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O caso dos exploradores de

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O caso dos exploradores de caverna[i] é um estudo fictício proposto pelo jusfilósofo Lon L. Fuller (1902—1978) para ensinar as principais linhas de pensamentos jurisprudenciais em voga no final dos anos 1940 nos Estados Unidos. Mais de meio século depois, essa alegoria continua atual e atravessa as fronteiras dos sistemas jurídicos. O caso, além de ilustrar as diferentes escolas de jurisprudência, estimula a reflexão crítica em julgamento de casos difíceis, impasses éticos e conflitos interpretativos da lei.
Fuller teria inspirado sua alegoria, além das referências à literatura, em dois casos: US v. Holmes (1842) e Regina v. Dudley e Stephens (1884) de naufrágios seguidos de homicídio e canibalismo. Curiosamente, em boa parte das jurisdições ocidentais o canibalismo não é tipificando, sendo os réus indiciados de homicídio ou violação do cadáver, mas não condenados por comer carne humana.
Um resumo desse artigo, publicado como livro no Brasil (Porto Alegre, Fabris, 1976, tradução de Faraco de Azevedo), segue adiante. O original pode ser lido em inglês aqui.
 O CASO
Um colapso de terra prende cinco espeleólogos (exploradores de caverna). Depois de contatar a superfície por rádio, descobrem que levarão dez dias para resgatá-los. Porém, em dez dias os espeleólogos amadores estarão mortos de inanição.
Depois de os médicos relutantemente responder-lhes que sobreviveriam se matassem e comessem algum de seus colegas, os espeleólogos tiram a sorte para saber quem seria a vítima. Quando consultaram um médico, um oficial do governo e um ministro religioso sobre o dilema, ninguém lhes deu resposta. Desligam o rádio e prosseguem no jogo voraz. E o azarado chama-se Roger Whetmore.
O caso é julgado no ano 4300 no país fictício da Comunidade de Newgarth[ii]. Segundo as leis penais dos Estatutos da Comunidade de Newgarth, N.C.S.A seção 12-A  “Alguém que deliberadamente tirar a vida de outro será punido com a morte”.
Com base nessa norma, os quatro exploradores são julgados e condenados à morte por homicídio depois de serem resgatados.
O JULGAMENTO
Os condenados recorreram da sentença ao Tribunal Supremo de Newgarth. Os cinco juízes dessa corte expuseram as justificativas de seus votos conforme diferentes escolas de pensamento jurídico. Começando pelo presidente do Tribunal Supremo, Truepenny, os votos são os seguintes:
Ministro Truepenny
Depois do relatório, Truepenny defende a aplicação estrita da letra da lei. Se a corte inferior pronunciou um julgamento de que não era justo o fez sob o texto legal. Os réus realizaram a conduta típica de deliberadamente matar um dentre eles, mesmo que com a concordância da vítima de tirar a sorte. Seu voto é a condenação. Entretanto, convida seus colegas a subscreverem a um pedido de indulto a ser decidido discricionariamente pelo Chefe do Executivo do Estado.
Ministro Foster
O voto de Truepenny chocou o ministro Foster. Foster argumenta que as leis postas se fundamentam no direito natural e que as situações extremas excluíram o comportamento dos réus da esfera da lei positiva, análogo à legítima defesa. Sob a perspectiva jusnaturalista, o direito a vida sobrepõe as leis de Newgarth. Adicionalmente, se o Estado esteve disposto a sacrificar dez vidas para salvar outras (morreram dez pessoas durante o resgate), o mesmo Estado deveria aceitar o direito de viver desses quatros. Propõe uma teoria do propósito da lei para interpretação do tipo penal. Seu voto é pela absolvição dos acusados.
Ministro Tatting
Em seu voto, Tatting discorda de Foster, pois o direito natural preconiza a liberdade de contrato. Todavia, um contrato não torna legítimo o homicídio. Questiona quando e como os cinco passaram da sociedade civil ao estado de natureza, para fazer-se valer das leis do direito natural. Reconhece mas recusa aplicar a analogia de legítima defesa, pois houve deliberação dos atos. Todavia, considera a teoria do propósito da interpretação legal como válida, porém haveria vários propósitos morais em conflito. Apontando que o Tribunal Supremo de Newgarth fora criado por lei positiva, não haveria competência para decidir sobre o direito natural. Em seu voto, absteve-se.
Ministro Keen
Seu voto afirma que indulto compete ao Chefe do Executivo, não ao judiciário. Também, não competia decidir a moralidade das ações dos réus, mas a lei positiva. Uma vez legislada, a lei deve ser cumprida, sem questionar sua moralidade. Rejeita o ativismo judicial ou interpretações arbitrárias, pois resultaram em guerra civil. Recusa a teoria de propósito da norma, pois o juiz é incompetente para escrutinar a intenção do legislador. Compete ao poder legislativo julgar a moralidade de uma lei proposta, não ao judiciário. Além disso, legítima defesa aplica-se somente em resistência à ameaça de agressão para proteger sua própria vida. Portanto, não é análogo ao caso em julgamento. Seu voto é de manter a condenação.
Ministro Handy
Handy condenou as picuinhas legalistas, alegando que deveriam julgar conforme a opinião popular. E uma enquete revelava o apoio da maioria da população para deixá-los com uma punição menor. O ministro lembrou que as relações humanas são governadas não por teorias, mas por outras pessoas. Uma decisão é imprópria se não considerar o sentimento do povo, detentores da soberania do poder legal. A teoria jurídica e as normas serviriam somente para facilitar a comunicação dos argumentos aplicáveis em um caso, mas não deveriam ser elas próprias as determinantes de um caso. Para Handy, o caso era para ser julgado segundo a realidade humana. Seu voto foi para absolvê-los.
CONCLUSÃO
Com a votação do Tribunal Supremo empatada, a sentença condenatória de primeira instância foi mantida. Os condenados foram enforcados.
SUMÁRIO
	MINISTRO
	PERSPECTIVA JURISPRUDENCIAL
	VOTO
	Truepenny
	Positivismo
	Condenação
	Foster
	Jusnaturalismo
	Absolvição
	Tatting
	Lacuna legal tanto no direito positivo quanto no direito natural
	Abstenção
	Keen
	Positivismo
	Condenação
	Handy
	Realismo jurídico
	Absolvição
ANÁLISE
A alegoria da caverna de Fuller representa as nuances de diversas formas de raciocínio jurídico. Assumir uma estrita interpretação legal, como o parecer de Truepenny, fundamentada em um pressuposto de validade somente de leis positivadas, é um risco ao sistema como um todo. Por outro lado, a interpretação ampla proporcionada pelo propósito da lei, como argumenta Foster, poderia ameaçar o sistema jurídico como um todo e reduzir a lei do Estado a um casuísmo. Tatting aponta as dificuldades que o caso aponta sob uma perspectiva estritamente jurídica — quer naturalista ou positivista —, mas Keen insiste em um positivismo kelseniano de fazer-se obedecer a lei, sem interferir nas competências de outros poderes (por exemplos, pedir o indulto ao Chefe do Executivo, ou inferir interpretações e propósitos do legislador). Por fim, Handy apela para o próprio fundamento social das leis: foram feitas para cumprir a vontade geral do povo. Com essas diferentes perspectivas em jogo, Fuller deixa ao leitor a possibilidade de formar sua própria opinião jurídica para esse caso difícil, utilizando recursos já amplamente discutidos pela hermenêutica e pela filosofia do Direito.
NOTAS
[i] Fuller, Lon L ‘The Case of the Speluncean Explorers’ (1949) 62(4) Harvard Law Review 616. pp. 616-645
[ii] A data não é fortuita. Fuller escolheu 2.300 anos de diferença antes do presente em analogia ao apogeu da democracia grega, 2.300 anos antes de 1948.

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