico traba- lho de edição de um livro. Esta é nossa aposta. A começar pelo cuidado na revisão e elaboração das notas. Uma tradução que es- tivesse à altura da riqueza de nossa língua, com observações que nos pareceram essenciais, a fim de complementar ou mesmo in- Apresentação 9 centivar a leitura de um texto psicanalítico. Sem descuidar das dife- renças de referências entre as línguas e a cultura que elas veiculam; pois, em se tratando de um livro que tem como uma de suas preo- cupações mostrar as conseqüências do aforismo lacaniano "o in- consciente é o social", explicitar alguns referenciais da história polí- tica, da literatura e até mesmo dos conceitos introduzidos por Lacan nos pareceram fundamentais. Este modo de produzir vem ao en- contro das palavras do autor, em seu prefácio a esta edição, ao rea- firmar o trabalho de escuta do sujeito que a linguagem produz e, ao mesmo tempo, oportuniza o prosseguimento deste processo de interlocução que tem na psicanálise sua via mestra. Robson de Freitas Pereira Porto Alegre / inverno de 2002 Prefácio à edição brasileira Quando este livro foi publicado na França, há alguns anos, uma amiga psicanalista fez uma observação sobre sua composição e sobre o percurso que parecia organizá-lo. Nele se via bem, dizia ela, como eu partira de uma abordagem literária da psicanálise, determinável não só na temática dos primeiros textos, mas tam- bém em sua forma. Ela me via em seguida dar mais espaço à leitu- ra dos textos lacanianos, depois à clínica, para enfim abordar pou- , co a pouco questões relativas à instituição psicanalítica. Essa apreciação não é totalmente exata. Com efeito, a or- dem na qual são apresentados os textos que seguem não é idêntica à de sua composição. Em contrapartida, o livro dá idéia de um trajeto que foi, em suas linhas gerais, o meu. Mas direi que, se a ordem aqui depreendida tem algum interesse, é por indicar algo sobre a própria psicanálise, mais ainda do que sobre o autor deste livro. É verdade que os primeiros textos recorrem à experiência literária com a qual os psicanalistas, depois de Freud, aprenderam muito. Observar-se-á, entretanto, que dois dos artigos que com- põem a primeira parte são consagrados a Jean Paulhan. Neles o leitor encontrará o ponto de partida de uma reflexão sobre o pro- vérbio, ao qual Lacan se refere em Mais, ainda' , quando tenta "fundar" o significante. Apreciará igualmente até onde pode levar o trabalho atento de um autor que introduz, à sua maneira, as dimensões (dits-mansion?-, escrevia Lacan) do imaginário, do sim- bólico e do real. Contudo, talvez seja necessário precisar um pon- to que pode esclarecer a fecundidade desse método. Entre as di- versas obras de Paulhan, uma das mais célebres chama-se As Flores de Tarbes3. Ela é consagrada ao que ele percebe como uma injusta desconfiança na literatura moderna (a partir do século XIX) con- tra o "poder das palavras". É verdade que, sob o pretexto de de- 12 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano nunciar o verbalismo de seus predecessores, a maioria dos escrito- res, a partir dessa época, rompeu o pacto que os unia ao trabalho da língua. Nisso se condenavam a uma fuga para frente, já que todas as formas lingüísticas rapidamente se tornavam, nessa pers- pectiva, "clichês" a serem prescritos. Já Paulhan deixa entrever a possibilidade de um novo acordo entre o homem e sua lingua- gem, entre o "espírito" da literatura e seu "corpo". Estamos aqui tão distantes da atenção que Lacan dedicou à. letra como suporte material da linguagem? Poderíamos até mesmo ser mais precisos. É verdade que esquecemos um pouco, após um ou dois séculos, a que ponto foi importante essa atenção ao tecido do discurso e o quanto a velha retórica fora necess,iria para distinguir as diversas "figuras de estilo", entre as quais estavam em boa posição a metá- fora e a metonímia. Esta é uma das principais portas para abordar o trabalho do sonho. No que me diz respeito, cu concordaria com prazer que a leitura de Paulhan preparou-me para a psicanálise, v,írios anos antes de ter lido sequer um texto de Freud. Voltemo-nos agora para a parte mais substancial desta obra, aquela que concerne à pdtica analítica. É verdade que esta é sem- pre esclarecida pela leitura de Lacan, à qual são consagrados vários capítulos. Essa mesma leitura, entretanto, é sempre "orientada", no sentido de esclarecer os fenômenos contemporâneos, sejam eles coletivos ou individuais. Observar-se-á, aliás, que, se há nestas páginas uma clínica em constituição, não é somente aquela das entidades determinadas como cais, quer se trace da histeria ou da fobia. É uma clínica do "falasser", isto é, de um sujeito que a linguagem produz - e produz primeiramente como homem ou como mulher. É também uma clínica do sujeito contemporâneo, na medida em que se percebe muito bem até que ponto algumas das determinações que o constituem estão se modificando. Lacan, como se sabe, retomou o tema freudiano de uma clivagem no sujeito masculino. Se este, por um lado, pode estabe- lecer relações ternas com uma mulher amada, por outro, ele pode buscar um objeto decaído. Isso levará o homem a encarnar o objeto a emalgumas de suas parceiras, a materializar esse objeto, aproxi- mando-se conseqüentemente da perversão. O que dizer, então, do que se passa do lado feminino? Uma mulher pode parecer deixar Prefácio à edição brasileira 13 um lugar maior à dimensão da falca como tal. Em um exemplo dado por Lacan e que aqui retomo4 , aquele de um homem sofren- do de impotência, nesse caso isso chega a abrir para ele o lugar do desejo. Não deixa de ser verdade que a complexidade da situação de uma mulher em sua relação com o falo também pode produzir inúmeros pontos de tropeço. Veremos o quanto a abordagem lacaniana é útil para examimí-los. Estas são, evidentemente, balizas ainda mais essenciais uma vez que estruturais. No entanto, não vamos opô-las às históricas. Pode-se pensar que a história comporta pontos de ruptura que modificam o próprio enquadramento de nossa clínica. Essa ques- tão é diretamente abordada no capítulo que se intitula "Um sujei- to para o objeto", mas ela não cessa de transparecer ao longo de toda a obra. Ver-sc-;Í, por exemplo, que questiono a maneira como uma histérica pode recusar a cscansão, a oposição da presença e da ausência, ou seja, flnalmrntc a pn'>pria lcígica filica. 5 Penso que se deve ir um pouco mais longe, pois o tipo dt.: sujeito que tento descrever neste artigo está mais <listante do que cu dizia a respeito daquele da época da histérica freudiana. E para interrogar as ques- tões que ele nos coloca, quem sabe seja necessário remeter um , pouco menos à questão do gozo fálico e um pouco mais à do gozo Outro. Talvez seja o momento de apresentar o que foram, de al- guns anos para cá, minhas interlocuções com psicanalistas brasi- leiros, as quais levaram à realização desta edição em língua portu- guesa. Convidado por associações psicanalíticas e, também, por universidades, tive a ocasião de desenvolver certas análises que eu ainda não havia apresentado nem mesmo onde trabalho, em Paris. Há diferentes razões para isso. Por exemplo, é mais fácil abordar detalhadamente certos casos clínicos em um contexto geografica- mente diferente. Penso, entretanto, que essas não foram as únicas razões que me permitiram certos avanços. Eu teria que dar conta disso nos próximos anos. Em todo caso, para concluir, posso voltar ao que dizia minha interlocutora sobre o que, segundo ela, constituía a temática última da obra. Trata-se realmente da instituição? De um certo modo, sim. Penso que a questão da transmissão, que dá o título à última parte, 14 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano envolve forçosamente aquela das associações de analistas. Mas se verá que essa questão não é tratada no nível do que seriam regras formais de funcionamento, que remetem sempre a uma perspecti- va burocrática. Trata-se, ao contrário, de retomar a questão do passe, essa tentativa de Lacan para romper radicalmente com toda prática burocrática na "nomeação" dos analistas, e também de interrogar a posição do discípulo a fim de evitar que ela leve a uma esterilização da psicanálise. E nesse ponto que devo dizer algo sobre o que pude constatar no Brasil por ocasião das conferências proferidas. Fui questionado sobre a transmissão. Na maioria das vezes, dentro de uma perspectiva bastante justa, aquela que interroga o trabalho e o desejo do analista, mais do que as regras de funcionamento das associações psicanalíticas. Sem dúvida, isso não basta para resolver todas as dificuldades institucionais. No entanto, testemunha um apego ao que há de mais vivo na experiência psicanalítica, apego este que certamente dá todo o valor a nosso trabalho comum. Notas I J. Lacan, Seminário XX, Encore, Paris, Seuil, 1975. 2 Lacan propõe este neologismo para dar conta da articulação entre o sujeito (falasser, parlêtre), a equivalência dos três registros R S I (Real, Simbólico e Imaginário) e a linguagem que os suporta e constitui. Por exemplo, os semi- nários Encore (Mais, ainda) homofônico com en corps (em corpo) e Les non-dupes errent ( Os não-bobos erram), que também apresenta uma homofonia com Les noms du pere (Os nomes do pai) são as "diz-mansões", "moradas do dizer", "casas da palavra" que constituem as referências do "falasser". Na língua francesa, a homofonia entre as expressões permite uma aproximação e uma articulação mais direta (dimensions/dit-mansions), à diferença do português, cujo sentido é percebido rapidamente, mas que necessita forçar o recurso poético para melhor expressar a articulação que se quer mostrar ao fazer a tradução (dits-mansions/ dimensões/diz-mansões/ditas-mansões/casas da palavra). (N. de Robson de Freitas Pereira) 3 Les fleurs de Tarbes, ou la terreur dans les lettres. (Optamos por apresentar no corpo do texto, em língua portuguesa, os títulos das obras citadas pelo autor, independente de estarem publicadas nessa lín- gua, e em notas de rodapé os títulos em seu original. Nas notas escritas pelo autor mantivemos o título na língua em que a obra foi referida, bem como a paginação da edição citada. (N. de EE.)] 4 Cf. "Clivagem masculina, divisão femininà', p. 287. 5 Cf. ''.Algumas considerações sobre o assujeitamento histérico", p. 171. Introdução Nesta obra está reunida uma coletânea de artigos que se estendem ao longo de 15 anos, constituídos por contribuições a jornadas de estudos, colóquios ou congressos, e das quais quis con- servar o estilo falado. Poder-se-ia pensar que são textos circunstan- ciais e que sua reunião seja um tanto artificial. No entanto, ao relê- los, encontro um fio que corre de um a outro, dando a seu conjun- to uma orientação que me parece essencial. Embora questões efetivamente diversas sejam debatidas aqui, elas estão sempre rela- cionadas a uma interrogação mais fundamental que se refere ao próprio analista, ou seja, o lugar do analista na direção do trata- mento. Mesmo assim, não se trata de retomar a oposição estereoti- pada entre experiência e teoria, concreto e abstrato, clínica e formalização; menos ainda de propor um conjunto de procedi- mentos técnicos. O analista não deve instalar-se em uma posição de domínio ou de exterioridade, uma posição que o faria descre- ver, de fora, os princípios de sua ação. Isso concerne, antes, à clí- II ica que é a sua. As estruturas clínicas não adquirem seus cantor- 1· 11os mais precisos senão no quadro da transferência. É no interior tio , kílogo analítico que um discurso pode parecer dizer respeito, I"'' rxrn1plo, à histeria. Ou melhor, a histeria assumirá diferentes 101111.t·. rn1 fimção da orientação do analista, ou do ponto em que rir r~11,·r1 ,·,11 'il'U próprio percurso. Isso basta para mostrar que o Ju.tl1·.1.1 r",Lí 111, li1ído na própria clínica que ele promove. E, quan- do o.,c 1111c1111r.,1 vl'rdadeiramente a respeito da experiência analíti- 1 .1, l' a q11r\1.-111 d(' seu desejo que não pode deixar de surgir. 16 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano Aliás, nesta coletânea, limitei o número de textos relativos aos tipos clínicos. Incluí apenas um artigo sobre a fobia, porque • nele conclui-se sobre alguns problemas específicos relativos à direção do tratamento, e dois textos sobre a histeria, distantes cro- nologicamente, porque se opera, de um a outro, um deslocamen- to de enfoque e também de estilo, que não deixa de afetar a pró- pria prática. Este livro começa por alguns artigos dedicados à literatura. Sabe-se o valor que Lacan, em seqüência a Freud, dava ao texto literário. Também se sabe que seu interesse pela literatura não estava relacionado com a psican.ílise aplicada. O analista, dizia · ele, não deve fazer-se de psicólogo ali onde o artista abre-lhe o caminho. No que me concerne, se me permitem dizer, o questionamento a respeito da linguagem no campo literário pre- cedeu o encontro com a psicanálise, o qual, sem dúvida, ele pre- parou. Isso me levou a uma série de textos, cuja orientação talvez requeira ser precisada. Um pós-escrito indica em que poderá de- sembocar o questionamentoque subjaz a eles. Passemos ao que poderá parecer mais central. Vários textos são consagrados explicitamente a uma leitura de Lacan, e a maio- ria dos outros remetem a ela. Porém, poder-se-á ver, com bastante facilidade, que não se trata de se apropriar de uma herança teóri- ca, e muito menos de fazê-la refulgir, em uma contemplação feti- chista. As teses lacanianas são colocadas aqui a trabalhar, interrogadas em função das questões que são as nossas. De fato, com a ajuda dessas leituras, desejei interrogar o mais cotidiano de nossa prática, uma interpretação que cada um é levado a fazer em um momento particular de uma análise, que marca, sem dúvida, uma virada, mas aí onde nada permitiria prcwr a importância; às vezes, também alguma coisa que constitui obsdculo, quer se trate de uma resistência singular ou de uma concepção inoperante do trabalho do tratamento. Contudo, a psicanálise no cotidiano significa também levar em consideração os discursos da cidade, na medida em que o su- · jeito acha-se preso a eles e que os mecanismos do assujeitamento coletivo e da alienação individual possuem a mesma estrutura. Neste livro proponho algumas reflexões sobre o sujeito oriundo Introdução 17 da Revolução Francesa, bem como sobre o "discurso capitalistà' 1 , enfim, um questionamento a respeito do que é mais atual, ou seja, a maneira como o significante "os negócios" irá designar, na França contemporânea, as novas formas que pode assumir um gozo que •· fascina o sujeito, conquanto lhe pareça repulsivo. Em todos os dis- cursos que atravessam a cidade, acreditei poder distinguir alguns que apresentam uma relação mais evidente com o que comumenre constitui impasse para o sujeito. "O impasse sexual", escreveu Lacan, . "secreta as ficções que racionalizam o impossível do qual ele pro- vém". Em alguns artigos, tive ocasião de comentar as formas que algumas dessas ficções podem assumir na atualidade. Isso pressu- punha, paralelamente, uma retomada da forma pela qual o sujeito inscreve-se na "scxuação" do lado homem ou do lado mulher. Uma ültima palavra refere-se ao contexto em que esses arti- gos foram escritos e a maioria dessas intervenções pronunciadas. Eles são inseparáveis do desenvolvimento daAssociation frcudicnne internationalc, fundada por Charles Melman, com outros, cm 1982. É essencial dizer até que ponto essa fundação ajudou-nos em nosso trabalho, já que nos recusamos a nos misturar com aqueles que usurpavam a herança de Lacan a fim de nela assentarem seu pequeno negócio. Notas I Além dos quatro discursos (do mestre, do histérico, da universidade e do psicanalista), Lacan propõe um quinto discurso, o do capitalista, em confe- rência proferida cm Milão (1972). O discurso do capitalista é derivado de uma inversão operada no discurso do mestre, a partir da qual o sujeito fica situado fora de qualquer assujeitamento. (N. de Lucia Serrano Pereira) I. A prática da letra Dos textos que seguem, os dois primeiros referem-se a Jean Paulhan, e o segundo, com um tema mais par- ticular, foi escrito antes do primeiro, com o qual preferi iniciar esta coletânea. 1 "O demônio da interpretação" possui um valor essencialmente metodológico. Acrescentei a ele um . artigo já antigo sobre Flaubert e um O real em uma palavra pós-escrito que, neste caso, parece in- Paulhan cnou, em dispensávelparaprecisaradireçãopara Madagascar, o liceu de a qual poderia tender este trabalho. Tananarivo. Foi garimpeiro de ouro no rio Ikopa, representou2 na Resistência o papel que se sabe. E, no entanto, não é por isso que o considero um aventureiro. A aventura, ele a encontrava antes em seu quarto, e era uma aventu- ra semelhante à de um Descartes; porém, se ela se referia ao Ser, aplicava-se a ele de um modo totalmente diferente. Aqui não falo apenas dessa interrogação apaixonada sobre a linguagem e a literatura que ele perseguiu durante mais de 50 anos. Esta constitui seguramente o quadro de sua experiência, e não sepa- raremos, tanto mais que ele próprio não queria fazê-lo, o gosto · pelas palavras e a experiência das coisas. Mais precisamente, Paulhan , não nos fala apenas das palavras ou das idéias, mas também dos vidros quebrados e da ciática. Do real, em uma palavra. Isso não significa, aliás, que tenha vivido uma experiência inédita. Todavia, ele prestou atenção à experiência e tentou dar con- ta <leia, e é nisso que se tornou singular. Eu me arriscaria a imaginar que essa experiência tenha sido o equivalente de um tratamento analítico. Certamente isso seria excepcional. Certos autores ensi- nam ao analista: sobre o sonho, sobre o desejo, sobre o fantasma3 , 20 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano sobre o que se queira. E quanto ao tratamento! Perceber de fora o íntimo de sua prática, sob uma luz necessariamente transformada, é espantoso, quase inquietante. No entanto, é disso, sem dúvida, que se trata. Lacan referiu-se várias vezes a Paulhan. Mas era daquele jeito dele de indicar uma obra que era própria para ilustrar seu pensamenco. Ele dizia: Vão vocês mesmos procurar nela o porquê disso. Esse era o estilo lacaniano, naquilo que ele tinha, também, de inimitável, em sua maneira de deixar você em suspenso, como se pode estar cm um certo momento do tratamento, quando se sabe que h,i alguma coisa, sem se saber muito bem o quê. Seria possível levar as coisas um pouco mais longe? Aqui se falará de Paulhan do ponto de vista da psicanálise, porém apostan- do que ele nos leva a conclusões que concernem a cada um. O imaginário e o real Em uma nota que escreveu para a edição de suas Obras4, no Cercle du livre précieux (tomo II, p. 7), Paulhan fala de descober- tas que o teriam "finalmente curado" (perto do final do tomo III). Sem maiores esclarecimentos, o que se pode lamentar, pois os poucos textos que parece designar, "As dores imaginárias", O claro e o escuro, O dom das línguas5 , são suficientemente complexos para que se arrisque perceber neles o que moveu a cura. Aliás, poderíamos desconfiar disso de um ponto de vista ingenuamente racionalista. Não haveria alguma regressão para invocar, depois de longas pesquisas, a fusão da coisa, da palavra e do pensamento? E não seria trair um segredo apelar para o socorro de Plorino, de Santa Tereza ou dos mestres budistas para apoiar sua descoberta? O que ele tem de mais vivo, no entanto, acha-se um pouco aquém. É nada menos que o advento, o encontro do real. O leitor de Paulhan recorda-se do episódio do "vidro que- brado" (C.O., p. 341). Em 1914, Paulhan é encurralado, com alguns outros soldados, em uma casa semidemolida, sobre a qual se encarniçam duas artilharias ("Ninguém, de fato, sabia ao certo 1. A pratica da letra 21 o que havia dentro dela, de sorte que, devido a uma modéstia comum aos homens de guerra, cada um pensava ver nela o inimi- go"). É bastante impressionante ("Luz de eclipse", "explosões ron- cando à direita e à esquerda", "barulho de órgão" dos obuses e depois "um cadáver que olha para você sem ver você", um "cavalo estourado", "por toda parte, a desordem e a desagregação"). Impres- sionante, sim, mas um pouco como um espetáculo: "Tudo isso era estranho, mas sob certos aspectos maravilhoso( ... ) quantos fogos de artifício! Quantas castanhas e girândolas, sapos e acrobatas, pa- lhaçadas e desfiles! Figurantes amáveis representavam o morto à perfeição( ... ) Teria sido para mim que fora montado tudo isso?". A guerra só dâ, aqui, uma impressão de farsa ou de pesadelo - de irrealidade. Impressão da qual Paulhan não consegue sair, a não ser dando fortes chutes cm um vidro que tinha permanecido in- tacm. "O vidro fendeu-se, rachou, depois desabou com um gran- de barulho, e fiquei sabendo muito bem que não sonhava. Reco- nheci isso e ficava, coisa curiosa, contente- cm todo caso, satisfei- to". É beliscando-se que se tem certeza de que não se está so- nhando. Paulhan lembra disso mais adiante. J;i era a desordem e a desagregação!Por que um vidro quebrado seria tão mais significa- tivo? Paulhan foz aqui uma experiência para a qual não tem uma resposta pronta. A questão já tinha sido, no entanto, formulada em um tex- to anterior, "As dores imaginárias". Este tem como pano de fundo a doença, assim como no outro é a guerra. Paulhan sofre de uma ciática dolorosa (D.l., p. 309). As doenças têm, certamente, suas vantagens ("Deixem eu me fazer um pouco de príncipe"). Na ci- ática, porém, o lucro é mínimo, dispensando essa doença "de pelo menos todos os enterros, e dos bailes, se eu dançasse". Por isso, é prl'ciso tentar cur.-í-la por todos os meios possíveis, .os quais os 11,tdicos propõem em quantidade. "Tive o corpo queimado por 1.1in.~. afogado em espermas. Entro, rodas as manhãs, em um cole- ll' lk aço, como um chefe de gângsteres! Em uma pequena cidade- la, como um general sitiado!". E ainda muitas outras soluções, i11l·lusive um acupuntor. Este planta algumas agulhas. "- Devo voltar quando? 22 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano - É inútil, você está curado. -Ah! Estou curado? Não sentirei mais dor? - Se ainda acontecer de você sofrer, serão dores ima- ginárias" (D.I., p. 310). A partir do dia seguinte, as dores voltaram. Vexatórias ... mas ridículas. "Com efeito, afinal, dessa vez elas não eram verdadeiras ( ... ) eu podia assisti-las com toda a tranqüilidade( ... ). E observava, mesmo, sem deixar de me divertir, certos traços que até então tinham me escapado. Como seu progresso era regular! Dir-se-ia uma experiência de química. Seu desenvolvimento, majestoso! Dir-se-ia um quadro de Veronese" (D.I., p. 310). Dores imaginárias, tinha dito o acupuntor. Por que não? Não que elas sejam fictícias, nem que seja preciso lembrar da ex- periência da dor em um membro ausente para explicá-las. Elas introduziriam, antes, o imaginário no sentido de Lacan, para quem toda a imagem tende à regularidade, à majestade: ao quadro ou à estátua. Ao teatro também: "Eu nem bem havia recebido minha chicotada no quadril e me era preciso esperar este curioso fume- gar do joelho, acompanhado por diversas crepitações da panturrilha - elas próprias seguidas, dez ou quinze segundos depois, primeiro por uma explosão no tornozelo e, depois, por essa fulguração de ardência que vem iluminar todos os meus artelhos, um após o outro. Imediatamente, que fagulhas me corroem as unhas? Acre- dito vê-las. Estranho teatrinho, estranho salão de pinturas; ( ... ) é toda uma parte de minha vida que, de fato, acabava de entrar no espetáculo-que começava sua carreira estéticà' (D.I., p. 310-311). As dores são "imaginárias". Isso significa que elas podem ser examinadas, contempladas, que acreditamos por isso dominá-las. Ilusão do eu (moí): "Não que eu tenha tanta coragem. Proponho- me a tê-la, isso é completamente diferente. Gostaria de que me pusessem à provà' (D.I., p. 320). Não obstante, Paulhan terminaria por se cansar. Os melho- res espetáculos, quando muito prolongados, podem entediar. ''Aqui se mostraram novas dores. ( ... ) Ou melhor, não. Justamente estas não se mostravam (. .. ), de forma alguma solenes, antes barrocas ( ... ) apenas esboçadas (. .. ) uma fina lasca, sob a rótula do joelho 1. A pratica da letra 23 (será uma lasca? Ela se dissolve em um instante). Uma fagulha que parte do quadril, mas logo se apaga e vai doer em outro lugar" (D.I., p. 312). Essas dores, Paulhan não pode confundi-las com as outras que, aliás, persistem "sempre intactas, sempre decorativas". "Eu ainda me dizia: de fato, .estas aqui não conhecem seu ofício, elas precisariam aprender com as outras. Em suma, dores que eu não teria inventado" (D.I., p. 312). Não é mais possível enganar-se: ''Apenas me ocorreu pensar irrefletidamente: 'Mas, afinal, essas novas dores, é você quem as sente; talvez seja você que as imagina. Quantas ninharias!"' (D.I., p. 312). Essas dores não são mais imaginárias, elas são reais. E as outras também podem, ao mesmo tempo, voltar a sê-lo. "Que alívio! Não quero dizer da dor (que voltou logo, um pouco mais dolorosa}. Não, era um alívio geral. (. .. ) É saudável lidar com coisas verdadeiras, em lugar de fantasmas" (D.I., p. 313). Dores inesperadas chamaram Paulhan ao real. Não por sua força ou intensidade, como se poderia supor, mas precisamente por seu caráter imprevisível. "O real", diz Lacan, "é o impossível". Aqui, impossível de imaginar, sobretudo por sua ausência: seu lado pouco decorativo, malfeito. O real está "associado ao pouco, à falta" (D.I., p. 328}. Além disso, a guerra pode passar por um espetáculo, apesar da desordem e da desagregação. Ela o faz em demasia. "Uma guer- ra é um evento infinitamente diverso e rico, que agita em sua alma e também em seu corpo, milhares e milhares de homens( ... ) uma admirável ( ... ) organização em profundidade, com pesquisas sábias, estudos técnicos, discursos" (C.0., p. 342), ao convocar a ciência e a técnica, as multidões e os ministros, os presidentes e os deuses, até mesmo Deus, a guerra surgia, finalmente, como uma vasta maquinaria- uma maquinaria de teatro. Para trazer de volca ao real, um simples vidro quebrado resolve melhor o caso. Não é de outra forma que acontece uma análise. O sujeito, de saída, está pronto a invocar o social e a história - o universo por inteiro - para explicar o que produziu sua vida. Porém, pouco tempo depois, se há efetivamente análise, esse discurso mostra-se estranhamente falacioso, de algum modo inconsistente, e é em outro 24 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano lugar (atos falhos, fragmentos de sonhos, lapsos, vidros quebrados, fendas) que o sujeito encontra aquilo que tem para ele valor de real. O ser contra o pensamento Paulhan não é nem psicanalista, nem psicanalisante6. En- tão, o que é? Ele evoca, naquele momento, com uma modéstia que não é apenas maliciosa, a experiência do homem comum, o que, de fato, poderia bastar. Para experimentar o real, não é preci- so a guerra nem a doença. Uma "pequena aventura noturna" (C.O., p. 34/i) resolve bem a questão, tal como cada um pode vivê-la em seu quarto, ao voltar para casa à noite, sem acender as luzes para não despertar, sentindo as arestas dos móveis e os objetos cm sua realidade renovada, embora fragmenrária. No entanto, o homem comum, geralmente, não guarda nada do que lhe parece somente anormal ou doentio. Será que, nesse caso, Paulhan mostra-se mais atento, mais reflexivo? Será que ele pensaria a experiência em maior profundidade? Seria ele um filósofo? Antes de tudo, seria um antifilósofo. A tendência do espíri- to que pensa enquanto pensa é a mesma que sugere o médico acupuntor. "É que ao espírito ( ... ) basta-lhe deixar-se levar por sua tendência natural; basta-lhe olhar-se com atenção, e como tem idéia de seus amores e de seus ódios, do sol e da lua, das árvores e das ruas, conclui-se, com uma lógica irrefutável, que sol, amor e ruas são idéias das tantas que ele se faz" (D.I., p. 333). É verdade: se nada me é conhecido a não ser pelo pensamento, por que haveria outra coisa senão o pensamento? Para o homem que pensa, tudo é pensamento, tudo é imaginário. "Eu penso, logo tudo poderia ser apenas pensamento. Penso, portanto eu não sou" (D.I., p. 333). Entretanto, há pensamento e pensamento, assim como h:í dor e dor. Se as dores sempre tivessem sido espetaculares, elas não teriam parecido reais; medíocres, elas chegam a isso. O mesmo acontece com o pensamento: lógico, coerente, rigoroso que pode parecer estranho ao real. Para que ele se assegure de encontrá-lo, é preciso que o próprio pensamento venha a se rachar. "Se a condi- 1. A pratica da letra 25 ção do espírito for tal, de fato, que o rigor e a engenhosidade do raciocínio, a sutileza dos pensamentos e sua desenvoltura sejam próprias a nos lançar na dúvida, é, ao contrário, a privação, a incoerência e o absurdo que nos podem convencer de uma verda- de prestes, a qualquer momento,a nos escapar entre os dedos" (C.O., p. 357). A experiência do real não se dá, aliás, sem uma inversão radical. De acordo com o acupuntor, mas também com sua pró- pria inclinação, Paulhan esd preste a pensar que ele imagina a si próprio sofrendo, que faz para si, como se diz, idéias: percepções ilusórias, assim como subjetivas. Em compensação, as dores que se impõem a ele um pouco depois são dores que "não reria inven- tado". Essas novas dores, diz ele, "não sou tanto eu quem as sente, são elas que me põem à prova, são elas que me sentem" (D.l., p. 312). Se ele é sujeito de sua dor, é porque está submetido a ela. A psicanálise diz sensivelmente a mesma coisa, desde que se consti- tuiu a partir dos Estudos sobre a histeria: uma dor sem lesão orgâni- ca, uma dor histérica conserva rodo o seu peso de real, porque o sujeito não pode escapar dela, uma boa alma exortá-la-ia a não "se escutar demais". E, se a análise desata o sintoma, é, em primeiro lugar, reconhecendo-lhe tal dimensão. Essas dores inusitadas, essas dores que o atacavam, Paulhan não as percebe por um pensamento "na primeira pessoa", por um pensamento que tiraria do eu (moi) palavras de ordem. Ele tenta explicá-las com a ajuda de fórmulas que assumem a forma de pro- , b" (( d - , , l ,, (( d d , -ver 10s: a or nao e um espetacu o , a ver a e e o que nao se imaginava" (D.l., p. 317) e outras mais. Não sem comparar as frases que lhe vêm com algumas outras que realizam, aliás, urna inversão da mesma ordem. Assim como diz Langevin7 : "O cálcu- lo tensorial conhecia melhor a física do que o próprio físico". De Michelangelo: "Minha estátua já está dentro deste bloco de pedra. Não preciso nada mais do que encontrá-la". Ou ainda, os Jivan- Mutkas da Índia: ''A experiência liberadora disso sabe há mais tempo que o próprio liberado" (D.I., p. 326). Há nisso algo essencial. Se fosse permitido generalizar, seria preciso dizer que só se pode dar conta da experiência do n:al na forma proverbial. A esta, o sujeito pode aderir, mas o que é 1101;í vd 26 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano é que nela manifestamente ele não é o enunciador. O provérbio constitui na língua, a presença sensível de um Outro irredutível aos locutores concretos. No que se refere ao texto ''As dores imaginá- rias", os poucos aforismos que assumem nele o valor de provérbios não constituem apenas enunciados que dizem, sob diversas formas, como cada um pode ser ultrapassado pelo ato ao qual se dedica. Apresentam-se também como enunciações, ou ainda atos de lin- guagem, eles próprios realizando aquilo de que falam, o domínio do Outro sobre o sujeito.8 Paulhan diz o seguinte a respeito do modelo de Langevin ou de Michelangelo: "A ciática sabe mais so- bre mim do que eu mesmo" (D.I., p. 326). A identidade dos contrários O claro e o escuro a exemplo de ''As dores imaginárias", rea- liza a inversão pela qual o sujeito experimenta-se como assujeitado. Se inicialmente lhe acontece de escrever, "Eu fiquei sabendo que não sonhava, e me encontrava, coisa curiosa", Paulhan deve, a seguir, render-se à razão: "Seria mais exato dizer: isso volta, isso se impõe (por isso ouço, os obuses, os cadáveres, o cavalo estourado) e, se preferirem: isso voltou sobre mim, isso me sacudiu, isso me atormentou" (C.0., p. 363). No entanto, a página seguinte pode parecer um recuo, um retorno a uma concepção intermediária, um compromisso. Paulhan renunciaria a escolher entre a atividade e a passividade. Ora uma, ora outra: "Ora idéia, sensação, imagem ou sentimento - e ora o contrário mesmo de uma sensação, de um sentimento, de uma idéia ou de uma imagem; ora uma parte de nós mesmos, a mais íntima, e ora, o oposto ( ... ) as coisas enquanto escapam a nosso controle, mas pesam sobre nós de fora" (C.0., p. 364). O que seria preciso, diz Paulhan, era poder reunir as duas idéias, os dois termos, as duas teses: a ingênua, segundo a qual sinto as dores ou as coisas e a que a experiência faz descobrir, abrangendo as dores que me castigam, as coisas que me surpreendem. Porém, é claro que nessa reunião não se trata de compro- misso. Retomemos então, pois teve lugar a inversão decisiva. Ela se 1. A pratica da letra 27 refere, primeiramente, ao real, que não está onde se espera. Não na guerra, mas no vidro quebrado (e somente depois na guerra). Não em uma doença, mas em um esboço de dor. Naquilo que está rela- cionado com o pouco, com a falta. Naquilo que tem alguma defi- ciência. Naquilo que claudica e anda enviesado. No "desser"9 , e não no ser. Se o real não está onde se espera espontaneamente, é preciso mudar de ponto de vista. Olhar para outro lugar. Olhar de outra maneira. "Quanto menos está claro, melhor se o vê'' (C.0., p. 349). Ou então: "Fecha os olhos para vê-lo melhor" (D.I., p. 327). ''As folhas imóveis deixam-nos contemplá-las à vontade sob todos os seus aspectos e em todas as suas formas - coaguladas, fixas, regulares". Mas elas nada me ensinarão - menos, em todo caso, do que esta outra, "a única na árvore a agitar-se debilmente (e que logo pára)" (D.I., p. 327). O real está na falta. A claridade está na obscuridade. Vê-se que não se trata, portanto, de um compromisso. Trata-se de uma outra lógica, pela qual um termo encontra-se idêntico ao termo contrário. Em O dom das línguas, é a linguagem que dá o modelo mais explícito o qual é próprio para justificar, no retorno, as intui- ções dos textos anteriores. Com efeito, não é suficiente dizer que as palavras que empregamos têm vários sentidos. O mais espanto- so é essa propriedade das palavras "as mais decisivas", aquelas que marcam "a articulação do pensamento", de significar uma idéia e seu contrário. Este é o caso de "jamais" (jamais], que pode querer dizer "sempre" ("Mulheres, fechem para sempre [pour jamais] os olhos à vaidade") ou de mas [mais], que pode significar "mais" [davantage] (a polícia não pode fazer mais) 10 e ainda de outros dez exemplos (D.I., p. 413-415). Um termo pode significar seu contrário. Por que o obscuro não seria fonte de claridade, a falta não seria signo do real e o sujeito, finalmente, índice do objeto? Eu senti, diz Paulhan: mas é o contrário, também, "o contrário até mesmo de uma sensação, de um sentimento, de uma idéia ou de uma imagem" (C.O., p. 364). É a coisa e não mais apenas a idéia. Nosso pensamento preguiçoso opõe, correntemente, a palavra e a idéia, a idéia e a coisa: "Quem não pode brilhar por um pensamento quer se fazer notar por uma 28 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano palavrà' (D.I., p.401). "O pior perigo para o espírito é tomar suas idéias por realidades" (D.I., p. 402). Essas fórmulas são de Voltaire, porém, com certeza pensa-se no terror nas letras. Paulhan aconselha a abandonar esse gênero de oposições; sabe-se que foi finalmente assim que pensou resolver a questão da literatura e, ao mesmo tem- po, da linguagem: "Toda palavra é uma idéia, toda idéia uma coisa, toda coisa uma palavra" (D.I., p. 421). A faca e o pênis Se o dilaceramento no imaginário e o choque contra o real encontram seu correspondente na psicanálise, a polissemia e a identidade dos contrários nos são igualmente familiares. Devido ao fato do significante ser polissêmico que o sujeito pode sus- tentar, além daquilo que ele acredita querer dizer, e com as mes- mas palavras, um discurso completamente diferente. Freud, in- clusive, já destacava que o inconsciente reúne os contrários e re- presenta-os em um só objeto. E ele se regozijava, por isso, com o que Abel avançara sobre os sentidos opostos nas palavras primiti- vas. T;1lvez seja a ocasião de reparar um mal-entendido. Em 1924, Paulhan cons::igra a Fn·ud um texto intitulado: "Freud: reserv::is sobre um ponro", curto o suficiente para citar aqm suas passagens essenc1a1s: "A obsessão de uma jovem consiste cm impedir com muito cuidado que o travesseiro coque na madeira de seu leito. 11 Ora, Freud observa, primeiramente,que p;u-a essa jovem a madeira é macho e o travesseiro, fêmea, e que a madeira representa seu pai e o travesseiro, sua mãe; enfim que, secretamente apaixonada pelo pai, ao separar o travesseiro da madeira, realiza uma ação mágica, própria para impedir seus pais de se unirem. Freud, no entanto, revela à jovem ou a leva a descobrir pensamentos de incesto e ciúme. Imediatamente, a obsessão desaparece( ... ). Este é, de for- ma muito simplificada, o caso típico da observação freudiana. O que ele prova? Que o travesseiro e a madeira do leito, diz Freud, explica-se pelo pensamento anterior do incesto; é a linguagem que mantém esse pensamento recalcado ( ... ). Porém ( ... ), não se trata I. A prática da letra 29 em absoluto de incesto em geral, mas do próprio incesto da jo- vem, e dessa forma ele lhe explica, inicialmente, seu desagrado e seu horror da madeira do leito e do travesseiro. Trata-se de um incesto que é um progresso dessa madeira e desse travesseiro, que os pressupõe, que é explicado por eles, longe de explid-los ( ... ) o travesseiro explica o incesto, não o incesto o travesseiro. E as ser- pentes, balões e cutelo de sonho bem poderiam dar conta do açoi- te, não o açoite das serpentes, balões ou cutelo". 12 Não falta ao texto fineza. É curto e medido. Paulhan não nega que a psicanfüse possa curar. Absolutamente, não a descarta (as serpentes, balões ou cutelo de sonho bem poderiam explicar). Dessa forma ele a interroga mais do que muitas das críticas da psicanálise que, muitas vezes, quanto mais ineptas, mais são defi- nitivas. Não nos apressemos, todavia, a conceder demais a Jean Paulhan. Em primeiro lugar, não é verdade que seja o travesseiro o que explica o incesto (ou o medo do incesto). Com efeito, o sintoma pode desaparecer (isso se vê), ou ser substituído por ou- tro. A história do sujeito em seus elementos constitutivos (Papai- Mamãe, para ficarmos no elementar) forma o pano de fundo so- bre o qual somente as novas figuras adquirem sentido. Ao mesmo tempo, a prática analítica é menos unívoca do que Paulhan a imagina. O discurso inconsciente freqüentemente se revela reversível. Assim S., que queria desfazer-se de penosas obsessões, procura a causa no comportamento de sua mãe, quan- do ele era criança. Não cessa de voltar a esse período, mudando continuamente o ponto de vista adotado, modificando a perspec- tiva, deslocando seu interesse de episódio para episódio. Pouco a pouco, desenha-se a figura da mãe, sobredetermi nada, quase compósita. E ficamos a pensar que não é cerco que tudo isso seja verdadeiramente a explicação linear do sintoma: para causa anti- ga, efeito atual. Não é certo que esta ou aquela lembrança "expli- que" esta ou aquela obsessão. Porém, ao associar, ao articular seu sintoma a construções fanrasmáricas, S. elimina alguma coisa de .~ua parte fixada e abrupta, reinserindo-a em sua existência, tempe- rando seus efeitos devastadores. No caso de A., de origem estrangeira, ela se queixa, desde o 30 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano começo de seu tratamento, de ter sido rejeitada na infância por seus amiguinhos, os quais acusa de racistas. E depois, em dado momen- to, durante algumas semanas, ela relata toda uma série de sonhos em que é perseguida por alguns inimigos. O contexto ("eles correm atrás de mim", etc.) quase não deixa dúvidas sobre a dimensão se- xual da questão. Entretanto, A. associa já em seu registro familiar a hostilidade da qual viria a ser vítima. Será preciso, então, tentar fazê-la ouvir outra coisa, nem que seja para evitar ver a análise atolar na repetição? Talvez, à condição de não anular uma das direções interpretativas em proveito de outra. Com efeito, o que é impor-· tante não é tanto que os homens a desejem, mas sim, que esses que a desejam não possam aparecer, no momento, senão como inimi- gos, sob os traços ameaçadores desses indivíduos que a perseguem. Há algo de verdade no texto de Paulhan. Por que a faca deve- ria representar, sempre a verga e esta jamais a faca? Pulsões de morte e pulsões sexuais, com certeza, são contrárias. Contudo, para a psi- canálise, assim como para Paulhan, obscuramente, os termos con- trários podem equivaler-se. Melhor ainda: sem dúvida, o conceito mais decisivo para a teoria analítica é o de falo, sendo, ao mesmo tempo, um conceito definitivamente bastante curioso. Em Freud, esse conceito permi- te a equivalência de termos aparentemente díspares, como a cri- ança e as fezes. Funciona como significante do desejo, tanto em um sexo como no outro (enquanto não se reduz ele próprio a um órgão). Enfim, é símbolo, no inconsciente, tanto do interdito como do desejo. A cada vez, reúne os contrários. Essa análise não é evi- dente. Ela supõe uma lógica à qual não estamos habituados. Sal- vo, talvez, se tivermos lido Jean Paulhan. O sujeito e o objeto Em Paulhan, a identidade dos contrários refere-se, particu- larmente, ao sujeito e ao objeto, o sujeito que encontra a coisa onde antes acreditava estar reduzido a impressões. Seria necessário mostrar aqui que o processo psicanalítico não tem outro fim. Este não se conclui na contemplação narcisista de 1. A prática da letra 31 uma profundidade intra-subjetiva. Antes, leva o sujeito ao encon- tro com 13 um objeto que constitui para ele, real, um objeto certa- mente bizarro o bastante para que Lacan tenha precisado inventar- lhe um nome: objeto a. A análise leva-o a se dar conta de que ele é esse objeto. A identificação com um objeto que, aliás, tem algo de inominável (o seio ou o cíbalo, o olhar ou a voz constituem ape- nas uma aproximação) não deixa de ter efeito sobre o sujeito. Lacan chama esse efeito de destituição subjetiva, uma vez que tal desco- berta não deixa de desorganizar aquilo que tinha sido ordenado para cada um, o que estava instituído. O sujeito não é mais o que imaginava, não é mais o que pensava. Ou, ainda, ele é onde não pensa. Oposição do eu sou e do eu penso, que é a mesma de ''As dores imaginárias". No entanto, não é a esse texto que Lacan faz referência quan- do introduz a idéia de destituição subjetiva, mas a uma narrativa muito anterior, O guerreiro aplicado14 • "O guerreiro aplicado", escreve, "é a destituição subjetiva na sua salubridade". 15 É verdade que há muitos pontos comuns entre o narrador desse relato, Jacques Maast, e o autor de ''As dores imaginárias". Lembremo-nos deles ou a eles nos reportemos. Depois de duas frases de apresentação - "Eu parecia maior do que minha idade. Eu me chamo Jacques Maast e tenho dezoito anos" -, ele explica como foi se engajar. "Quando chegou a terceira semana de guer- ra, todo o mundo, e as meninas da cidade em que passo minhas li:rias de estudante me perguntam: 'Você não vai?' Esses campo- neses conhecem-me desde meus avós: eles tinham a meu respeito uma opinião antiga, que eu respeitava( ... ). Estavam, pois, surpre- sos porque eu não partia( ... ). Com esse ar um tanto selvagem, sou 111;1is sensível do que ninguém às opiniões das pessoas". 16 E Jacques fld .1.1st parte para a guerra. A narrativa continua dessa forma, até o lf'1 i111l·nto pelo obus, sem a menor pretensão ao heroísmo. Não • p•r 11 11arrador renegue o ato que o fez partir, sob o pretexto de que 111111 n lnia da opinião das outras pessoas. É bem dele que se trata, 111.1, ctdim, é inútil tentar acrescentar algo mais sobre esse ponto- I M -r 'l "al" 'd .. 1np1cs aast quase nao raz um JU gamento pesso a respeito o <111c csd an111tccendo. Assim como Paulhan, mais tarde: "Eu pos- Elementos lacanianos Sl ________ ...... p_a_r_a_u_m_a.......,_p_s_ic_a_n_a_' l_is_e_n_o_c_o_ti_d_ia_n_o so, pelo menos, fazer-me esta justiça: é que sempre evitei, na medi- da de minhas forças, acrescentar uma visão pessoal além de todas as que já correm pelo mundo" 17• Dir-se-ia que aqui se trata, sobretu- do, de opor à expressão "opiniões", seu exame, sua explicação e, de alguma forma, sua ciência. Porém, ainda há outra coisa: Informadosobre o que teria que fazer de acordo com as "cir- cunstâncias" e com a opinião dos camponeses, Jacques Maast reali- zou os gestos cotidianos da guerra sem ardor, nem entusiasmo par- . l 1. ' f' l "l ' l" d' l ucu ar, mas tamoem sem ·urtar-se a e cs. mpass1vc , 1z e e, e l ' " 1· d " (' f' E l -tam Jcm ap tca o . .,omo se sua tare a o superasse. • e e tenra na.o se mostrar demasiado desigual. É também nessa distância do homem com sua tarefa que reside o pouco, a falra. "Não falo de mim com prazer escreve Paulhan em A ponte atrtwessr1.dr1, "não me sinto espesso" 18 • Ê uma experiência desse tipo que a obra não cessa de retomar (perlaboração, dizem os psicanalistas) das primeiras narrativas até os últimos ensaios. É essa experiência, sem dúvida, que informa a escrita, seus parágrafos curtos, fragmentados, suas frases "transpa- rentes", pelas quais pode passar a luz. É ela que lhe dá seu tom e essa discrição, à qual cada um é sensível. Paradoxos Sobre a destituição subjetiva, Lacan diz que ela faz "ser( ... ) singularmente, e forte" 19• Se Paulhan esclarece essa fórmula, é por meio de um paradoxo: apenas um ser cm nada muito espesso po- derá verdadeiramente ser. A condição da força sustenta-se em uma cerra fraqueza. Tentemos, no entanto, manter os dois termos desse parado- xo. "As dores imaginárias" como O claro e o escuro instruem-nos sobre nossa dependência fundamental. Onde creio que minhas dores sejam imaginárias, que as invento, dou-me conta de que elas são reais. Elas me sentem quando eu, na verdade, acreditava que as sentia. Onde acredito ter idéias, são as idéias que já me ela- boraram: sou feito. Todavia - levemos a sério a identidade dos contrários! -, é 1. A prática da letra 33 nesse assujeitamento que o sujeito pode apreender-se. É nessa desti- tuição, nessa falta a ser que ele pode, finalmente, encontrar sua realidade: não somente o vidro quebrado, mas a guerra, os exérci- tos e seu próprio lugar no meio de tudo isso. Acreditava-se ativo, era passivo; apreendendo o que constituía sua passividade, pode, enfim, agir. Há uma outra forma de dizê-lo. A experiência do real faz- nos perceber fora aquilo que nosso pensamento situava esponta- neamente cm nós mesmos. Isso distancia nossas emoções (sem fugir delas, elas continuam nossas vizinhas). Isso lhe retira o paté- tico com o qual às vezes nos deleitamos. E, ao mesmo tempo, isso lhe dá relevo. Serão lidas ainda algumas linhas de Paulhan, em que ele chama de pudor essa qualidade que acredito não devia faltar-lhe, não talvez porque fizesse parte de sua personalidade, mas porque era comandada por sua experiência. "O que é o pu- dor? 1:, em primeiro lugar, uma recusa. É pudico o homem que mantém à distância suas emoções, sua vontade, seus desejos. Que os trata pelo mistério: sendo belo, dissimula seu corpo; forte, sua potência; enamorado, seu desejo. Que lhes concede, desde o pri- meiro instante, o mesmo distanciamento e o destaque que a re- cordação às vezes lhes dá, - e que nos impunham brutalmente o quebrar de um vidro, a batida de uma porta de armário, a bofeta- da do budista zen ou a perna quebrada", (Não sendo necess,írio explicar aqui a bofetada do lmdi.\la zen ou a perna quebrada, que a seu modo repetem o vidro q1wl1rado 011 a volta em um quarto escuro.) (C.O., p.361). Seria bom que o a11;ilis1:1 1:11nlH:111 f;,ssc pudico. Mas em que sentido? Não demonstrar srns sc11timrntos: isso e: Gcil, ele o aprendeu e chama de neutrali<lade esse seu ar de não se deixar aba- L1r; 11iío exibir muito seus pensamentos ou suas opiniões: assim 1 01110 para qualquer um, os pensamentos o atravessam, antes mes- 1110 dl' prod111.i-los. Então, talvez o mais difícil e ao mesmo tempo o mais essencial, seja tampouco exaltar em si o próprio assujeitamento. A dor sente-me e o significante comanda-me. Reconhecê-lo, entretanto, seria renunciar ao humor? Paulhan não carecia dele, e suponho até mesmo que ele o tinha cada vez mais (a ponto de, após haver escrito "As dores imaginárias", fingir que sua 34 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano cura não era devida à sua descoberta, mas ao porre do colete de aço, "pequena couraça", "colete de hussardo"). Talvez tenha sido por sa- ber um pouco sobre o real, aquele mesmo que o processo analítico pode encontrar. Notas I Este texto foi publicado, pela primeira vez, nos Ct1hiers Jean Paulhan, Gallimard, 1984. 2 Jean Paulhan (1884-1968), escritor francês, ocupou o lugar de eminência parda da literatura francesa tanto como teórico da língua e da literatura quanto como crítico de arte. Em 1940, abandona a direção da Nouvelle Revue Française (NRF) e funda na clandestinidade, sob a ocupação alemã, as Lettres Françaises. (N. de EE.) 3 Em francês fantasme. De acordo com o parecer do Conselho Científico desta obra, "fantasma" é uma escolha que visa a uma diferenciação tanto da fantasia kleiniana quanto do sentido comum de fantasia, como devaneio, aludindo a algo que não se situa no campo do conhecimento, ainda que outros prefiram "fan tasià', equivalente quase perfeito do termo alemão Phantasie. (N. de EE.) 4 CEuvres. ., . A prática da letra 35 ·; "Les douleurs imaginaires", Le clair et L'obscur, Le don des langues, doravante designados no texto pelas siglas D.I., C.O. e D.L., seguidos da paginação na edição do Cercle du livre précieux. 6 Psycana!ysant e ana!ysant, com freqüência, são traduzidos do francês para o português por "analisando". Não parece ser uma tradução gramaticalmente correta, pois analysant é o particípio presente e "analisando" é o gerundivo. Ana!ysant devia ser traduzido por "analisante". Esta pequena diferença gramatical implica numa grande diferença na forma como se considera o processo analítico. De fato, o gerundivo é o particípio do futuro passivo e indica que o sujeito que se submete a uma análise é o objeto para ser analisado por outro (o analista). Enquanto que "analisante" é o particípio presente ativo que coloca o sujeito numa posição de ator- sujeiro de sua própria análise. A psicanálise não é um exercício de vidência (cf. M. Fleig) que o termo "analisando" implicaria. (N. de Ivan Corrêa) 7 Paul Langevin (1872-1946), físico francês e professor na Universidade de Paris. Foi pioneiro da física teórica moderna na França e um dos primeiros defensores e divulgadores da teoria da relatividade. (N. de J anine Vandermersch e Bernard Vandermersch) 8 yer;,adiante, o capítulo sobre ''A experiência do provérbio e o discurso psicana- lítico . 9 Désêtre, neologismo introduzido por Lacan para dar conta da queda do sujeito suposto saber do lado do analista como correlato da destituição subjetiva do lado do analisante. Trata-se da queda da consistência (do ser) do analista na situação de fim de an.ílise e passagem do analisante para a posição de analista. Esse termo é empregado por Lacan no discurso proferido sobre o passe na École freudienne de Paris, cm 1967 (Cf. Scilicet 2/3, Seuil, 1970). (N. de Mario fleig) 10 Em francês, la police n'en peut mais. (N. T) 11 Em suas Conferências introdutórias sobre psicandlise (l 916-l 917a), Freud discu- te este caso clínico cm "O sentido dos sintomas", conferência XVII. Refere dois exemplos da análise de um sintoma obsessivo, com o propósito de evidenciar que os sintomas têm um sentido e relacionam-se com as experiências dos analisantes. (N. de Lucia Serrano Pereira) 12 Jean Paulhan, "Freud: réserves sur un point", em CEuvres, Cercle du livre précieux, t. IV, p. 417-418. 13 Mantivemos a expressão "ao encontro com", quando o correto seria "ao encontro de" ou "no encontro com", para salientar o encontro com o real que implica ao mesmo tempo o sentido de "ir ao encontro" e de "dar de frente com". (N. de EE.) 14 Le guerrier appliqué, em CEuvres, Cercle du livre précieux. t. II. 15 J. Lacan, "Discours à!' E.F.P.", em Scilicet2/3, Seuil, 1970. 1'' Jean Paulhan, Le guerrierappliqué, op. cit. II, p. 103. 1 • Jean Paulhan, Note, em CEuvres, Cercledu livre précieux, t. II, p. 8. 1" Jean Paulhan, Le pont traversé, em CEuvres, Cercle du livre précieux, t. I, p. 87. ,., .J. Lacan, "Discours à l' E.F.P.", em Scilicet 2 e 3, Seuil, p. 20. A experiência do provérbio e o discurso psicanalítico Quando o homem dos lobos, no divã de Freud, fazia um lapso, escondia-se atrás de sua origem estrangeira (sua língua ma- terna era o russo), nada querendo saber daquilo que, no entanto, havia sido dito. Da mesma forma, quando Jean Paulhan, passan- do alguns anos cm Madagascar, relata algumas de suas dificulda- des cm falar malgaxc, poderíamos ser tentados a atribuir essa falta de jeito à aprendizagem, longa e complicada, de uma língua es- trangeira. Assim, Rabe diz a Paulhan, em malga:xc: "Como queres que me defenda contra essas pessoas? O boi morto não se protege das moscas". "Mas você ainda é um boi bem vivo e sólido", res- ponde Paulhan. Ao que Rahaja, que se dirige a ele com benevo- lência, como que salientando algo de mau gosto: "Como você pode chamar Rabe de boi?". Há nisso apenas uma oportunidade para se perceber uma falta de jeito bem compreensível a um sujei- to que domina mal uma língua estrangeira? Antes disso, a con- frontação com uma língua estrangeira permite ver, de uma ma- neira mais evidente, aquilo que é a própria essência da linguagem: o mal-entendido. É por não ter negligenciado esse mal-entendido que Paulhan pôde fazer, em "A experiência do provérbio" 1 , uma abordagem do significante que interessa muito de perto o discur- so psicanalítico. 38 1 Elementos lacanianos para urna psicanálise no cotidiano Na literatura analítica não faltam referências aos provérbios. Entretanto, os artigos que abordam essa questão, em geral, o fazem indiretamente. Assim, Jean-Paul Valabrega2 procura as leis que presidem a formação e a estruturação desses dois "intermediários" entre o in- consciente e o consciente que são a pulsão e o fantasma. 3 Insiste naquilo que chama de "lei de inversão". No artigo4 sobre ''As lem- branças encobridoras", lembra, é pela virada ao avesso que Freud estabelece o "fantasma'' por tds da lembrança, "levar flores a uma jovem", significando "tomar-lhe sua flor, deflorá-la". Da mesma forma, prossegue ele, a interpretação do fantasma clássico "bate- se em uma criança'' gira em torno da virada ao avesso do geschlagen [bater], um pouco como se aplicasse o provérbio: "Quem ama bem castiga bem", ou seu inverso "Quem bate muito gosta mui- to", ou até "Quem bate bem beija bem". Isso o leva, então, a uma observação de ordem mais geral sobre os provérbios: "Estejamos · certos, aliás, de que o estudo dos provérbios não seria o último a nos esclarecer a respeito do virar ao avesso". Porém, Jean-Paul Valabrcga deixa essa questão apenas esboçada. Em um artigo intitulado "Linguagem e satisfação, ou da interpretação"5 , Moustapha Safouan pergunta-se sobre o que pode agir na interpretação e apresenta um exemplo retirado de um ana- lista americano chamado Norman Reider. Esre tem uma paciente "cujas associações deixam transparecer o temor fantasmático de que saia algo da boca do analista, que a surpreenda, além da medi- da". Alguma coisa ... o quê? "O pênis", interpreta Reider, que se ouve recusado através de uma grande quantidade de sarcasmos, movimentos de mau humor e até mesmo de amor. Apesar da in- sistência do analista, a interpretação é assim refurada, até o dia em que Reider cita um provérbio japonês: "O cego não tem medo das serpentes". A partir desse dia a analisante põe-se a verbalizar como verdades tudo aquilo que até então ela havia rechaçado. O que teria operado, nesse caso? Tanto para Safouan como para Reider, 1. A prática da letra 39 essa questão trás ao seguinte: Nos bastidores, o que a metdfora ope- ra, dado que, aparentemente, ela não acrescenta nada? Comores- ponder? O analista americano, muito embaraçado, invoca o gosto de sua paciente pelas coisas japonesas. Tudo se passaria como se o fato de ter afinidade ou gostos comuns na mesma área cultural tivesse tornado a paciente, que era histérica, sensível à influência. Quanto a Moustapha Safouan, este retoma, naquela oportunida- de, um estudo mais geral da metáfora. "O nervo da metáfora está na substituição como tal", e não nos termos que são substituídos um pelo outro. Assim, no paciente o desejo acha-se "reconhecido como tal, isto é, reconhecido sem ser conhecido". Desse modo, diferentemente do analisante demasiado apressado em encontrar a significação deste ou daquele elemento de seu sonho, de um alber- gue, por exemplo, onde verá um seio6 , o analista preocupa-se em manter aberra a hiância que seu paciente pode apressar-se em querer tapar. Observad, por exemplo, que se trata certamente de um al- bergul'., mas de um albergue "tal como não existe na realidade"7• /\ssim, nada obturará o desejo. Da mesma forma, continua Safouan, a diferença entre dizer a uma paciente "você não quer ver a verdade" e dizer-lhe "o cego não tem medo das serpentes" é a diferença entre o imperativo "você deve saber" e o convite "você pode saber". Pode- se citar integralmente algumas linhas, que nos farão chegar à beira de nossa questão: "No primeiro caso, o desejo do analista, quanto a esse assunto, parece estar obstaculizado até o mandamento e esse mandamento dirige-se à marionete falante que tenho na minha fren- te, ao passo que o 'Você' de que se trata, em 'Você pode saber', tem uma significação totalmente diferente, esse Você é, propriamente falando, um Ele. E quem é esse Ele? ... Quem quer." Entendemos que, enquanto insistia em fazê-la admitir sua interpretação, o analista mantinha com sua paciente uma relação dual. A relação imaginária do eu (moi) com o outro, constituía uma barreira para que surgisse o que quer que fosse do inconsciente. Para que tal possibilidade seja aberta, é preciso ir além do eu (moi) assim como do você. O inconsciente, como discurso do Outro, tem essa dimensão que Safouan designa como dimensão do Ele. Porém, é inessencial que seja a enunciação de um provérbio que opere esse apagamento da pessoa do analista, correlativo de um discurso 40 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano que não se dirige mais a um outro, mas ao Outro? Não tentemos responder logo. Detenhamo-nos ainda em uma terceira abordagem, a de Octave Mannoni. Em um artigo sobre "A elipse e a barra"8, retoma uma questão essencial para um psicanalista: a "pressão paradigmática". Para ele, trata-se de saber como funciona efetivamente, na análise, o significante com seus equívocos, suas próprias leis de homofonia e o que elas induzem. Desta forma, um analisante cuja mulher chama-se Laurence e cuja irmã chama-se Florence vem um dia dizer-lhe: "Não pode haver mais semelhança entre minha mulher e minha irmã do que entre um ovo [oetef] e um boi [boeiif]". Para Mannoni, o que se impõe inicialmente, quando o paciente pronuncia essa frase, é a homologia de relações, por um lado, entre boi e ovo e, por outro, entre Florence e Laurence. Contudo, não é isso que surpreende o analisante. Ele não se dá conta da importância do que disse senão ao se referir ao provérbio "Quem rouba um ovo rouba um boi". Certamente, há muito tempo ele havia observado a semelhança entre o nome de sua mulher e o de sua irmã, sem dar a isso a devida importância, e ainda desta vez, sem dúvida, não teria sido surpreendido pela semelhança significante, pela analogia literal, se não fosse o provérbio. Eis, pois, Mannoni pronto para se interrogar sobre a importância específica do provérbio. No entanto, ele também deixa de lado esse problema para ir diretamente à questão do desejo: "o jogo com os significantes", diz ele, "não se manifesta no discurso neurótico senão quando algo do recalcado é posto em questão" (se quem rouba um ovo rouba um boi, quem deseja Laurence pode muito bem desejar Florence). Entretanto, é à memória de Jean Paulhan que Mannoni dedica a terceira parte de seu artigo. Acreditamos ser Paulhan quemnos dá os meios de ir mais longe no estudo do provérbio. Lacan, em compensação, refere-se explicitamente ao artigo do qual partimos. Em seu semin.írio do ano 1972-73'!, interroga- se sobre o que seria o significante. Aliás, destaca as dificuldades de uma totalização. O significante não seria dizer demais? E, até mes- mo, um significante não pressupõe que o significante já pode ser coletivizado, que se pode fazer dele uma coleção, falar dele como 1. A prática da letra 41 de algo que se totaliza? Ainda que, em particular para o lingüista, seja bastante difícil coletivizar o significante, fundá-lo, certamen- te, não se pode limitá-lo ao fonema nem tampouco à palavra, que não tem outro ponto onde possa ser feira sua coleção a não ser no dicionário. Antes, seria preciso interrogar a locução ou, ainda, o provérbio "pelo qual um determinado artigo de Paulhan, que re- centemente me caiu nas mãos, fez-me interessar mais vivamen- te"!º. Vejamos, pois. II A experiência do provérbio é, de fato, o relato de uma expe- riência. Paulhan, ao tentar aprender a língua malgaxe, vê-se con- fronrado com diversas dificuldades e com algumas questões refe- rentes ao papel que nela representam os provérbios. Conta-nos, um pouco, como as coisas apresentaram-se para ele, sem temer os desvios sinuosos, sem sistematizar demais o que não é, além disso, senão a descrição de um itinedrio. O conjunto tem como que um cunho de verdade, insubstituível para o psicanalista. É preciso apresentar o que ele próprio diz de seu percurso. Paulhan relata que, para aprender o malgaxe, quase não se incomodou com a sintaxe ou com o vocabuHrio, mas principal- mente com a impressão de que faltava às suas palavras "um certo peso, um valor, um tom de convicção". O que lhe falta então? Não tan.la a pensar que não tem acesso a uma espécie de "segunda língua" malgaxe, que tem força de lei, que pode pôr fim a todas as querelas. Essa língua é, antes de tudo, constituída de provérbios. É interessante observar, de imediato, o que permite a Paulhan reconhecê-los como tais. Segundo ele, ao responder a um provér- bio como a uma frase qualquer, "falo no vazio e apenas por mim". Assim aconrece com "o respeito se compra". Acreditando perceber facilmente seu sentido, Paulhan responde que prefere ficar à von- tade e que o respeitem um pouco menos. Porém, não é entendido. Na fórmula "o respeito se comprá', o essencial não era o sentido. É como se àquele que diz "ao bom entendedor, salvação" se replicasse 42 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano "nem sempre, porque, se viu o perigo, sabe-se evitá-lo". "Esse pro- vérbio", diz Paulhan, "não se levantava de maneira alguma contra a hipótese de que o bom entendedor podia não ser salvo". Inútil, portanto, precipitar-se sobre o sentido aparente. Então, como compreender ou como tomar o provérbio? Quando o autor pergunta aos malgaxes sobre o sentido de um provérbio que ouviu, para explicá-lo, seus anfitriões precisam sa- ber em que contexto foi empregado. Ou ainda, se Paulhan não pode citar o contexto, eles inventam uma pequena ficção, uma situação na qual o provérbio poderia muito bem surgir. De qual- quer modo, suas respostas tendem antes a justificar o emprego do provérbio nesse ou naquele caso: parecem pressupor que Paulhan, de fato, conhece o provérbio em si mesmo. Alguma coisa poderia tranqüilizar o narrador inquieto. É que os jovens malgaxes, educados à européia, quase nunca conse- guem situar melhor do que ele o valor dos provérbios, tomando- os por "frases". Aliás, os próprios malgaxes mais velhos, quando utilizam uma locução proverbial, às vezes a vêem cair no vazio. De tudo isso, Paulhan tira, sobretudo, a idéia de que é preciso superar grandes dificuldades. A terceira parte do texto apresenta o autor já de posse de alguns provérbios, que pode citar inocentemente e que também podem, em uma discussão, vir em apoio de sua causa. Não que possa dizer como os adquiriu. O progresso fez-se nele de forma obscura. Ele apenas observa o que deve fazer para conserv,í-los como provérbios: não modificá-los em nada. Assim, "zomba-se daqueles que dançam sem tambor" é provérbio, mas não "já se viu dançar sem tambor", nem "há do que rir: ele dança sem tambor". É preciso lembrar não da imagem, e sim da frase inteira, como se ela fosse apenas uma única palavra. Freqüentemente, é a estrutura abstrata da frase que a faz manter-se, ou até mesmo o que permite formar novas. Assim, a partir de "como o cego desvia-se: é quando foi tocado que ele se inclina de lado", será formado "como o ca- mundongo esquiva-se dos golpes: é quando foi cocado que salta de lado". Durante essa aprendizagem, Paulhan observa um outro fe- nômeno curioso. Enquanto certos provérbios interessam-no par- I. A prática da letra 43 ticularmente por sua sutileza, seu aspecto paradoxal, sua malícia, ou mesmo sua estrutura de pequeno drama, são aqueles que lhe parecem mais desprovidos de interesse que ele emprega mais cor- rentemente. "Enfim, tudo se passava, para mim, como se tivesse havido antinomia entre o sentido do provérbio e o uso que dele se faz". Passa-se um pouco mais de um ano. A linguagem de Paulhan é tão rica em provérbios como a de um malgaxe. Mesmo assim, não foram esclarecidos os problemas que apresentam, muito pelo contrário. Por exemplo, a confiança que Paulhan ames ligava ao emprego do provérbio pelos malgaxes, atualmente parece-lhe es- tar mais ligada, pelo menos no que lhe concerne, à verdade de suas palavras. Em suma, "o provérbio só funciona bem com a condição de não ser tido por provérbio". Mas, então, como abordá- lo? A partir disso, o autor descreve dois tipos de situações muito diferentes. Em certos casos, Paulhan prepara de antemão provér- bios, tendo em vista uma discussão. O provérbio parece, então, ser <!xpressão. A questão é: "Como o provérbio quererá dizer isso?" Às vezes, o provérbio também se apresenta de uma forma total- mente diferente, bem mais interessante. Paulhan explica, por exem- plo, que em uma discussão, ele emprega mal um dos provérbios. A partir de então, precisa voltar sobre suas palavras para esclarecê- las, para justificá-las, para mostrar que era realmente isso, há uma inversão. Agora, não se trata de saber "como o provérbio quered. dizer isso", mas "como isso quererá dizer o provérbio". Passemos ao modo como Paulhan explica essa inversão. O provérbio, diz ele, não é mais, nessa última abordagem, frase que deve exprimir um fato, é foto que as frases devem exprimir, é uma coisa. Percebe-se o quanto tais formulações são tributárias de uma concepção que se poderia muito bem dizer pré-saussuriana da lin- guagem. Esta aparece como uma relação entre dois termos, mas trata-se de palavras e de coisas, em vez de significante e significa- do. O importante é que a inversão operada por Paulhan deixa-se retomar nos termos que agora são os nossos; embora se pudesse crer, ingenuamente, que a seqüência significante proverbial era simples artifício de linguagem, vindo a dar sua expressão mais forte a uma significação já existente, o que se passaria de fato, é bem o 44 Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano contrário. Nessa perspectiva, cada provérbio deveria ser tomado como um significante, enigméÜÍco enquanto tal e em relação ao qual toda significação só poderia ser secundária. Todo o problema seria ver como os sujeitos falantes - os falasseres - podem acomo- dar-se com esse significante, tomando-o por sua conta, comentan- do-o, dando-lhe sentido. Seria possível sustentar que o artigo de Paulhan faria, de alguma forma, uma abordagem "experimental" daquilo que, com Lacan, se pode chamar a relação do sujeito com o Outro como lugar do significante. 11 Abordagem insubstituível, paralela à experiência do tratamento, e substituto vantajoso de uma arriscada descrição genética sobre os passos do in-fans tornando-se fahL'iSCr. III É, pois, munido dessa hipótese que se pode reler
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