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ÉTICA PROFISSIONAL 1 Professor: João Batista Valverde Fevereiro de 2009 1 Material de apoio destinado aos estudantes do Curso de Ciências Jurídicas da Universidade Católica da Goiás – Campus V UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JÚRIDICAS 1 SUMÁRIO I – INTRODUÇÃO À MORAL 02 II – A SIGNIFICAÇÃO DA ÉTICA 11 III – ESTUDO E PRÁTICA DA ÉTICA 14 IV – OS FINS DA AÇÃO ÉTICA 20 V – O OBJETO DO SABER ÉTICO E AS NORMAS MORAIS 22 VI – O OBJETO DO SABER ÉTICO E O DIREITO 23 VII – A DETERIORAÇÃO DA ÉTICA 24 VIII – A ÉTICA E A PROFISSÃO FORENSE 29 IX – DEVERES DO ADVOGADO 43 X – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 55 XI – ÉTICA E PROFISSÃO JURÍDICA 62 XII – O CONTROLE DA CONDUTA DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO 64 XIII – CONSCIÊNCIA ÉTICA DO JURISTA 65 XIV – A ÉTICA DO ESTUDANTE DE DIREITO 68 XV – CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB 85 XVI – ESTATUTO DA ADVOCACIA E DA OAB 92 2 ARANHA, Maria Helena de Arruda. Filosofando. São Paulo: Moderna, 1995. I INTRODUÇÃO À MORAL A verdadeira moral zomba da moral. (Pascal) 1. Os valores Diante de pessoas e coisas, estamos constantemente fazendo juízos de valor. Esta caneta é ruim, pois falha muito. Esta moça é atraente. Este vaso pode não ser bonito, mas foi presente de alguém que estimo bastante, por isso, cuidado para não quebrá-lo! Gosto tanto de dia chuvoso, quando não preciso sair de casa! Acho que João agiu mal não ajudando você. 'Isso significa que fazemos juízos de realidade, dizendo que esta caneta, esta moça, este vaso existem, mas também emitimos juízos de valor quando o mesmo conteúdo mobiliza nossa atração ou repulsa. Nos exemplos, referimo-nos, entre outros, a valores que encarnam a utilidade, a beleza, a bondade. Mas o que são valores? Embora a preocupação com os valores seja tão antiga como a humanidade, só no século XIX surge uma disciplina específica, a teoria dos valores ou axiologia (do grego rodos, "valor"). A axiologia não se ocupa dos seres, mas das relações que se estabelecem entre os seres e o sujeito que os aprecia. Diante dos seres (sejam eles coisas inertes, ou seres vivos, ou idéias etc.) somos mobilizados pela afetividade, somos afetados de alguma forma por eles, porque nos atraem ou provocam nossa repulsa. Portanto, algo possui valor quando não permite que permaneçamos indiferentes. É nesse sentido que García Morente diz: "Os valores não são, mas valem. Uma coisa é valor e outra coisa é ser. Quando dizemos de algo que vale, não dizemos nada do seu ser, mas dizemos que não é indiferente. A não- indiferença constitui esta variedade ontológica que contrapõe o valor ao ser. A não-indiferença é a essência do valer". 2 Os valores são, num primeiro momento, herdados por nós O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de tal modo que aprendemos desde cedo como nos comportar à mesa, na rua, diante de estranhos, como, quando e quanto falar em determinadas circunstâncias; como andar, correr, brincar; como cobrir o corpo e quando desnudá-lo; qual o padrão de beleza; que direitos e deveres temos. Conforme atendemos ou transgredimos os padrões, os comportamentos são avaliados como bons ou maus. A partir da valoração, as pessoas nos recriminam por não termos seguido as formas da boa educação ao não ter cedido lugar à pessoa mais velha; ou nos elogiam por sabermos escolher as cores mais bonitas para a decoração de um ambiente; ou nos admoestam por termos faltado com a verdade. Nós próprios nos alegramos ou nos arrependemos ou até sentimos remorsos dependendo da ação praticada. Isso quer dizer que o resultado de nossos atos está sujeito à sanção, ou seja, ao elogio ou à reprimenda, à recompensa ou à punição, nas mais diversas intensidades, desde "aquele" olhar da mãe, a crítica de um amigo, a indignação ou até a coerção física (isto é, a repressão pelo uso da força). (Quina, Toda Mafalda, São Paulo, Martins Fontes, 1991.) 2 García Morente, M. Fundamentos de filosofia; lições preliminares, p. 296. 3 Embora haja diversos tipos de valores (econômicos, vitais, lógicos, éticos, estéticos, religiosos), consideramos neste capítulo apenas os valores éticos ou morais. 2. A moral Os conceitos de moral e ética, embora sejam diferentes, são com freqüência usados como sinônimos. Aliás, a etimologia dos termos é semelhante: moral vem do latim mos, moris, que significa "maneira de se comportar regulada pelo uso", daí "costume", e de moralis, morale, adjetivo referente ao que é "relativo aos costumes". Ética vem do grego ethos, que tem o mesmo significado de "costume". Em sentido bem amplo, a moral é o conjunto das regras de conduta admitidas em determinada época ou por um grupo de homens. Nesse sentido, o homem moral é aquele que age bem ou mal na medida em que acata ou transgride as regras do grupo. A ética ou filosofia moral é a parte da filosofia que se ocupa com à reflexão a respeito das noções e princípios que fundamentam a vida moral. Essa reflexão pode seguir as mais diversas direções, dependendo da concepção de homem que se toma como ponto de partida. Então, à pergunta "O que é o bem e o mal?", respondemos diferentemente, caso o fundamento da moral esteja na ordem cósmica, na vontade de Deus ou em nenhuma ordem exterior à própria consciência humana. Podemos perguntar ainda: Há uma hierarquia de valores? Se houver, o bem supremo é a felicidade? É o prazer? É a utilidade? Por outro lado, é possível questionar: Os valores são essências? Têm conteúdo determinado, universal, válido em todos os tempos e lugares? Ou, ao contrário, são relativos: "verdade aquém, erro além dos Pireneus", como dizia Pascal? Ou, ainda, haveria possibilidade de superação das duas posições contraditórias do universalismo e do relativismo? As respostas a essas e outras questões nos darão as diversas concepções de vida moral elaboradas pelos filósofos através dos tempos . 3. Caráter histórico e social da moral A fim de garantir a sobrevivência, o homem submete a natureza por meio do trabalho. Para que a ação coletiva se tome possível, surge a moral, com a finalidade de organizar as relações entre os indivíduos. Inicialmente, consideremos a moral como o conjunto de regras que determinam o comportamento dos indivíduos em um grupo social. É de tal importância a existência do mundo moral que se torna impossível imaginar um povo sem qualquer conjunto de regras. Uma das características fundamentais do homem é ser capaz de produzir interdições (proibições). Segundo o antropólogo francês Lévi-Strauss, a passagem do reino animal ao reino humano, ou seja, a passagem da natureza à cultura, é produzida pela instauração da lei, por meio da proibição do incesto. É assim que se estabelecem as relações de parentesco e de aliança sobre as quais é construído o mundo humano, que é simbólico. Exterior e anterior ao indivíduo, há portanto a moral constituída, que orienta seu comportamento por meio de normas. Em função da adequação ou não à norma estabelecida, o ato será considerado moral ou imoral. O comportamento moral varia de acordo com o tempo e o lugar, conforme as exigências das condições nas quais os homens se organizam ao estabeleceremas formas efetivas e práticas de trabalho. Cada vez que as relações de produção são alteradas, sobrevêm modificações nas exigências das normas de comportamento coletivo. Por exemplo, a Idade Média se caracteriza pelo regime feudal, baseado na rígida hierarquia de suseranos, vassalos e servos. O trabalho é garantido pelos servos, possibilitando aos nobres uma vida de ócio e de 4 guerra. A moral cavalheiresca que daí deriva reside no pressuposto da superioridade da classe dos nobres, exaltando a virtude da lealdade e da fidelidade - suporte do sistema de suserania - bem como a coragem do guerreiro. Em contraposição, o trabalho é desvalorizado e restrito aos servos. Essa situação se altera com o aparecimento da burguesia, a qual, formada pela classe de trabalhadores oriunda da liberação dos servos, estabelece novas relações de trabalho e faz surgir novos valores, como a valorização do trabalho e a crítica à ociosidade. 4. Caráter pessoal da moral No entanto, a moral não se reduz à herança dos valores recebidos pela tradição. À medida que a criança se aproxima da adolescência, aprimorando o pensamento abstrato e a reflexão crítica, ela tende a colocar em questão os valores herdados. Algo semelhante acontece nas sociedades primitivas, quando os grupos tribais abandonam a abrangência da consciência mítica e desenvolvem o questionamento racional. A ampliação do grau de consciência e de liberdade, e portanto de responsabilidade pessoal no comportamento moral, introduz um elemento contraditório que irá, o tempo todo, angustiar o homem: a moral, ao mesmo tempo que é o conjunto de regras que determina como deve ser o comportamento dos indivíduos do grupo, é também a livre e consciente aceitação das normas. Isso significa que o ato só é propriamente moral se passar pelo crivo da aceitação pessoal da norma. A exterioridade da moral contrapõe-se à necessidade da interioridade, da adesão mais íntima. Portanto, o homem, ao mesmo tempo que é herdeiro, é criador de cultura, e só terá vida autenticamente moral se, diante da moral constituída, for capaz de propor a moral constituinte, aquela que é feita dolorosamente por meio das experiências vividas. Nessa perspectiva, a vida moral se funda numa ambigüidade fundamental, justamente a que determina o seu caráter histórico. Toda moral está situada no tempo e reflete o mundo em que a nossa liberdade se acha situada. Diante do passado que condiciona nossos atos, podemos nos colocar à distância para reassumi-lo ou recusá-lo. A historicidade do homem não reside na mera continuidade no tempo, mas constitui a consciência ativa do futuro, que torna possível a criação original por meio de um projeto de ação que tudo muda. Cada um sabe, por experiência pessoal, como isso é penoso, pois supõe a descoberta de que as normas, adequadas em determinado momento, tornam-se caducas e obsoletas em outro e devem ser mudadas. As contradições entre o velho e o novo são vividas quando as relações estabelecidas entre os homens, ao produzirem sua existência por meio do trabalho, exigem um novo código de conduta. Mesmo quando queremos manter as antigas normas, há situações críticas enfrentadas devido à especificidade de cada acontecimento. Por isso a cisão também pode ocorrer a partir do enredo de cada drama pessoal: a singularidade do ato moral nos coloca em situações originais em que só o indivíduo livre e responsável é capaz de decidir. Há certas "situações- limite", tão destacadas pelo existencialismo, em que regra alguma é capaz de orientar a ação. Por isso é difícil, para as pessoas que estão "do lado de fora", fazer a avaliação do que deveria ou não ser feito. 5. Caráter social e pessoal da moral Como vimos, a análise dos fatos morais nos coloca diante de dois pólos contraditórios: de um lado, o caráter social da moral, de outro, a intimidade do sujeito. Se aceitarmos unicamente o caráter social da moral, sucumbimos ao dogmatismo e ao legalismo. Isto é, ao caracterizar o ato moral como aquele que se adapta à norma estabelecida, privilegiamos os regulamentos, os valores dados e não discutidos. Nessa perspectiva, a educação moral visa apenas inculcar nas pessoas o medo às conseqüências da não-observância da lei. 5 Trata-se, no entanto, de vivência moral empobrecida, conhecida como farisaísmo: numa passagem bíblica, um fariseu (membro de uma seita religiosa) louva o seu próprio comportamento, agradecendo a Deus por não ser "como os outros" que transgridem as normas. Tal formalismo muitas vezes está ligado à pretensão e à hipocrisia. Por outro lado, se aceitarmos como predominante a interrogação do indivíduo que põe em dúvida a regra, corremos o risco de destruir a moral, pois, quando ela depende exclusivamente da sanção pessoal, recai no individualismo, na "tirania da intimidade" e, conseqüentemente, no amoralismo, na ausência de princípios. Ora, o homem não é um ser solitário, um Robinson Crusoé na ilha deserta, mas "con-vive" com pessoas, e qualquer ato seu compromete os que o cercam. Portanto, é preciso considerar os dois pólos contraditórios do pessoal e do social numa relação dialética, ou seja, numa relação que estabeleça o tempo todo a implicação recíproca entre determinismo e liberdade, entre adaptação e desadaptação à norma, aceitação e recusa da interdição. Para tanto, o aspecto social é considerado sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar, significa apenas a herança dos valores do grupo, mas, depois de passar pelo crivo da dimensão pessoal, o social readquire a perspectiva humana e madura que destaca a ênfase na intersubjetividade essencial da moral. Isto é, quando criamos valores, não o fazemos para nós mesmos, mas enquanto seres sociais que se relacionam com os outros. Essa questão é importante sobretudo nos tempos atuais, quando nos encontramos no extremo oposto das sociedades primitivas ou tradicionais, nas quais persiste a homogeneidade de pensamento e valores. Hoje, nas cidades cosmopolitas, há múltiplas expressões de moralidade, e a sabedoria consiste na aceitação tolerante dos valores dos grupos diferentes, evitando o moralismo, que consiste na tentação de impor nosso ponto de vista aos outros. Isso não deve ser interpretado como defesa do extremo relativismo em que todas as formas de conduta são aceitas indistintamente. O professor José Arthur Gianotti assim se expressa: "Os direitos do homem, tais como em geral têm sido enunciados a partir do século XVIII, estipulam condições mínimas do exercício da moralidade. Por certo, cada um não deixará de aferrar-se à sua moral; deve, entretanto, aprender a conviver com outras, reconhecer a unilateralidade de seu ponto de vista. E com isto está obedecendo à sua própria moral de uma maneira especialíssima, tomando os imperativos categóricos dela como um momento particular do exercício humano de julgar moralmente. Desse modo, a moral do bandido e a do ladrão tornam-se repreensíveis do ponto de vista da moralidade pública, pois violam o princípio da tolerância e atingem direitos humanos fundamentais" 3 . 6. O ato moral Estrutura do ato moral A instauração do mundo moral exige do homem a consciência crítica, que chamamos de consciência moral. Trata-se do conjunto de exigências e das prescrições que reconhecemos como válidas para orientar a nossa escolha; é a consciência que discerne o valor moral dos nossos atos. O ato moral é portanto constituído de dois aspectos: o normativo e o fatual. O normativo são as normas ou regras de ação e os imperativos que enunciam o "dever ser". O fatual são os atos humanos enquanto se realizamefetivamente. Pertencem ao âmbito do normativo regras como: "Cumpra a sua obrigação de estudar"; "Não minta"; "Não mate". O campo do fatual é a efetivação ou não da norma na experiência vivida. Os dois pólos são distintos, mas inseparáveis. A norma só tem sentido se orientada para a prática, e o fatual só adquire contorno moral quando se refere à norma. 3 José Arthur Gianotti, Moralidade pública e moralidade privada, in Adauto Novaes Corg.), Ética, p. 245. 6 O ato efetivo será moral ou imoral, conforme esteja de acordo ou não com a norma estabelecida. Por exemplo, diante da norma "Não minta", o ato de mentir será considerado imoral. Convém lembrar aqui a discussão estabelecida anteriormente a respeito do social e do pessoal na moral. Nesse caso estamos considerando que o ato só pode ser moral ou imoral se o indivíduo introjetou a norma e a tornou sua, livre e conscientemente. Considera-se amoral o ato realizado à margem de qualquer consideração a respeito das normas. Trata-se da redução ao fatual, negando o normativo. O homem "sem princípios" quer pautar sua conduta a partir de situações do presente e ao sabor das decisões momentâneas, sem nenhuma referência a valores. É a negação da moral. Convém distinguir a postura amoral da não-moral, quando usamos outros critérios de avaliação que não são os da moral. Por exemplo, quando é feita a avaliação estética de um livro, a postura do crítico é não- moral; isso não significa que ele próprio não tenha princípios morais nem que a própria obra não possa ser moral. oral, mas o que está sendo observado é o valor da obra como arte. As discussões a respeito do que é ou não é uma obra pornográfica se encontram muitas vezes prejudicadas devido à intromissão da moral em campos onde não foi chamada, o que muitas vezes tem justificado indevidamente a ação da censura. O ato voluntário Se o que caracteriza fundamentalmente o agir humano é a capacidade de antecipação ideal do resultado a ser alcançado, concluímos que é isso que torna o ato moral propriamente voluntário, ou seja, um ato de vontade que decide pela busca do fim proposto. Nesse sentido, é importante não confundir desejo e vontade. O desejo surge em nós com toda a sua força e exige a realização; é algo que se impõe e, portanto, não resulta de escolha. Já a vontade consiste no poder de parada que exercemos diante do desejo. Seguir o impulso do desejo sempre que ele se manifesta é a negação da moral e da possibilidade de qualquer vida em sociedade. Aliás, não é essa a aprendizagem da criança, que, a partir da tirania do desejo, deve chegar ao controle do desejo? Observe que não estamos dizendo repressão do desejo, pois a repressão é uma força externa que coage, enquanto o controle supõe a autonomia do sujeito que escolhe entre os seus desejos, os prioriza e diz: "Este fica para depois"; "Aquele não devo realizar nunca"; "Este realizo agora com muito gosto" . O ato responsável A complexidade do ato moral está no fato de que ele provoca efeitos não só na pessoa que age, mas naqueles que a cercam e na própria sociedade como um todo. Portanto, para que um ato seja considerado moral, ele deve ser livre, consciente, intencional, mas também é preciso que não seja um ato solitário e sim solidário. O ato moral supõe a solidariedade, a reciprocidade com aqueles com os quais nos comprometemos. E o compromisso não deve ser entendido como algo superficial e exterior, mas como o ato que deriva do ser total do homem, como uma "promessa" pela qual ele se encontra vinculado à comunidade. Dessas características decorre a exigência da responsabilidade. Responsável é aquele que "responde por seus atos", isto é, o homem consciente e livre assume a autoria do seu ato, reconhecendo-o como seu e respondendo pelas conseqüências dele. O dever e a liberdade O comportamento moral é consciente, livre e responsável. É também obrigatório, cria um dever. Mas a natureza da obrigatoriedade moral não reside na exterioridade; é moral justamente porque deriva do próprio sujeito que se impõe a necessidade do cumprimento da norma. Pode parecer paradoxal, mas a obediência à lei livremente escolhida não é prisão; ao contrário, é liberdade. 7 A consciência moral, como juiz interno, avalia a situação, consulta as normas estabelecidas, as interioriza como suas ou não, toma decisões e julga seus próprios atos. O compromisso humano que daí deriva é a obediência à decisão. No entanto, o compromisso não exclui a não-obediência, o que determinará o caráter moral ou imoral do nosso ato. Por isso o filósofo existencialista Gabriel Marcel diz: "O homem livre é o homem que pode prometer e pode trair". Isso significa que, para sermos realmente livres, devemos ter a possibilidade sempre aberta da transgressão da norma, mesmo daquela que nós mesmos escolhemos. Para entendermos melhor, consideremos as noções de heteronomia e autonomia. A palavra heteronomia (hetero, "diferente", e nomos, "lei") significa a aceitação da norma que não é nossa, que vem de fora, quando nos submetemos aos valores da tradição e obedecemos passivamente aos costumes por conformismo ou por temor à reprovação da sociedade ou dos deuses. É característica do mundo infantil viver na heteronomia. A autonomia (auto, "próprio") não nega a influência externa e os determinismos, mas recoloca no homem a capacidade de refletir sobre as limitações que lhe são impostas, a partir das quais orienta a sua ação para superar os condicionamentos. Portanto, quando decide pelo dever de cumprir uma norma, o centro da decisão é ele mesmo, a sua própria consciência moral. Autonomia é autodeterminação. A virtude Etimologicamente, virtude vem da palavra latina vir, que designa o homem, o varão. Virtus é "poder", "potência" (ou possibilidade de passar ao ato). Virilidade está ligada à idéia de força, de poder. Virtuose é aquele capaz de exercer uma atividade em nível de excelência, como, por exemplo, um virtuose do violino. Em todos esses sentidos persiste a idéia de força, de capacidade. Em moral; a virtude do homem é a força com a qual ele se aplica ao dever e o realiza. A virtude é a permanente disposição para querer o bem, o que supõe a coragem de assumir os valores escolhidos e enfrentar os obstáculos que dificultam a ação. Uma vida autenticamente moral não se resume a um ato moral, mas é a repetição e continuidade do agir moral. Aristóteles afirmava que "uma andorinha, só, não faz verão" para dizer que o agir virtuoso não é ocasional e fortuito, mas deve se tornar um hábito, fundado no desejo de continuidade e na capacidade de perseverar no bem. Ou seja, a verdadeira vida moral se condensa na vida virtuosa. 7. Conclusão O delicado tecido da moral diz respeito ao indivíduo no mais fundo de seu "foro íntimo", ao mesmo tempo que o vincula aos homens com os quais convive. Embora a ética não se confunda com a política, cada uma tendo seu campo específico, elas se relacionam necessariamente. Por um lado, a política, ao estender a justiça social a todos, permite a melhor formação moral dos indivíduos. Por outro lado, as exigências éticas não se separam da ação dos governantes, que não devem interpor seus interesses pessoais aos coletivos. Estabelecer a dialética entre o privado e o público é tarefa das mais difíceis e exige aprendizagem e têmpera. É assim que se forja o caráter das pessoas. Exercícios 1. o que significa dizer que "a não-indiferença é a essência do valor"? 2. Explique esta afirmação: O homem, diferentemente do animal, é capazde produzir interdições. 8 3. Em que consiste o caráter histórico-social da moral? E o caráter pessoal? 4. Ao explicar a superação dos dois pólos contraditórios da moral (o social e o pessoal), analise a citação de Pascal que consta da epígrafe do capítulo: "A verdadeira moral zomba da moral". 5. Por que, mesmo considerando a tolerância um valor máximo da convivência humana, não aceitamos a moral de grupos como a Máfia, a Klu-Klux-KIan ou grupos neonazistas? 6. O que determina que um ato seja considerado moral ou imoral? 7. O que é um ato amoral? E o não-moral? 8. Todo ato moral deve ser julgado em função dos motivos, fins, meios, resultados. Explique como esses aspectos se inter-relacionam. 9. Explique: "Não há moral do desejo; só é moral o ato voluntário". 10. O que é heteronomia? E autonomia? 11. O que significa progresso moral? Por que não pode ser identificado com mudança moral? 12. Explique: No mundo contemporâneo, muitas pessoas não têm condição de vida autenticamente moral. 13. Leia o texto complementar I, "O crime 'elegante''' e responda às questões: a) Quais são os tipos de violência analisados no texto? b) Explique como numa sociedade dividida em classes há, ao lado da violência física aparente, um outro tipo de violência que é velada (que não se revela à primeira vista). c) Explique como a ênfase dada à violência física de rua denota uma postura individualista. d) Indique outros tipos de distorção semelhantes na avaliação dos atos de violência. e) Interprete o texto usando os conceitos aprendidos no Capítulo 5 - Ideologia. 14. Leia o texto complementar II, "Interdição e transgressão", e responda: a) O que significa "um tipo de transgressão que não suprima as interdições, mas as mantenha transgredidas"? b) Qual é a diferença entre a transgressão autêntica e a pseudotransgressão? 15. Leia o texto m, "Diante da Lei", e interprete-o usando os conceitos aprendidos. Seguem algumas sugestões: a) O camponês "esquece-se dos outros", "retoma à infância", "enfraquece-se", "diminui de tamanho", "morre": qual é a conotação dessas expressões se considerarmos o comportamento moral do camponês? O que significa "morrer" nesse contexto? b) Explique o significado do guarda na porta da Lei, recorrendo aos conceitos de heteronomia e autonomia. c) Interprete a última frase do texto a partir do aspecto pessoal da moral. d) Relacione o texto de Kafka com o anterior, "Interdição e transgressão", explicando qual foi o principal erro do camponês. Textos complementares 9 O crime "elegante" Os temas da violência urbana são importantes, mas estão permitindo que se tire de foco outra violência cujas conseqüências são muito mais sérias para a sociedade como um todo: a dos criminosos de paletó e gravata. Essa desfocagem é gravíssima. O grupo social está consciente do perigo do "trombadinha". Tem raiva do ladrão. São muitos os que proclamam as vantagens da pena de morte para assassinos e estupradores. Todavia, encara com indiferença e até com desalentada passividade que o grande golpista dos dólares, o despudorado ladrão de ações, o cínico criminoso das empresas públicas, o impiedoso manipulador do mercado imobiliário fiquem impunes. Essa é uma atitude irracional e primária. Entretanto, aparentemente, inevitável. O canalha colunável que se sustenta em sucessivos golpes, ao preço da infelicidade e do patrimônio alheio, muitas vezes levando famílias inteiras à ruína, é encarado como aventureiro ousado e, às vezes, até mesmo como provido de um certo charme. O "trombadinha", ainda que menor de idade, ao tirar uma carteira e sair em disparada, sempre encontra quem o queira linchar. Sobre ele se abate, com facilidade, a baba do ódio que está alojada nos sentimentos do povo. A causa aparente do absurdo está na indiferença ante o grande dano coletivo e a fúria cada vez mais agravada contra a ofensa individual. O mundo inteiro - é evidente que sob o impacto de cobertura maciça da imprensa escrita e da televisão - se sensibilizou até as lágrimas com o caso dos reféns americanos. Todavia, são muito poucos os que se afligem com as dezenas de crianças que diariamente morrem de inanição neste nosso Brasil. Do ponto de vista do direito essa atitude repercute em leis que tendem a ser cada vez mais rigorosas com o pequeno criminoso individual, ainda que brutal e impiedoso, e cada vez mais generosas com os "assaltantes" que ouvem Bach, que distinguem Picasso de Miró, a um primeiro olhar, ou que, simplesmente, tendo amealhado fortuna, sentem- se desobrigados de qualquer gesto de respeito pelo patrimônio alheio ou pela dignidade. A lei, pelo tratamento benévolo que dá a esses delitos, incentiva-os. Isto, sem falar em sua proverbial impunidade. Tende a lei a não ser alterada, porque o grupo social não consegue sensibilizar-se para a imensa fonte de danos que tais delitos provocam. Diversamente portanto do que acon- tece com os crimes individuais geralmente praticados pelo maloqueiro e pelo favelado, e, por isso, juridicamente "pequenos". Alguns exemplos ilustram o que quero dizer. O cidadão que, por culpa, provoque poluição de uma fonte de água potável sujeita-se a detenção de seis meses a dois anos, embora ponha em risco a vida e a saúde de muita gente, como se tem visto em casos repetidos. Aquele que corrompa, adultere ou falsifique substância alimentícia destinada ao consumo público sujeita-se a uma pena máxima de seis anos. Ou seja, dois anos mais que a do autor de apropriação indébita de uma caneta-tinteiro. Todavia, dois anos menos que o criminoso do furto qualificado, ainda que o produto seja de umas poucas centenas de cruzeiros. O funcionário público, prevaricador - tanto o pequeno quanto o grande potentado do serviço público -, que retarde ou deixe de praticar indevidamente ato de ofício, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, corre' o risco máximo - rarissimamente aplicado - de um ano de detenção, seja qual for a relevância social do ato praticado. A formulação da lei tem um defeito de origem, como se demonstraria com mais outros exemplos, se fossem necessários. Os que aí ficaram são, porém, suficientes para evidenciar outro aspecto relevante: é a elite que faz a lei. Escreve-a a seu gosto, voltada para seus principais interesses. Os únicos, aliás, de que tem compreensão adequada. Só assim é possível entender que a fraude no comércio, consistente em enganar intencionalmente o adquirente ou o consumidor, vendendo mercadoria falsificada ou deteriorada como se fosse verdadeira, merece apenas detenção de seis meses a dois anos, pouco importando qual o prejuízo causado ou quais sejam os enganados. Porém, para o rufião, que explora uma prostituta, a pena é de reclusão de um a quatro anos. O pequeno 10 comerciante, porém, pode até ser levado a ajoelhar-se diante do juiz, como aconteceu há pouco 4 É a punição que recebe por ser pequeno ... A óptica social está errada. A atitude da sociedade é burra, quando fecha os olhos para o criminoso de punhos de seda, cuja conduta tem um terrível subproduto ainda insuficientemente avaliado. Subproduto consistente na contribuição para o agravamento das condições sócio- econômicas da maioria do povo, geradores principais das agressões urbanas. E, paradoxo dos paradoxos: algumas das vozes mais calorosas do combate à violência assustadora mas nascida no submundo da metrópole certamente seriam caladas se fosse possível punir a grande e desumana violência dos criminosos de paletó e gravata. Isso porque algumas dessas vozes pertencem a eles. Essa é umarealidade que ainda não atingiu a consciência do povo. (Walter Ceneviva, in Folha de S. Paulo, 6.2.1981.) Interdição e transgressão O homem é o ser que produz interdições. (...) A vida social, com as suas normas e as suas hierarquizações, as suas instituições e os seus sistemas simbólicos, exige necessariamente uma rede de interdições que assinalam os lugares de ruptura entre o homem e o animal. Mas o que define o homem é a transgressão. Não quer isto dizer que se pretenda um regresso à natureza, mas sim um tipo de transgressão que não suprima as interdições, mas as mantenha transgredidas. Existe, assim, "uma cumplicidade profunda da lei e de sua violação" 5 . (...) A transgressão é o rasgar das normas, é a subversão de uma ordem. Existem inúmeras formas de existência inautêntica, que são aquelas que nos indicam as diversas figuras da alienação. A existência autêntica é a que se lança na exploração do possível rumo ao impossível que lhe acena 4 O autor se refere a um caso noticiado nos jornais: por questões pessoais, o juiz de direito de uma cidade do interior do Estado de São Paulo humilhou um padeiro, obrigando-o a ajoelhar-se e pedir perdão. 5 Georges Bataille. e a obceca, lugar absoluto da ação, limiar da loucura. A existência inautêntica pode subordinar,se à Lei, reificá-la nas formas instituídas da alienação, projeta-la nos instrumentos opressivos do capitalismo: teremos o universo modelar do catecismo e da "moralina", das boas ações e dos bons sentimentos, dos discursos de inauguração e dos artigos de fundo, do adocicado e viscoso da palavra virtuosa, da mediocridade resignada e quase feliz no seu destino dócil, dos mitos da autoridade e da identidade, do comportamento íntegro que não oferece dúvidas. (...) Devemos distinguir entre a transgressão autêntica e a pseudotransgressão a que a nossa civilização repressiva nos habituou. Como nota Sollers, "uma tal libertação é apenas a máscara de uma repressão redobrada". As pseudotransgressões são brechas abertas na muralha da moral que apenas servem para consolidar a resistência dessa muralha. É por isso que certas atitudes "escandalosas" são toleradas, e até mesmo cultivadas, porque elas constituem a face demoníaca que estabelece, numa sutil contabilidade, o equilíbrio da repressão social. Determinados meios, determinadas camadas (a juventude como momento de purificação que antecede a austeridade de uma vida), deter, minadas ruas, determinadas formas de clandestinidade, são apenas álibis por meio dos quais a sociedade obtém a dosagem exata da sua moral. "Ce qui vient au monde pour ne rien troubler ne mérite ni égards ni patience." 6 (René Char) (Eduardo Prado Coelho, Introdução à obra Estruturalismo; antologia de textos teóricos. Lisboa, Martins Fontes, Portugália Ed., p. LXVIII.) Diante da Lei Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhe permita entrar na Lei. Mas o guarda responde 6 Aquele que vem ao mundo para nada alterar não merece nem consideração nem paciência". 11 que por enquanto não pode deixá-lo entrar. O homem reflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar. - E possível - disse o porteiro -, mas não agora. A porta que dá para a Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o homem inclina-se para espiar. O guarda vê isso, ri-se e lhe diz: - Se tão grande é o teu desejo, experimenta entrar apesar de minha proibição. Mas lembra-te de que sou poderoso. E sou somente o último dos guardas. Entre salão e salão também existem guardas, cada qual mais poderoso do que o outro. Já o terceiro guarda é tão terrível que não posso suportar seu aspecto. O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível para todos, pensa ele, mas ao observar o guarda, com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como de águia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar. O guarda dá- lhe um banquinho, e permite-lhe sentar-se a um lado da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar, e cansa ao guarda com suas súplicas. Com freqüência o guarda mantém com ele breves palestras, faz- lhe perguntas sobre seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixa-lo entrar. O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar ao guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz: - Aceito-o para que não julgues que tenhas omitido algum esforço. Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente o guarda: esquece-se dos outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. Maldiz sua má sorte, durante os primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas murmura para si. Retoma à infância, e, como em sua longa contemplação do guarda, chegou a conhecer até as pulgas de seu abrigo de pele, também suplica às pulgas que o ajudem e convençam ao guarda. Finalmente, sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos. Mas em meio da obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da porta da Lei. Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anos se confundem em sua mente em uma só pergunta, que até agora não formou. Faz sinais ao guarda para que se aproxime, já que o rigor da morte endurece seu corpo. O guarda vê-se obrigado a baixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estaturas entre ambos aumentou bastante com o tempo, para detrimento do camponês. - Que queres saber agora? - pergunta o guarda. - És insaciável. - Todos se esforçam por chegar à Lei - diz o homem -; como é possível então que durante tantos anos ninguém mais do que eu pretendesse entrar? O guarda compreende que o homem já está para morrer, e, para que seus desfalecentes sentidos percebam suas palavras, diz-lhe junto ao ouvido com voz atroadora: - Ninguém podia pretender isso, porque esta entrada era somente para ti. Agora vou fechá-la. (F. Kafka, Diante da Lei, in A colônia penal, São Paulo, Livraria Exposição do Livro, 1965, p. 71.) BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica: ética geral e profissional. 2ª. ed. São Paulo; Saraiva: 2004. II A SIGNIFICAÇÃO DA ÉTICA É como um saber que se verte e se direciona para o comportamento que se deve definir e divisar conceitualmente o que seja a ética. De fato, 12 concebê-la distante da palpitação diuturna das experiências humanas, fora do calor das decisões morais, fora dos dilemas existenciais e comportamentais vividos e experimentados em tomo do controle das paixões, das agitações psicoafetivas e sociais que movimentam pessoas, grupos, coletividades e sociedades, é o mesmo que afastá-la de sua matéria-prima de reflexão. A ética encontra na mais robusta fonte de inquietações humanas o alento para sua existência. É na balança ética que se devem pesar as diferenças de comportamentos, para medir-lhes a utilidade, a finalidade, o direcionamento, as conseqüências, os mecanismos, os frutos. Se há que se especular em ética sobre alguma coisa, essa "alguma coisa" é a ação humana. O fino equilíbrio sobre a modulação e a dosagem dos comportamentos no plano da ação importa à ética. A ação humana é uma movimentação de energias que se dá no tempo e no espaço.Mas não só. Trata-se de uma movimentação de energias que se perfaz mediante: uma determinada manifestação de comportamento (trabalhar ou roubar; elogiar ou ofender; construir ou destruir); um conjunto de intenções (intenção de ganhar dinheiro mediante emprego de suas próprias energias ou rápida e facilmente à custa do sacrifício alheio; intenção de ofender e magoar ou intenção de estimular; intenção de fazer ou desfazer o que está pronto); a obtenção de determinados efeitos (viver pelas próprias forças ou viver mediante o esforço alheio; promover o bem-estar de outrem ou desgastar o interior e as emoções de outrem; deixar sua contribuição ou apagar a contribuição dos outros). Mais ainda, a ação humana, este empenho direcionado de energias, não se restringe a existir e a se portar de acordo com o que se disse acima, pois também con-vive com outras ações humanas em sociedade 7 , de modo a que a própria sociedade se torne um cadinho para onde convergem todos os fluxos de ações aglomeradas em torno de um fim 7 Mas, isso não leva à confusão entre sociologia e ética: "Assim, enquanto na Sociologia são estudados os fenômenos sociais e sociológicos, na Ética estudam-se os fenômenos e fatos éticos, que enunciam, explicam ou justificam leis, regras e normas que atuam no relacionamento e no procedimento humanos" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 97). comum. Nessa medida, pode-se adiantar que da composição de ações individuais dá-se início ao processo de aglomeração de ações individuais, até a formação da intersubjetividade, momento deste processo em que se torna difícil separar uma ação individual da outra, uma contribuição individual da outra, dentro de um grande emaranhado de ações que se relacionam. Dentre as possíveis espécies de ação humana (ação política, ação de trabalhar, ação de se alimentar, ação de pensar, ação de emitir um discurso), de acordo com a canalização das energias e sua adequação ao cumprimento de determinadas metas, há que se priorizar as atenções deste estudo por sobre a ação moral. É tarefa difícil defini-la, em si e por si, mas sabe-se que a ação moral não pode corresponder a um único ato isolado com determinado conteúdo (dar uma esmola, perdoar uma ofensa, fazer justiça perante um desvalido). De fato, estar diante de uma ação moral não é estar diante de uma ação com determinado conteúdo, mas sim estar diante de uma ação cuja habitualidade comportamental confere ao indivíduo a característica de ser único e poder governar-se a si mesmo 8• Então, a ação moral tem que ver com uma determinada forma de se conduzir atitudes de vida; uma única atitude não traduz a ética de uma pessoa, é mister a observação de seus diversos traços comportamentais. O poder de deliberar e decidir qual a melhor (ou mais oportuna, ou mais adequada) forma de conduzir a própria personalidade em interação (familiar, grupal, social...) é uma liberdade da qual faz uso todo ser humano 9 ; a ética é a capacidade coligada a essa liberdade 10 . 8 Em seu Termosfilosóficos gregos: um léxico histórico, 2. ed., F. E. Peters diz a respeito do termo éthos, p. 85: "Éthos: caráter, modo de vida habitual: Heráclito: 'o éthos de um homem é o seu daimon', Diels, frg. 119. Em Platão é um resultado do hábito (Leis 792e), é mais moral do que intelectual (dianoia) emAristóte1es (Eth. Nic. 1 139a). Tipos de éthos em vários períodos de vida são descritos por Aristóteles, Reth. lI, caps.12-14. No estoicismo o éthos é a fonte do comportamento, SVF 1,203". 9 "O certo é que o bem ético implica sempre medida, ou seja, regras ou normas, postulando um sentido de comportamento, com possibilidade de livre escolha por parte dos obrigados, exatamente pelo caráter de dever ser e não de necessidade física (ter que ser) de seus imperativos" (Reale, Filosofia do direito, 1999, p. 389). 10 Vide, a respeito, uma possível projeção do éthos na teoria aristotélica em: Bittar, A 13 Há que se dizer, portanto, como decorrência do que se acaba de afirmar, que a ética demanda do agente: 1. conduta livre e autônoma: a origem do ato ou da conduta parte da livre consciência do agente. Dessa forma, o agente manipulado para agir inconscientemente, por força de um poder arbitrário ou de uma imposição coercitiva, não pode ser considerado autônomo em suas deliberações, e, portanto, essa ação não pode ser considerada de sua livre autoria. Não gera responsabilidade ética; 2. conduta dirigida pela convicção pessoal: o auto-convencimento é o exercício que transforma idéias, ideologias, raciocínios e pensamentos em princípios da ação, sob a única e exclusiva propulsão dos interesses do indivíduo. Toda decisão surge da consciência individual, o que não impede que a deliberação ética possa estar influenciada por valores familiares, sociais Mas, o que há de constante é a sede de decisão, que deve ser individual; 3. conduta insuscetível de coerção: a falta de sanção mais grave, dependendo da consciência e dos valores sociais, peculiariza a preocupação ética (exclusão do grupo, vergonha, dor na consciência, arrependimento...). A conduta, portanto, só é feita eticamente não por metus cogendi poenae (pena privativa de liberdade, restritiva de direitos...), como ocorre diante de normas jurídicas, mas por livre convencimento do agente dentro de regras e costumes sociais. Visto isto, há que se afirmar que os estudos histórico e etimológico do termo "ética" revelam que éthos está revestido de ambigüidades, o que torna a própria discussão da matéria também aberta: éthos (grego, singular) é o hábito ou comportamento pessoal, decorrente da natureza ou das convenções sociais ou da educação 11 éthe (grego, plural) é o justiça em Aristóteles, 1999, p. 105. 11 "Conceituar ética já leva à conclusão de que ela não se confunde com a moral, pese embora aparente identidade etimológica de significado. Éthos, em grego e mos, em latim, querem dizer costume. Nesse sentido, a ética seria uma teoria dos costumes. Ou melhor, a ética é a ciência dos costumes. Já a moral não é ciência, senão objeto da conjunto de hábitos ou comportamentos de grupos ou de uma coletividade, podendo corresponder aos próprios costumes 12 . A dificuldade de definir e circunscrever o estudo da ação moral se encontra sobretudo no fato de que as diversas ações humanas, das mais rudimentares às mais tecnocráticas, se misturam à ação moral. Exercem- se atos morais quando se elegem prioridades pessoais de vida, quando se é solidário com quem necessita, quando se auxilia outrem por companheirismo numa atividade profissional... donde as ações morais permearem a presença do homem onde quer que se projete a personalidade humana. Daí poder-se falar em ética na ação política, em ética do profissional, em ética na ecologia... Os canais de realização de ações morais também são os mais diversos possíveis, uma vez que estas se exercem seja através do discurso, seja através de gestos, seja através de escrito, seja através de atitudes (fazer ou não fazer), seja através de procederes... donde as ações morais contaminarem as diversas formas de manifestação humana. Disso resulta a dificuldade de se diferir o que é o conteúdo da atividade (atividade laboral, atividade política...) desenvolvida e o que é o conteúdo de ciência. Como ciência, a ética procura extrairdos fatos morais os princípios gerais a eles aplicáveis" (Nalini, Ética geral e profissional, 1999, p. 34). 12 "Aristote est le premier philosophe à avoir fait de l'éthos un concept philosophique à part entiere, donnant lieu à une étude spécifique (pragmateia) de la vertu éthique, c'est- à-dire de la vertu du caractere. Le caractere désigne une disposition acquise par 1'habitude de la partie désiderante de l'âme, intermédiaire entre la partie végétative et la partie rationnelle. Le terme éthos n' a pas été inventé par Aristote; ille recueille au contraire d'une longue tradition et lui dorme encare dans de nombreux textes les divers sens de cette tradition. C' est ainsi qu' éthos peut siguifier le tempérament naturel d'une spece animale ou d'un individu, mais aussi la maniere habituelle d'être et de se comporter; quant au pluriel êthê, il désigne les moeurs d'un individu, d'une spece, d'un peuple, d'une cité. Toutes ces siguifications renvoient au même registre de l'habitude sans qu'il soit toujours possible de décider si celle-ci est la manifestation de la nature ou le résulta de l' education et de la costume. Mais ce que révelent ces ambigüités, c'est qu'au IVe. siecle l' éthos estmoins un concept rigoureux qu'une notion surdéterminée par des jugements de valeur, cristalisant des polémiques ou s' entremêlent des enjeux pédagogiques, politiques et moraux" (Vemieres, Éthique et politique chez Aristote: physis, êthos nomos, 1995, Introduction, V). 14 moralidade do ato (atitude ético-profissional, atitude ético-política...). Um bom critério para distinguir a ação moral das demais é considerar que a ética tem que ver com a solução de conflitos intrasubjetivos e intersubjetivos 13 . Tomado o sujeito de si para consigo, e, ao mesmo tempo, de si perante outrem, os conflitos surgidos dessas duas esferas podem ser gerenciados eticamente. Apesar de acertado, esse critério não é suficiente para se dizer que se está diante de um critério final, capaz de definir com exatidão os lindes da matéria. Se isso pode ser aceito, então dever-se-á concluir que a ética, tendo por objeto de estudo a ação humana, encontra-se entre os saberes de maior importância, seja para a compreensão do homem em si, seja para a compreensão da sociedade e de seus fenômenos. BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica: ética geral e profissional. 2ª. ed. São Paulo; Saraiva: 2004. III ESTUDO E PRÁTICA DA ÉTICA Desde já, feitas estas observações primordiais, e tendo-se em vista o que ficou estabelecido acima, há que se distinguir a ética como saber da ética como prática. O saber ético incumbe-se de estudar a ação humana, e já se procurou dar uma mostra da complexidade do assunto. E, esc1areça-se, enquanto se está aqui a dissertar sobre ética, se está a falar sobre o comportamento humano tomado em sua acepção mais ampla, a saber, como realização exterior (exterioridade), como intenção espiritual (intencionalidade), como conjunto de resultados úteis e práticos (finalidade; utilidade). Esta 13 Esta é a posição teórica de Guisán, lntroducción a la ética, 1995, p. 28. Ou ainda: "De modo más o menos provisional se podría decir, pues, que una norma es moral cuando trata de sol ventar conflictos relativos a intereses intrasubjetivos o intersubjetivos en colisión" (p. 29). é uma faceta da ética, ou seja, a sua faceta investigativa 14 . A ética como prática consiste na atuação concreta e conjugada da vontade e da razão, de cuja interação se extraem resultados que se corporificam por diversas formas. Se as ações humanas são dotadas de intencionalidade e finalidade, releva-se sobretudo a aferição prática da concordância entre atos exteriores e intenções. A realização mecânica de atos exteriores pelo homem deve estar em pertinente afinidade com a atitude interna, de modo que, da consciência à ação, exista uma pequena diferença de consumação. No fundo, a ação externa, modificativa do mundo (ação discursiva, ação profissional, ação política... ), nada mais é que a ultimação de um programa intencional preexistente à própria ação; o programa ético é o correspondente guia da ação moral. Então, a prática ética deve representar a conjugação de atitudes permanentes de vida, em que se construam, interior e exteriormente, atitudes gerenciadas pela razão e administradas perante os sentidos e os apetites. Assim, fala-se no bom governo da coisa pública quando não somente de intenções se constrói o espaço público. Diz-se que a prática de condução das políticas públicas é ética se se realizaram atitudes positivas e reais em prol da coisa pública. Também se fala em bom proceder quando se constata não somente uma mínima intenção de não lesar, mas sim um esforço efetivo no sentido de conter toda e qualquer conduta capaz de suscitar a mínima lesão ao patrimônio espiritual, material, intelectual e afetivo de outrem. Esta é a outra faceta da ética; trata-se do conteúdo efetivo da ética como ocorrência individual e social. Do exposto, deve-se extrair que a especulação ética corresponderá ao estudo dos padrões de comportamento, das formas de comportamento, das modalidades de ação ética, dos possíveis valores em jogo para a escolha ética. Esse saber, que metodologicamente se constrói para 14 Posso afirmar que a Ética teórica procura estudar as idéias, linhas e formas de pensar que se relacionam à natureza abstrata e imaterial do que nos é revelado nos fenômenos éticos. Por estas paragens do conhecimento a Ética teórica e a Filosofia caminham juntas; confundindo-se muitas vezes como um único campo do saber" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 52). 15 satisfazer à necessidade de compreensão de seu objeto, acaba se tornando uma grande contribuição como forma de esclarecimento ao homem de suas próprias capacidades habituais. Há que se dizer que existem autores que se detêm em conceituar o saber ético como o saber que se incumbe de conhecer a retidão da conduta humana, priorizando como objeto do saber ético o comportamento virtuoso. Há outros que assinalam a virtude como o núcleo das preocupações éticas de estudo. Porém, com base no que se disse, essas definições são insuficientes para descrever a totalidade das preocupações éticas 15 . Assim, o saber ético não é o estudo das virtudes, ou o estudo do bem, mas o saber acerca das ações e dos hábitos humanos, e, portanto, das virtudes e dos vícios humanos 16 , e das habilidades para lidar com umas e com outros. É sim o estudo do bem e do mal, deitando-se sobre a questão de como distingui-los e de como exercitar-se para desenvolver suas faculdades anímicas para administrá-los. Ademais, a especulação ética permite a crítica dos valores e dos costumes na medida em que estuda e compreende fatos e comportamentos valorativos 17 ; então, possui tendência natural a imiscuir- 15 O estudo empreendido por Adam Smith, em seu tratado de moral, por exemplo, se detém não somente na análise das virtudes, mas aponta claramente e distingue e discute... a questão dos vícios, do que é desejável, do que é repugnante moralmente. Esse pensador, certamente, empreende um estudo mais completo do problema. 16 Sobre o vício e a virtude e suas relações com a moralidade e os costumes: "Conforme a tradição, o que chamamos virtudes são as idéias ou razões morais positivas que nos trazem os melhores resultados. Os vícios são os portadores dos insucessos e dos resultados negativos. Enquanto atuo, seja de acordo com virtudes ou vícios, procedoeticamente. Mas, e aí vem o fundamento da explicação, se os costumes (mores) indicam a prática da virtude, e eu pratico o vício, eu estou agindo contra a moral, mas, a rigor, não estou agindo contra a Ética mas contra as regras que me são recomendadas pelos conhecimentos trazidos pela Ética" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 67). 17 "A Ética não é em si mesma um código, nem um conjunto de regras e nem é só o estudo do comportamento ou de suas regras, normas e leis. É um campo de conhecimentos em que, à medida que avançamos, são feitas descrições, constatações, hipóteses, indagações e comprovações. É possível encontrar leis, enunciados e respostas se na própria moral social e distingue-se por fortalecê-la, em função dos vínculos científico e crítico que com ela mantém 18 . Então, a ética investigativa acaba possuindo forte papel de participação social 19 . Outra distinção de relevo quando se está a discutir essa temática é aquela que procura delinear o que com grande confusão é normalmente tratado: o que seja moral e o que seja ética. A moral é o conteúdo da especulação ética, pois se trata do conjunto de hábitos e prescrições de uma sociedade 20 ; é a partir de experiências conjunturais e contextuais que surgem os preceitos e máximas morais 21 . A ética constitui-se num saber verossímeis e verdadeiras. O objeto da Ética é o estudo dos fenômenos éticos. Isso implica ordenação de pressupostos, ordenamento de idéias, linhas e formas de pensar, e, mais que tudo, sistematização da observação e dos conhecimentos, o que quer dizer métodos de trabalho. "A palavra costume tem origem latina, no vocábulo consuetudine. Traduz a idéia de procedimento, comportamento. Em sociedade, conforme suas características, o vocábulo costumes quer significar, genericamente, regras escritas ou não, que regulam procedimentos, rituais e ritos, aceitos e praticados pela referida comunidade" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 114). 18 "La ética, como reflexión crítica sobre la moral, tiene que tender a fortalecer la moral, explicitando el objetivo último de las normas morales existentes, y a fortalecerse ella misma, aI propio tiempo, alimentandose deI sustrato que comparte con la moral positiva: la raíz de la que en principio ambas brotan y en virtud de la cual se justifican" (Guisán, Introducción a la ética, 1995, p. 34). 19 "A Ética estuda as relações entre o indivíduo e o contexto em que está situado. Ou seja, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta. Procura enunciar e explicar as regras, normas, leis e princípios que regem os fenômenos éticos. São fenômenos éticos todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o indivíduo e o seu contexto" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 1). 20 "A moral é objeto da Ética. Mas a relação que se estabelece entre a Ética, um dos capítulos da teoria da conduta e a moralidade positiva, como fato cultural, é a mesma que pode ser encontrada entre uma doutrina científica e seu objeto" (Nalini, Ética geral e profissional, 1999, p. 73). 21 "Moral é o que se refere aos usos, costumes, hábitos e habitualidades. De uma certa forma, ambos os vocábulos se referem a duas idéias diferentes, mas relacionadas entre si: os costumes dizem respeito aos fatos vividos, ao que é sensível e registrado no acervo do grupo social como prática habitual. A idéia contida na moral é a relação abstrata que comanda e dirige o fato, o ato, a ação ou o procedimento. A moral explica e é explicada pelos costumes. A moral pretende enunciar as regras, normas e leis que regem, causam e determinam os costumes, inclusive, muitas vezes, anunciando-lhes as conseqüências" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 115). 16 especulativo acerca da moral, e que, portanto, parte desta mesma para se constituir e elaborar suas críticas. Ainda que seja válido, útil e didático propor esta diferenciação, é mister informar que a ética não pode se desvincular da moralidade, pois esse é seu instrumental de avaliação, mensuração, discussão e crítica 22 . A ética deve, com suas contribuições, tender a fortalecer ainda mais a moral, e isso porque de seus juízos, proposições, sentenças e afirmações científicas podem resultar aperfeiçoamentos práticos substanciais para o que efetivamente se pensa e se faz quotidianamente 23 . E não é excessivo dizer que, feitas essas distinções, deve-se perceber que a interação do saber ético com a prática ética deve ser intensa. Isso porque a ética demanda mais que puro discurso, mais que teoria, pois requer prática. Em outras palavras, pode-se saber muito sobre ética, mas o verdadeiro valor da ética não está nesses conhecimentos acumulados, mas no uso aplicativo sobre atos e comportamentos que deles se possa fazer. Aquele que muito conhece e pouco pratica em ética não pode ser chamado prudente ou virtuoso (phrónimos) pelo simples fato de conhecer 24 . A advertência é importante, e sua apresentação só vem a 22 "La ética no debe ser confundida con la moral, como ya se ha indicado aI comienzo de este libro, pero tampoco puede permanecer desligada de la moralidad positiva, de la que debe partir para corregirla y modificarIa" (Guisán, Introducción a la ética, 1995, p. 316). 23 "La ética, como reflexión crítica sobre la moral, tiene que tender a fortalecer la moral, explicitando el objetivo último de las normas morales existentes, y a fortalecerse ella misma, aI propio tiempo, alimentandos e deI sustrato que comparte con la moral positiva: la raíz de la que en principio ambas brotan y en virtud de la cual se justifican" (p. 34). 24 A observação é aristotélica, e para melhor compreender a matéria dever-se-ão retomar alguns conceitos fundamentais da ética aristotélica. Falar de ética significa falar da razão prática, ou seja, daquela parte do raciocínio que delibera para orientar a ação. A razão prática está relacionada com a capacidade humana de delinear sobre meios e fins na realização de suas atividades. O conceito de razão prática se opõe ao conceito de razão teórica, uma vez que esta se incumbe da reflexão e da especulação, não redundando em reflexos diretos sobre a ação. O que se há de assinalar é o fato de que o estudo da ética consiste num saber que se verte para a prática, isto é, depende fortemente da prática para subsistir. Mais que isso, como diz Aristóteles, com ênfase no livro X da Ethica Nicomachea, a ética não se contenta com o puro conhecimento. Para reforçar o intuito de distinção entre saber ético e prática ética, motivo deste item. 2.1. A ética e os conceitos vagos O terreno da ética é pantanoso, sobretudo se considerado sob o ponto de vista da ciência. De fato, os conceitos discutidos pela ética são normalmente sujeitos à ambigüidade, à polissemia, à vaguidão, enfim, à valoração. Os conceitos fluidos e indetermináveis de modo único e absoluto são o núcleo dos estudos éticos. Então, como é possível um saber preciso sobre ética, se sujeito a tanto relativismo conceitual? Somente se pode admitir sua existência se se admite que é parte das ciências humanas e vive de perto a variedade dos aspectos humanos contidos nos valores subjetivos e sociais. Dessa forma, admitindo-se um estatuto próprio à ética como saber, que, deve-se dizer, não se submete ao caráter purista e preciso das ciências causais (ciências exatas e biológicas), pode-se discutir valores éticos com uma margem de imprecisão admissível, tolerada, previsível e contida pelo sistema. Ora, essa folga nas amarrasde funcionamento dos sistemas éticos é a própria característica que confere vitalidade às idéias por eles expostas. Um sistema ético inflexível é mostra de impermeabilidade na discussão dos valores, que são, por natureza, variáveis, histórico- culturais, parcialmente relativos e passíveis de discussão. Então, a ética teórica não vive com dilemas por ter como objeto de estudo conceitos fluidos e palavras de difícil determinação semântica. A ética convive com eles como parte integrante de suas preocupações, pesquisando mesmo sua variabilidade como algo inerente ao valor. Essa flexibilidade ao admitir idéias sobre ética é o que permite espaço para o desabrochar de novas éticas; é a folga do sistema para que nele penetrem as inovações e a ele sejam incorporadas as aquisições mais recentes no campo ético. maiores esclarecimentos, consulte-se Bittar, A justiça em Aristóteles, 1999. 17 Grife-se, ainda, que a inflexibilidade somente poderia prejudicar a prosperidade das idéias éticas e conspurcar a finalidade da teoria ética. Ela não foi feita para esmagar a liberdade e a prática da ética, mas para auxiliar e orientar a ação ética. Não se pode inverter funções: a teoria é o apêndice da prática ética, e não o contrário. A teoria ética é o acessório, quando a prática ética é o principal, o fim de toda formulação teórica ética. Assim, todo estudo ou norma ética tem como fim a prática, e não a teoria ética. O espaço dos conceitos fluidos e indetermináveis (bom, justo, correto, bem comum, virtude, boa conduta...) é justamente o espaço necessário para que os indivíduos, ante a ação e a prática, deliberem com liberdade (caso a caso; conforme suas histórias de vida; conforme o meio; conforme seus padrões morais...) o que é bom e o que é mau, o que é justo e o que é injusto, o que é correto e o que é incorreto. Enfim, na ação mora o fim de toda ética. 2.2. Ética: ciência ou filosofia? A ética é ciência ou filosofia? Em verdade, pode-se dizer que é filosofia, filosofia prática, que tem por conteúdo o agir humano 25 . Isso porque se trata de um saber especulativo, voltado para a crítica conceitual 26 e valorativa. Se o saber filosófico instaura a dúvida e a crítica, renunciando a pretensões mais diretamente engajadas na resolução de questões imediatamente necessárias e prementes, então é nesse solo que deve se situar a especulação ético-conceitual. A ética firma-se em solo filosófico como forma de fortalecimento das construções e deveres morais hauridos 25 Ao defini-la de forma contrastante com a da grande parte dos atuais debatedores do tema, está, naturalmente, definindo nitidamente postura singular em meio a vozes abalizadas na matéria: "Também não é verdade que a Ética seja parcela da Filosofia especulativa, elaborada acientificamente e sem preocupação com a realidade moral humana. E ainda que as questões éticas tenham sido sempre estudadas pelos filósofos, hoje elas adquiriram autonomia científica" (Nalini, Ética geral e profissional, 1999, p. 72). 26 "A ética não trata de todo o objeto cogitável em geral, mas somente da ação humana ou dos valores éticos" (Morente, Fundamentos de filosofia: lições preliminares, 1980, p. 32). ao longo do tempo pela experiência. Seu cunho especulativo não a permite ser senão um grande jogo especulativo, característica central do saber filosófico 27. Não chega a se especificar e a se delinear como um saber particular sobre um objeto de conhecimento. Defini-la como uma ciência normativa seria por demais restrito pela amplitude das discussões que abarca 28. Seus quadrantes são tão abrangentes quanto as pretensões filosóficas que envolve. Os saberes científicos, pelo contrário, encontram maior precisão na delimitação de suas estreitas fronteiras de estudo. A ciência não seria capaz de dar conta de um objeto tamanhamente complexo, como o é o objeto da especulação ética 29. Sua complexidade se deve à ilimitação de seu conteúdo, uma vez que a ação humana vive em profundo movimento espaço-temporal e cultural, acompanhando as vitórias e as desditas humanas nesse plano. Circunscrever esse objeto de estudo para se tomar uma indagação científica é o mesmo que compromissá-lo indevidamente com o campo das indagações delimitadas e rigoristas. A abertura da especulação filosófica comporta sim o tipo de indagação e preocupação que se procura assinalar como éticas, de modo que se deve concluir, não obstante alguns autores advogarem a idéia da autonomia científica da ética, ser essa uma parte do território de estudos filosóficos, seu local de assento, seu berço natural. 27 Assim: "A Ética, como filosofia moral, é o ramo da filosofia que estuda e avalia a conduta e o caráter humanos à vista dos conhecimentos, das tradições, dos usos e dos costumes" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 99). 28 "A ética é uma disciplina normativa, não por criar normas, mas por descobri-las e elucidá-las. Mostrando às pessoas os valores e princípios que devem nortear sua existência, a Ética aprimora e desenvolve seu sentido moral e influencia a conduta" (Nalini, Ética geral e profissional, 1999, p. 35). 29 "O problema do valor do homem como ser que age, ou melhor, como o único ser que se conduz, põe-se de maneira tal que a ciência se mostra incapaz de resolvê-lo. Este problema que a ciência exige, mas não resolve, chama-se problema ético, e marca momento culminante em toda verdadeira filosofia, que não pode deixar de exercer uma função teleológica, no sentido do aperfeiçoamento moral da humanidade e na determinação essencial do valor do bem, quer para o indivíduo quer para a sociedade" (Reale, Filosofia do direito, 1999, p. 35). 18 Se é parte da filosofia, então, necessariamente, liga-se à filosofia prática, ou seja, aquela que tem por principal foco de estudos a ação humana 30. Ou seja, a atenção, ao se estudar ética, recai sobre questões de cunho prático e dirigido na realidade quotidiana de sucessão das efemérides e ocorrências que dependem da vontade e da intervenção humana para acontecerem. Essa especulação dirigida à atuação humana se chama filosofia prática 31. 2.3. A reflexão ético-filosófica como prática da liberdade As práticas filosóficas não se conciliam com propostas distanciadas da produção de determinados efeitos. Práticas filosóficas que caminham para o idealismo absoluto, ou mesmo para estreitos corredores acessíveis somente a filósofos, iniciados e eruditos, são práticas alienadoras das mentalidades, na medida em que colaboram para o distanciamento do filósofo da sociedade. É com Gramsci que se pode dizer que todo o exercício filosófico (que parte das filosofias e das reflexões filosóficas) tende a colaborar com o processo de formação do bom senso (que ocorre quando as filosofias são apropriadas pelas massas), fazendo-se um exercício humanístico imprescindível para a renovação dos valores sociais. De fato: "Mas por que surge o Bom Senso? Afastemos a idéia de que ele poderia resultar de uma irradiação espontânea e gratuita da filosofia. Ele nasce e se desenvolve para preencher uma função. Essa função, inclusive, é concebida por Gramsci em termos de uma exigência quase ética: 'deve- 30 Então, Reale divide a filosofia em três ramos de preocupações: teoria do conhecimento (lógica e ontognoseologia); teoria dos valores ou axiologia (ética,estética, filosofia da religião, filosofia política, filosofia econômica etc.); metafísica (Filosofia do direito, 1999, p. 39). 31 "A filosofia prática, já o dissemos, tem por fim definir o bem do homem. Por isto é possível colocar-se num duplo ponto de vista: do ponto de vista do fazer, isto é, da obra a produzir (arte em geral e artes do belo em particular), objeto da filosofia da arte, ou do ponto de vista do agir, isto é, da ação a realizar, o que constitui o objeto da moral" (Jolivet, Curso de filosofia, 1990, p. 24). se' difundir a filosofia de uma época, transformá-la em Bom Senso" 32 . Então, sem dúvida alguma, a filosofia possui um importante e destacado papel de exercer livremente o pensamento, e, no campo da reflexão ético- filosófica, fazê-lo em completo (até onde possível) descompromisso com a moral social, com os valores majoritários ou com os interesses morais de uma classe social. A reflexão ético-filosófica pode mesmo significar, segundo essa linha de raciocínio, uma prática da rebeldia, na medida em que se inscreve como recurso de acusação da hipocrisia moral, com os fetiches e recalques axiológicos protetores de certos interesses de classe, da falsa moralidade e dos moralismos alardeados como padrões de conduta. Ora, é a filosofia um exercício de liberdade de pensamento, rigorosa somente quanto aos seus próprios fundamentos e às suas próprias coerências metodológicas, de modo a produzir-se como exercício legitimamente possível na medida em que desenvolve um olhar sensível e crítico às práticas éticas e às moralidades cotidianas da(s) sociedade(s). Para que esse exercício se faça em completa autonomia não significa que seja necessário o isolamento do filósofo eticista, muito menos que a filosofia se acantone em suas discussões. Pelo contrário, é extremamente salutar que todo esse exercício seja feito na companhia de outros saberes que com ela são convidados a pensar as questões axiológicas, comportamentais e as regras de conduta: a psicologia, como saber voltado para as características mais intimistas da personalidade humana; a antropologia, como saber devotado ao estudo dos comportamentos grupais, da organização e das práticas sociais; a sociologia e a história, como saberes capazes de colaborar com o desenvolvimento da capacidade crítica de avaliação de comportamentos e práticas contextualizados no tempo e no espaço etc. A atitude, portanto, da filosofia ética é a de compreensão e avaliação crítico-reflexiva da ação humana (individual ou coletiva). O compromisso do filósofo eticista está na ênfase dada à pergunta, ao 32 Debrun, Gramsci: filosofia, política e bom senso, 2001, p. 172. 19 questionamento, provocando o abalo de estruturas axiológicas por vezes secularmente assentadas, e não na ênfase impositiva, qual a atitude do moralista, que julga, acusa e impõe, que prescreve e dita regras e valores, que se auto-arroga a posição de detentor de "verdades morais". Trata-se de uma questão de método, mas também de enfoque, algo que parece determinante para que a filosofia seja respeitada como exercício de liberdade. 2.4. Divisões da ética A ética, como saber filosófico, pode ser dividida, seguindo uma determinada orientação conceitual, em dois grandes ramos: a ética normativa e a metaética. Enquanto a ética normativa se detém no estudo histórico-filosófico ou conceitual da moralidade, ou seja, das normas morais espalhadas pela sociedade, praticadas ou não, a metaética se propõe a ser uma investigação do tipo epistemológico, ou seja, uma avaliação das condições de possibilidade de qualquer estudo ou proposta teórica ética 33 . Se a ética normativa estuda as normas sociais 34 , se detendo sobre a moralidade positiva, a metaética estuda e avalia a ética normativa. Há que se dizer que a ética normativa abre espaço para a discussão das diversas correntes de pensamento acerca da ética, e, nesse sentido, é o que permite o estudo histórico-filosófico da ética (ética socrática, ética 33 A metaética é o estudo crítico dos sistemas éticos: "Igual que la ética normativa supone una reflexión acerca de las normas morales existentes (moralidad positiva), la metaética implica una reflexión sobre los sistemas éticos existentes (moralidad crítica)" (Guisán, Introducción a la ética, 1995, p. 43). 34 "No campo da Ética filosófica encontramos a Ética normativa e a Ética especulativa. A Ética normativa é mais do que prescrever regras e leis, pois procura enunciar as normas que assegurem e satisfaçam a autoridade do que deve ser, para que a sociedade atinja seus objetivos. Apóia-se em razões morais decorrentes dos costumes e também racionais empíricas, louvando-se em experiências anteriores" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 105). platônica...) 35 . Pode-se, então, identificar as principais correntes de pensamento ético como constituindo grandes grupamentos de estudo da ética normativa, a saber: 1) as éticas normativas teleológicas (eudemonistas e hedonistas), para as quais a noção primordial é a de que a ética deve conduzir a um fim natural, ou à felicidade, ou ao bem-estar, ou à utilidade geral... (Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Hume, Bentham, Stuart Mill...) 36 ; 2) as éticas normativas deontológicas, para as quais a noção primordial é a da necessária e imperativa obediência ética pela consciência do dever e da responsabilidade, individual ou Social... (cristianismo, ética kantiana, ética do contrato social...) 37 . Não obstante se poder assim dividir as dimensões filosóficas ético-normativas, nunca é demais dizer que os grupamentos não sufocam a independência lógica, conceitual, e muito menos as peculiaridades, de cada proposta filosófica. Outra distinção importantíssima a ser feita é aquela que divide a ética em dois grandes ramos: a ética geral e a ética aplicada. A primeira deter-se-ia na análise e no estudo das normas sociais, aquelas que atingem a toda a coletividade, e que possui lineamentos os mais 35 Também chamada ética especulativa: "A Ética especulativa procura encontrar, com a sistematização dos dados conhecidos, as razões últimas (teleológicas) ou razões primeiras (deontológicas), por meio das quais possa quantificar e avaliar os fenômenos éticos, atribuindo-lhes juízos de valor moral, ou seja, de valor segundo os costumes" (Korte, Iniciação à ética, 1999, p. 105). 36 "Es común distinguir, dentro de las éticas teleológicas que proponen como meta el bienestar humano, las eudemonistas (que sólo tomarían en consideración los placeres más o menos intelectuales o espirituales) y las hedonistas (de hedoné, placer en griego), que tendrían como objecto la persecución de placeres más materiales" (Guisán, lntroducción a la ética, 1995, p. 37). 37 "La diferencia esencial entre las éticas teleológicas y las deontológicas o de principios, es que rnientras las primeras exigen un fin más o menos natural a perseguir por la razón humana, fin que presenta las características de ser bueno prudencialmente y bueno éticamente, en las segundas lo que importa es obrar conforme a deberes (déon = deber en griego) exigidos por la existencia de principios y dictados por la razón pura, como la ética kantiana, y derechos (naturales y/o fundamentales) o principios producidos mediante consenso o contrato por los humanos (aunque en este último caso podría darse un importante acercarniento a las éticas teleológicas o de fines)" (Guisán, lntroducción a la ética, 1995, p. 38-39).
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