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A filosofia de Kant destaca-se de todas as outras
pela obrigação que instituiu para todo pensamen
to ulterior de examinar seus própr ios princípios.
Corno pensar a or igem dos conhecimentos hu
manos sem se interrogar sobre os limites, nos
terrnos insubstituíveis da Crítica da razão pura?
Corno pensar ou contestar a consciéncia moral
sem se referir à presença, ern nós, da lei, que
Kant considera urn fato da razão? Corno explicar
o belo, os fins da humanidade ou os do individuo
sem lançar mão dessa faculdade de julgar cuja
especial sutileza Kant soube exprimir?
Este livro de síntese e de reflexão tem o mérito
de fornecer as chaves para a compreensão de
um pensamento indubitavelmente complexo, de
destacar campo por campo sua importância his
tórica precisa, de extrair tudo o que ele
conserva de vivo e até mesmo inexplorado
para o filósofo contemporâneo.
Olivier Dekens, doutor em filosofia, é professor
adjunto na Universidade de Tours. É autor de vá
rias obras sobre a história da filosofia moderna e
contemporânea.
{ www.loyola.com.h
Compreender
Olivier Dekens
Co mpreender
T radução
Paula Silva
Biblioteca Padre Vaz
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll/111
20101662
Compreender Kant
Edições Loyofa
r 
liTULO ()f{!GIN,\L.:
Co111pre11dre f...:a11t
(' Arrnand Col in 2003 
ISBN: 2-200-26426-7 sumário
PllU'.-\H.·\,\(I: ivlauricio B l eal
P1;11JET0 Gi;Arito: Ronaldo Hideo lnoue
Rrvis..\o: lVlaria de f :\lima Cavallaro
Nota bi bliog ráfica 7
J:l :·
I S I i>
201 01 662-1
Edições Loyola
R ua !822 n" 347 - l piranga 
0421 6-000 São Pa ulo SP
Caixa Postal 42.335 - 04218-970 São Paulo SP
® 11 1 ) 6914-1922
@.) ( l i) 6163-4275
Homc pagc e vendas: www loyola com br 
Editorial: !oyola(frloyola com br
Vendas: vcndas( ·loyola con1 br
liido.1 111·dir1.:ito.1· n·1·c11·ados Ne11/111111a f!ill"fC dc1w obro podi• 1·er
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011 tn111rn1itida Jllll' 111wlq11t•1 forma c/1111 1/ll(JÍ1·1111u· 111r.:io.1· (eh:rrri11ico 011
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1·iste111a m1 hw1co de dados l'l.'111 f!t..TllliHâlJ l!l'lTÍfil da Editora
ISBN: 97885* l 5*035236
(' EDIÇÕES LOYOLA. São Paulo. Brasi l. 2008
Introdução
A d isposição filosófica 9
Uma filosofia da filosofia 1O
A natureza filosófica 11
A herança kantiana 13
Capitulo 1
A d efinição ka ntia na da filosofia 15
Que é filosofia? 15
O dispositivo arquitetônico do pensamento kantiano 26
Capitulo li
A invenção do tra nscendental 33
O sentido de uma revolução na teoria do conhecimento 33
A estética. ou o a pnort dos sentidos 43
A analítica Conceitos. princípios subjetividade 47
A dialética, ou o desejo das idéias 70
Factum rat1on1
Capitulo Ili
O fato do dever 85
A moral como reflexão sobr e a consciência da obrigação 85
Os imperativos: o homem e seu dever 97
Da moral à religião. ou a religião moral 119
CAPÍTULO IV
O pri ncípio reflexivo 141
O lugar da reflexão 141
Do belo ao sublime: as faculdades em sua livre correspondência 148
Os fins da natureza 163
Os fins do homem 166
Capitulo V
O arqui pélago da política 171
Resistências do político 171
História e política 173
O direito e a racionalidade política 181
Política sensível e política racional: a necessidade da ação 189
Nota bibliográf ica
As obras de Kant são citadas segundo a paginação da edição de referência dita
"da Academia de Berlim" (abreviatura "AK" seguida do número do volume
em romano e a página)
Conclusão
O dever de filosofar 197
O filósofo e sua atualidade 198
A infância do pensamento 199
Bi bliog rafia 201
Índ ice 205
7
Introdução
A disposição filosófica
Há filósofos sobr e os quais nos per gun tamos às vezes por que sua obra
con tinua a influenciar, muito tempo depois de sua morte, o campo do
pensamen to A influência de um texto filosófico pode dever-se à sua qualidade
objetiva, à personalidade do homem que o engendrou, à ruptura que
introduziu no curso tranqüilo da história das idéias ou ainda ao momen to de
sua irrupção Quando se trata de Kant, uma questão assim parece desti tuída de
sentido, pois os seus escritos superam, em originalidade e força conceitual,
os escritos da maior parte de seus contemporâneos, bem como da maior
parte da produção filosó fica As razões do sucesso são aqui manifestas:
criatividade da obra, majestade do sistema, sutileza das análises - tudo
isto concorre para a excelência do propósi to Mais ainda: a filosofia de Kan
t parece condenar todo pensamento ulterior a um novo exame de seus
próprios princípios, tornados frágeis pelo sopro da crítica Como refletir
seriamente sobre a origem dos conhecimen tos humanos sem levantar a
questão de seus limites, nos pr óprios termos, insubsti tuíveis, da Crítica da
razão pura? Como fundar a consciência moral, mesmo que fosse para
contestá-la em seguida, sem evocar o que Kant chama de um fato da razão: a
presença em nós, misteriosa e incompreensível, da lei? Como dizer o belo, os
fins da humanidade ou os do individuo sem aplicar essa
9
Compreender A disposição filosófica
faculdade de julgar da qual Kan t soube, malgrado tudo o que se possa
censurar even tualmente em sua definição, exprimir a flexibilidade tão
particular? Há, pois, um antes e um depois de Kan t, e teremos ocasião de
mostrar em que essa revolução filosófica é sem dúvida uma revolução, para
além da invejável fortaleza em que a tradição situa, de bom grado, o kantismo
Uma filosofia da filosofia
Mas há mais ainda Para expressá-lo de modo simples, o pensamen to critico 
parece-nos dever ser definido como uma filoso fia da filoso fia Devemos nos 
en tender bem sobre esta fórmula, que poderia ser apenas um slogan Kan t 
não propõe, em nenhum caso, uma filosofia última, que reagruparia, 
unificando as, as tentativas anteriores, fornecendo-lhes desse modo a caução 
do sistema Kan t, como homem e como filósofo, não tem tais pretensões 
Mas não se trata tampouco de reduzir o pensamen to crí tico a uma longa 
interrogação so bre a iden tidade da filosofia, em que Kan t seria só um 
exemplo entre outros desse exercido habitual que consiste em perguntar "o 
que é a filosofia?" Esse estilo de prosa consti tui um verdadei ro gênero na 
história do pensamen to, que não gerou apenas obras-primas Dito de outro 
modo: se o criticismo é uma filosofia da filosofia, não é por se furtar ao 
trabalho da construção da fi losofia, mas porque inventa a própria forma de 
reflexividade que toda filosofia põe em andamento
Neste sentido, Kant, em cada um de seus escritos, faz duas coisas ao mes
mo tempo: de um lado, elabora, e muito bem, as condições de possibilidade do
conhecimen to, da moral ou do juízo estético (en tre outros); de outro, deter
mina, de modo casual, o próprio instrumento de seu pensamen to, aquilo que
deve em suma figurar no princípio de todo procedimento filosófico
A obra kantiana é, portanto, uma filosofia da filosofia por uma razão ain
da mais profunda, que se poderia expressar assim: o pensamento crítico pre
tende ser a elaboração de uma filosofia do homem como animal filosó fico.
Kant considera, com efeito, que há, no mais profundo do ser humano, um
desejo, uma tensão apon tando para o além da experiência, que seria ilusório
preten der controlar A natureza metafísica do espírito é um dado, ou antes,
uma disposição originária do pensamento, que a filosofia pode e deve
exprimir, mas que não é chamada a combater Kant vai mais longe Esta
tendência de pensar Deus, a liberdade, o mundo -esta orientação do
homem em direção
ao incondicionado -é justamente o que é preciso preservar e salvar, desem 
baraçando-a de seus aspectos mais contestáveis e de suas errâncias ilegitimas 
A crítica pode assim ser entendida como um dispositivo intelectual destinado aafirmar o direito a uma disposição do homem com relação à metafisica
O kantismo é, pois, uma filosofia da filosofia por sua letra -a
elaboração da reflexão como princípio de todo pensamento -e por sua
finalidade -sal var o filósofo natural que habita em todo homem Tal é, ao
menos, o sentido último das análises que gostaríamos de propor aqui, e o
de algumas observa ções que nos parece necessário acrescen tar a esta
breve apresentação, antes mesmo de en trarmos no cerne do corpus
kantiano
A natureza filosófica
Define-se comumente a crítica kan tiana como uma avaliação dos poder es da
razão, tan to teórica como prática 'Tra tar-se-ia, em suma, de determinar os
limites da razão cognoscente e o dever da razão agente Tudo isso é verdade 
E preciso acrescentar, primeiramen te, que esse procedimento não visa princi 
palmente a restringir as aspirações da razão, mas antes a guiá-la, a fim de que
ela manifeste seu valor, sua utilidade e sua vocação da maneira mais sólida e
mais legitima Kant constrói, pois, seu pensamen to como uma defesa e uma
ilustração da razão humana em seu destino fundamen tal Convém, pois, que
nos interroguemos brevemente sobre a natureza dessa faculdade
A razão kan tiana é, primeiramen te, o poder mais elevado do espirito, pelo
qual as regras do entendimen to -que organiza a experiência dos sentidos -
são conduzidas à unidade de um principio' Esta razão é, contudo, marcada 
por uma tendência mais essencial ainda: aspira ao infinito, ao além dos fenô 
menos, ao que Kant chama de Idéias Não é, pois, a arma triunfante de um 
espirito in teiramente senhor de si, mas a faculdade própria do homem, pela 
qual este se abre obscuramente àquilo que não pode verdadeiramente conhe 
cer: Deus e a liberdade. Na origem do projeto kantiano, acha-se assim uma 
potência inquieta, "curvada sob o peso de questões que não pode descartar"', 
que ela pr ópria produz, sabendo que não poderá responder a elas Se ela não 
é, como acabamos de ver, uma faculdade perfeitamente independente, não se
1 Cf Crítica da razão pura (doravante CRP), A 302/B 359
2 lbid . A Vil
10 11
Compreender A disposição filosófica
deve tampouco considerá-la um puro espaço de recepção daquilo que ultrapas
sa o saber A razão kantiana não é nem mística, nem submetida a uma fonte
exterior qualquer da experiência O trabalho crítico deve, assim, compreen
der-se como uma partilha entre uma boa receptividade da razão em relação a
certas Idéias ou em relação à lei moral e uma má receptividade da razão, que a
condena a perder sua autonomia consti tutiva
A razão kantiana está em semiliberdade Produtora de conceitos e capaz
de síntese, não é livre na escolha de suas questões Mais exatamen te: a
razão não é livre para buscar o que é verdadeiramente a finalidade do
homem, ou aquilo que existe além da experiência sensivel3 Como esta
nunca satisfaz sua aspiração ao absoluto, a razão é obrigada a ir além do
sensível Os conceitos que ela vai criar então -a alma, o mundo, Deus
-não são nunca o fruto de
um poder, mas o efeito de uma dependência interna da razão em relação a seus
próprios fins. A crítica nunca deverá reprimir ou desconsiderar essa aspiração
Deverá se contentar -mas a tarefa é talvez ainda mais difícil -em orientar a
tensão metafísica para seu domínio de aplicação legítima, isto é, em Kant, para
o domínio da moral
Kant qualifica de dialética tal tendência do espírito a superar os limites
do saber assegurado Existe aí, bem entendido, certo vicio em pretender co
nhecer o que não pode ser conhecido; mas tal vicio é virtude, na medida em
que essa louca pretensão dá ao filósofo a possibilidade de compreender que
uma outra relação com o além da experiência, distinta da ciência é, ao mesmo
tempo, possível e legítima, a da lei moral O trabalho aparentemen te negativo
da crítica teórica transforma a exigência da razão submetida a priori ao fogo
de questões que ela não escolheu em fon te fecunda de conceitos práticos que
encon tra todo o seu valor precisamente no fato de não provir da experiência
O criticismo não é um ceticismo Certamente, a razão vagueia fr eqüente
mente Mas tal errância é salutar, pois nos indica um espaço de pensamento, o
da prática, onde o filósofo vai construir o que é, para ele, o essencial. Condenar
a razão em nome da certeza cientifica atentaria contra seu direito mais funda
mental, o de pensar a liberdade e o dever Voltaremos a essa hierar quia dos
cam pos da razão, que vê a moral como verdadeiro objeto do pensamento
crítico
3 (f Profegõmenos a toda meta física futura que possa se apresentar conw ciência, AK IV,
351; P li, p 135: "É verdade, não podemos dar, fora de toda experiência possível_ um conceito
deter minado do que podern ser as coisas em si Mas não somos contudo livres, em face das
investi gações que as concernem, de delas nos abster completamente"
A herança kantiana
Filosofia da filosofia, filosofia do homem, filosofia da razão, o kantismo aparece
assim como um pensamento antes de mais nada preocupado em não quebrar
o grande impulso do espírito humano A recepção dada a Kant, desde seus pri
meiros leitores alemães, insistiu muito no caráter destruidor de sua obra, que
exclui, com efeito, todo conhecimento teórico de um objeto não-sensível Esse
juízo deve ser matizado à luz do que dissemos sobre os direitos da razão Kant é,
segundo sua própria terminologia, um pensador dos limites, mais que um pen
sador das fronteiras'; isso significa que ele não busca restringir o campo de apli
cação da razão, mas sim delimitar suas difer entes partes E é aqui que intervém
a faculdade cuja importância sublinhamos logo no início de nossa exposição: a
reflexão A crítica é o exercício pelo qual a reflexão determina a fronteira entre
os campos possíveis da racionalidade; tal levantamento do campo da reflexão
permite, in fine, à razão expressar sua natureza metafísica onde deve fazê-lo (a
moral), e fazê-la calar onde é preciso (a ciência) O kantismo não destrói, pois, a
razão clássica, unificante e soberana; ele a rompe, constituindo espaços de
especialização, cada um com suas regras próprias de funcionamento. A razão
prática pode se permitir o que é proibido à razão teórica; mais ainda: deve fazê-
lo
A leitura que propomos será a narrativa desse levantamento critico.
Tentaremos ver como a reflexão age, a cada vez, para conceder o devido lugar
à voz da razão, salvaguardando desse modo a disposição filosófica que Kant
detecta, em germe, em todo ser humano Atravessaremos sucessivamente
seus mo mentos essenciais: a crítica do poder da razão teórica; a de uma
razão prática que se dá na evidência de um fato, a consciência moral; enfim, a
de uma razão ainda mais hesitante, que busca, tateante, sinais de sua própria
presença no território da estética ou no da política Esse percurso estaria
incompleto sem uma análise mais aprofundada de algumas pistas que
acabamos de esboçar rapidamente; a definição kantiana da filosofia, a do
homem como ser metafísico e, enfim, a determinação original do conceito de
reflexão, tal como podemos encontrá-lo na Critica da faculdade de julgar
É, pois, por essas questões que começaremos Elaborá-las nos permitirá talvez
seguir, sem perigos excessivos, as sinuosidades do procedimento kantiano,
que constituem toda a força e - por que não dizê-lo? -todo o encanto
de seus escritos 
4 Esta distinção essencial é longamente elaborada nos Prolegômenos Cf AK V, 352; P !I,
p 136
12 13
Capítulo 1
A definição kantiana da
filosofia
Se nossa hipótese de lei tur a é correta -o kantismo é uma filosofia da
filoso fia -, os textos consagrados à definição da filosofia deveriam
naturalmente ser numerosos e impor tantes. Eles o são, o que facilita muito
o trabalho do intérpr ete Mas não nos enganemos Kant não determina
verdadeiramente a especificidade do trabalho da filosofia nas passagens que
lhe consagra As pá ginas, também numerosas e importantes, em que Kant
elabora sua doutrina do juízo, da reflexão ou do procedimento critico são bem
mais significativas a esse respeito, já que essas diferen tes noções estão no
principio de toda filoso fia, e não somente no de sua própria filosofia
Uue é filosofia?
Di to isto, é impor tan te ler um pouco mais aten tamen te alguns tex tos expli
citamen te destinados a determi nar os objetos da filosofia Kant põe ai em
andamen to a separação cr í tica , e expõe a organização de seu pensamen to, e
enuncia o resultado da aplicação da reflexão à totalidade dos objetos possí
veis de análise
15
Compreender
Os objetos da filosofia
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro é tirado da Teoria transcen
dental do método, que fecha a Critica da razão pura Kant define aí o conceito
de inter esse da r azão, isto é, as questões às quais a razão está condenada a
responder por seu próprio interesse A passagem é das mais célebres:
Todo interesse de minha razão (tan to especulativo como prático) concentra-se
nas três questões seguintes:
1ª Que posso conhecer?
2ª Que devo fazer?
3ª Que posso esperar'? 1
O segundo texto em que uma mesma tentativa de definição aparece é o 
da Lógica. Não se trata aqui propriamente de um texto de Kant, mas de ano 
tações feitas por ocasião do cutso de lógica que ele deu ao longo de sua vida 
de professor Kant r epete aí as três perguntas citadas, explicando que se trata 
não somente de determinar os fins da razão, mas também de delimitar o cam 
po da filosofia' Dito de outro modo: a Filosofia é um pensamento que tenta 
responder às questões que a razão se põe, ou antes, que ela é obrigada a se pôr 
Essa divisão tripartida do tr abalho da filosofia é cômoda, e Kant esforça-se por 
r espeitá-la cada vez que apresenta sua obra O que ela nos ensina?
As três perguntas não nos dizem o que é a filoso fia , mas aquilo de que ela
se ocupa Seu primeiro objeto, a resposta à per gun ta "Que posso conhecer?",
corr esponde, diz Kan t na Lógica , à metafisica Esta observação de Kant traz,
na verdade, pouco esclar ecimen to sobre a natureza exata do trabalho reque
rido. Pode-se, contudo, compr eender esta afirmação com base no que ele es
creve em outra parte sobre a metafísica, por exemplo nos Prolegômenos a toda
meta fisica futura: "a critica, e só ela, contém em si o plano total bem
examinado e provado, e mesmo todos os meios de execução que permitem
realizar a me tafisica como ciência"3 Em outros termos: a metafisica é a forma
exaustiva e detalhada da critica, considerada como a exposição das condições
de possibi lidade a prio1i e dos limites do conhecimento humano A Critica da
razão pura ,
1 CRP, A 805/B 833
2 Cf Lôgica. AK [X, 25; trad Guillermit, Paris, Vr in, 1969_ p 25
3 Prolegórnenos AK IV, 365; P li, p 152
16
A definição kantiana da filosofia
que faz o inven tário dessas condições, forma o esqueleto da metafísica, se
pelo menos nos con tentarmos com esta definição puramente teórica do
termo A separação entre um saber legítimo e uma pretensão ilegítima de
saber é a pri meira função da filosofia Essa separação torna necessária a
elaboração do que Kan t chama de transcenden tal, isto é, o conjunto das
condições de possibilida de do conhecimento, concei to em torno do qual se
organiza a primeira Critica.
Vol taremos a este ponto
A primeira questão concerne ao saber, à ciência, em suma, a tudo o que
Kant chama de teoria. A segunda é, por sua vez, exclusivamen te prática. O
que significa simplesmen te que se tra ta, para Kan t, de refletir sobr e a ação
e sobre a maneir a de conduzi-la Elaborar a ques tão "Que devo fazer?"
consis te, pois, em explici tar aquilo que se apresen ta à consciência como
obrigação moral A filosofia absolu tamen te não delibera mais aqui a respei
to da nat u reza de nosso saber; ela não é mais, nesse sentido, transcenden
tal, mas trata do que a razão prática deve ser enquan to faculdade moral Os
Fundamentos da metafisica dos costumes e a Crítica da razão prática
aplicam-se em responder a esta questão, que é, para Kant, a mais importan te
A última questão é muito mais difícil de compreender Retenhamos pro
visoriamente que Kan t, ao respondê-la, determina o que o homem pode es
perar de uma vida conduzida segundo o respeito à lei moral Essa questão
vem, pois, logicamente na seqüência da segunda e concerne, muito direta
men te, como diz a Lógica , à religião Isso não significa que os textos que
I<ant consagra à religião - principalmen te A religião nos limites da
simples razão
-respondam à questão Pode-se até dizer que é bastan te delicado atribuir
a uma única obra a tarefa de respondê-la Digamos simplesmente, e ainda 
provisoriamen te, que a cada vez que Kan t se in terroga sobre a finalidade 
do homem como ser moral e ten ta estabelecer que gênero de felicidade 
um ho mem virtuoso tem o direito de esperar ele responde a essa terceira 
questão E é a este titulo que a Critica da faculdade de julgar , mas também 
numerosas passagens da Critica da razão prática corr espondem a esse 
objetivo
A filosofia kantiana -e 2 filosofia em geral -deve abordar sucessiva
mente o problema dos limites do conhecimen to, o do dever e, enfim, o das
esperanças legítimas de todo homem Tal programa de trabalho pode fazer
pensar que a filosofia se reduz, no fundo, a um conjunto sistemático de conhe
cimentos que um estudan te consciencioso poderia assimilar progressivamen
te Kant não se atém naturalmente a esta concepção escolar da filosofia, que
ele qualifica até mesmo de escolástica Acrescenta, pois, um pouco adiante,
17
Compreender A definição kantiana da filosofia
Os objetos da filosofia que faz o inventário dessas condições, forma o esqueleto da metafisica, se 
pelo menos nos con tentarmos com esta definição puramente teórica do 
termo A
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro é tirado da Teoria transcen
dental do método, que fecha a Critica da razão pura. Kant define ai o
conceito de in teresse da razão, isto é, as questões às quais a razão está
condenada a responder por seu próprio in teresse A passagem é das mais
célebres:
Iodo in teresse de minha razão (tanto especulativo con10 prático) concentra se
nas três questões seguin tes:
1ª l1ue posso conhecer?
2ª Que devo fazer'?
3ª Que posso esperar'?1
O segundo texto em que uma mesma tentativa de definição aparece é o
da Lógica Não se trata aqui propriamente de um texto de Kant, mas de ano
tações feitas por ocasião do curso de lógica que ele deu ao longo de sua vida
de professor Kant repete ai as três pergun tas citadas, explicando que se trata
não somente de determi nar os fins da razão, mas também de delimitar o cam
po da filosofia' Dito de outro modo: a Filosofia é um pensamen to que ten ta
responder às questões que a razão se põe, ou an tes, que ela é obrigada a se pôr
Essa divisão tripartida do trabalho da filosofia é cômoda, e Kan t esforça-se
pm respeitá-la cada vez que apresenta sua obra. O que ela nos ensina?
As três pergun tas não nos dizem o que é a filoso fia , mas aquilo de que
ela se ocupa. Seu primeiro objeto, a resposta à pergun ta "Que posso
conhecer?", corresponde, diz Kant na Lógica , à metafísica Esta observação
de Kant traz, na verdade, pouco esclarecimen to sobre a natureza exata do
trabalho reque rido Pode-se, contudo, compr eender esta afirmação com base
no que ele es creve em outra parte sobre a metafisica, por exemplo nos
Prolegômenos a toda metafisica fiitura: "a cri tica, e só ela, contém em si o
plano total bem examinado e provado, e mesmo todos os meios de execução
que permitem realizar a me tafísica como ciência"3 Em outros termos: a
metafísica é a forma exaustiva e detalhada da critica, considerada como a
exposição das condições de possibi lidade a priori e dos limites do
conhecimento humano A Critica da razão pura ,
1 CRP. A 805/B 833
2 (f Lógica. AK IX. 25; trad Guillei mit, Paris, Vrin. 1969.p 25
3 Prolegôrnenos, AK !V 365; P II_ p 152
separação entre um saber legitimo e uma pretensão ilegítima de saber é a pri
meira função da filosofia Essa separação torna necessária a elaboração do que
Kan t chama de transcenden tal, isto é, o conjun to das condições de
possibilida de do conhecimento, concei to em torno do qual se organiza a
primeira Critica. Voltaremos a este pon to
A primeira questão concerne ao saber, à ciência, em suma, a tudo o que
Kan t chama de teoria A segunda é, por sua vez , exclusivamen te pr ática. O
que significa simplesmen te que se trata, para Kan t, de refletir sobr e a ação
e sobre a maneira de conduzi-la Elaborar a questão "Que devo fazer?"
consis te, pois, em explici tar aquilo que se apresen ta à consciência como
obrigação moral. A filosofia absolu tamen te não delibera mais aqui a respei
to da natu reza de nosso saber; ela não é mais, nesse sentido, transcenden
tal, mas trata do que a razão prática deve ser enquan to faculdade moral Os
Fund amentos da meta fisica dos costumes e a Critica da razão prática
aplicam-se em responder a esta questão, que é, para Kant, a mais importan
te
A última questão é muito mais difícil de compreender Retenhamos pro
visoriamen te que Kan t, ao respondê-la, deter mina o que o homem pode es
perar de uma vida conduzida segundo o respeito à lei moral Essa questão
vem, pois, logicamente na seqüência da segunda e concerne, muito direta
mente, como diz a Lógica , à religião Isso não significa que os textos que
Kant consagra à religião - principalmen te A religião nos limites da
simples razão
- respondam à questão Pode-se até dizer que é bastante delicado
atribuir a uma única obra a tarefa de respondê-la Digamos simplesmente, e
ainda provisoriamente, que a cada vez que Kan t se i n terroga sobre a
finalidade do homem como ser moral e tenta estabelecer que gênero de
felicidade um ho mem virtuoso tem o direi to de esperar ele responde a essa
terceira questão. E é a este titulo que a Crítica da (acuidade de julgar, mas
também numerosas passagens da Critica da razão prática correspondem a
esse objetivo
A filosofia kan tiana -e a filosofia em geral -deve abordar
sucessiva men te o problema dos limi tes do conhecimento, o do dever e,
enfim, o das esperanças legi timas de todo homem Tal programa de
trabalho pode fazer pensar que a filosofia se reduz, no fundo, a um
conjunto sistemático de conhe cimentos que um estudan te consciencioso
poderia assirnilar progressivamen te Kant não se atém naturalmen te a esta
concepção escolar da filosofia, que ele qualifica até mesmo de escolástica
Acr escen ta, pois, um pouco adiante,
16 17
Compreender A definição kantiana da filosofia
na teoria transcenden tal do método, que a filosofia não é uma disciplina que 
se domine ou que se possua, mas urn exercício, sempre iecon1eçado, o exer 
cício de uma razão crítica, desconfiada de tudo, principalmen te de si mesma 
(2.ue ensinamen to ex trai r disso para o nosso propósito? Simplesmen te 
que a esséncia da filosofia está em uma aplicação, mais que em seus 
objetos, e que defini tivamen te a elaboração das condições de possibilidade 
do trabalho filosófico consti tui u n1a defin ição ben1 rnelhor de sua na tureza
que o enu n
ciado de seus campos de aplicação Isso significa concretamen te também que
a partilha cri tica que fu nda a divisão ele filosofia em trés questões repousa
numa experiência da filosofia mais original, aquela que a Crítica da faculdade
de )1iiga1 " desenvolve longamen te
A filosofia como antropologia
O tex to da Lógica con tém urna quarta questão, ausen te da Crítica da
razão pura: "O que é o homem?" I(ant não se contenta em acrescen tar um
objeto de estudo ao catálogo dos ternas possiveis de reflexão Sublinha logo, em
uma observação cheia de conseqüências: "no fundo, poder-se-ia pôr tudo isso
na con ta da an tropologia, porque as trés questões se repor tam à última"' A
filo sofia não seria, no fundo, senão uma forma de an tropologia An tes de
tentar compreende, por que Kan t afirma isso, observemos simplesmen te que
esta tese só faz formular claramen te o que havíamos assinalado desde a
introdu ção: a filosofia kan tiana como defesa da na tureza metafisica do
homem é ne cessariamente, ao mesmo tempo, uma filosofia da filosofia e uma
filosofia do homern, indlssociáveis entre si Dizer o que é o homem e definir a
filosofia procedem de um só e único esforço de concei tuação do desejo de
metafísica que anima u:n e ou t10
A relação entre filosofia e antropologia não é simples de estabelecer no
tex to kan tiano Kan t não diz somen te que a reflexão sobre o homem unifica
e resume a metafísica, a moral e a religião Afirma, precisa1nen te, que há no
homem uma certa disposição par a a finalidade que preside à própria filosofia,
4 Isto será objeto de de1nonstração no capít ulo seguinte A respeito desse pon to, subs ctevemos
as análises de Aléxis PH!LONENKO em sua introdução da Critica da faculdade de julgar Paris. 
Vrin. 1993, p 11
5 L ôgica , AK IX, 24; trad Gui!!ern1i t, p 25
defi nida como a "ciéncia da relação de todo con hecimen to e de todo uso da
razão para o fi m últi mo da razào h u mana"' Responder à questão do homem
consiste em elucidar, em seu fundarnen to, essa disposição particular do seI
humano, explici tando o princí pio das três primeiras questões, organizando-se
o conjun to em torno do conceito de fim A na tureza filosófica é a condição de
possibilidade da filosofia sob todas as suas formas: descrever o homem resul
ta , pois, em mostrar por q ue e como há filosofia
Para designar essa aptidão par ticular do hornem e1n relação ao que o
transcende, Kan t emprega o belo termo "cultura"7 Essa qualidade propria
men te humana confere ao homem toda a sua dignidade e o torna digno de
respei to Ela é o que permi te a todo sujei to dar-se fins, objetivos, pri ncipies
e obrigações; mas é também, em Kan t, sinônimo de uma certa receptividade
às Idéias ou, de modo mais geral, ao que transcende a experiência sensivel
Reten hamos simplesmen te aqui alguns índices da presença da cultura
nas descrições que Kan t nos dá do homem No campo teórico, vi mos que o
homem tende na turalmen te ao absoluto: é, literalmen te, mais forte que ele
No campo moral. as coisas se apresen tam um pouco diversamente: mas I<an t
fala de novo de uma "cultura da razão' º para designar a aptidão para escutar a
exigéncia da lei moral, malgrado sua severidade e a i nfelicidade a que parece
condenar o individuo Dá-se o mesmo no ca1npo estético: não é possível, diz
I(an t, sentir alguma coisa como o sublime, na arte ou na nat ureza, sem ser a
1ni11ilna receptivo ao que ultrapassa a nat uieza O homem kan tiano, nessas
diferen tes figuras, manifesta, pois, uma racionalidade 1narcada por uma forrna
de passividade, de abertura ao infi ni to Se a filosofia kan tiana é uma antro
pologia, e se toda filosofia deve sê-lo, seria, pois, por esta única razão: há no
coração do homen1, como no coração do pensamen to, um só e inesmo desejo
das Idéias Resta com preender agora aquilo a que conjun tamen te tendem o
homem e a filosofia A junção ou a quase iden tificação en tre a cultura, a filo
sofia, a metafisica e a humanidade poderá então ser feita, e nosso percurso do
pensamen to kan tiano se desen rolar, sem que percamos de vista essa singular
conf usão de in teresses en tre o homem e sua razão
6 lbid
7 Cf C ritica da faculdade de ;ulgar (doravan te CFJ). AK V, 265; P li, p 
1036 3 F undanientos da met afísica dos costumes. AI< IV .396; P li. p 
254
18 19
Compreender A definição kantiana da filosofia
Os fins do homem Locke Para sim plificar, pode-se dizer que a fundação da ciência obtida por sua
definição como unidade entre a sensibilidade e os conceitos do entendimento é
Num texto curto, publicado no outono de 1786 - Que é orientar-se no
pensalnento? -, Kan t formula, ainda mais claramen te que na c·ritica da razão pura ,
o principio que fundamenta sua concepção do homem e da metafisica Escreve
que o espírito tem o direito de ultrapassar os estritos limites do conhecimento
teórico, ou seja, os da experiência sensível, para se aventurar no espaço imenso
do supra-sensivel A crí tica, nesse sentido, deve preservar "o direito da neces
sidade da razão, corno principio subjetivo"!l A razão kan tiana não é razoável,
tende sempre a ultrapassar os limites de seu uso teórico legítimo Ao mesmo
teinpo, como é justamente no espaço do supra-sensivel que se acha seu in ter es
se fundamental, quer dizer, aqui a lei moral, convém consolidar essa tendência
orien tando-a corretamen te A filosofia crí tica pode então ser definida como
uma jurisdição do direito da necessidade da razão, que o con trola e o r eafirma,
ao mesmo tempo T rata-se simplesmen te de preservar os in teresses da razão,
que seu mau uso ou um ceticismo muito vi rulen to poderiam pôr em perigo
Esses interesses, dissemos, são de três tipos. A preocu pação epistemoló 
gica, a preocupação moral e a questão da finalidade do individuo e da humani 
dade são os três ca1npos em que a razão vai buscar seu in teresse Este é, a cada 
vez, diferen te É do interesse da razão não pretender conhecera supra-sensível 
no campo teórico: é de seu in teresse, ao contrário, não u tilizar a sensibilidade 
na elaboração do dever moral Mas o pensamento kan tiano, como filosofia 
sistemática, não pode se con ten tar em enumerar esses diversos in teresses 
Irá esforçar-se para organizar sua arqui tetura, distinguindo o que é essencial 
à razão do que, e1n defini tivo, é só um meio a serviço de u1n fim mais elevado 
É talvez nesta singular hierarquia das diferen tes facetas de racionalidade que 
reside a originalidade do kan tismo
Salvar a liberdade
A celebridade bem compreensível da Crítica da mzão pura e uma longa tradição
da i n terpretação fizeram do pensamento critico uma filosofia do conhecimento,
preocu pada, antes de mais nada, ein fundar a ciência, como tentara1n fazê-lo,
antes dela, os racionalismos do século XVII ou as teorias empiristas nascidas d e
9 Que é orientar-<;e no pensamenro?_ AK Vl!l. 137; P II, p 534
um efeito secundário do empreendimento kan tiano. Kant salva os fenômenos,
determina precisamente a condição de seu saber, elabora os limites insuperáveis
de todo conhecimen to cien tifico ludo isso é verdade Con tudo, não é esse o ob
jetivo primeiro da tarefa da crítica Salvar a ciência só tem significado, para Kant,
se esse procedimen to permite salvar a liberdade e a metafísica como disposição
na tural do homem Os tex tos são, quan to a esse pon to, ele grande clareza, mais
ainda, talvez, na segunda edição da Crítica da razão pura que na primeira
O pr efácio da segunda edição esforça-se para esclarecer o estatuto do tex
to que apresen ta I(an t escreve aí, especialmen te, e esta frase é da mais alta
i111portância:
U nia crítica que restringe a razão especulativa é segu ra1nen te negat iva nisso,
mas ao suprimi r, assim, ao n1esmo tempo. utn obstáculo gue restringe o uso
prático, ou ameaça mesmo aniquilá-lo_ ela ê, de fato, de urna uti lidade positiva
e muito i mportan te, desde que se esteja convencido de que há um uso prá tico
absoluta men te necessário da razão pura (o uso moral)lll
Este trecho exige duas observações. Primeiro, a cri tica supõe como um
fato indubi tável a existência de um in teresse prátic:n da razão l(an t não de
monstra por que a moral é vital; ele o afirma como um dado incon testável E m
segundo l ugar, o obstáculo que se trata de destruir é a negação da liberdade,
que resultaria da extensão ao supra-sensível das leis da causalidade que con
vêm aos fenômenos sensiveis Quebrando o impulso da Iazão teórica em suas
pretensões de con hecer o supra-sensivel, a cri tica abre um espaço para a razão
prática, que não é mais um espaço de conhecimen to cientifico, mas um espaço
de pensamen to e de ação Tal delimitação não é, em nenhum caso, uma mar
ca de ceticismo ou um procedimen to repressivo Kan t precisa: é tão absurdo
considerar que a crítica não traz nada de positivo quan to dizer que a polícia é
inútil sob o pretexto de que ela restringe a violência individual"
A lógica do argumen to kan tiano pode facilmen te ser reconstruida a partir
do segundo prefácio Interessa à razão reconstruir uma moral; ora, toda moral
supõe que a liberdade seja possível; é preciso, pois, que a critica da razão es-
10 CRP. B XXV
11 lbid
20 21
Compreender A definição kantiana da filosofia
pecula tiva não torne con tradi tório o conceito de liberdade Mostrando que as
leis da física, principalmen te a lei da causalidade necessária, só se aplicarn
aos fenómenos sensíveis, Kan t torna pelo menos pensável uma liberdade,
delas escapando Ele não pretende ter uma in tuição dessa liberdade; menos
ainda um conhecimen to cien tífico; con tenta-se em afirmar que a idéia da
liberdade é compatível com a de um m u ndo. Em outros termos: a crítica da
razão pura per m ite à disposição metafísica que constitui o ser h umano
manifestar-se legi ti mamen te num campo de pensamen to não submetido
às condições do saber cien tifico Com o estabelecimento dos limi tes deste,
abre-se um universo, um espaço de liberdade, de dever, um lugar também
para que a idéia de Deus não seja mais uma quimera ou conceito vazio de
uma teologia pretensiosa
O problema prático da filosofia
A função da primeira crítica é, antes de mais nada, propedêu tica Além do in
teresse próprio das teses propostas, essa obra deve, pois, ser avaliada em vista
do que pretende realizar Kan t é muito claro nesse pon to:
rodos os preparativos da razão, no tra balho que se pode chamar de filosofia pura,
são, pois, na realidade, dirigidos aos três problemas em questão Mas estes têm,
por sua vez, um fim mais distan te: saber o que é preci so fazer, se a von tade é
livre, se Deus existe e se existe un1a vida futura 12
A critica teórica assegura os direitos da necessidade da razão -a que
põe a questão de Deus, da liberdade e da imor talidade da alma -para que o
fim moral da filosofia possa ser considerado O kan tismo, antes mesmo que
entre rnos no imenso edifício da pri1neira c·rítica, deve sempre ser i n
terpretado à luz desses objetivos reivindicados Kan t, aliás, esforça-se, no
fim do tex to, para esclarecer seu propósito, in troduzindo considerações de
inoral cuja função ini ciahnen te n2o pode ser vista, n urna reflexão sobre os
limi tes do saber13 ·Trata se antes de inspirar o texto da obra, reorien tando
seu leitor para o verdadeiro in teresse de Kan t, que é o de todo homem: estar
certo de ser livre, para que a própria idéia do dever tenha um sentido
É nesse espiri ta que é preciso compreender as palavras famosas do se
gundo prefácio: "Devia, pois, suprimi r o saber, para encon trar um lugar para a
f( 14 Suprimir o saber consiste em demonstrar a ilegitimidade de um conheci
men to que pre tendesse ul trapassar a experiência; encontrar u1n lugar para a fé
significa resti tuir à moral o espaço deixado vazio pelo dogmatismo moribundo
dos racionalisrnos não-criticas Niais concretamen te ainda: a crítica da r azão
pura penni te suprimir as ilusões e os erros do espí ri to que pudessem levar
toda 1netafisica à mesma depreciação
A prilnazia concedida à prática não é o fato de u ma simples hierarquiza
ção dos problemas da filosofia Ela apóia-se em uma determ inação da razão
como faculdade capaz de tudo, do melhor como do pior: a crí tica é só a
sepa ração entre uma metafísica legítima, quer dizer, a inoral, e uma
metafísica da ilusão, que pre tende conhecer, quando se tra ta só de pensar
Crítica e metafísica
Retomemos O pensamen to kantiano é uma filosofia ela filosofia, na medida 
em que elucida e explicitaa disposição metafísica que fundamen ta e provoca 
toda investigação filosófica É, ao mesmo tempo, uma filosofia cio homem, 
pois esta mesma disposição é constitutiva da humanidade Kan t chama de 
necessidade da razão tal tendência do espírito humano a pensar além do que os
sen tidos nos permi tem conhecer O projeto kan tiano pode, então, ser 
compreendido como uma jurisdição da necessidade da razão: trata-se de 
afirmar o direito da razão estabelecendo os li1ni tes de seu uso legítiino no 
carnpo teórico, para melhor as segurar seu direi to no campo prático A 
separação crí tica consiste en1distinguir uma utilização repreensível da razão, 
a que pretende conhecer objetos não sus cetíveis de ser e;.,,-. peri!nen tados 
pelos sentidos, de sua utilização necessária, a que põe os fundamentos da 
moral sem recorrer aos dados da sensibilidade
O itinerário argumen tativo da primeira Crítica pode igualmen te ser re
construído a partir cio próprio concei to ele metafisica Kan t parece, com efeito,
fazer um uso imoderado desse termo, concedendo-lhe uma espan tosa pluri
vociclade Para dizer de modo mais simples: a filosofia kan tiana quer reconhe
cer a importância da rnetafisica con10 disposição natural da razão; para tanto,
deve mostrar por que a 111etafisica con10 conhecilnento teórico do supra-sens
fvel é
12 A 800/B 828
13 Cf A 806/B 8:34 14 B XXX
22 23
Compreender A definição kantiana da filosofia
i mpossível; deve, em seguida, indicar e1n que consiste a 1netafísica co1no ciên
cia , quer dizei; como conjunto sistemático das condições de possibilidade do
conhe cimento; ela pode, enfim, em toda a sua necessidade e em todo o seu
valor, pensar a metafísica como doutrina da liberdade. É verdadeiramen te
impossível compreender a crí tica sem esclarecer uma terminologia que Kant
emprega de modo muito desordenado e fr eqüen temen te surpreendente
Convém estudar em detalhe cada um dos sentidos possíveis do termo
A metafísica como d1spos1ção natural da razão
Desde Os sonhos de um visionário , Kan t declara-se um apaixonado pela
metafi sica, mesmo se ela mui tas vezes não lhe manifesta estima15 A Critica da
razão pura diz isso de maneir a mui to mais explicita: a metafisica é, antes de
mais nada, uma tendência ineren te ao espírito humano, que não pode se
satisfazer só com a experiência sensível e inevitavelmen te afirma no mundo
supra-sen sível os conceitos de que a razão tem necessidade, em virtude de
sua própria
natureza Na determinação desta disposição, Kant oscila entre o elogio e o
opróbrio: ora ela é a filha querida da razão, um "germe originário sabiamen te
organizado em vista de grandes fins"16; ora ela é essa dialética inevi tável da
razão que finalmen te a conduz a se enganar Mas, em todos os casos, a metafí
sica deve ser protegida, n1ais que destruida O ho1nem nunca renunciará a ela,
como não renuncia a respirar17 mais ainda, ela tem como vocação completar a
cultur a da razão, conduzindo-a a seu verdadeiro destino
A metafísica como conhecimento teónco do supra-
sensível
Essa 1netafisica é, inicialmente, caracterizada como transcendental e raciocinan
te Ela é o fato dos pensadores que não souberam perceber os limites reais do co
nhecimento humano, e que pretendem poder conhecer teoricamen te o que não
corresponde a nenhuma experiência sensível É o efeito perverso da metafisica
como disposição natural, que contribui para desacreditá-la pelos absurdos aos
quais inevitavelmente conduz Nesse sentido, é uma "pseudociência
sofistica"rn, uma tagarelice dogmática insuportável que não repousa em
nada de sólido Kant desqualifica aqui a quase totalidade de seus
predecessores, ao menos no campo da filosofia alemã, ao menos aquela que
acreditou poder abster -se de uma reflexão sobre os limites de nosso saber
Pode-se e deve-se pensar Deus, a alma, a liberdade: mas pretender conhecê-
los esbarra na impostura
A metafísica como ciência
No primeiro sentido, a metafisica é uma disposição; no segundo, é um erro
Kan t não exclui que ela possa ser qualificada de ciência, mas é obrigado, para
demonstrá-lo, a adaptar sensivelmen te sua própria definição inicial da me
tafisica Não se trata mais aqui de uma tendência ao supra-sensivel; não se
trata tampouco de ir além da experiência, mas de compreender o que a torna
possível A metafísica como ciência conserva o gosto do universal e da neces
sidade, que justifica que se persista em chamá-la assim Mas a universalidade
em questão é interpretada como o índice do caráter a priori das condições de
experiência. Um conhecimento teórico absolu tamen te certo e universal é
pas sivei desde que se conten te em estabelecer o sistema completo das
condições de possibilidade do conhecimento teórico. A metafisica é então
uma ciência
dos limites da razão humana e contém todos os princípios puros da razão 19
No fundo, é idên tica à filosofia transcendental em seu conjunto
A metafísica como doutrma da liberdade
Esta quar ta acepção do termo não é incompatível com a terceira
Corresponde, antes, a uma especialização da metafisica como ciência Esta,
com efeito, pode conter todos os princípios puros da razão, que se referem
ao conhecimen to
teórico das coisas; mas pode também con ter "os princípios que determinam
a priori e tornam necessário o fazer e o não fazer" 2º Kant chama este ramo de
metafisica de metafisica dos costumes Pode-se considerar, con tudo, que ele
15 Sonhos de um visionârio. AK II. 36 7; P l. p 585
16 Prolegômenos a toda rnetafí-sica futura, AK l i, 353; P l i, p 
137
17 lbid . AK 367: P II. p 154
16 lbid , AI(. 366: P li, p 152
19 Cf CRP. A 841/B 870: P !, p 1391
20 lbid
24 25
;
Com preender A definição kantiana da filosofia
consti tui um campo em si, pois sua possibilidade só é estabelecida urna vez 
posto o sistema da filosofia transcenden tal. Sem crí tica da razão teórica -
propedêutica à 1netafísica como ciência -, a liberdade não é sequer conside 
rável, e o conceito de dever é destituído de significação Parece en tão que este
último sentido do termo seja o mais impor tante, se recordamos que para Kan t 
a filosofia afinal é uma doutrina da liberdade
O dispositivo a rq uitetônico
do pensamento kantiano
A disposição metafísica na qual reside a essência da filosofia, bem como a da 
hu manidade, só está salva e confirmada em seus direitos pela divisão crí tica 
A Crítica da razão pura dela participa, evidentemen te, estabelecendo explici 
ta mente limi tes ao uso teórico da razão, liberando um espaço novo por seu 
uso prá tico Mas a Crítica da faculdade de 1ulgar elabora de modo mais 
completo ainda o modus operandi dessa divisão do campo filosófico: de um 
lado, deter minando as fron teiras de cada campo da razão, de outro definindo o
agen te de tal recorte terri torial, a reflexão O kan tismo é uma filosofia da 
filosofia como jurisdição do desejo metafísico; mas o é também como 
filosofia da reflexão, instrumen to originário de toda construção sistemática e 
de todo pensamen to preocu pado em respeitar a geografia d a realid ade
Cartografia filosófica
O percurso gue nos propusemos aqui - uma leitura das duas i n
troduções da Crítica da faculdade de julgar -só terá como objeto
compreender melhor o princípio arquitetônico do pensamen to kan tiano A
análise das duas primeiras Críticas , que descrevem a população concei tua! do
campo teórico e do campo prá tico, será assim preparada pela elucidação da
distinção en tre teoria e prá tica A cronologia das obras, que vê a Crítica da
faculdade de julgar concluir em parte o empreendimen to kan tiano, deve, pois,
ser derrubada em favor de uma ordem lógica: compr eender primeiro como
Kant estabelece a cartografia do pensamen to; refletir em seguida sobre as
características e os limi tes do ca1n po teórico; analisar, enfim, os fundamentos
morais do campo prático, aquele para o qual tudo é defini tivamente
empreendidoA estética, a história e a polí tica
se inscreverão em último lugar nos espaços deixados vazios, ou na relação pro 
blemática dos dois primeiros campos
As duas in troduções à terceira Critica têm como objetivo determinar as
diferen tes legislações que organ izam o espaço da filosofia. O objeto de tal
car tografia é estabelecer o mais firmemen te possível dois campos distintos,
em função dos conceitos que são, num e nou tro caso, determinan tes, a fim de
tor nar desejável a existência do juizo como termo mediador O texto
essencial a respeito disso acha-se na segunda in trodução, na sessão in ti tulada
justamente "Do campo da filosofia em gerar Kan t propõe ai um léxico mui to
útil para a cornpreensão geral de seu pensamen to: seu principio consiste em
distinguir diferen tes maneiras, para um concei to, de estar em relação com
uma faculdade do espiri ta: ou seja, sucessivamen te:
1 "Concei tos, na rnedida em que são reportados a objetos, sem considerar se
uni conheci n1ento deles é possível ou não, possuem seu campo ··210 campo
cobre assin1 a totalidade do inundo sensível, mas tan1bém o supra-sensível,
onde nenhum conheci mento é possível
2 "A parte desse can1po na qual é passivei, para nós, u1n conhecimento é um
terreno para os conceitos e para a faculdade de conhecer requerida para
tan to '·21 O ter reno corresponde ao conjun to dos fenômenos suscetiveis de
ser experin1en tados, pois, para Ka n t, nenh u m conhecirnen to além
deles
pode ser considerado
3 '·A parte do terreno na qual esses concei tos legislam é o can1po ,,,'., I\.ant passa
aqui do conhecimento à legislação Concre tamen te, isso significa que, no ter
reno da experiência, dois tipos de legislação coabitam: o do en tendimento que
consti tui as leis da na tu reza e o da r azão que elabora as leis da liberdade
O entendimento e a razão são duas faculdades inteiramen te distin tas,
con tudo igualmen te legisladoras no terreno da experiência Quando o enten
dimen to está no poder, estamos no campo da nat ureza e do conhecimento
teórico; quando a razão tem força de lei, estamos no campo da liber dade e,
pois, da prática Dito de outro modo: a Critica da razão pura é o código jurídico
do en tendimento cognoscen te; a Crítica da razão prática é o da razão agente
21 C rttica da faculdade de julgar, 1-\K V 174; P li. p 92 7
22 l bid
23 lbid
26 27
Compreender A definição kantiana da filosofia
Essas duas legislações coexistem no terreno da experiência Con tudo -e
é dai que Kan t tira o sentido da palavra "campo" -, "existe um abismo imen
so en tre o carnpo do conceito da natureza, enquanto sensivel, e o campo do
conceito de liberdade, enquanto supra-sensivel"24 A legislação do en tendimento
concerne à experiência e repousa sobre a experiência A legislação da razão con
cerne també1n à experiência -trata-se do agir concretamente -mas repousa
por definição no além da experiência, não sendo concebivel em outra par te a
liberdade A terceira Crítica tem, pois, como único objeto preencher esse abismo,
não por simples preocupação com a unidade sistemática, mas an tes porque "o
concei to de liberdade tem o dever de tornar efetivo, no mundo sensível, o fim
imposto pot suas leis"" Desse dever de influência Kant conclui pela necessi
dade de pensar a natureza de tal sorte que ela concorde com a possibilidade dos
fins postos pela liberdade Não se pode afirmar mais claramente o primado da
prática, que já evocamos acima Se se reconstitui o conjunto do procedimento:
nhuma contradição no procedimento de Kant: assinala somente que é preciso
talve buscar em outra parte o verdadeiro pon to de passagem entre os campos
da ctenoa e da moral, da natureza e da liberdade, um lugar que se encontraria
no fundamen to da teleologia como da estética A reflexão, que é a base co
mum das duas manifestações possíveis da faculdade de julgar, é sem dúvida
o principal ator da organização do espaço filosófico É ela quem estabelece os
limi tes dos diferentes campos; é ela quem assinala a cada conceito o espaço de
seu uso legítimo; é ela quem ten ta organizar as pon tes e as passar elas entre as
diversas zonas de influência do en tendimento e da razão. Retornaremos, bem
en tendido, a esse problema quando lermos em detalhes os desenvolvimentos
de Crítica da faculdade de julgar Lembremos aqui apenas aquilo que, no texto
das introduções, pode ajudar-nos a compreender o conjun to da obra de Kant: 0
papel primordial da reflexão na organização do espaço filosófico
1 A Filosofia como cartografia delimi ta dois campos. de tal sorte que toda pas 
sagem parece excluída
2 O primado da prática impõe, con tudo, que a moral tenha uma in íluência 
real
no n1undo da experiência sensível
3 Esse mundo deve, pois, ser concebido para se acei tar em si o exercido da
liberdade
A faculdade de julgar é precisamen te a insistência de tal unidade final dos
campos e dos poderes do espiri ta E a terceira Crítica, a simples descrição dos
diferen tes meios utilizados par a alcançar esse objetivo
A filosofia critica pode ser concebida como um vasto trabalho de organi
zação do terri tório Importa, pois, saber um pouco mais precisamente o que o
texto que acabamos de comen tar nos permi te entender -a quem
efetivamen te cabe tal missão As duas i n troduções não são sempre claras
quan to a esse pon to Ora Kant parece atribuir ao juízo teleológico -
aquele que postula a organização finalizada da natureza -a tarefa de
unificação dos campos, ora o juizo estético -que estatui sobre a beleza e a
feiúra da arte ou da natureza -é considerado o verdadeiro tema da passagem,
dado que exprime a livre relação en tre as diferentes faculdades do espíri to
Essa dupla tendência não indica ne-
Geofilosofia
Posição da disposição metafísica no fundamento do homem e da filosofia; ne
cessidade de consolidá-la, em virt ude da destinação moral elo homem; insti
tuição de uma divisão crítica como melhor meio de preservar os direitos da
necessidade da razão; invenção de uma técnica territorial conduzida pela r e
flexão para levar a bom termo essa divisão. Essas diferentes etapas nos condu
zem na turalmen te ao in teresse por esse dispositivo reflexivo
Que é a reflexão? Ela é, diz Kan t, "o estado de espírito no qual nos dis
pomos, primeiro, a descobrir as condições subjetivas sob as quais podemos
chegar a conceitos"20 'Trata-se somente, num primeiro momen to, de nos
in teressarmos pela relação entre nossas representações -in tuições,
conceitos,
idéias - e as diferentes fontes de conhecímen to Mais exatamen te -
e ela pode então ser qualificada de transcendental -, a reflexão conf ronta
os di ferentes tipos de relações possíveis entre represen tações para
determinar a faculdade de conhecímento onde esta relação se dá Pode,
assim, se pronun ciar sobre a relação entr e dois dados sensíveis e decídir
sob qual conceito esses dados seriam convenien temente colocados para
produzir um conhecimento
Tomado em sua maior simplicidade, o trabalho de r eflexão é uma desig 
nação de residência Não tem outra função senão designar o lugar próprio de
2'- lbid . AK V 176; P II, p 929
25 lbid 26 CRP, A 260/B 316; P !. p 988
28 29
Compreender A definição kantiana da filosofia
uma represen tação, isto é, detern1inar sua fon te: é, pois, uma generalid ade,
a mesma que preside ao vasto recorte territorial da i n trodução à Critica da
faculdade de 1ulga1: A filosofia reflexiva é u m pensamen to vagabundo, gue 
per corre o espaço d as represen tações para determinar suas linhas de força e 
decidir o lugar na tural de cada uma delas Sem efetuar esse trabalho de 
reflexão, a filosofia corre o risco de tombar nos extremos do racionalismo ou 
do sensua lismo, duas tendências represen tadas por Leibniz e Locke, 
segundo Kan t A origi nalid ad e do modo de pensar kan tiano, sua potência 
ele ruptura em rela ção às duas maiores corren tes da filosofia do séculoXVIII 
provêm da reflexão, pois é ela guem julga a origem das represen tações e 
consta ta gue não é única Leibn iz, diz Kan t, considerava q ue todos os 
fenômenos são, em defin i tivo, cognoscíveis unicamen te pelo en tendimen to; 
Locke afirrnava, ao con trário, que os concei tos desse mesmo en tendiinen 
to eram apenas u ma elaboração sofisticada dos dados sensoriais
A filosofia crítica, graças a seu procedi men to tópico, estabelece que o
en tendi mento e a sensibilidade são "duas fon tes i n tei ramen te diversas
de re presen tações, mas gue não (podem) julgar as coisas de modo
objetivamen te válido senão quando estão em relação"" Vê-se que a reflexão
não in tervém somen te na divisão critica ou na tópica; ela é parte in tegran te
das teses mais impor tan te de cada uma das Criticas, aqui a da necessária
colaboração entre o en tendimento e a sensibilidade na constituição dos
conheci men tos objetivos
Ouid;uns. qU1d fact1
U ma última observação sobre a reflexão Instrumen to de comparação, ele re
corte e de passagem, ela parece dispor de uma flexibilidade ausen te nas fa
culdades norma tizan tes que são o en tendimento, no campo da natureza, e
a razão, no da liberdade Podemos nos pergun tar se ela não está, também,
no princípio da oscilação, característico do pensamen to kan tiano, entre fato
e direito Consideremos a Critica da razão pura Seu pon to de partida é mui to
claro, como veremos: aí temos ciência, matemáticas e física, e o fato é que elas
são coroadas dé sucesso, ao con trário d a metafisica Mas Kan t só se in teressa
pelo fato cien tífico para dizer o direito de toda ciência, independen temen te de
sua existência real Iviesmo se a ciência não existir, ela deve respei tar os lin1ites
da experiência A filosofia crí tica apóia-se n u m fato para desembaraçar-se logo
dele, em favor da questão do direi to, única que verdadeiramen te in teressa a
Kant Dá-se o mesmo no campo prá tico. Kan t considera -veremos isso tam 
bém -que a consciência moral é um fato, gue ademais é um fato da Iazão 
Esse fato é indubitável, e a moral não pode explicá-lo, só pode explicitá-lo 
A partir d ai, tratar-se-á, para Kan t, de determi nar o que a moral é de 
direito, mesmo que nen hum ato moral jamais tenha sido realizado Na 
configuração teórica, assim como na situação prá tica, a filosofia vai e vem 
entre fato e di rei to, da mesma manei ra que oscila en tre os diferen tes 
campos de legislação E sse cará ter par ticular do procedimen to kan tiano é, 
talvez , a marca de sua reflexividade constitu tiva Vol taremos a este pon to
Crítica e filosofia
An tes de entrar no texto da Critica da razão pura , convém dizer algumas pala 
vras sobre o termo "critica" Kan t é muito eloqüen te sobre esse pon to, sem que 
contudo se possa fixar as diferen tes abordagens que ele propõe n uma única 
defin ição Digamos, a tí tulo preliminar, que a crí tica está pt esen te em cada
uma das etapas que até agora atravessamos: ela é aquilo que toma como objeto 
a disposição metafísica; é aquilo pelo que o bom e o mau uso dessa metafísica 
são separados; é, enfim, aquilo que produz o exercício da reflexão Mesmo se 
parece ativa na totalidade do trabalho filosófico, não se confu nd e com ela 
Sua relação com a filosofia em geral é talvez, aliás, o que melhor a determina 
Kant é muito preciso em relação a isso, logo no início da Primeira introdução 
à Crítica da faculdade de 1ulgar:
Se é verdade que a filosofia é o sistema do conhecimen to racional por concei tos,
ela já se acha suficientemen te assim diferenciada de uma cri tica da r azão pura;
esta con tém sem dúvida uma investigação filosófica que contempla a possibili
dade de tal conhecimento, mas não per tence, como par te, a tal sistema: é ela, ao
con trário, que esboça e1n primeiro lugar a idêia desse sistema e o põe à prova 20
Os dois verbos que concluem esta citação são essenciais: a crítica é, ao 
mesmo tem po, o esboço da filosofia como sistema e seu pôr à prova Precede,
27 lbid , A 271/B 327; P 1 p 996 2D CFJ, AK XX, 195; P 11. p 848
JÜ 31
Compreender
pois, à filosofia, como a planta do arquiteto precede a construção do edifício;
mas continua a agir ao longo do trabalho do pensamento, enquan to má cons
ciência deste pensamento, tão pron ta a ir além de sua esfera de legi timidade
A critica não é um empreendimento de destruição Ela, antes, se
pergun ta como transformar em ciência o que é dado como uma disposição
natural do espírito humano Procede de uma ten tativa de reorientação
dessa dispo sição, de consolidação de sua tendência geral, da qual vimos o
valor, acom panhada de uma estrita limitação de suas pretensões teóricas
Uma segunda definição de crítica merece ser aqui lembrada:
Capitulo li
A invenção do
transcendental
Ela é um tratado do método, não sistetna da própria ciência; mas estabelece todo
o tl'açado desta, tanto no que diz respei to a seus limites co1no a toda a sua estru
tura inter na29
Esboço, experimen tação, estabelecimen to dos limites e do conteúdo: a
critica diz o essencial dos dois campos da razão, a teoria e a prática Enquan to
se atém a essas quatro missões, a critica pode ser considerada como uma
sólida pr eparação para a metafisica enquan to ciência -isto é, finalmente
enquanto apresentação exaustiva das condições de possibilidade do
conhecimen to teó rico -e enquanto moral
A critica compor ta inegavelmen te -principalmente na primeira Critica 
- urna dimensão fortemente negativa Mas Kant esclarece que na.o se 
trata de censurar a razão, como os céticos o fazem. Estes se contentam em 
estipular os limites da razão, o que a dúvida e um pouco de prudência 
conduzem natural mente a fazer Kant interessa-se, por sua vez, pelos 
limites da razão, isto é, pela fron teira entre o que lhe é permi tido conhecer 
e o que ela pode apenas pensar A originalidade do gesto kantiano em 
relação aos inúmeros textos de teoria do conhecimento que tratam de 
definir os seus contornos é que ele se atém tanto ao interior da esfera 
científica cpmo ao que a circunda , certamente uma zona de sombras, mas 
onde se situam os inter esses mais elevados da razão humana 30 A critica, 
assim definida, não tem outros objetivos senão os da filosofia em geral: dar 
voz ao desejo metafisico e vida ao animal filosófico que é o homem
29 CRP, B XII; P 1. p 743
30 Cf ibid , A 761/B 789; P l. p 1333: ''Não existe mais aqui a censura. mas a crítica da
razão; graças a esta ct ítica, não nos contentamos em presuinir limites da razão. inas dernons
tramos, por principias, os limites determinados··
A Crítica da razão pura virou de pon ta-ca beça a paisagem da filosofia
ociden tal do fim do século XVIII; não é uma estrela caden te do pensamen
to, vinda do nada pa1a logo desaparecer Excepcional por suas qualidades,
111as não, verda deiramente, pelas questões levan tadas A preocupação que
reflete, a do estabe lecimen to das condições do conhecimen to, não é totalmen
te nova para o pró prio Kan t, menos ainda estranha à filosofia alemã e
européia de seu tempo
O sentido de uma
revolução na teoria do
conhecimento
Corno amadureceu tal projeto em Kan t? Como se dá que ele pr ecise atingir o
outono de sua vida para ver aparecer uma obra que se reivindica como prelú
dio e prolegômeno a propósi tos mais vastos? Não se trata aqui de seguir passo
a passo a evolução intelectual de Kant, de seus primeiros escritos à Critica'
Só
1 A obra clássica de Alexis PH!lOM E N KO. L'oeuvre de f{ anr. Paris, Vrin. 1969. con tém ern
seu pr imeiro volume todas as infor inações desejáveis
32 33
Compreender A 'ir1venção do transcendental
reteremos o que visivelmente faz pressagiar a descoberta do transcendental,
no que reside, sem dúvida, a autên tica novidade do kan tismo
A apreciação do problema critico
O primeiro texto verdadei ramen te significativode Kan t é sua História geral
da natureza e teoria do céu (1755) Kan t mostra-se ai extremamen te
preocupado em respeitar, em suas grandes linhas, a metafísica sistemática
dos mestres da Escola, Leibniz e Wolff Ao mesmo tempo desenvolve, no
que concerne à ex plicação dos fenômenos, um mecanismo estrito que nunca
desapa1ecerá in tei ramen te de sua obra Já nessa obra afirma, igualmen te,
que esse mecanismo não pode fornecer prova demonstrativa da não-existência
de Deus No mesmo ano, Kan t publica sua Nova explicação dos princípios do
conhewnento metafisico, onde opõe a incer teza da metafisica aos sucessos da
ciência, apreciação que reencontramos no principio da Critica da razão pura
A Monadologia física , que aparece no ano seguinte, acen tua a ru ptura com
Leibniz, apesar da origem do titulo, que a ele se reporta É também Leibniz
que ele toma como alvo no tex to de 1759: Ensaio de algumas considerações
sobre o otimismo
O ano de 1763 é mais rico, sob muitos aspec tos O Ensaio para
introduzir na filoso fia o conceito de grandezas negati vas estabelece, com
efeito, pela pri meira vez a distinção entre a lógica e a existência, esta
devendo ser dada na experiência No mesmo ano, o Único funda111ento possível
de urna dernonstração da existência de Deus trata das provas mais correntes
de existência de Deus de maneira muito similar ao que Kant dirá na Dialética
transcendental da Critica ela razão pura Em 1766, Kan t publica os Sonhos
ele um visionário explicados por sonhos n1etafísicos , onde já esboça duas
características de seu racionalis1no: u1n grande respei to pela tendência ao
incondicionado do espírito humano e uma desconfiança também grande em
relação às ten tações místicas
A disposição do texto de 1770 Da forma e cios princípios do mundo
sensível e cio mundo inteligível -comumen te chamado de Dissertação ele
1770 -é um pouco diferente Parece, desta vez, que Kan t entra em cheio na
questão teórica que é a da critica Com efeito, ai encontramos o esboço da par
tilha entre a ex periência e a razão, a teoria e a prática, que estrutura a obra de
1781 Con tudo, Kan t permanece aqui relativamen te dogmático, pois persiste
em afirmar a exis tência de um conhecimento não-sensível que atingiria a
essência das coisas O que ele diz da sensibilidade é bem mais in teressante;
descobre que esta fonte de
conhecimen to tem sua dignid ade e sua clareza próprias, e utiliza
representações específicas, o espaço e o tempo, sem as quais nenh uma
experiência é passivei Esse rápido percurso mostra bem que a Critica da
razão pura está muito longe de se reduzir a uma simples compilação
sistemática das descobertas anteriores Kan t colocou bem algumas das balizas
necessárias à completa formulação do projeto crí tico; mas o essencial não
está ainda explicitado e é preciso esperar até 1781 para que, enfim, seja
evidente a originalidade desse projeto
Psicologia e crítica
Kant não é o único filósofo ele seu tempo a se interessar pelo funcionamento
das faculdades de conhecimen to e pela construção do saber humano Se
existe uma especificidade do procedimento crí tico, não está na natureza de
seu objeto, mas, antes, no método empregado Desde Descartes, os filósofos
quiseram construir o quadro do conhecimen to, mostrando igualmente a partir
de quais fontes este está constituido Cassirer o diz muito justamen te, em sua
Filosofia das Luzes:
A psicologia está ( ) colocada explici ta1nen te na base da teoria do conheci1nen to
e até a Crítica da razão pura de Kant reivindicará esse papel mais ou menos sem
contestação 2
Dito de ou tro modo: a filosofia do conhecimen to pode se red uzir à
des crição dos diferen tes procedimen tos psicológicos utilizados em sua
aquisi ção A epistemologia não é uma tópica, que situa cada represen tação
em seu lugar da realidade; ela é uma história dessas mesmas represen tações,
ele sua origem sensível à sua forma conceituai Tal maneira de proceder não
é fato exclusivo do empirismo inglês ou francês Os grandes sistemas
racionalistas procedem da mesma maneira, a tribuindo a certas idéias par
ticulares uma origem divina ou um caráter de ina tismo E m todos os casos,
a determinação da fon te é o problema principal
Kant não tem gosto nenhum pela psicologia Passa, aliás, muito tempo
a evitar sua intervenção em seu próprio trabalho, não sem que ela apareça às
vezes no coração de certas teses suas O verdadeiro pon to de ruptura entre o
criticismo e as teorias do conhecimen to que o precederam é, sem dúvida,
essa
2 E CASS!RE R. La philosophie des LumiCres. Paris. Agora, 1993, p 146
34 35
Compreender A invenção do transcendental
distinção essencial en tre a descrição psicológica da construção de um saber
e sua análise transcenden tal E nquan to a primeira segue a gênese de um co
nhecimen to, a segunda estabelece sua legi timidade Não se trata mais de u ma
questão de fato, mas de direito: sob que condição a experiência é possível e em
guais limites um conhecilnen to é confiável'?
I-Iá sem dúvida ou tros elemen tos suscetíveis de ser postos no processo de
especificidade do projeto kan tiano Este tem a van tagem de não fazer de Kan t
um filósofo estra nho à sua época, mas sim o ator principal de uma reviravol ta
filosófica capital para a sequência da história da epistemologia É, aliás, signifi
ca tivo que Kan t abra a i n trodução da Crítica da razão pura com essas
palavras:
E rnbora todo nosso con heci1nen to comece co1n a experiéncia, não resu l ta in 
tei ran1ente da experiência3
O que significa esta fórmula tão freqüen temen te ci tada? Simplesmen te
que a questão genética não é a questão cen tral, e que seria preciso, afinal, que
nos in teressásse1nos pela origem de nossas represen tações, não so1nen te pela
história de seu nascimen to A reviravolta transcenden tal pode ser compreen
dida como a transformação de um problema histórico em um problema geográ
fico: deter1ninar cronologica1nen te a aparição de um conceito é mui to útil, mas
para afir1ná-lo claramen te é necessário estabelecer seu rnapa e localizar suas
diferen tes fon tes O transcenden talismo kan tiano será muito mal recebido,
tanto na Alemanha como na França, por causa justamen te dessa inflexão, que
ro1npe com hábi tos de pensamen to muito tenazes
O que é o transcendental?
O procedimento epistemológico kantiano, mesmo distingui ndo-se prof un
damen te quan to aos concei tos empregados da genética dos conhecimen tos,
tão comuns na época das L uzes, tem um pon to de partida similar Critica e
gênese do saber apóiam-se ambas, com efeito, na existência de fato de uma
ciência triunfan te, cujo sucesso irão ten tar explicar Para as corr en tes empi
ristas f rancesas ou inglesas, tra ta-se de mostrar como o método experimen tal
pode transformar as sensações em dados cientificas, servindo a simples des-
crição dessa mu tação de explicação para o sucesso de ciência em geral Kant
procede de modo mui to diferen te A elaboração das cond ições do sucesso
das ciências tem para ele um valor paradigmá tico Di to de ou tro modo:
indicando o que permite às ciências funcionar tão bem, a crítica vai ten tar
esboçar os principias do sucesso da ú nica ciência que verdadeiramen te im
porta paia ele, a metafísica Esses dois empreendimen tos filosóficos são, vê-
se, de essência e de alcance distin tos: de um lado, uma epistemologia
concreta da ciência, tal como ela existe; de ou tro, uma ten ta tiva de r esga te
da metafisica fundada numa epistemologia m i n1ética, devendo-se transpor
as condições de cer teza das ciências para o campo da metafísica
O prefacio da primei ra edição da Crítica da razão pura ti n ha claramen te
formulado o objetivo da obra e a pr imazia da metafísica como necessidade da
razão sobre todas as outras disciplinas O prefácio da segunda edição insiste
mui to mais que em 1781 na relação en tre a ciência e a metafisica Kan t se
pergun ta de uma vez por que certas ciênciasn unca sofreram recuos ou fracas
sos, enquan to a filha querida da razão, a metafisica, está no cen tro de polêmi
cas i numeráveis e estéreis A primeira razão que ele invoca, com referência ao
exemplo da lógica, é mui to significa tiva:
Se a lógica foi tão feliz, deve esta van tagem só à delimitação que a a utoriza e
mesmo a obriga a fazer abst1aç.30 de todos os objetos do conhecimen to e de sua
diferença, se bem que nela o en ten<li1nen to só trata de si rnesn10 e sua forma·1
O sucesso da lógica pode assim ser en tendido como uma consequência 
natural de seu cará ter formal Mais ainda: a lógica , fazendo abstração de con 
teúdos empíricos determinados, acha-se, na realidade, confron tada consigo 
mesma É, pois, uma ciência reflexiva do en tedimen to, descrevendo seu pró 
prio funcionamen to, ou ainda uma critica formal do trabalho do pensamento 
teórico Mesmo se esses três elemen tos -formalismo, reflexividade e dimen 
são crítica -irão se reencon trar mais ou menos em uma metafísica que con 
quistou seu título de ciência, não podemos nos con ten tar com isso. A razão, 
com efeito, tende ao conhecimen to de objetos com os quais não se confunde 
A ciência, sob pena de ser vazia, não pode ser uma disciplina formal Ao mes 
mo tempo, se se quer que ela con tenha uma parte de certeza, é preciso que, 
im itando a lógica, trate apenas de si mesma É, pois, indispensável que deter-
3 CRP, B 1 4 B IX
36 37
Compreender
mine em parte a priori seu objeto, além de fazer dele experiência Kan t chama
de "conhecimento teórico puro" a descrição do a priori das ciências Dá dois
exemplos disso: a matemática e a fisica A primei ra é in teiramen te pura, já que
seus objetos não lhe são dados pelos sentidos; a ciência só o é parcialmente, já
que uma física se1n objetos materiais seria um absurdo
A que se deve o sucesso dessas duas ciências? Quanto à matemática,
1
compreende-se facilmente que uma disciplina que produz por si mesma seus
concei tos r.ão pode cair no erro; aqui o conhecimen to a priori é a descrição do
que a própria ciência colocou no objeto que analisa A fisica apresen ta uma
configuração mais complexa, e é preciso dessa vez estudar o rnodo operatório
dessa ciência para compreender seu sucesso Tomemos Galileu: ele faz descer
num plano inclinado bolas de peso determinado a priori , portan to, antes da
experiência Que faz ele, na verdade? Antecipa a experiência, submete-a ao que
ele 1nesmo postulou, ao confron to entre o a priori de sua decisão e o a
posteriori da experimen tação produzida pelo conhecimento A física só tem
sucesso sob a condição de "forçar a natureza a responder às suas questões, em
vez de se deixar conduzir por ela à vontade"5 Ela só tomou o caminho seguro
da ciência depois de ter compreendido que não se pode apreender a natureza
sem ter pos
tulado sua racionalidade O problema fundamental da metafísica permanece 
Esta, por definição, supõe conhecer objetos que ultrapassam o território da 
experiência: o que é preciso fazer para que ela obtenha um sucesso comparável 
ao da física, mesmo que seus objetos estejam além de todo conhecimento expe 
rimen tal? Como escapar de uma vez por todas dessa situação escandalosa, até 
mesmo vergonhosa, que vê a rainha das ciências se comprometer em combates 
duvidosos e ser reduzida a um jogo retórico, onde os adversários manobram 
sem avançar nada de sólido? Como, enfim, conceber que nossa mais alta fa 
culdade possa exercer sua verdadeira função, conforme à disposição metafísica 
que constitui a humanidade? A consequência se impõe:
Devia pensar que o exemplo da matemática e da física -que se tornaram, pelo
efei to de uma revolução produzida de um só golpe, o que elas são agora -foi
no tável o bastan te para refletir no pon to essencial da mudança no modo pensar
que lhes foi tão van tajoso, e para imitá-las aqui, ao 1nenos a titulo de tentativa,
tanto quanto o permite sua analogia, co1no conhecimentos racionais, com a
n1etafisica6
5 B XIE
6 B1''V-XV!
38
A invenção do transcendental
A revolução copernicana
O principio mimético do prefácio não significa que a metafisica irá repetir,
sem modificações, o trabalho da física, con ten tando-se em m udar o objeto
É preciso, simplesmente, tr anspor a razão pri ncipal do sucesso da física para
a metafisica, isto é, perguntarmo-nos se não se poderia admi tir que os
objetos devem se regular por nossa faculdade de conhecimen to, e isso a
priori In ter vérn, então, a famosíssima referência a Copérnico: ele
consegue explicar os movimentos do céu modificando o estado do espectador
e fazendo-o girar em torno dos astros em repouso, em vez de um ponto fixo e
imóvel. A revolução copernicana do pensa1nen to crítico pode, então, ser
assim formulada:
Se a in tuição devesse se guiar pela natureza dos objetos, não vejo co1no se
pode ria saber alguma coisa a priori; e. ao con trário, se o objeto (como objeto
dos sen tidos) se guia pela nat ureza de nossa faculdade de in tuição, en tão
posso mui to bem supor essa possibilidade 7
A metafisica torna-se uma ciência a partit' do momen to em que contém
os conceitos a priori que o en tendimen to impõe aos dados sensoriais, para
que jun tos consti tuam uma experiência Nas palavras de Kan t: "Das coisas, só
conhecemos a priori o que nelas colocamos"ª A lógica triunfava porque dizia
respeito só a si mesma; a física era coroada de sucesso porque ia ao cncon tl'o
da natureza; a metafísica terá uma sorte igualmen te invejável no dia em que
compreender que seu único objeto de conhecimen to seguro reside no que o
entendimen to introduz por si rnesmo na experiência, ou pelo menos indepen
den temen te de seu con teúdo sensível
A própria idéia da revolução copernicana apóia-se ein uma determinação
original e complexa do concei to de a priori Este nunca significa apenas, em
Kant, o que significa na linguagem corren te: o caráter daquilo que precede a
experiência A relação en tre um concei to a priori e a experiência é mui to mais
complicada e diversificada do que uma simples an terioridade temporal Pode
mos atribuir-lhe duas qualidades específicas: primeiro, o a priori torna passive]
a experiência; em seguida, ele a estru tura Isso quer dizer, no que concerne ao
menos à razão teórica, que os concei tos a priori constitutivos da metafisica da
nat ureza são, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade de uma expe-
7 B XVll
B B XVlll
39
Compreender
riência do m u ndo e as próprias leis desse mundo, en tendido como conjunto
de fenômenos experimen táveis E ssa iden tificação está longe de ser anód ina,
pois significa que uma car acterística essencial de nossa faculdade de conhecer
torna-se a lei estru turan te de seu objeto: o mundo As leis do en tendi men to
são as leis da natureza; sua distinção é só de ponto de vista, segundo nos ate
nl1amos à dimensão subjetiva do conceito ou à sua potência de objetivação
A in trodução da Crítica da razão pura traz a esse respeito preciosos esclare
cimen tos Kant deixa claro -e esta observação se faz no sentido que acabamos
de indicar -que ele en tende por conhecimentos a priori "não aqueles que têm
lugar independentemen te de tal ou tal experiência, mas aqueles que são absolu
tamen te independentes de toda experiência"' Tal independência em relação a
esse fator de incerteza que é a experiência sensível confere aos conceitos a prio
ri duas qualidades especificas que não podemos encon trar em nenhuma ou tra
parte A pon to de Kant considerar que a busca dessas duas qualidade em todo
conhecilnen to permite-nos decidir corn uma certeza absoluta se o conhecimen to
em questão é a priori ou a posteriori O prirneiro desses traços próprios do a
priori é sua necessidade; o segundo, sua universalidade Por quê? Simplesmente
porque a experiência sensível não pode ir além do fato Pode muito bem mostrar nos
que um fenómenose produz desta ou daquela maneira; pode, no máximo,
estabelecer algumas generalidades; não pode, em caso algum, afirmar que este
ou aquele fenómeno deva se produzir desta ou daquela maneira Desde que haja
necessidade, já há outra coisa diversa da experiência, isto é, um conceito que a
torna possivel e a estrutura, o a priori . Dá-se o mesmo quanto à universalidade;
a experiência pode cer tamente produzir uma universalidade relativa ou compa
rativa, não é capaz de estabelecer uma universalidade verdadeira ou rigorosa; é
novamente necessário lançar mão de um outro conceito: o de a priori Daí Kant
concluir: "Necessidade e universalidade rigorosas são, pois, características certas
de um conhecimento a priori , e são também inseparáveis" 10
A crítica tem assim como objeto conduzir a metafisica aos limites de sua
possível cien tíficidade Certamente, como vimos, esse trabalho não tem prin
cipalmente uma função epistemológica, pois se trata, sobretudo, pelo esforço
da delimi tação, de determinar o ver dadeiro campo de ação da metafísica, o
campo da liberdade Mas, mostrando como um conhecimen to a priori é pos
sível, Kant mata dois coelhos de um só golpe: mostra como a ciência pode ser
9 B 3
10 B 4
40
A invenção do transcendental
considerada, sob certas condições, um espaço de certeza; e elabora, com todas
as peças, unia metafisica con10 ciência, que servirá desde o in icio a uma meta
física completa, ao mesmo tempo teórica e prá tica
Análise e sintese
O objeto do conhecirnen to está agora claramen te posto: u m ou mais concei
tos uni versais e necessários que, ademais, quando se aplicam aos dados dos
sentidos, tornan1 possível a experiência e co11stituen1 as leis da natureza 1'1a
se quência imediata da in trodução, Kan t irá en trar nos detalhes da
caracteriza ção de um con hecimen to a priori, a fim de melhor indicar o que,
no fundo, es tá no final de sua busca
Tome-se um conhecimento qualquer Conhecer sempre significa ligar pelo
juízo um sujeito a um predicado, o qual traz uma i nformação a respeito daque
le. Daí, duas situações são passiveis: seja que o predicado está compreendido
no sujeito, e o juízo é dito analítico; seja que o predicado deve ser acrescen
tado ao sujeito, e o juízo é qualificado de sintético Quando se diz: "todos os
corpos são extensos", não se acrescenta nada de exterior ao concei to de
corpo, só se
explicita o que, por defin ição, é o seu conteúdo Esse tipo de juízo não fornece
nenhum conhecimen to real suplemen tar, não se pode estudá-lo aqui: a análise
tem no máximo uma função de esclarecimen to dos conceitos Se, ao con trário,
afirma-se que "os corpos são pesados", é preciso que um juízo sin tético tenha
ligado, com base na experiência, o concei to de corpo e o de peso Desde que
haja experiência, há síntese A questão é, então, a seguinte: como conceber
um juizo sintético que não seja um juízo de experiência, já que este último
forçosamen te é a posteriori?
·Tais juízos existem; as matemáticas são in teiramen te por eles constitui
das Kan t, demonstrando esta tese, u tiliza novamen te a ciência como modelo
para a metafísica; da mesma maneira que buscava assen tar o sucesso futuro
da metafísica no sucesso da ciência, vai indicar aqui na realidade das ciências o
tipo de conceitos que a metafísica deveria buscar
"Os juízos matemáticos são todos sintéticos "11 O fato podia ter escapado
aos observadores, diz Kan t E continua a ser debatido hoje. Kant diz simples
mente aqui que para escrever 7 + 5 12 não basta anali sar o conceito de
12,
11 A 10/B 14
41
Compreender A invenção do transcendental
é preciso verdadeüamente acrescen tar 5 a 7, sintese que produz então o valor
12 Do mesmo modo em geometria: é preciso uma in tuição para poder dizer
que a reta é o caminho mais curto entre dois pon tos, o conceito de Ieta não
contendo absolutamen te o elemen to quan titativo do comprimen to
A segunda ciência que con tém juízos sintéticos a priori é a física Os 
prin cípios mais fundamen tais da ciência da natureza são necessários e 
universais sem contudo ser deduzidos nem da experiência, nem de um 
concei to particu lar que bastaria analisar O princi pio de conservação da ma 
téria não é experi men tal, já que permite a experiência; mas não é tampouco 
o resultado de um juizo analitico, dado que a idéia de uma permanência não 
está compreendida na de matéria I(ant não se detém nesse pon to, 
reservando ao corpo do texto desenvolvimentos bem mais consequen tes
A metafisica deve conter os conhecimen tos a priori Fazer seu inven tário
consiste em transformar o que é urna disposição natural da razão numa verda
deira ciência, que na realidade se con tentar á em indicar as leis a priori de
toda ciência Em outros termos, o objeto da Crítica da razão pura é
determinar o conjun to dos conceitos puios a priori, necessários e universais,
que permitem a ciência, limitando-a, e que formam a armadura de uma
metafisica cientifica, deixando o campo livre para uma metafisica da
liberdade
A definição do transcendental
A determinação do objeto da obra parece se fazer por toques sucessivos Os
pon tos de vista possíveis sobre a obra são múltiplos: a questão da metafísica, a
fun dação da ciência, a elaboração dos fins da razão, a distinção entre os
diferen tes tipos de juízo ou a oposição en tr e o a posteriori e o a priori são
várias aberturas legitimas no texto Um conceito parece, contudo, se impor,
com a vantagem de se achar no cruzamento dessas diversas abordagens, o de
transcendental
O fato é curioso Apesar de esse termo ser indispensável para uma justa
compreensão do procedimen to critico, Kant não o define no prefácio
(qual quer que seja a edição escolhida, de 1781 ou 1787), mas espera o fim
da in trodução para fazê-lo Pode-se considerar que é importan te para ele,
antes de mais nada, 1narcar a verdadeira função da crítica - salvar a
metafisica -, depois descrever os conceitos constitutivos da ciência, antes
de indicar o ter mo que vai permitir empreender esse duplo trabalho A
definição, canônica e muitas vezes retomada no texto, diz o seguin te:
Chamo de transcendental todo conhecimento que se ocupa em geral não tanto
de objetos, mas de nosso modo de conhecin1en to dos obje tos, na medida em
que isto é possível12
U ma filosofia transcendental é um estudo do conhecimen to humano do
ponto de vista do sujei to cognoscente, e não do objeto conhecido Contraria
mente ao procedimento genético, não descreve a história de uma represen ta
ção sob suas formas sucessivas -sensações, conceitos, conhecimentos -mas
a própria forma de todo saber, dado tudo aquilo de que um espirita humano
é capaz Pode-se acrescen tar a esta definição, que Kant iden tifica o mais das
vezes com a descrição de nossa faculdade de conhecer, a das condições de
pos sibilidade do conhecimento O transcendental é aquilo que, no sujei to,
permi te o conhecimento do objeto, ou ainda o conceito que permite à
objetividade nas cer no seio mesmo da subjetividade É ainda o nome do a
priori , quando este, além de ser necessário e universal, permite a experiência
e estrutura o mundo dos objetos da experiência possível O laço entre o
transcendental e o a priori, mesmo se não é evidente na definição que Kant
dá, é essencial no uso adjetivo do termo Assim, algumas páginas após tê-lo
definido, Kant escreve:
E n tendo por exposição transcendental a aplicação de um concei to corno urn
princi pio, a partir do qual pode ser apreendida a possibilidade de ou tros
conhecimen tos sintéticos a priori 13
O transcendental é no fundo o a priori originário, do qual vai provir tudo
o que nas matemáticas, na física e na metafisica pode ter pretensão ao uni
versal Fazer o inventário completo e sistemático do que pode ser qualificado
nesse sentido de transcenden tal será o único objeto da estética e da analitica
transcendentais
A estética, ou o a priori dos sentidosSe todo conhecimen to não procede in teiramen te da experiência, deve sempre
ao menos começar por ela É, pois, lógico que um estudo das condições de
pos sibilidade do conhecimento também principie pela análise de seu
nascimento
12 B 25
13 A 25/B 40
42 43
------------- ---- --
Compreender A invenção do transcendental
ou, mais precisamen te ainda, por aquela do lugar onde seus objetos podem lhe
ser dados Esta ordem natural é claramen te enunciada por Kan t nas úl timas
linhas da i n trodução A sensibilidade e o entendimen to -que iremos definir
-são as duas fon tes do conhecimen to h umano; mas, como o homem
sente antes de pensar, convém começar pelo estudo da sensibilidade humana,
reser vando à analitica transcenden tal a elaboração conceitua! do material
empirico fornecido pela intuição sensivel"
O espaço do mundo
A determinação kantiana da faculdade de sentir é um dos elementos d e sua
doutrina que já encontramos na Dissertação de 1770, sob a forma que a
Critica da razão pura não modificará Kan t, com efeito, aí escreve que
a sensibilidade é a receptividade do sujeito, pela qual é possivel que sua disposi
ção para formar r ep1esen tações seja afetada de um cer to modo pela presença de
um objeto qualquerrn
Os dois elementos fundamen tais desta defin ição são, sem dúvida, a re
ceptividade e o conceito de afecção Esses dois termos têm sign ificado similar:
indicam que o homem recebe pa ssivan1ente a iepresenlaçãu sensível do objeto
do qual tem u ma percepção sensorial Kant aqui é fiel a uma concepção sen
sualista do conhecimen to, que não concebe nenhuma atividade do sujeito que
percebe na recepção da sensação, atividade que está, em Kan t, in teiramen
te deslocada ao nivel do en tendimento
Kan t traz aqui, con tudo, uma precisão terminológica importante: qualifica
de intuição o modo pelo qual um conhecimento se reporta imediatamente a ob
jetos; o termo sensibilidade é reservado à própria faculdade que toma possível a
intuição dos objetos" Kan t prossegue -e essas poucas definições prelimina
res são essenciais para a totalidade da obra -propondo chamar de fenômeno "o
objeto indeterminado de uma intuição empírica"", isto é, aquilo que é percebido
pelos sentidos e de que temos uma representação sensível E nfim, ele distingue
M Cf A 16/B 30
15 Dissertação de 1770, AK II, 392; P 1. p 63 7
16 Cf CR A 19/B 33
17 A 20/B 34
no in terior desse fenômeno uina matéria -a sensação propriamen te dita 
-e uma forma -o que no fenômeno pode organizar a diversidade das 
sensações Enquan to a sensação, que con tém a informação sensorial, é 
forçosamente a posteriori, a forma que permite unificar a 111inin1a esta 
informação deve ser a priori Retomemos a cadeia dessas determinações: o 
homem é um ser dotado de sensibilidade; pelo viés desta faculdade, recebe 
intuições de cer tos objetos que chama de fenôrnenos; estes são constituidos de 
uma matéria a posteriori e de uma forma a pri011 O resultado desse 
empreendimen to de definição é claro: a estética transcenden tal é a ciência que 
vai estudar o a priori dos sentidos, isto é, uma in tuição sensível esvaziada de
todo conteúdo sensorial, ou ainda uma in tuição pura E só há duas formas de 
intuições puras, ou duas formas de fenô menos: o espaço e o tempo Pela 
eliminação de toda contribuição in telectual, depois pela abstração de todo con 
teúdo sensorial, Kan t é levado a identificar o objeto de sua investigação 
Analisará sucessivamen te o espaço e o tempo, primeiro mostrando por que 
essas formas são a priori (exposição metafisica), depois indicando como seu 
caráter a priori faz delas as condições de possibilida de da experiência 
(exposição transcenden tal)
O espaço, primeiro É ele, como pensa Leibniz, o nome da relação entre
si dos objetos do sentido externo? É, como afirmam New ton e Clar ke, um ser
absoluto, existindo independen temen te do sujei to e dos objetos espaciais? Kant
vai assumir aqui uma posição original, oposta à desses predecessores, com base
em un1a obsei vaçãu experimental relativamente simples O homem é dotado
ele uma capacidade de sentir objetos que lhe são exteriores Sentir um objeto é
sempre, primeiro, represen tar este objeto a ocupar um lugar no espaço diferente
daquele que ocupo como sujeito A percepção de um objeto espacial supõe que
o sujei to possua uma representação da espacialidade, pela qual a relação entre
objeto espacial e ele próprio possa ser concebida Nas palavras de Kant:
Não se pode tomar en1prestada a r epresen tação do espaço às relações dos fenô
menos externos pela experiência, mas essa experiência externa só é passive! por
meio dessa represen tação111
O espaço não é o resultado de uma sensação, nem um conceito intelectual 
É uma in tuição pura a priori , independen te do con teúdo sensorial empirico e
condicionador de sua recepção Essa determinação do espaço não significa,
1B A 23/B 38
44 45
Compreender
bem entendido, que o espaço seja um dado psicológico, cronologicamen te an
terior à percepção: indica simplesmen te que a forma "espaço" precede logica
men te toda sensação espacial, sem que seja necessário situar essa forma na
consti tuição psicológica do espírito
Num segundo tempo, Kan t re toma a análise dessa forma do pon to de
vista transcenden tal É preciso então indicar como a intuição pura do espaço
permi te a formação de outros conhecimen tos a priori A resposta é, desta vez,
extremamente r ápida: o espaço é a condição de possibilidade pura de toda
in tuição sensivel de um objeto externo; torna passive!, assim, a geometria,
que, no fundo, não é mais que um jogo de representações puras, tomadas na
própria trama pura do espaço
Kant extrai imediatamen te as consequências disso: de um lado, o espaço
não pode ser uma propriedade das coisas em si, isto é, dos objetos conside
rados independen temen te de nossa faculdade de conhecer; por outro lado, é
ao mesmo tempo a forma pur a de todos os fenômenos externos e a condição
subjetiva da sensibilidade, quando esta recebe seu objeto pelo sentido exter
no O espaço assim concebido é, portanto, real, já que faz parte de um sujeito
sensível que também o é; mas o espaço também é ideal, dado que não é mais
que uma condição de possibilidade da experiência
O tempo da
representação
Kant repe te de modo idêntico a peração a propósito do tempo Aí ainda, não
se embaraça com detalhes inúteis e sua argumentação cabe em algumas linhas
O tempo é a forma pura do sentido interno, sem a qual a percepção da
simulta neidade e da sucessão seria impossivel O tempo não é um conceito
discursivo formado tar diamente pelo entendimento para organizar os
fenômenos tem porais; está sempre ai, como condição desses fenômenos A
exposição metafí sica coincide aqui com a exposição transcendental: a
demonstração do caráter a priori do tempo repousa, em última análise, na
afirmação de sua necessidade em toda experiência, esta sendo inconcebível
sem temporalidade"
Curiosamente, as conseq üências extraídas dessa exposição são mais im
portan tes que a própria exposição Primeiro pon to que Kan t trata de subli
nhar: o tempo não existe nas coisas, mas nas condições subjetivas de sua in-
19 A 34/B 48
46
A invenção do transcendental
tuição Segu ndo ponto essencial, que marca a diferença de importância entre
0 espaço e o tempo: este é "a condição formal a priori de todos os fenômenos
em gera1"20 Por quê? Simplesmente porque sendo a forma do sentido interno
-a percepção de nós mesmos -o tempo é a condição de in tuição de todos
os fe
nômenos, cada um entre eles, inclusive os fenômenos espaciais, sendo objeto
de uma represen tação in terna ao espírito Duas situações são, pois, passiveis:
o objeto percebido é espacial e ele se repor ta ao tempo pela mediação da r e
presen tação in terna que tenhodele; ou o objeto percebido pertence primeira
men te ao meu espirita, e então o tempo é sua condição imediata. O tempo
não é defini tivamen te nada mais que uma condição subjetiva de nossa relação
com o mundo; sem o sujeito cognoscente, ele não existe
O espaço e o tempo vão per1nitir construir ciências puras como as mate
máticas, e a parte pura de ciências empiricas como a física I\1ão concerne1n
em nada às coisas em si e, por sua dimensão subjetiva, são elementos bem
ieais da construção do conhecimento Kan t quer exatamen te mar car aqui sua
ruptura com Leibniz Este afirmava, com efeito, que a sensibilidade era uma
faculdade de conhecimento inferior à razão, mas de mesma natureza Para ele,
como para Wolff, conhecemos as coisas em si confusamente pela
sensibilidade, claramente pela razão Kan t responde que não conhecemos
absolutamente nada das coisas em si pela intuição sensível, a qual está
reservada à percepção fenomenal
A estética transcendental atingiu seu objetivo Podemos agora compreen
der como proposições sintéticas a priori são passiveis corno elaboração das
formas puras da sensibilidade, o espaço e o tempo Mas a outra metade do
caminho, pelo qual podemos compreender como in tuições podem entrar na
consti tuição de uma ciência do mundo, deve ainda ser percorrida A analí
tica transcenden tal irá se debruçar sobre esse problema, não sem encon trar
dificuldades de uma amplitude inteiramente diversa daquelas que a estética
soube resolver em poucas palavras
A ana lítica.
Conceitos, pri ncípios,
subjetividade
A ar ticulação entre a estética e a analí tica repousa na noção de r epresen
tação Na sensibilidade, o espírito recebe passivamen te um cer to tipo de r
epresen-
20 A 34/B 50
47
Compreender
tação, a in t uição sensível do objeto O en tendimen to dispõe também de re
presen tações, que chama então de conceitos, graças aos quais vai se construiI
ativamen te o conhecimen to deste objeto
O uso do entendimento
O pon to de par tida da analítica reside na afirmação da necessária colaboração
dessas duas utilizações, uma ativa, a outra passiva, da noção de Iepr esen tação:
I n tuição e concei tos consti tuem, pois, os ele1nen tos de todo nosso conhecimen
to, de sorte que nem os concei tos sem a intuição que lhes corresponda de algum
modo, nem uma intuição sem concei tos podem resul tar em conhecimen to"11
Kant deve natur almen te esclarecer, antes de ir mais longe na explicação 
dessa colaboração, qual é a natureza da faculdade ativa do espírito humano
O que é o entendimento?
Chama-se de entendimento nosso poder de pensar o objeto da in tuição sen
sível a fun de conhecê-lo Sem ele, o objeto na.o é pensad o; mas sem in tuição
o objeto nem sequer é dado Kan t o diz numa fórmula que se tornou -não
sen1 razão -célebie: "Pensamen tos sem con teúdo são vazios; in tuições sem
conceitos são cegas"22
O estudo do funcionamento do en tendimen to é a lógica Esse termo 
pode
qualificar uma grande diversidade de disciplinas distintas, que Kan t vai i ni
cialmen te tratar de designar A lógica pode se dividir primeiro em u ma lógica
geral, que descreve o funcionamen to do pensamen to sem considerar seu ob
jeto, e uma lógica de uso par ticular, que é só uma especialização da primeira,
em função de um campo de objetos específicos Esta última, útil na construção
das ciências particulares, não in teressa a Kan t, e assim ele a deixa de lado
Voltando à primeira, retoma sua divisão, separando a lógica geral aplicada,
que irá estudar o entendimen to em sua relação com suas condições sensíveis
21 A 50/B 74
22 A 51/B 75
48
A invenção do transcendental
de exercício, e a lógica geral pura, que faz abstração de tais condições e é, pois,
pura de todo pri ncípio empírico Para que podem servir essas precisões termi
nológicas tão laboriosas'? Só têm por função indicar ex negati vo o que é uma
lógica transcenden tal: enquan to a lógica geral diz respeito a toda utilização d o
entendimento, quel' se refiia a conhecimentos empiricos ou a conheci1nentos
puros, a lógica transcenden tal só se i n teressa pelas leis do entendimen to e da
razão em sua con tribuição a objetos a priori. De modo ainda mais preciso: a
lógica transcenden tal é o estudo do en tendimen to e da razão como fon tes de
concei tos a priori , enquanto estes são, por sua vez, condições de possibilidade
de um conhecimento a priori 2ª
An tes de indicar as razões da divisão da lógica transcenden tal em
analítica e dialética, Kan t retoma por sua con ta uma definição da verd ade,
bem clássica aliás, que em seguida irá utilizar nessa divisão Kan t escreve,
sem hesi tação:
a definição nominal da vel'dade, que consiste na conformidade do conhecimen to 
com seu objeto, está aqui convencionada e suposta 2'1
Sob este aparen te tradicionalismo oculta-se na realidade uma profunda
inflexão do sentido ela conformidade ao objeto, que a analítica irá revelar Que
entende Kant por "verdade"? Não se trata aqui de supor que o espírito hu
mano seja capaz de realizar juízos conforme à própria natureza das coisas,
independentemen te daquilo que delas podemos conhecer No fundo, a verda de
não é mais que a conformidade de um objeto às condições a priori de todo
conhecimen to O termo não tem sentido, pois, senão na estrei ta esfera daqui
lo que é cognoscível, quer dizer, um mundo fenomenal experimen tável pelo
jogo conjunto da sensibilidade e do en tendimento O analítico transcenden tal,
que enumera os princípios sem os quais nenhum objeto pode ser pensado, é
assim , ao mesmo tempo, uma lógica da verdade
Mas o espírito humano tem a tendência a não respeitar os limi tes dessa
legi tima utilização do en tendimen to, quer dizer, tende a direcioná-lo para
objetos que não foram previamente dados à in tuição sensível A parte da ló
gica transcenden tal consagrada à verdade deve pois ser completada por um
estudo critico dessa ilusão ele saber, que por ser ilusão não é, con tudo, menos
real A dialética transcenden tal irá se consti tui r em lógica da aparência , admi-
23 A 56/B 81
24 A 58/B 82
49
Compreender
tindo-se que a tendência à ilusão não se dá em meio à reflexão desordenada,
mas sob o domínio de uma necessidade racional do espírito. Habituados por
dois séculos de in terpretação a separar radicalmen te a analítica e a dialética
transcenden tais, muitas vezes esquecemos que elas fazem parte de uma to
talidade, a lógica transcendental: essa continuidade de propósi to não deverá
ser perdida se quisermos compreender que o espír i to humano procede logi
camen te mesmo quando se engana
Conceitos e1uizos
Kant tem gosto pelas distinções Mal acabara de introduzir a diferença entre
analí tico e dialético quando in troduziu nova cisão no interior da analítica
Esta comporta dois momentos sucessivos: a analítica dos conceitos e a
analítica dos princípios A primeira é "a decomposição, ainda pouco tentada,
do pr óprio poder do entendimento""; a segunda "um cânon para a
faculdade de julgar que lhe ensine a aplicar aos fenômenos os concei tos do
en tendimen to"2ü A primeira cuida da enumeração daquilo que o
entendimento produz esponta neamen te; a outra, da aplicação aos dados da
sensibilidade dos resul tados da atividade do en tendimen to, uma aplicação
confiada à faculdade de julgar
Como elaborar uma lista completa dos concei tos do en tendimento? Po
demos aqui tomar como base o próprio trabalho do entendimento Para que
serve o en tendimen to? Ele funciona antes de tudo como um poder de ligação
entre diversas representações, sejam estas recebidas na sensibilidade ou con
cebidas pelo próprio entendimen to. Fazer uso do entendimento é julgar, quer
dizer, conduzir à unidade de um objeto uma pluralidade de r epresentações,
diferen tes tanto por sua fon te como por sua natureza Tal identificação do
en tendimento ao poder de julgar permite que Kant disponha de um fio con
dutor na elaboração de uma listade conceitos do entendimento: a cada tipo
de juizo corresponde, com efeito, um conceito particular, aquele que permite à
diversidade ser unificada pela função lógica do juizo O quadro de todos os
jul
gamen tos possiveis 27 que Kan t propõe não tem, portan to, senão uma função
secundária em relação ao quadro dos conceitos, que são o objeto próprio dessa
primeira parte do analítico É este segundo quadro que deve nos interessar
25 A 65/B 90
21l A 132/B 111
27 Não nos parece indispensável reproduzi-lo aqui O leitor o encontrará etn A 70/B 95
50
A invenção do transcendental
em prioridade, sobretudo por ser complemen tado por algumas observações
essenciais à compreensão da epistemologia kantiana
As categonas
A apresentação dos conceitos puros do en tendimen to que Kant, conforme
uma tradição que se originou em Aristóteles, chama de categorias é um dos
momen tos mais conhecidos e comentados da analítica transcenden tal Seu in
teresse, todavia, não está ligado ao quadro de categorias em si, mas antes ao
conceito de sintese, que Kant apresenta longamen te no início dessa terceiia
seção
O entendimento julga A lógica geral estuda esse poder de juízo indepen
den temente de todo conteudo dado. A lógica transcenden tal tem como mate
rial, por seu lado, aquilo que a estética transcenden tal lhe deu, quer dizer, uma
variação da sensibilidade a priori O pensamen to humano é feito de tal maneira
que não pode apreender essa variação sem produzir esponta11ean1ente uma uni
dade do objeto, sem o que este não é sequer cognoscive] A esse ato espontâneo,
que consiste em ''acrescentar representações diferen tes umas às outras" e em
"apreender sua diversidade em um conhecimento"'", Kant chama "síntese"
A sequência imediata do texto, longe de clarificar essa definição, intro
duz várias ambigüidades Kan t escreve então estas linhas que servirão de base
para a in terpr etação de Heidegger:
A síntese em geral é, como veremos n1ais tarde, o simples efeito da imaginação,
urna função da alma cega mas indispensâvel, sen1 a qual não teria1nos absolutamen te
nenhum conhecimento, mas de que apenas raramente temos certa consciência 20
Na origem, a síntese é um ato da imaginação Mas a explici tação dessa
função sintética da imaginação e sua clarificação conceitua! pertencem à esfe
ra do en tendimento, que irá nomear pelas categorias os diferen tes conceitos
i ndispensáveis à síntese Mais precisarnen te ainda: a sintese, que é o objeto
da lógica transcendental, é o ato pelo qual o produto da síntese da
imaginação é, por sua vez, sintetizado sob a unidade de um concei to O
conhecimento de um objeto consiste, assim, na sucessão ordenada de três
etapas:
20 A 77/B 103
29 A 78/B 103 Paia a leitura de HEIDEGGE R, o indispensável I<ant et !e probleme de la
1nétaphysique. Paris, Gallimard, 1953
51
Compreender
1 A apreensão da variação da in tuição pura, dada no espaço e no tempo
2 A sin tese da imaginação, que reúne as in tuições sem con tudo pern1i tir 
um conhecimento
3 A síntese do en tendimen to, que consti tui a unidade do obje to de 
experiência
possivel3°
Estas três etapas permitem dispor de um conhecimento puro a priori 31 do
objeto, sem que esse conhecimen to seja vazio, pois há verdadeiramen te in
tui ção pura, ou cega, pois há realmen te unidade do conceito Agora que a
função sintética do entendimen to está esclarecida, Kan t pode apresen tar o
quadro das categorias e comen tá-lo
Quadro das categorias
1
Da
Quantidade
Unidade
Pluralidade
A invenção do transcendental
tir dos quais os outros poderão ser encontrados por derivação Kan t prefere
deixar a seus sucessores o cuidado da exaustividade e ater-se a precisar por
três breves observações os pri ncípios de seu quadro:
1 As ca tegorias são de dois tipos Ou se repor tam aos objetos da in tuição
(quantidade e qualidade), e então referem-se a ca tegorias maten1áticas; ou
concernen1 à existência desses objetos, ern suas relações 1nútuas ou em sua
relação ao en tendin1en to, e então fala-se de categorias dinârnicas (a física irâ
u tilizá-las amplamen te)
2 Este quadro foi constr uido em quatro séries de três ca tegorias A terceira re
sulta sempre da associação das duas primeiras Assin1, a totalidade é a adição
da pluralidade e da unidade
3 A ligação en tre a categoria da identidade e a forma do juízo à qual ela deve
corresponder, o juizo disjun tivo, não é eviden te, exceto se tomamos a iden
tidade como uma causalidade reciproca entre elemen tos distintos, embora
reunidos pelo juízo
Todos esses atores estão presentes no palco: intuições puras, concei tos pu 
ros, a sensibilidade, o entendimento Falta compreender por que cenário esses
2
Da
Qualidade
Realidade
Negação
fotalidade 3
Da Relação
Inerência e subsistência
Causalidade e dependência
elemen tos poderão fundir-se na unidade de um conhecimento A dificuldade
do texto que se irá ler e as hesitações de Kant, que achou importante
reescrever essa passagem para a edição de 1787, estão à altura da tarefa
anunciada
Lim itação 4
Da M odalidade
Possibilidade-Impossibilidade
Existência-Não existência
Necessidade-Contingência
Comunidade A dedução transcendental
O capitulo I! da analítica dos conceitos in titula-se "Da dedução dos concei
tos puros do entendimen to" Kan t irá naturalmen te deixar preciso em que
sen ti do ele emprega aqui o termo "dedução", tão corren te na língua
filosófica
Esta lista é ao mesmo tempo sistemática e fundamental Ela não é cons
truida ao acaso das descobertas, mas deduzida do quadro do juízo Ela não
con tém todos os concei tos do entendimento, mas os conceitos-tronco, a par-
30 Cf A 78/B 104
31 Este pon to é multas vezes esquecido Sempre é preciso lernbrar que Kan t intetessa
se pela possibilidade do conhecimento a priori , o das matemáticas e da física pura, não
pelo conhecirnento em geral
52
Definição do procedimento dedutwál1
O que é urna dedução? O modelo considerado é o dos juristas, que requerem
a produção da prova que faz aparecer o direito ou a legitimidade de urna pre-
32 O termo em port ugues é produção de prova (M T )
53
Compreender
tensão 33 No caso do conhecimento, fazer uma dedução consiste em avaliar
a legitimidade do uso de certos conceitos, fundando-se não nos fatos, mas
atendo-se somen te ao direito:
..Chamo, pois, à explicação da maneira pela qual os conceitos pode1n se reportar a
priori a esses obje tos sua dedução transcendental, e a difer encio da dedução
ernpiri ca , que mostra de que maneira um conceito foi adquirido pela
experiência 31
A originalidade do procedimen to kantiano é aqui mui to dar a Kan t não
se in teressa pela construção do saber median te a elaboração das experiências
sensíveis, mas pelo direito da ciência a aspirar ao conhecimen to a priori.
Essa dedução, por mais estranha que possa parecer, é válida mesmo se jamais
hou vesse existido conhecimen tos cien tíficos, do mesmo modo que a moral
kan tiana seria válida mesmo sem atos morais. Compreender como funciona
fisio logicamente o conhecimento talvez seja instrutivo, mas isso não nos
permi te decidir da legi timidade de um saber; a função da crítica é, sem
dúvida, realizar esse trabalho de demarcação entre o conhecimento ilusório e
a verdade
O trabalho da dedução é inicialmente posto sob o signo da dificuldade
Com efeito, mostrar por que as formas puras da sensibilidade são condições
a priori do conhecimen to sensível é fácil, pois sempre sob suas fonnas um
fenômeno nos aparece Espaço e tempo são necessários e universais, e por
tan to a prion , porque sem eles nenhum fenômeno pode ser dado A situação é
diversamente complexa no caso dos concei tos puros do en tendimen to Tr a
ta se ele compreender como "condições subjetivas do pensamen to poderiam
ter um valor objetivo, quer dizer, prover as condições de possibilidade de
todo conheci men to"3ti Que osfenômenos sensíveis devam ser conformes às
con
dições formais da sensibilidade, isso é evidente Mas -aí está o problema 
- "fenômenos podem ser dados na in tuição sem as funções do 
entendimento"": podemos sen tir sem pensar Por que, então, o pensamen 
to seria indispensável ao conhecimen to, se os fenômenos podem nos ser 
dados sem ele? Será então pr eciso demonstrar que a conformidade aos 
princípios do entendimen to é ne cessária à transformação da variação da 
intuição em um conhecimen to real, e indicar por que conceito essa 
unidade cognitiva poderá ser constituída A
33 A 84/B 116
3q A 85/B 117
35 A 89/B 122
36 A 90/B 122
54
A invenção do transcendental
dedução terá sido bem-sucedida quando os conceitos do en tendimen to forem
reconhecidos como condições a priori da possibilidade de toda experiência,
quando tiverem conquistado a legi timidade daquilo que é indispensável31
Uma ou duas deduções?
O parágrafo 14, que acabamos de comen tar, é o último comum as duas
edições da Crítica da razão pura Os motivos da nova redação da sequência do
texto são múltiplos, e os elogios ou criticas de uma ou outra versão tão
numerosos quanto seus in térpretes 30 Três observações preliminares aqui se
impõem Inicialmen te, é absurdo e infundado supor que Kant tenha realmente
modificado seu pensa mento entre as duas versões da dedução O sentido e a
função dos dois textos são idên ticos, as diferenças procedem mais da
inflexão que da revolução Se gundo ponto a ser destacado: Kan t procurou
visivelmente, na edição de 1787, simplificar e unificar os diversos modos de
síntese constitutivos do objeto de conhecimento O que se constrói
progressivamen te pelo jogo sucessivo da sen sibilidade, da imaginação e do
entendimento na primeira edição se dá, por assim dizer, subitamente, sob o
efeito do poder da consciência transcendental na se gunda edição Terceiro
elemento que pode melhor nos ajudar a compreender as duas deduções: na
segunda edição, Kan t mostrou preocupação de se distanciar mais de toda
psicologia O aspecto ainda muito primi tivo da prilneira edição desaparece
aqui, em beneficio de uma determinação formal elo trabalho de en tendimento,
mais bem posta, para assinalar a especificidade do transcenden talismo A
leitura que agora iremos empreender desses dois tex tos não deverá
certamente pôr de lado essas significativas modificações Tampouco deverá
nos indicar uma ruptura no desenvolvimento do pensamento kantiano
A primeira dedução. ou o ob1eto em
construção
O conhecimento é sempre, por definição, uno e unificado A experiência não
foge a este princípio, e portanto é necessário mostr ar como é possível passar
da pura diversidade intuída pelos sentidos par a a unidade do objeto A idéia
37 Cf A 94/B 126
33 A obra de referêncía sobre essa questão é o clássico H J de VL EESCHAUWER, La déduc 
tion transcendenta!e dans l'oeuvre de Kant, Anvers/Paris 1934
55
·
Compreender
diretriz da primeira dedução é a seguin te: a unidade do objeto da experiência
provém da i n tervenção da espon taneidade do en tendimen to, que realiza três
sínteses sucessivas, e completa assim a receptividade da sensibilidade de ma
nei ra a produzir, in fine, um objeto unificado
A primeira dessas sínteses é a da apreensão na intuição 'Toda repiesentação,
a priori ou a posteriori , de um objeto externo ou de uma idéia de nosso próprio
espí ri to se dá como uma modificação temporal deste A diversidade do dado
intuitivo não pode, todavia, ser reunida em urna represen tação salvo se a in
tuição é capaz de percorrer essa diversidade para unificá-la Esta primeira síntese
é pura, quer dizer, a prioh, ela é constitutiva de uma primeira forma de unidade, a
da represen tação, mas não basta para realizar a unidade do objeto de
conhecimento
O conhecimento de um objeto não é concebível se o reduzimos a uma re
presen tação pontual. Para que possamos construir pouco a pouco esse
conheci mento, é preciso que a representação atual desse objeto seja ligada a
priori à re presentação passada do mesmo objeto, de tal modo que a
continuidade deste seja assegurada Não se trata, como fez !-lume, de reduzir o
conhecimen to à reprodu ção habitual de um fenômeno, mas de afomar a
necessidade transcendental de uma capacidade de reprodução das
representações passadas, que Kant atribui à imaginação Kant insiste nessa
especificidade da imaginação, assim descrita:
A sin tese reprodutiva da imaginação pertence aos atos transcendentais do es
pírito e, a eles relacionad a, chamaremos também esta faculdade de faculdade
transcendental da imaginação:rn
A reprodução da represen tação pela imaginação não pode, todavia, pro
duzir por si só a unidade do objeto É preciso, com efeito, que a represen tação
passada esteja relacionada à represen tação presente por um conceito de uni
dade que ne1n uma nem outra pode fornecer. A síntese do reconhecilnento no
conceito consiste em reunir a diversidade imaginativa pela representação de
um objeto de conhecimento geral em sua unidade Esse conceito de unidade,
não sendo em si objeto de experiência, corresponde a "alguma coisa em geral
= X', em que o X em questão simboliza a abstração conceitua! constitu tiva da
unidade do objeto Portanto, o problema ainda não está resolvido. De onde
vi rá esse concei to de unidade se a experiência não nos fala senão da diver-
39 A 102 Fica assim afastada a suspeita de psicologismo. mesmo podendo legitimamen
te censurar a Kan t uma certa ambigüidade na descrição do tra balho da imaginação
56
A invenção do transcendental
sidade: a única fonte possível de tal conceito é a própria consciência no seio
da qual se encon tra reunida a diversidade das representações A unidade do
objeto de experiência possível é o efeito de uma transposição da unidade da
consciência para a experiência, unidade que sintetiza, em úl timo lugar, o pro
duto das duas primeiras sínteses
Não nos enganemos sobre o sentido que Kan t atribui à palavra "consciên
cia" Ele não afirma que a simples presença empirica, no seio da consciência,
da diversidade represen tativa basta para unificá-la Ele afirma que a condi ção
a priori da u nidade do objeto encon tra uma "consciência pura, originá r ia,
imutável", que ele chama de aperce pção transcendental Nos dois termos do
procedimen to cognitivo se encon tram dois princípios igualmen te puros e
não-suscetíveis de ser intuídos; de um lado, a apercepção transcenden tal cor r
espondendo à unidade numérica necessária ao conheci men to; de out i o, o ob
jeto transcenden tal, quer dizer, o objeto não-empírico, que é causa inteligível
de toda fenomenalidade'°
Que conclusão tirar dessa tripla sín tese e da posição fi nal da
apercepção transcendental? Simplesmente que o que torna possível a
experiência é aquilo que consti tuiu o objeto do conhecimento A objetividade
é a própria subjeti vidade do espíri to que conhece, como subjetividade
transcenden tal, por isso un iversal e portan to necessária As leis do espíri to
são as leis dos fenômenos, exatamente o que era preciso estabelecer
A dificuldade da primeira edição não aparece, todavia, senão após essa
descrição complexa, por ém convincen te, da construção do objeto Kan t parece
com efeito deslocar o principio da unidade da apercepção transcenden tal par a
a imaginação, colocando como condição de unidade da apercepção uma sínte
se originária mais fundamen tal do que esta , que seria o efeito de uma forma ,
ela própria originária da imaginação como imaginação produtora An tes das
três sínteses e no principio de cada uma delas residi ria uma potência unifica
dora pura, provenien te de um modo de imagi nação distinto e an terior à sua
função reprodutor a. Kan t conclui pois:
O princípio da unidade necessária da sin tese pura (produção) da imaginação é,
pois, anterior mente à apercepção, o fundamen to da possibilidade de todo conhe
cimento, particularmenteda experiéncia'11
4Il A 10 7
41 A 118
57
Compreender
Heidegger, tomando esse texto ao pé da letra, verá ai a principal ousadia
da Critica da razao pura , à qual teria ren unciado a segunda edição, por temer
ver a imaginação assumir um poder desmedido Podemos, assim , simples mente
ver ai uma clara percepção por Kant da colaboração permanen te das
faculdades na construção do objeto O que ele escreve no parágrafo seguinte
bem o mostra pela confusão da expressão: "a unidade de apercepção relativa
mente à síntese da imaginação é o en tendimen to"42
O entendimen to é a conjunção da sintese pura da imaginação e da cons
ciência transcendental, três ter1nos - entendimen to, imaginação pura e
consciência -que não se diferenciam senão pela diversidade dos pon tos de
vista passiveis em seu trabalho de unificação Dito de outro modo: a imagina
ção transcendental nada mais é que a apercepção transcenden tal aplicando os
conceitos puros do entendi men to para produzi r a unidade do objeto, o que
toda analitica dos principias só fará confirmar É preciso reconhecer com Hei
degger que Kan t insiste muito menos, na segunda edição, nessa função da
imaginação; todavia, não é legitimo ver ai um abandono completo -o resto
da Critica conserva in tacta essa extrema importância da faculdade imaginati
va na construção do objeto
A segunda dedução ou a 1med1at1dade da
unidade
A in trodução da segunda versão da dedução parece romper de imediato com
a pluralidade das sín teses responsáveis pela originalidade da pri meira edição
Kan t exclui, com efei to, toda possibilidade de uma ligação das in tuições 
pela sensibilidade e reserva apenas ao en tendimen to a capacidade sintética:
I'oda ligação é u1n a to do en tendirnento, ao gual gostaríamos de dar o no1ne geral
de s fntese 43
A ligação da diversidade in tuida pelo trabalho do en tendimento supõe
que este dispõe de um conceito de unidade Este não pode ser a unidade
quantitativa que aparece como categoria no quadro correspondente, pois essa
unidade reside na própria síntese, não em sua condição. É preciso, pois,
buscar mais longe esse princípio de unidade, sob uma forma mais originária
que o en tendimento
42 A 119
43 B 130
58
A invenção do transcendental
Enquan to a primeira edição progredia com um pouco de esforço para a
unidade final, a segunda a produz de um só golpe, em uma frase que se tornou
célebre:
O E u penS'o deve poder acompanhar todas as minhas representações'14
A represen tação pelo sujei to de seu próprio pensamen to deve necessaria
mente ser produzida nesse mesmo sujeito como sujeito sensível, de tal modo
que cada in tuição seja acompanhada pelo conceito de sua ligação à unidade de
um sujei to A unidade do objeto de toda experiência provém da relação das
represen tações sensiveis desse objeto à consciência pura e não-empírica do
sujeito da experiência: como na priineira edição, l(ant chama essa consciência
pura de apercepção transcendental ou originária A objetividade é o efei to
de um principio das representações pela apercepção Ela coincide, pois,
necessa riamen te com a subjetividade, entendida como agen te do trabalho
conjun to da sensibilidade e do en tendimento, sob a direção da consciência
pura Kan t expressa admiravehnente essa coincidência no parágrafo seguinte:
A unidade sin té tica da consciéncia é, pois, uma condição objetiva de todo co
nhecin1en to; não preciso dela simplesmen te para conhecer um objeto, mas toda
in tuição deve ser-lhe subn1etida, para s·e tornar uni objeto para nún1 , pois de
outra maneira. e sen1 essa sintese, o diverso não se uni ria em urna consciência 5
A consciência co1no fator de objetivação não é em nenhum caso compará
vel à consciência empírica, essa percepção experimen tal de nossa atividade do
pensamen to que nada é senão um fenômeno entre ou tros Somente a cons
ciência transcenden tal pode servir de principio último de toda síntese Só a ela
a diversidade de represen tações pode ser associada pelo juízo
Pensar e conhecer
A dedução tr anscenden tal mostrou por que não há conhecimento senão pelo
uso das categorias do en tendimento, sob a unidade da apercepção transcen
den tal A primeira e mais importante conseqüência desse procedimento é a
44 B 131
45 B 138
59
Compreender
determinação definitiva do q ue pode ser o objeto de um conhecimen to Co 
nhecer é levar à unidade da consciência pela função sintética do en tendimen 
to a diversidade da in tuição sensível Basta gue um desses elemen tos esteja 
ausen te para que não exista conhecimen to A in tuição pode funcionar sem 
o en tendimento, mas há , então, apenas um conglomerado informe de 
represen tações sensiveis O entendi men to pode funcionar sem a intuição, 
mas nesse caso há apenas um pensamen to, não um conheciinen to Essa 
distinção en tre pensar e conhecer será longamen te retomada na dialética 
transcenden tal, q ue justamen te trata das idéias às quais nenhuma i n tuição 
parece corresponder Sua reflexão pod e às vezes ser legi tima, a pretensão de 
conhecê-los, não
Enfim, uma vez feito esse importante esclarecimen to terminológico,
Kan t volta à função da imagi nação Ele ai retoma as teses essenciais da pri
mei ra dedução: a imaginação pode ter uma função reprod u to1a; ela tem
também uma função mais fundamen tal, a de prod uzir a unidade conforme
as ca tego rias I<anc acrescen ta aqui, anunciando a seqüência da analí tica,
que a síntese transcenden tal da imaginação é um "efeito do en tendimen to
sobre a sensibi lidade e a primeira aplicação do en tendimen to (princípio ao
mesmo tempo de todos os outros) a objetos da in tuição possíveis para nós""
As últimas páginas da dedução transcenden tal apresen tam-se como um
balanço do trabalho e ao mesmo tem po como uma sequência de
esclarecimen tos sobre seus principais moinen tos Primei ro pon to a
destacar: a consciência transcenden tal não é de modo algum un1a in tuição
de si mesmo, nem tam pouco um conhecimen to de si mesmo O principio
último do conhecimen to não é um objeto de conhecimen to possível, mas
um pensamen to puro, o de uma subjetividade universal e necessária,
totalmen te distin ta daquilo que ge ral men te chamamos de consciência de
sill7
A segunda observação confirmaria, se fosse necessário, a con tinuidade
do pensamento entre as duas edições Kan t volta ai para a síntese da
apreensão para conduzi-la à função sintética da a percepção t1anscenden tal
Afirmando aqui gue toda síntese depende da apercepção, Kan t mostra
assim gue a ordem escolhida na primeira dedução não é cronológica nem
tampouco lógica, mas simplesmen te pedagógica A unidade da apercepção
não é o último momen to da síntese, ela já está presen te na in tuição,
mesmo se sua explici tação não pode pertencer senão ao en tendimen to
45 B 152
47 Cf B J5 7
60
A invenção do transcendental
Kan t postula enfim, em um terceiro momen to, o resultado principal da 
dedução:
1
As categorias são conceitos que prescrevem a priori leis aos fenômenos e por con- 
seguin te à natureza, como conjunto de feno.menos·"
As leis do sujeito são as leis do objeto Nenhuma fórmula resume melhr
o transcendentalismo que essa identificação Ou talvez estas palavras, tese ul-
tima da dedução:
Não há conhecimento possivel a priori para nós senão aquele de objetos de 
expe riência possível4
Não conhecemos a priori senão as condições da experiência, a forma 
ni ficada gue o sujeito impõe à diversidade sensível espaço, tempo: cnce1to'.
apercepção A analitica dos conceitos cumpriu perfeitamente sua m1ssao Res
ta compreender como funcionam jun tos, desta vez concretamen te, os 
diferen-
tes elementos constitutivos do a priori
A analítica dos princípios 
ou o entendimento em 
ação
A lógica geral tem como objetos as faculdades superiores do cohecímento: 
entendimento, a faculdade de julgar e a razão A parte dessa log1ca qese
0 I 'd · . - -como mostrara am-ocupa da razão fica, na verdade, exc ut a, pots a tazao . l ' .lamente a dialética -não é uma fon te legitima de conhectmenW A og1ca
pro riamente dita pode, então, reduzir-se a dois momentos . O pnmetro esta
p I P . . . do bom uso do en tendimen to -é a anabt1ca os conceitos, be ece os pnnctp1os !d d do segundo estabelece os fundamentos de uma boa utilização da facu a e e
julgar _ é a analítica dos principias'°
40 B 16:3
49 B 165
50 Cf A 130/B J69s
61
Compreender A invenção do transcendental
o que e uma analítica dos princípws? os dois parceiros a ser ligados, irá restringir o conceito do entendimento às con 
dições efetivas de sua aplicação aos dados da sensibilidade°' Sem esquema, um
O que Kant chama aqui de faculdade ele julgar não é, na verdade, uma nova
fa culdade do conhecimen to Trata-se antes de um outro nome do
entendimento, quando este é concebido em sua dimensão prática e em sua
aplicação efetiva; uma aplicação que procede, diz Kan t, de "um talento
particular, que absolu ta mente não pode ser apreendido, mas somen te
exercido"51 A analítica dos prin cípios é, assim, o estudo das modalidades
concretas de trabalho da faculdade de julgar, seja em sua função sintética em
relação à diversidade sensível, seja nas regras universais, an teriores a toda
experiência Ieal Esta série de divisão completa-se enfim na posição de um
termo novo, o esquematismo51, com o qual Kan t designa a elaboração das
condições sensíveis do en tendimento operante
conceito é tão vazio como se não se aplicasse a nada, pois carece do n1eio
dessa aplicação Com o esquema, pelo contrário, o conceito se adapta ao seu
objeto, pode subsumir a diversidade sem que a distinção das faculdades o
rpeça
O funcionamento do esquema é na verdade estranho, e o propno Kan 
t, em um lirismo que não lhe é costumeiro, faz dele uma espan tosa 
descrição:
Esse esque1natismo do entendimento puro, em vista dos fenômenos e de sua
simples forma. é urna arte oculta nas profundezas da alma humana, cujos segre
dos do funcionamento nos será difícil arrancar da natur eza para pô-los a desco
berto aos nossos olhos55
A arte oculta do esquematismo
Este primeiro capítulo da analítica dos princípios está bem longe de ser se
cundário Não basta, com efei to, ter determinado os componen tes de todo
conhecimento para ter resolvido o problema de sua real constituição É preciso
acrescen tar à afirmação dos conceitos puros do entendimen to e à das in
tui ções da sensibilidade a análise de sua relação, quer dizer, a análise da
subsunção pela qual uma in tuição é submetida ao poder sintético do conceito
Os concei tos puros do en tendimento e as intuições sensiveis são produ
ções heterogêneas ele duas faculdades absolutamente distintas Como ima
ginar que a subsunção possa se fazer harmoniosamente sem introduzir um
teiceiro termo, homogêneo à categoria como à in tuição, que sirva de in terme
diário entre uma e outra"? O esquen1a irá preencher esta função53
Determinar o funcionamen to do esquema significa, pois, buscar em pri
meiro lugar o elemento presente tanto nos conceitos como nas intuições. Este
elemento é o tempo: contido de fato em cada repr esentação sensível, inclusive
quando essa representação é a de um objeto exterior, o tempo é igualmente
homogêneo para o conjunto das categorias, partilhando com elas uma mesma
universalidade O esquema, apoiando-se na presença da forma temporal entre
51 A 133/B 172
52 Cf A 136/B 175
53 Cf A 138/B 177
A imaginação não se contenta em produzir uma imagem par ticular, que
auxilie o conceito no procedimento de subsunção; ela proporciona cer tamente
uma determinação universal do tempo, que indica como a pluralidade das re
presentações sensíveis pode se harmonizar sob um conceito, de acordo co111 a
unidade da apercepção transcenden tal
Kan t, conscien te sem dúvida da complexidade de sua posição, apressa-se
em ilustrar com exemplos Tomemos o concei to de substância Que expres
são a imaginação podPrá encon trar para que esse conceito possa aplicar-se à
variação intuída e construir o conhecimento de uma substância particular? O
esquema é aqui a pennanência do r eal no tempo, noção sem a qual o concei
to restaria inoperan te O mesmo vale para a causalidade: este conceito não
pode subsumir o real senão pelo esquema da sucessão ordenada dos
fenômenos, esquema que é a modulação temporal da causalidade Esses
exemplos, as sim como os que se seguem, levam a urna nova definição do
esqueina como
"determinação do tempo a priori de acordo com regr as"5' Os esquemas -e
Kant insiste mui to nessa eminente função -proporcionam aos conceitos
uma signi ficação; somen te eles são suscetíveis de determinar a relação
entre 0 sujeito e 0 conjunto daquilo que ele pode conhecer, relação
universal que Kant chama de verdade transcendental
-54-Cf A 1:40/B 179: '·A esta condição formal e pura da sensibilidade cujo conceito d.e en
tendimento é restrito em seu uso chamatemos esquema desse conceito do entendimento·
55 A 141/B 181
51i A 145/B 184
62 63
Compreender
Os pnncíp 1os do entendimento
puro
Como anunciou, I(ant irá agora analisar os princípios que cria o entendimen
to em seu exercicio sintético Esses princípios são aquilo que ordena antes da
experiência seu desenvolvimen to Podemos, assim, fazer sua lista exaustiva
suben tendendo que fazem parte do conjunto sistemático condições a priori
desta experiência, com as formas da in tuição e as categorias
Kant começa por lembrar qual é o principio dos juizos analíticos Nada
de revolucionário aqui, e para dizer a verdade a questão não lhe in teressa
realmente; Kant se con tenta em repetir aquilo que todos os filósofos sempre
afirmaram: o princípio da con tradição é "o princí pio universal e plenamente
suficiente de todo conhecimen to analítico"57 O essencial está, sem dúvida, na
determinação do principio supremo dos julgamen tos sintéticos, os quais cons
tituem em si um verdadeiro aumento do conhecimento Kan t propõe, então, a
seguin te fórmula, que na realidade retoma os resultados de toda a Analítica:
Em urna experiência possível, o princípio supremo de todos os julgamentos sin
téticos é, pois, que todo obje to é submetido às condições necessárias da unidade
sin tética intui tiva da variedadeun
Um juízo sintético não é legitimo se não se realiza a unidade da
diversida de pela utilização coordenada da totalidade dos elementos
precedentes estu dados: a in tuição sensível, o conceito do entendimento, a
unidade originaria men te sintética da apercepção transcenden tal e o
esquema Os principias que Kan t irá se empenhar em descrever não são
senão modulações particulares desse principio supremo, em função da
categoria relativa em cada caso Kant elabora um quadro completo
distinguindo previamente os principias mate máticos que se reportam ao
fenômeno em sua totalidade:
1
Axion1as da intuição
1
A invenção do transcendental
Os desdobramentos que Kan t consagra a cada um desses princípios são
longos e complexos Retenhamos aqui simplesmen te o essencial
Os axioma s da intuição
"Todas as intuições são gr andezas extensivas"!i!J A percepção pelos sentidos só é
possível pela constr ução progressiva (extensiva) da grandeza do objeto intuído
A intuição de um obje to espacial se faz, assim, pela ex tensão do pon to à linha,
depois da linha à ampli tude A geometria não é senão o conjunto sistemático dos
difeien tes usos deste principio
As antecipações da perce pção
"Em todos os fenômenos, o real, que é un1 objeto da sensação, tem u1na gran
deza intensiva, quer dizer, u1n gr au "ºª Toda sensação é dotada de uni grau de
intensidade determinado: certamen te não se pode pr ever esse grau, mas pode-se
antes da percepção antecipar o fato de que ela terâ um grau Nas palavras de
Kant: "Todas as sensações não são, pois, dadas como tais senão a posteriori ,
mas sua propriedadede ter uni grau pode ser conhecida a prior(
A:; analogias da experiência
·'A experiência não é possível senão pela represen tação de uma ligação necessária
das percepções '·Gl As coisas aqui se complicam consideravelmente, e não convém
que nos dele nhau1os nesle pun lu 111ais longau1e n te O que diz Kant'? <.J. _ue a ex
periência supõe a lígaçao do dlverso no tempo {\Jão sendo este objeto de unia ex
periência, mas somente a forrna de u1na in t uição, é preciso que o entendimento
co1npense essa ausência fornecendo o concei to de uma r elação temporalmente
detern1inada l\lão se pode conhecer u m fenômeno temporal senão ilnpondo à
experiência os conceitos de pern1anência, de sucessão e de sirnultaneidade A
analogia pennite indicar a priori uma iden tidade de relação ao tempo entre os
fenômenos estudados, segundo as difer entes n1odalidades temporais da ligação
Kan t aprovei ta para post ular sua concepção da substância e da causalidade, unia
concepção em que o criticismo manifesta uma inegável originalidade
2
Antecipações da
percepção
4
3
Analogia s da
experiência
"Em toda mudança de fenômenos a substância persiste, e seu quancurn não 
aumenta nem diminui na natureza ··liZ A experiência da 1nudança supõe a experiên
57 A 151/B 
191
50 A 158/B 19 
7
Postulados do pensamen to empirico em 
geral
59 A 162/B 102
üU A 166/B 20
7 G1 A 176/B
218 52 A
182/B 224
64 65
L
Compreender
eia da permanência, pois ao menos uma parte daquilo gue muda, pelas razões já
evocadas, não deve mudar Este elemen to permanente não pode ser o próprio
tem po É preciso, pois, que um conceito a priori , o de substância, sirva de
"substrato de toda determinação do tempo"6J Pensar que uma substância pode
nascer ou morrel' é, no fundo, supor a passagem de uma temporalidade a outra, o
que é absurdo
"Todas as mudanças se dão seguindo a lei da ligação da causa e do efei to
"IM A simples percepção de uma sucessão de fenõmenos não per mi te absol
utamen te saber qual precede logicamente o ou tro O conhecirnento da relação
entre dois fe nômenos supõe, por sua vez , que sua ordem seja determinada Sem
tal ordem a experiência permanece in1possivel: "não é, pois, senão porque
submeternos a se qüência de fenô1nenos à lei da causalidade, e por conseguin te
toda mudança, que a própria experiência, quer dizer, o conhecimen to empirico
desses fenômenos é
possive1··G 5 A causalidade é a condição a priori do conheci1nento de toda ligação
de fenômenos e, na verdade, já de sua simples distinção Graças a ela, o espaço es 
capa da anarquia da percepção bruta, assim como a substância permitia escapar 
da pulverização das temporalidades A posição empirista é, pois, invertida En 
quan to Hume deduzia a causalidade da experiência de uma conjunção repetida 
dos dois fenômenos, Kan t afirma gue ela é an ter ior à própria experiência destes 
Sa bemos por experiência que tipo de r elação causal existe entre dois fenômenos· 
sabemos antes da experiência que essa relação será causalªª
··Todas as substâncias, na medida em que podem ser percebidas como si
mul tâne;is no espaço, estão em uma ação recipioca uui versal."ITT A terceira
analo gia é na realidade derivada da segunda A experiência da simultaneidade
supõe a causalidade reciproca; é pieciso que a relação temporal en tr e os dois
fenômenos simultâneos seja determinada a priori, e não pode sê-lo senão pelo
conceito de urna comunidade dinâmica de interação causal
Essas três analogias constituem jun tas os princípios mais fundamentais
da experiência da natureza, quer dizer -como sempre em Kan t -, da
própria natu reza Sem esses princípios, nenhuma experiência seria possivel, e a
própria idéia de natureza se reduziria a um conglomerado informe e desordenado
de percepções
63 A 183/B 226
64 A 189/B 232
65 A 189/B 234
66 Cf A 202/B 24 7: ··o principio da relação de causalidade na sucessão dos fenômenos
vale, pois. tarnbém an teriormente para todos os objetos da experiência (submetidos às condi
ções da sucessão), pois é. ele inesmo, fundamento da possibilidade de tal expeiiênci;(
67 A 211/B 256
66
A invenção do transcendental
Os postulados do pensa1nento en1p frico e111 geral
O sentido da palavra "postulado·· aqui en1pregada por J(an t é absolutamen te
aná logo ao seu significado ma temático Assim como um post ulado
1natemático é uma pr oposição indemonstrável, necessária a priori para a
produção de um con ceito dado, assim os post ulados são aqui principias a priori
que determinam não o objeto, mas sua relação com a faculdade de conhecer em
geralªª
O primeiro desses princípios ê o da possibilidade: "Aquilo que se harmoniza
com as condições formais da experiência (quanto à intuição e aos concei tos) é
possive f'U!l Mostra simplesmente que um objeto não pode ser considerado pos
sivel senão ao respei tar as condições a priori de toda a experiência O con
teU.do dessa experiência não ê absolutan1ente detenninado por isso; somen te é
posta a condição minitna de sua possivel realidade objetiva
O segundo postulado só faz prolongar o priineiro Ele designa, desta vez ,
aquilo que o conhecimen to de um objeto con tétn necessariamente para que esse
objeto possa ser qualificado de real: "O que é coerente com as condições mate
riais da experiência (a sensação) é real"m A realidade de um objeto não pode ser
conhecida senão pela percepção sensível que dela temos Essa observação parece
sensata, mas tem, como a dialética mostrará, um alcance restritivo essencial, que
retira toda legi timidade à posição de existência de um objeto nâo-sensivel
O texceiro postulado, o da necessidade, assiin se enuncia; ··aquilo cuja coe
rência em relação ao real é determinada de acordo com as condições gerais da
ex periência é necessário" 11 Kant apressa-se a pr ecisar o sentido que atribui à
neces sidade Não se trata de afirmar a necessidade absolu ta deste ou daquele
objeto, mas somen te de afirmar que a relação entre os fenômenos é determinada
a priori segundo o princípio de causalidade Um fenômeno é se1npre
hipoteticamente necessário Ou mais simplesmente: nada acontece sem razão
Esta apresen tação dos postulados é ao mesmo te1npo a opor tunidade para
Kan t de deixar claia sua posição e1n relação ao idealismo Convém dedicar a
esta breve passagem um interesse especial, pois trata-se, para Kan t. de se
si tuar em relação à história da filosofia em geral, em torno do problema da
realidade dos obje tos exteriores
6U Cf A 234/B 28 
7 G9 A 218/B 265
70 A 218/B 266
71 !bid
67
Compreender
A re1e1ção do 1dea/1smo
Ka nt é idealista em sen tido, sem dúvida, bastan te particular Ele afirma ao
mesmo tempo a realidade do mundo exterior e a impossibilidade de possuir
dele um conheci men to independen te das condições subjetivas de toda
expe riência Preocupado em dista nciar-se dos outros tipos de idealismo,
Kan t pro
A invenção do transcendental
mas a r ealidade é uma modalidade de nossa experiência O objetivo resulta do
subjetivo -manifes tação de força do transcenden tal
Fenômenos e noumena
cede a um im portante esclarecimen to de sua posição, por um lado nos Prolegô
n1enos , por ou tro na segunda edição da Critica da razão pura
Dois adversários são aqui apon tados O primeiro, o idealis mo dogmá tico
Kant chega ao fim de u ma par te essencial do projeto cri tico
lanços, e Kan t torna-se por uma vez lí rico:
É a hora dos ba-
de Berkeley, afirma que as coisas são apenas idéias e que o próprio concei to 
de uma substância ma terial é um absurdo72 I(an t o rejei ta com uma 
frase:
Agora, não somen te percor remos o país do en tendimen to puro, exarn inando
cada parte sua co1n cuidado, mas ta mbém o medi1nos, ne!e detenninando .pa t:a
cada coisa o seu lugar E n tretan to, este país é u1na ilha, encerrado pela propna
esse idealismo baseia-se num erro, que consiste em considerar o espaço u ma
propriedade das coisasem si Como nenh um con hecimen to destas é possível, natureza en1f ron teiras imutáveis É o país da verdade (um nome sedu tor), cerca
o idealista é condenado à renunciar à realidade do espaço, e, em seguida, aos
objetos espaciais A estética transcenden tal mostrou qual era a verdadei ra na
tureza do espaço, não é sequer necessário vol tar a isso
O idealismo problemático é um adversário mais tenaz, e também , ao 
mesmo tempo, mais inteligen te Descartes, q ue o re presen ta, não afirmava 
que o inundo não existe Ele demons trava, todavia, que a experiência i n terna 
da consciência é mais certa do que a dos objetos exteriores, e q ue a precede 
Rejeita r esse idealismo represen ta, pois, mostrar por que "nossa experiência 
lnterna em si, indubi tável para Descartes, não é possivel senão sob a suposição 
da experiência externa" 13
A demonstração pode ser reconstr u ida da seguin te maneira: a consciên 
cia de meu es tado in terior é uma consciência da mudança Ora , toda cons 
ciência da mudança supõe a experiência de u n1 elemen to permanen te, em 
relação ao qual há m udança; como esse elemen to não pode estar em mim -
como o tempo não é em si objeto de uma experiência -, ele deve ser afirmado
fora de mi m O mundo é demonstrado pela necessidade de afirmá-lo pa ra 
que uma experiência de mi m mesmo seja possível A demonstração é sur 
preenden te: a permanência da matéria é provada pelas exigências do sen tido
i n terno, se1n nenhuma referência à experiência externa A especificidade do
idealismo tra nscenden tal é assim defini tivamen te afirmada O m u ndo é
real
72 Cf G BE R!\E l r:v, T rais dialogues entre fly!a s et Phi/011016 Kant deforma sensivelmen 
te o pensamento de Berkeley, e podemos duvidar da confiabilidade das infonnações de que 
dispõe
73 B 275
68
do de uin vasto e turbulen to oceano, sede pr ópria da apa réncia, onde rnan tos de
névoa, onde bancos de gelo em vias de derre ter apresentan1 a imagen1 enganosa
de novos países e não cessam de acenar com vãs esperanças ao navegador que
partiu para a descober ta, levandoo a aventuras a que não pode ren unciar, inas
que jarnais poderâ levar a bon1 termor1
A viagem crí tica é um exercício perigoso O filósofo não pode se con ten tar
com as fron tei ras bem delineadas cio pais da verdade Ele deve se aventurar
além clelas, não pelo gosto do erro, n1as em razão do desejo metafísico, dessa
tendência do espiri ta humano a superar os limi tes de suas legi timas preten
sões O com primen to da dialét ica t ranscenden tal está à altura da medida
da
extensão infinita do oceano da aparência
O entendimen to, como o espíri to de que faz parte, não é razoável Ele não
é sequer capaz de determinar seus próprios limi tes Portanto, irá naturalmen
te ul trapassar seu uso empírico -sua aplicação aos dados da sens1b1hdade por
in termédio do esquematismo -e cair em um uso transcendental Este consiste
em reportar um concei to "às coisas en1 geral e ern si , ao passo que o uso
empi rico 0 refere simplesmen te aos fenôrnenos , quer dizer, a objetos de uma
expe riência possivel"75 Não nos enganemos Kan t não entende o "transc
detal"
como algo que procede de uma condição de possibilidade da expenenCJa O
termo, nesse contexto, designa uma inclinação do entendimento para a trans
cendência, inclinação inevi tável, porém ilegí tima
74 A 235/B 294-295
7fi A 238/B 298
69
Compreender
Consciente, sem dúvida, da ambigüidade da expressão de uso
transcenden tal, Kant esclarece que é ela, na realidade, imprópria Não há u
tilização de uma faculdade senão quando esta realiza efetivamen te aquilo
para o que é feita O entendimento não tem utilidade senão na subsunção dos
dados da sensibili dade, conforme a unidade da apercepção transcenden tal.
Em sentido estrito, a utilização transcenden tal é uma contradição É melhor
falar de significado trans cenden tal dos conceitos do entendimento,
entendendo-se com isso que eles são assim considerados independentemente
de sua condição de eficácia
Di to de outro modo: a analitica dos conceitos é indissociável da dos prin
cipias Toda ruptura reconduz ao absurdo de uma faculdade privada dos seus
meios de ação
Sendo todo conhecimento a síntese de um conceito, de uma ou várias in
tuições, aquele que, sucumbindo ao uso transcendental, pretenda conhecer as
coisas em si deve dispor de uma intuição do objeto, não submetida às
condições da sensibilidade. O objeto de tal intuição inteligivel é o nownenon
Mas, como tal intuição está absolutamente excluida, o conceito de noumenon
pode ter tão somente um significado negativo, objeto impossível de um
conhecimento im possível70 Esse conceito tem tão-somente uma função
protetora, para limi tar as pretensões da sensibilidade de desrespeitar suas
próprias formas
A dialética transcendental não irá, portan to, tratar desses nownena , que
na verdade são conceitos completamente vazios Kan t afirma, desde as pri
meiras páginas do texto: o objeto da dialética não é o uso transcenden tal das
categorias, o que procede do erro ou da insensatez de uma faculdade não sub
metida à critica: tratar-se-á de estudar os principias positivos que a razão espe
ra poder postular Mesmo se, finalmente, essa pretensão vier a sofrer a mesma
sorte do uso transcendental do en tendimen to, ela merece que nos atenhamos
a ela, na medida em que é o fruto de nossa mais alta faculdade, e certamente
na medida em que abre novas perspectivas para a prática
A dialética, ou o desejo das idéias
A imagem de um país da verdade, com fron teiras bem traçadas, cercado por
um vasto oceano de erro, sem limites nem principias, poderia levar a crer que
a dialética transcenden tal tem uma função antes de tudo negativa: a de evitar
76 Cf A 253/B 308
70
A invenção do transcendental
o erro Mas esse erro é o fruto da razão, não pode ser totalmen te ignorado,
nem se produzir sem uma certa lógica Este é, aliás, o sentido da integração da
dialética transcendental na lógica transcendental: o espirita humano é feito
de tal modo que é ordenado mesmo quando se engana A aparência transcen
dental é o nome kantiano desse erro significativo que a razão provoca quando
pr etende poder eximir-se dos limites do conhecimento legitimo e conhecer
uma realidade suprafísica
A natureza filosófica do ser humano
Há sem dúvida um motivo mais profundo para essa singular atenção aos
de vaneios do espírito Pode-se, com efeito, interpretá-la a partir da
disposição metafisica, cuja importância vimos na introdução Se essa
tendência ao incon dicionado, se tal desejo está na origem do próprio
projeto crítico, a análise dos recônditos para onde esse desejo conduz
quando não é dominado constitui um momento essencial da obra kantiana
O respeito à disposição natural das idéias subordina a filosofia
transcenden tal propriamente dita à metafisica Se a primeira bem pode
estabelecer as condi ções do uso legitimo do entendimento e assegurar a
certeza das ciências fisicas e matemáticas, a questão da possibilidade daquilo a
que aspira o espirita humano constitui o "núcleo e o caráter próprios da
metafisica",, Essa ordem de priorida de implica uma grande prudência no
trabalho de posicionamento das fronteiras da critica teórica Uma vez que o
desejo das idéias não pode nem deve ser con testado, essa critica deverá
contentar-se em impedir que a inevitável aparência, que é seu produto, se
corrompa70 Vemos que se trata de encon trar um equilíbrio
entre a sede da metafisica e a preocupação transcendental Tal preocupação, tal
prudência, tal atenção ao valor próprio da disposição do homem às idéias já se
justificam em níveis estritamente teóricos pela impossibilidade de fato de ir ao
seu encontro Mas o desejo da metafisica tem, além do mais, uma destinação
prática que desta vez legitima de direito o trabalho da critica teórica
77 Prolégomene'i à toute métaphysique future, AK IV 32 7;P II. p 105
78 Cf ibid , AK IV, 328; P II, p 106 ··Essas idéias estâo si tuadas na natureza da razão
assim como as categorias na natureza do entendimen to, e. se elas cornportam uma aparência
que pode facilinente seduzir, essa aparência é inevitável. en1bora se possa. sem dúvida, impedir
que ela se conompa ,_
71
Compreender
Também a necessidade vital da disposição metafisica encon tra-se posta
a serviço de uma outra necessidade, desta vez prática, que exige da critica da
razão especulativa que assegure ao menos a possibilidade de um certo uso dos
conceitos do supra-sensível Ai também Kant atinge o cen tro do argumen to
com a afirmação de que "estou convencido de que há um uso prático absolu
tamen te necessário da razão pura (o uso moral)"79 O desejo das idéias está na
base, ao mesmo tempo, da tendência ao absoluto teórico que é preciso limi tar
e da obrigação de submetê-lo a uma cri tica da razão pura para que sua dimen
são moral seja concebível A atitude própria do homem em relação às idéias
tem, portan to, para além de seu uso de homogeneização do conhecimen to,
uma função prática, pois ela torna "possível uma passagem dos concei tos da
nat ureza aos concei tos prá ticos"ºº e assegura "às próprias idéias morais
uma solidez e uma ligação com os conhecimen tos especulativos da razão"°'
Podemos, assim, considerar que a dialética transcendental tem ao menos 
três objetivos: estudar o funcionamento do espirita humano quando este se dis 
pe1sa na aparência; reconhecer a importância da tendência natural do homem à
metafísica; preparar para a abertura à prática que a segunda Critica completará
O racionalismo kantiano está, talvez, por in teiro neste respei to à razão sob 
todas as suas formas Jamais será questão de se estabelecer uma policia 
repressiva da razão, mas se1npre uma escuta co1npreensiva de seu movimento 
próprio, tan to mais particularmente quan to este indique a verdadeira 
vocação do homem, a vocação moral A dialética é uma crítica da razão 
desviada, aquela que crê conhe cer o que não é cognoscível, aquela que se 
perde na divagação mística, apoiando se em uma intuição in telectual ao 
mesmo tempo absurda e impossível
Bom e mau uso da
razão
O tex to da dialética abre-se com uma precisão terminológica fundamen tal
É preciso, com efeito, distinguir cuidadosamente o uso transcenden tal das
cate gorias, que não é, afirma Kant, "senão um simples erro de nossa
faculdade de julgar quando não está suficien temen te contida pela crítica"",
do uso trans cenden te da razão, que se opõe concei tualmen te ao uso imanen
te que pode e
79 CRP, B XXV
ao A 329/B 386
81 Ibid
02 A 296/B 352
72
A invenção do transcendental
que deve ser feito das faculdades do espíri to E nquan to um pr incipio imanen
te se con tém in teiramente nos limites da experiência sensível, um pri ncípio
transcenden te supõe a existêncià de uma realidade que, por definição, não é
apresentável sob uma forma sensível Ainda mais importan te sem duvida: o
transcenden tal depende do bom ou do mau uso do entendimen to; o transcen
den tal procede da razão, quando produz regras que têm toda a aparência de
princípios objetivos sem, no entan to, possuir sua legitimidade A função da
dialética é defini tivamen te determinada por essa distinção:
A dialética transcenden tal con tentar-se-á, pois, em atualizar a aparência dos juí 
zos transcendentes e ao mesmo tempo impedir que ela nos engane113
Essa dialética não é produ to da ignorância, nem o produ to de um 
sofisma mais ou menos engenhoso Ela é indissociável da própria razão An 
tes de es tudar os princípios transcendentes, Kan t deve, pois, voltar 
logicamen te a uma definição mais precisa da razão, que no fundo não tem 
verdadeiramen te dado an terior Ele o reconhece de imedia to; ter que dar tal 
definição o coloca em si tuação difícil" Mas é possível esperar chegar a isso 
retomando o procedimen to que havia funcionado tão bem par a o 
entendimen to Passar pelo in termé dio da simples u tilização lógica, quer 
dizer, formal, da faculdade considerada, para em seguida elaborá-la como 
poder de conhecimento A razão deve, nesse sentido geral. ser definida como o
poder dos princípios, quer dizer, a faculdade de levar à unidade dos principias 
uma pluralidade de regras de en tendimen to A relação da razão com a 
experiência não é, pois, inexistente, mas é imediata, só o entendimen to possui
uma função sin tética na experiência sensível
Sob sua forma estritamen te lógica, a razão é o poder de inferir, tal como
a vemos operar em um silogismo Sob a forma transcendental, sua função sin
tética não só organiza proposições formais; ela tende positivamente a unificar
a totalidade daquilo que é condicionado, quer dizer, dado na experiência, sob
um conceito incondicionado produzido por ela mesma A r azão irá assim, de
acordo com sua tendência natural a escapar aos limites da experiência, produ
zir uma série de proposições fundamentais, que será preciso avaliar Muitos
elemen tos são, pois, comuns ao entendimento e à razão: mas, embora o pri
meiro não possa funcionar senão na imanência, a segunda interessa-se apenas
pelo incondicionado, pelo transcendente
83 Cf A 299/B 355
B,1 Cf A 299/B 355
73
Compreender
A razão, em seu funcionamen to natural, produz conceitos que relaciona
com os do en tendimento, mas que, por sua vez, não podem ser dados na expe
riência. Kant irá dar um nome a tais conceitos, apoiando-se na tradição filosó
fica Cuidando para não criar inutilmente um termo novo, ele decide chamar
de idéias os conceitos da razão, essa palavr a, de origem platônica,
significando imediatamente para a linguagem comum, assim como para a
filosofia, uma entidade infinitamen te distante da sensibilidade Kan t
envolve-se, então, em uma interpretação das idéias platônicas que tende a
reconduzi-las a principias sintéticos, o que elas eviden temente não são para
Platão Mas pouco importa aqui a fidelidade da leitura kantiana, desde que se
tenha presen te o parentesco com os dois tipos de idéias, em sua comum
superação das possibilidades da experiência
Conforme a pr ópria função de uma filosofia transcenden tal, é preciso
agora fazer um quadro exaustivo das idéias da razão. Podemos, a partir do
momento em que as pensamos em sua relação sintética com o que é condicio
nado, qualificá-las de transcendentais Nesse sen tido, cada uma delas corres
ponde a uma das modalidades dojuizo sintético, tais como as encontramos no
quadro dos juízos que a analítica apresen tou:
Será preciso buscar em prúneiro lugar um incondicionado da sintese categórica
em urn sujeito; e1n segundo lugar um incondicionado da sintese hipotética dos
membros de uma série; e1n terceiro lugar um incondicionado da sintese
disjuntiva das partes e1n um siste1naH 5
As idéias transcenden tais são certamente conceitos transcenden tes, mas
não se deve por isso considerá-las vãs e supérfluas06 Elas têm ao menos, como
Kant mostrará mai,s adiante, uma função de homogeneização e de unificação
dos conhecimentos experimen tais; e têm também, sem dúvida, como disse
mos acima, uma função de indicação de seu verdadeiro campo de legi timida
de: a moral
Assi m determinadas, as idéias transcendentais formam um sistema, na
medida em que podem ser levadas à posição de um incondicionado da síntese
das condições Kant especifica, en tão, de que natureza pode ser esse incondi
cionado, anunciando assim o plano que irá se seguir:
B5 A 323/B 3 79
B6 Cf A 329/B 385
74
A invenção do transcendental
1 A unidade absolu ta e incondicionada do sujeito pensante, que, pelo conceito
de alma, será o objeto de u1na psicologia racional
2 A unidade absoluta e incondicionada das condições do fenôn1eno, que, pelo
concei to de mundo, será o objeto de uma cosmologia racional
3 A unidade absolu ta e incondicionada da condição de todos os objetos de pen
samento em geral, que, pelo conceito de Deus, seráo objeto de uma teologia
transcendental
A razão em questão
Essas três idéias são produzidas por um r aciocinio dialético, natural ao espíri
to humano e, na verdade, inevitável Kant esclar ece ainda -novamente a
ob sessão pelo vocabulário mais adequado possível -que esse raciocinio
assume três formas: a do paralogismo, no caso da psicologia; a da antinomia,
no caso da cosmologia; e a do ideal, no caso da teologia
O obstáculo do Eu
penso
O paralogismo transcendental é um falso raciocinio que leva a uma ilusão ine
vitável, mas analisável Essa ilusão é, aqui, o conceito fundamental da psicolo
gia racional: a alma Que se pode legitimamente dizer da expressão Eu penso?
Podemos inicialmente afirmar que ela expressa a condição fundamental de
todos os conceitos e de todo conhecimento, o que Kant chama de apercepção
transcenden tal; podemos também dizer que temos uma in tuição da alma pelo
sentido interno, assim como tivemos uma do corpo pelo sentido externo Mas
entre a função lógica do sujeito transcendental e o conhecimento sensível da
quilo que somos como alma e corpo não há lugar para um conhecimento do
Eu penso A psicologia racional é uma ilusão da ciência, pois pretende dizer
algu ma coisa sobre a alma como conceito racional, embora na realidade a
simples posição do Eu penso seja seu único texto, seu único conteúdo
verdadeiro"
A psicologia racional, ao pôr a alma como incondicionado da síntese de
to dos os fenômenos do sentido interno, crê poder atribuir-lhe um certo
número de qualidades: a alma é uma substância imaterial, simples e,
portanto, incor-
Bl Cf A 343/B 401
75
Compreender
ruptivel, numericamente idêntica, quer dizer, fon te de personalidade, espiri tual, 
pois se encon tra em comércio com o corpo. Essa metafisica indevida ul trapassa 
amplamen te os limites do conhecimento legi timo Podemos dizer do Eu penso 
que ele acompanha nossas representações, que assegura sua unidade Todo o 
resto não é senão conhecimen to vazio, já que não podemos, por definição, ter a 
experiência da simplicidade, da unidade da ima terialidade ou da espiritualidade 
Sempre posso conhecer a mim mesmo pelo sentido in terno, um eu-mesmo cuja 
experiência é então determinada pela função sintética da consciência transcen 
den tal; mas não posso conhecer a mim mesmo corno sujeito determinante Dito 
de ou tro modo ainda: pode-se a tribuir ao Eu do Eu penso todas as qualidades 
necessárias à sua função sintética; não se pode d ar-lhe qualidades objetivas, que 
implicariam a experiência real do sujeito determinan te
A unidade da apercepção transcenden tal implica que o E u é singular e
idêntico, mas isso não significa que é uma substância simples A in tuição de tal
entidade não poderia ser senão o fato ele uma "espécie de revelação"ílíl, sendo a
in tuição real sempre diversificada Kan t o afirma de modo explícito:
A análise de min ha própria consciência no pensarnen to em geral não me !eva a
dar o menor passo para o conheci1nen to de m im mesmo como objetoun
Se a psicologia racional pudesse demonstrar sua validade, isso significaria 
que uma in tuição in telectual é possivel O próprio projeto crítico estaria as 
sim defini tivamen te arruinado, pois a distinção en tre fenômenos e nournena 
não teria mais razão de ser É, sem dúvida, a razão da insistência ele Kan t em 
rejeitar toda doutrina metafisica da alma A alma não pode ser posta como 
substância permanen te, a própria utilização d a categoria de substância indi 
ca que se acredi ta possuir uma intuição da alma, à qual bastaria aplicar esse 
conceito ele substância Há um mal-en tendido na psicologia racional; há con 
fusão en tre a unidade transcendental da consciência e a unidade in tuitiva da 
substância-alma . O erro consiste unicamente em ter acreditado que a razão 
pudesse funcionar como um sentido e perceber imediatamen te u ma realidade 
não-experimen tal Sempre se pode ter uma idéia da alma como idéia da razão, 
é até mesmo inevitável; mas o conceito de uma substância pensan te apóia-se 
em uma experiência do incondicionado, que é um monstro conceitual
SB B 408
BO B 409
76
A invenção do transcendental
A razão em conflilo as antinomias
A tendência ao incondicionado tem por vezes efeitos curiosos Quando se aplica 
à unidade do sujeito, produz uma falsa idéia Quando se in teressa pela sintese
de todos os fenô1nenos, leva a razão a entrar em conflito consigo mesma, a não 
poder escolher en tre a armadilha do ceticismo absoluto e a de um dogmatismo 
também absol uto O processo de elaboração das idéias que correspondem a essa 
sintese dos fenômenos é um pouco diferen te daquele que presidia à postulação 
ela alma Que faz aqui a razão ao exigir o incondicionado absoluto? Ela toma os 
conceitos do en tendimen to utilizados em toda a sintese e os leva para além das
condições de possibilidade ela experiência Produz, assim, quatro idéias cosmo 
lógicas, correspondentes às quatro classes de ca tegorias, por um procedimen to
de regressão do condicionado à sua condição última, ela mesma incondicionada 
A razão exige, assim, dispor sucessivamente, considerados os fenômenos dados: 
da totalidade dos fenómenos; da totalidade do con teúdo de cada fenómeno; da
totalidade do processo causal que conduz a esse fenômeno; ela totalidade da 
quilo gue determina a existência desses fenômenos Nos dois prin1eiros casos, 
estamos dian te de concei tos de mundo (no grande como no pequeno, diz Kant);
nos dois seguintes, de conceitos de natureza A cada vez, a razão irá se encon trar
en tre duas maneiras opostas de conceber mundo e natureza; a cada vez, I<.an t
terá que encon trar uma solução para essa oposição
A razão cai em uma an ti tética Ela é conduzida a form ular teses igualmen
te convincen tes mas, sem dúvida, incompativeis -ao menos à primeira vista
A represen tação feita por Kan t r etoma em sua diagramação o principio 
do confli to, pois irá desenvolver em paralelo as duas argumen tações, 
reservando às páginas seguin tes a solução dos conflitos
Consideremos o primeiro conflito A tese postula gue o mundo tem um
começo no tempo e limites no espaço Ela apóia-se na impossibilidade em que
se encon tra o espirita humano de pensar uma totalidade sem assinalar-lhe
limites, o que se chama em filosofia de impossibilidade de uma regressão ao
infin ito A an titese, por sua vez, afirma que o mundo não tem começo nem
limites, nem no espaço nem no tempo Ela é demonstrada pelo absurdo de um
começo absoluto do mundo, o que levaria a pressupor um an tes do m undo,
e, por absurdo semelhante, um espaço vazio além do mundo, ou no qual o
mun do se encontrasse, por assim dizer, suspenso O mundo é, portanto, infi
nito, tanto no espaço como no tempo Kan t não resolve imediatamen te o
conflito, mas passa para o segundo, cuja estrutura é sem dúvid a análoga A
tese postula
77
Compreender
que existem somen te o simples e o composto O argumen to é simples: ou o
pensamento não pode suprimir a composição, e assim não pode ser negado,
ou pode fazê-lo, mas então o que permanece é o simples, do qual há em
segui da composição A antítese postula que o concei to de simplicidade é
absurdo, pois nada na experiência lhe corresponde
O terceiro conflito é, sem d úvida, mais complexo e mais importante por
suas consequências práticas A tese afirma a possibilidade de uma causalidade
pela liberdade, esta determinada como o incondicionado, na origem de uma
série causal? Dito de ou tro modo: uma causa sem causa. A antítese afirma
o absoluto determinismo da nat ureza, em nome do absurdo de uma causa
sem causa, que é, no fundo, uma anomalia da natureza Finalmente, o quarto
conflito opõe a tese da existência de Deus como causa do m undo, fundada na
necessidade de uma causa primeira, à sua negação
A solução pelo erro
O conflito não pode durar indefinidamente Antes de tentar reduzi-lo, Kant
empenha-se em mostrar a força de cada uma das partes presen tes As quatro
teses procedem do dogmatismo, na medida em que efetivamen te postulam a
existência determinada de um cer to númeio de realidades Elas têm um in
teresse prático, dando um fundamen to intelectual ao nosso sentimen to de
liberdade; têm um in teresse especulativo, pois nos permitem a esperança de
um conhecimen to finito; e, finalmente, têm a van tagem da popularidade, em
razão de sua proximidade com o senso comúm O adversário do dogmatismo,
o empirismo, não pode se valer de um in teresse qualquer, excluindo a liber
dade e Deus; não pode aspirar à popularidade, em razão de sua desmesurada
pr udência e de seu ceticismo constitutivo; por outro lado, tem um grande in
teresse teórico, pois tudo o que afirma é verificável experimentalmen te
Como decidir e libertar, assim, a razão, da desagradável situação em que
se encontra? Apesar da complexidade do texto, a situação é relativamen te
sim ples Consideremos o primeiro conflito Tese e antítese repousam no
conceito de mundo, ao qual são atribuídas qualidades opostas, a infinid ade
ou a fini tude Seu erro comum consiste em apoiar-se em um pretenso
conhecimen to do mundo, ao passo que não podemos possuir senão uma
in tuição bastan te limitada. O mundo não pode, em sua totalidade, ser dado
em uma experiência humana Apenas podemos ter uma idéia a respeito,
determinar como tarefa aumentar indefinidamen te seu conhecimento, mas
pretender possuir um sa-
78
A invenção do transcendental
ber determinado é uma impostura O mesmo vale para o conhecimento da
composição. Uma substância material não é cognoscível senão em urna intui
ção sensível limitada; nada permite ter uma posição definida sobre o caráter
divisível ou não da matéria
A d1stmção dos pontos de
vista
Os dois conflitos seguintes são muito mais difíceis de resolver Mais exata
men te, não se poderá colocar em posição antagônica os protagonistas alegan
do seu erro cornu1n Será necessária muita sutileza para reconciliá-los, pois
ambos tem razão, mas segundo diferen tes pon tos de vista Consideremos a
liberdade No sentido cosmológico, ela é o poder de começar, por si mesmo,
uma série causal'° Assim definida, ela não pode ser senão uma idéia, pois toda
experiência supõe uma determinação causal dos fenômenos, o que justamen
te exclui o ato liv1e Kant insiste: essa liberdade transcendental, embora não
passe de uma idéia, funda a liberdade prática, quer dizer, "a independência do
árbitro em relação à pressão dos impulsos da sensibilidade"91 Sem a idéia da
liberdade, a reflexão moral em seu conjunto perde todo o sentido. O in teresse
da razão ern sua vocação prática exige que se salve de uma maneira ou de
outra essa liberdade Subentendendo-se que não se trata de demonstrar
experimen talmente a existência, é preciso ao menos poder indicar a
possibilidade de sua idéia, quer dizer, a inteligibilidade de uma conciliação
entre a natureza determi nista e a liberdade determinan te
A causalidade por liberdade não pode ser sensível: ela é, pois, necessa 
riamen te in teligivel Ao se considerar o homem enquanto objeto transcen 
den tal, quer dizer, enquan to fundamen to dos fenômenos que constituem
sua experiência, nada impede de atribuir-lhe uma liberdade in teligível, não 
se aplicando então a causalidade senão ao desenr olar fenomenal de seus atos 
A causalidade por liberdade, atribuida ao ser humano como coisa em si, em 
nada é implicada pelas condições de possibilidade do conhecimento - 
es paço, tempo, necessidade causal Pode, pois, conciliar-se muito bem com
o absoluto determinismo aplicando-se aos atos humanos, uma vez que 
estes, após uma impulsão inteligível, acham-se con tidos na rede das leis 
naturais No fundo, tudo é uma questão de perspectiva:
90 Cf A 533/B 561
91 A 534/B 562
79
.
Compreender
1
Assim, liberdade e nat ureza, cada qual en1 seu sentido completo, estariam jun
tas e sem nenhum confli to nas mesmas ações conforme as aproximamos de sua
cau sa in teligível ou de sua causa sensive192
O homem é cidadão de dois mundos Dotado de razão e de en tendimen
to, faculdades absolu tamen te distin tas da receptividade da sensibilidade,
ele participa de um universo onde a causalidade nat u ral não tem mais poder
de le gislar Essa participação explica, sem dúvida, que se possa censurar ao
homem suas ações, visto que seu desenrolar fenomenal é evidentemen te
determinado temporal e espacialmen te Podemos, assim, atribuir ao sujeito
agen te a total responsa bilidade por seus atos, reconhecendo ao mesmo
tempo que a relação da liberdade como causa inteligível para seus efeitos
sensíveis sempre perma necerá incompreensível\JJ
Deus como ideal
Teremos ocasião de falar mais ad ian te da concepção kan tista de Deus e da
religião Mas a idéia de Deus in tervém uma primeira vez no pensamen to cri
tico não sob o aspecto propriamen te religioso, mas como prod u to natural da
razão em sua busca de integralidade. A razão, por sua própria consti tuição e
pela tensão que a distingue, "precisa do concei to daquilo que é absolu tan1en
te in tegral em sua espécie, de modo a poder esti1nar e medir, em
conseqüência, o grau e a falca do que é incompleto""' Sem dúvida, um ideal
não é jamais apre sen tável na experiência, mas é exigido pela razão como
substrato de toda a realidade, como fundamen to da determinação completa
desta. Deus é o nome transcenden tal desse princípio Vê-se de pronto que
nada há de religioso em tal afirmação da divindade O in teresse dessa
passagem reside muito mais na análise paciente que Kant fará das diferentes
tentativas de demonstração da existência de Deus Voltaremos a isso adian te,
pois essa análise não é determi nan te no itinerário da dialética transcendental
92 A 542/B 569
93 Cf A 557/B 585: '·mas porque o caráter inteligível traz justainen te esses fenõn1enos e
esse caráter empírico nas ci rcunstâncias presentes? Aí está uma questão que vai n1ui to aléin
do poder de nossa razão de dar-lhe resposta
94 A 570/B 598
80
A invenção do transcendental
Para que se/Vem as
idéias?
Idéia da alma, idéia do mundo, idéia da liberdade, finalmente, ideal de Deus
Todos esses conceitos são o efeito inevitável da racionalidade Como tais, não
se pode considerá-los como erros, e devem poder desempenhar um papel par
ticular na vida do espirita, desde que se lhes aplique uma disciplina dada, úni
ca capaz de evitar errâncias transcendentais
A elaboração da utilidade das idéias funda-se em Kant no pr incipio de
uma função reguladora dos conceitos da razão. Tomemos a idéia de mundo,
que, como vimos não pode corresponder a nenhum conhecimen to verdadeiro,
pois a totalidade dos fenômenos não é suscetível de ser dada em uma intuição
sensível Devemos, por isso, considerá-la insensata e inútil? Kan t responde
de modo negativo: na medida em que não se confunde o uso consti tutivo do
mundo com seu uso regulador, a idéia tem uma legitimidade e um valor
Não nos resta, pois, outro valor a atribuir ao princípio da razão senão aquele de
uma regra da progressão e da grandeza de uma experiência possivel, depois de ter
mos mostrado suficien temen te não haver nenhuma como principio constitutivo
dos fenômenos em si95
A idéia do mundo como idéia reguladora forma o horizon te de toda
ciên cia dos fenômeno.e; Nesse sentido, pode ser o lugar do princípio de
progressão, não no sentido de uma totalidade real, mas no sentido de uma
totalidade ide al, em que somen te o pensamento pode acompanhar o
conhecimen to em sua construção sintética
Kant repete a operação em relação ao ideal de Deus Depois de ter r ejei
tado a totalidade das provas que se possam dar de sua existência, Kan t
afirma que o ideal do ser supremo é
um principio regulador da r azão, que consiste em olhar cada ligação no mundo
como se ela pr oviesse de uma causa necessária absolu tamen te suficiente, a
fim de fundar ai a regra de uma unidade sistemáticaªu
O essencial desta tese reside no con10 se Deus não é o principio constitu
tivo da unidade do real, no sentido de poder efetivamente perceber fenome-
95 A 516/B 544
96 A 619/B 64 7
81
T
Compreender
nalmen te seu trabalho Ele não é senão o horizon te de unidade dessa mesma
realidade, um horizon te produzido pela razão, que faz como se houvesse real
mente um Deus no principio do real
Kan t volta, enfim, a esse uso regulador das idéias em um apêndice que
conclui a dialética, e que lhe é exclusivamen te consagrado Insiste ai no
caráter indispensável de tal uso: com efeito, somen te as idéias transcenden
tais po dem construiI por sua união o focus imaginarius do conhecimen to,
esse ponto imaginário para o qual tendem todas as regras do entenclimento 97
A razão realiza um trabalho preparatório em vista do entendimento As
idéias não são o que a razão acrescenta ao conhecimen to da nat ureza para
pensar sua unificação, elas são o que a razão postula an tes mesmo que in
terve nha o entendimen to, ele maneira a que este encon tre um campo de
aplicação preparado pelos princípios de homogeneidade, de variedade e de
afinidade de todas as leis que poderá em seguida formular"° Nesse sentido,
as idéias funcionam um pouco como um esquema: mas, enquan to o esquema
une con ceitos e in tuições na constituição de um efetivo saber, a idéia une
entre si as leis do en tendimen to, sem poder afirmar-se como um conhecimen
to novo A
idéia jamais será senão algo análogo a um esquema 0 !l, ela não terá jamais, ao
menos no campo teórico, verdadeira função detei minan te; o que a razão fará
no campo prático é bem mais essencial à sua vocação fundamen tal
O que é uma
metodologia?
A dialé:ica transcendental é acompanhada de uma teoria transcendental do mé
todo Este texto visa a determinar as condições formais de um sistema completo
da razão pura 100 Esse procedimento compreende três etapas: uma disciplina
da
razão pura, que limita seu uso aos estreitos limites de sua legitimidade; um câ
non da razão pura, que enumera as regras dessa utilização legitima; finalmente,
uma breve história da razão pura, que apenas esboça a situação da cri tica em
relação à história da metafisica Já percorremos longamente o cânon, que esta
belece certos princípios fundamentais da filosofia kantiana Um rápido olhar à
disciplina impõe-se aqui, pois ai encon tramos um certo número de
observações
97 A 644/B 6 72
98 A 65 7/B 686
99 A 665/B 693
100 A 707/B 736
82
A invenção do transcendental
que, ao mesmo tempo em que não se integram verdadeiramen te ao desenvolvi 
men to da primeira Crítica, são sua instrutiva elucidação
O texto da disciplina determina, num primeiro tem po, o que é no fundo
um conhecimen to filosófico Kant o define como um conheci men to racional
por concei tos, quer dizer, um conjunto de proposições transcenden tais pelo
qual é inicialmen te post ulada a possibilidade de um con heci men to em
geral Con traria1nen te às matemáticas, que constroem seus próprios concei
tos e de finições, a filosofia não u tiliza nem definições, nern axiomas, nem
den1onstra ção A racionalidade filosófica não deve, por tan to, querer imitar
as matemáti cas, ela deve submeter-se a essa disciplina da humildade
Há ainda assim uma even tual utilização polêmica ela razão A r acionalida
de c ri tica não deve se perder em vãs questões Ela deve con ten tar-se em esta
belecer os limi tes da razão, con trapondo seus adversários dogmático e cético,
cujas diferentes posições enraizam-se sempre em um esquecimen to desses
limites. A razão eleve, por fim, fazer uso muito pruden te das hipóteses e das
provas: as primeiras, para opor-se às i n tenções destrutivas das teses adversas;
as segundas, somen te se são verdadeiramen te conclusivas e demonstram tan
to o resul tado co1no o procedirnen to racional que a isso conduz
Aqui term ina nosso longo percurso da primei ra Crítica Ele não tem a
pre tensão de ter esgotado o assunto M ui tas in terpretações divergen tes
podem ser apresen tadas desse tex to em todos os pon tos extraordinário
Aquela que aqui propomos é modesta, nào tern ou tro objetivo senão ler no
texto o tra balho da disposição filosófica que nos parece ser a base da obra
kantiana e da racionalidade humana
83
Capitulo Ili
o fato do dever
A pri meira Critica , apesar da complexidade de seus desenvolvimen tos,
não questiona nem a definição tradicional da verdade como adequação do
julga men to ao real, nem a evidência de fato da ciência O conheci men to
cien tifico existe, a verdade pode ser alcançada, urna critica é necessária
apenas para es tabelecer as condições e os limites de tal aquisição
Factum rationi.
A moral como reflexão
sobre a consciência da obrigação
A hipótese que nos guiará ao longo desta travessia pela filosofia moral de
Kan t pode ser assim formulada: a moral kan tiana é uma reflexão sobre a
consciência da lei, do mesmo modo que sua filosofia teórica é uma reflexão
sobre a ciência Nos dois casos, o pon to de par tida não é questionado, ciência
e consciência moral são considerados um fato eviden te, que será preciso ela
borar e não legitimar
85
Compreender
O fato da consciência moral
No caso da moral, as coisas se tomam, é claro, ainda mais complicadas pela
impossibilidade de demonstrar a existência de um só ato au tenticamen te mo
ral Todavia, apenas a presença em nós da obrigação, ainda que jamais fosse
acompanhada de efeitos, represen ta para Kan t o pon to de partida de toda
filosofia prática, cará ter admirável da humanidade, analogon ético do céu es
trelado acima de nossas cabeças 1
A evidência da moral
Esse caráter fundamen tal do procedimen to kan tiano apar ece desde o texto
de juven tude, de título sugestivo, consagrado à Investigação sobre a evidência
dos princí pios da teologia natural e da moral (1763)2 Kan t mostra aqui que a
filosofia, con trariamen te à matemática, deve parti r daquilo que parece evi
den te, para analisá-lo ou even t ualmen te corrigi-lo. O fim do texto é bem
claro a esse respei to: a consciência da obrigação é um dado indubi tável do
espíri to humano, e as filosofias do sentimen to moral têm razão de insisti r
sobre sua dime nsão ao mesmo tempo primitiva e universal Uma n1etafisica
dos cos tumes apenas poderá aplicar a um tal sentime n to o poder do racio
nal, a fim de distinguir o n úcleo a priori , o único capaz de resisti r às ten tações
do egoismo e do in teresse
O primeiro grande texto da moral kan tiana -a Fundamentação da
meta física dos costumes -retoma esse procedimento Kan t reconhece, com
efeito, que uma verdadeira fundação da metafisica dos costumes não pode ser
senão o fato de uma Critica da razdo prática Mas, como no campo 1noral o
conheci mento comum já se encontra em grande parte na verdade, basta, ao
menos num primeiro tempo, formular e estruturar a evidência moral sempre
presen-
1 Cf aqui a célebre conclusão da Critica da razão prática (CRPr) AK V 161; P II, p 801-
802: "Duas coisas enche1n o coração de uma admiração e de uma veneração sempre novas e
sempre crescentes, na medida em que a reflexão nisso se detenha e refli ta: o céu estrelado
sobre mim e a lei tnoral em mim Essas duas coisas, não é pr eciso que eu as procure ou que faça
delas con jecturas além do meu horizon te, como se estivesse1n envoltas e111 trevas ou
situadas em uma região transcendente: eu as vejo diante de mim e as associo imediatamen te
à consciência de n1inba existência ·
2 Para rnais inforn1ações. remetemos à intiodução de Jean FERRARI na edição de La P!éia·
de (P 1. p 201-213)
86
O lato do dever
te no julgamen to do povo. A busca do principio supremo da moralidade que
constituiu este primeiro texto é, além disso, explicitamente destinada a um
público popular, considerando que a consciência comum tem mais necessidadede ser esclarecida e consolidada do que de ser instruída
A Fundamentação é uma cômoda porta de entr ada para a moral kantiana
Mas a verdadeira elaboração dessa moral, no que possui de mais original, en 
contra-se, sem dúvida, na Crítica da razão prática Sem rnmper de modo 
algum com o texto preceden te, Kan t formula muito claramente o principio 
do con junto de sua moral: a existência em nós de um fato misterioso, fato da
razão, fato da lei, fato da liber dade
O fato da
razão
O fato de a moralidade não se submeter aos critérios da razão teórica já apa 
rece, bem entendido, na Fundamentação da metafísica dos costumes, sobretudo 
quando Kan t afirma que a inexistência de um único ato moral passível de com 
provação não invalida em absoluto a determinação racional feita a seu respei 
to Tódavia, a distinção entre razão prática e razão teórica in tervém apenas no 
momen to em que essa ausência de exemplo de ato moral é suprida pela po 
sição de um fato da moralidade a partir do qual pode se desenvolver uma crí 
tica da razão pr ática, paralela e comparável em sua estru tura à da razão pura 
Enquan to a Fundamentação da metafísica dos costumes , atendo-se sobretudo
à rejeição da experiência, deixa afinal em suspenso a questão propriamente 
transcendental da possibilidade do dever, a Crítica da razão prática admite, com
o fato da razão, uma transgressão da distinção racionalidade/sensibilidade 
para responder a essa pergunta a partir de uma experiência sem dúvida sin 
gular, porém real
Há a obrigação Uma crítica da razão prática, não é, pois, a demonstração
da existência, no homem, de um conceito de dever; ela é a aplicação racional
de um dado experimental ao mesmo tempo indubi tável e inexplicável: a
cons ciência da lei moral Parte dai, logicamen te, o texto kantiano Na medida
em que a nat ureza obedece a leis que a ciência determina por seu
procedimen to cognitivo, o sujeito humano, como sujeito livre, não pode
conceber a lei moral senão como uma regr a que pode ou não ser aplicada
Não será, pois, questão de estudar a experiência dos costumes para
determinar suas constantes, mas de enunciar simplesmen te aquilo que o
sujeito deve fazer, quer ele o faça ou
87
Compreender
não O conceito kantiano corresponden te a essa regra prática, eventualmente
seguida de efeitos, é o imperativo3 O dever moral, que formula o imperativo,
provém da própria razão, não pode ser objetiva e universalmen te válido senão
sob a condição de uma total abstração das circunstâncias subjetivas e contin
gentes que cercam o ato propriamente dito O rigor e a severidade da moral
kantiana não devem, pois, ser interpretados como a consequência filosófica de
uma tendência psicológica do individuo Kan t, marcado pelo pietismo de sua
educação ou pela rigidez de sua personalidade Estes são os instrumentos de
uma completa análise daquilo que deve por princípio ser a moral, supondo-se
que tal coisa seja possível
As primeiras páginas da analítica da razão pura prática, como de resto do
essencial da Funda1ne11tação, consistem em uma paciente supressão dos elemen
tos que a moral não pode integrar Assim, o primeiro teorema enuncia que:
todos os princípios práticos que supõe um objeto (matéria) da faculdade de de
sejar como princípio determinante da von tade são em seu conjun to empiiicos e
não podem servir como leis práticas 4
O homem é um ser de desejo Ele tende a querer realizar um cer to núme
ro de objetivos, na medida em que essa r ealização lhe proporciona um senti
mento de prazer Esse sen timento, embora legitimo, não pode de modo algum
ser fonte de obrigação, pois depende da configuração subjetiva do indivíduo
desejante, e, portan to, da experiência Como se poderia obter de tão frágil
base a indispensável universalidade do dever? Kan t amplia imediatamente o
alcance do argumento, assinalando que a totalidade dos princípios materiais
fundados no prazer pode ser en tendida como uma submissão da ação à busca
da felicidade e ao amor de si5 Voltaremos a este pon to, mais detidamen te
abordado na Fundamentação Lembremos apenas que Kant, longe de despre
zar a felicidade, a exclui em virtude de sua simples inadequação teórica às
necessidades de um fundamen to racional do dever
3 Cf CRPr, AK V, 20; P II. p 628: ""Ora, para um ser em quen1 a razão não é o ú nico prin cipio
detern1inante da von tade. esta regra constitui um ilnperativo, quer dizer, uma regra que é deter
rninada por um dever que expressa a exigência objetiva iinposta pela ação
4 lbid . AK V 21; P 11. p 630
5 Cf ibid . AK V 22; P l i, p 631:..todos os pr incipios práticos materiais pertencein,
corno tais, em seu conjun to, a uma 111es1na e única espécie. e podem ser classificados sob o
princípio geral do amor de si 1nesmo ou da felicidade pessoal'
88
O fato do dever
O terceir o teorema tira as consequências dos dois primeiros Se toda a
matéria da von tade é rejeitada na busca de um fundamen to do dever, só resta
a própria forma de todo dever como conteúdo da obrigação moral:
Quando um ser razoável deve pensar suas máximas como leis gerais prdticas,
não pode pensá-las senão como máximas que encenam o princípio determinan
te da von tade, não em r elação à matéria, mas somente quan to à formaG
Dito de outro modo: a única matéria possível para uma obrigação moral
de natureza universal é a própria forma da universalidade, quer dizer, a forma
da legislação Kan t o diz de maneira notadamen te resumida:
uma lei pr ática que eu reconheça como tal deve ser própria para uma legislação
universaF
Resta agora identificar tal lei e encontrar as palavras para descrevê-la
An tes de seguir Kan t nesse esforço de explicitação do dever, é preciso que
nos detenhamos no estatuto deste conceito de lei mor al, de um lado
indicando por que ela se mostra como um fato e, de outro, mostrando como
ela é, ao mesmo tempo, uma obra de nossa liberdade Parece-nos que o
estudo do imperativo categórico que expressa a obrigação não tem sen tido
senão se compreende mos previamente que a moral kan tiana não tem como
objeto dizer aquilo que devemos fazer, mas, mais fundamentalmente,
explicitar esse fato misterioso que nos leva a fazer, que somos obrigados e,
portan to, livres
Vejamos, pois, o texto em detalhe A von tade deve ser pensada como de
terminada pela simples forma da lei, pois todo o con teúdo iden tificável foi
ex cluido Essa excl usão da matéria significa também que a experiência
sensível, em sua totalidade, é aqui inútil e até mesmo perigosa Ao mesmo
tempo, é pr eciso constatar que existe em nós uma consciência da lei, que
nós enten demos que devemos, mesmo se nada fazemos. Kan t ataca, então,
a questão propriamen te transcendental -como é possível um imperativo
categórico?
-postulando, sem demonstrá-la, a existência de um fato da mzão:
Podemos chamar a consciência desta lei fundamental u111 fato da razão, por que
não se pode deduzi-la, mesmo por sofis111as, dos dados anteriores da razão, por
B !bid . AK V 2 7; P li. p 638
J lbid
89
Compreender
exemplo da consciência da liberdade; e porque, ao contrário, ela se impõe a nós
por si mesma, corno pr oposição sin tética a priori, que não se funda em nenhuma
in tuição, seja ela pura, seja ela ernpíl'ica 6
A razão prática tem, em particular, o fato de afirmar a si mesma pelo
fato', sem que tenha de submeter-se à demonstração de sua possibilidade ou à
exibi ção de sua realidade A lei, enunciada na consciência que dela tem o ser
razoável, escapa a toda determinação extrínseca, a toda consideração pelas
conseqüên cias ou pela matéria do querer; ela instala no coração da natureza
um Faktum especifico -nem dado da razão, nem in tuição empírica10 -que
não se deixa deduzir, mas a partir do qual poderão ser deduzidos,
sucessivamente, a liberda de como sua razão de ser, o bem e o mal como
objetos desta, e o respeito como seu efeito O conjun to dessa construçãoobedece a uma exigência inversa àque la que se impõe à razão teórica: não
considerar a experiência senão por aquilo que nela manifesta a lei; em
seguida, a obrigação dando-se como fato, dai ex trair a cadeia completa das
consequências, rejeitando radicalmente não apenas todo aporte sensível, mas
também toda consideração que possa rein troduzir na razão prática aquilo
que só pode valer para a teórica O Faktum é, assim, o único substituto desse
substituto cômodo de que dispunha a razão teórica na existência verificada
de uma ciência: ele possui sua realidade objetiva - ou melhor, é a
realidade objetiva do puro querer -sem, no en tanto, adaptar-se às
condições da objetividade teórica11 Ele transgride o corte sentimento/razão,
sem ja1nais renunciar à pureza de sua determinação prática
Liberdade e dever
O dever é um fato Dominado pela presença inquietante da lei, o kan tismo
prático não parece, de início, oferecer um quadro muito favorável a uma teoria
da liberd ade Todavia, como o próprio Kant afirma constantemen te, esse
con-
B lbid . AK V 31; P li, p 645
9 Cf CRP1: AK V 3; P II, p 609: ..Pois se, como razão prática. ela ê realmen te prática.
ela prova sua realidade e a dos seus conceitos pelo fato e nenhuma astúcia pode contestar sua
possibilidade de ser prática·
10 lbid , AK V 31; P 11. p 644
11 Cf ibid , AK V 55; P H. p 674: "A realidade objetiva de uma vontade pura, ou. o que ê a
mesma colsa. d:? uma razão pura prática, ê dada a priori na lei mora! de certo modo por um fato·
90
O fato do
dever
ceita de liberdade é o pilar de toda sua moral Como entender essa afirmação
e que sentido dar a essa palavra tão aviltada? . 
A abordagem kantiana do problema da liberdade é, ao mesmo tempo, 
tradi
cional e original: tradicional quando se trata de analisar sua relação com o
deter minismo causal que rege o mundo fisico; original quando afirmada
como princi pio ontológico do dever moral Kant aborda o primeiro desses
aspectos desde a c·ritica da razão pura , e em seguida na Pundan1entação da
n1etafisica dos costurnes
Na história da filosofia, a liberdade tem sido definida muito diversamen te
Podemos, todavia, guardar como caracterização mínima sua descrição como o 
controle, pelo homem que age, do desenvolvimen to de sua ação Isso significa
que se pode atribuir ao agente a responsabilidade por seu ato e que uma outr a
escolha teria sido possível A questão tradicional consiste em se perguntar se 
a percepção que a ciência possui da realidade questiona ou não a possibilidade
de tal poder Chama-se determinismo a afirmação segundo a qual as leis da 
natureza regem fenômenos de acordo com uma relação de causa-efeito fixa e 
imutável Que resta da liberdade do homem se cada uma de suas ações pode, 
na verdade, ser inteiramente previsivel? Eis o problema que, depois de muitos
outros, Kant irá enfrentar
Essa dificuldade aparece na Fundamentação , no inicio da terceira seção
A liberdade é ai definida como a capacidade de poder agir independentemente
das causas exteriores que a determinam Toda a moral esboçada nas seções
prece dentes repousa, finalmente, no conceito de liberdade: agir por dever
supõe, com efeito, que o ser razoável é capaz de ordenar sua ação em função
de uma repre sentação da lei, e não somente de seguir mecanicamen te a
causalidade natural Kant é assim obrigado, se quiser preservar seu sistema
moral, a demonstrar que a liberdade é passive! O problema do determinismo
não é, pois, colocado aqui por si mesmo, mas sim porque pode tornar a moral
sem objeto
Essa dificuldade é muitas vezes resolvida pela simples rejeição do deter
minismo causal E m Kant não pode ser este o caso, pois a Critica da razão
pura afirmara que os fenômenos sensíveis obedeciam a leis rigorosamen te
univer sais e necessárias A ciência física é, aliás, a descrição dessas leis, que
não so frem exceções ou incertezas Do ponto de vista das sensações e da
faculdade de percepção, o homem é inegavelmente submetido a essa
necessidade, como um fenômeno entre os fenômenos. Mas como ser
razoável o homem tem o poder de não depender mais inteiramente do
sensível, de agir espontanea mente e de maneira independente, de organizar
ele mesmo suas representa ções segundo as normas que dá a si mesmo O
quadro da solução kantiana é
91
Compreender
estabelecido por essa distinção: a liberdade e o determinismo irão coexistir
mas segundo dois pontos de vista diferentes. O homem como ser sensivel
ser determinado por leis feno1nenais: o homem, pertencendo por sua razão a
uma natureza inteligivel, será capaz de ser livre, quer dizer, estar ele mesmo
na
origem de uma cadeia causal
A filosofia kan tiana dá, assim, vários sen tidos ao termo "liberdade" Po
demos distinguir três deles: a liberdade transcenden tal, a liberdade prática e a
liberdade como autonomia. As duas primeiras são descri tas na Crítica da
razão pura; a última, na F'undan1entaçdo e na Critica da razão prática
A liberdade transcenden tal é o poder de começar por si mesmo um
estado cuja causalidade não é submetida, por sua vez, segundo a lei da
natureza, a uma outra causa que a determine temporalmen te Kan t define
a natureza como um conjun to de fenômenos condicionados pela causalidade.
Há , pois, Imediatamen te um confli to entre natureza e liberdade, que Kant
chama de an tinomia Kan t faz então da liberdade transcenden tal uma Idéia ,
quer dizer, u_m conceito produzido pela razão, inteiramen te independen te
da experiên Cia O sujei to que age é, pois, livre quando está no princípio de
uma sucessão ca usal: mas o é apenas como noiunenon , causa incognoscivel
dos fenômenos, O conflito é resolvido com a indicação de que repousava na
ignorância da dis
tição crí tica en tre o que é objeto da experiência e cio conhecimen to e 0
que nao pode ser senão pensado
A segunda concepção da liberdade é determinada pela primeira. Se afi r 
mamos que o homem é, de certo pon to de vista, independen te dos fenômenos 
ele é capaz de agir e assim de inserir-se na experiência para modificar 0 se 
curso, dando-se regras de ação. Kan t qualifica de liberdade prática essa in ter
pr etação da Lberdade: ele a considera uma aptidão antes de tudo psicológica,
sem analisar m ten-amente a relação desta com a liberdade transcendental A
doutrina kan tiana da liberdade não encontra, todavia, sua completa coerência
senão na Critica da razão prática
A diferença de estatuto entre a liberdade transcendental e a liberdade
como autonomia é mui to clara desde o prefácio deste úl timo tex to. E nquan
to a primeira não é senão uma possibilidade exigida pela moral, a segunda é
real e se dá pela própria lei moral. O texto é célebre e essencial, mesmo se
Kan t curiosamen te o relega a uma nota:
Gostaria apenas de observar que a liberdade é possivelmen te a ratio essendi da 
lei moral, mas que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade Com efei to, se a
92
O falo do dever
lei moral não fosse primeiro claramen te concebida e1n nossa razão, jamais nos
acharíamos autorizados a admitir uma coisa tal corno a liberdade (embora essa
idéia não implique con tradição) Por outro lado, se não houvesse liberdade, a lei
moral não poderia absolutarne11te ser encontrada dentro de nós12
Par a compreender este tex to é preciso lembrar aquilo que já dissemos
do fato da razão A consciência da lei moral se dá em nós racionalmente; a
partir desse fato inexplicável, pode-se deduzir -como sua condição de
possibilida de -a liberdade Se esta funda no ser a realidade da consciência
moral, esta última não tem sentido senão para um ser livre e constitui o revelador
dessa liberdade A introdução do texto repete ainda de modo diferen te: a
descoberta em nós da lei moral é um meio de demonstrar a existência da
liberdade, que por sua vez torna concebível a própria idéia de uma moral 13
A lógica da Critica da razão prática pode, enfim, ser assim reconstituída:o prefácio e a introdução indicam por que a liberdade é o fundamento da
moral; o primeiro capitulo da analítica estabelece pelo fato da razão que essa
liberda de é real, e formula explicitamen te a obrigação moral; os capitulas
seguintes estudam sua aplicação
A imbricação dos conceitos de dever e liberdade é aqui constante, como
se Kant se dedicasse a aprofundar cada vez mais a relação esboçada na nota
que acabamos de citar. Essa in timidade culmina no parágrafo in titulado "Da
dedução dos principias da razão pura pr ática":
Essa analitica [ ] mostra, ao mesmo tempo, que esse fato está inseparavelmente
ligado, e mesmo idêntico, à consciência da liberdade da vontade 14
A função da moral
Havíamos partido deste ponto: a moral é uma evidência A filosofia critica
contentar-se-á em estabelecer a realidade desse fato, por um lado para expli-
12 lbid . AK V 4; P li, p 610
13 Cf ibid , AK V 15; P l i. p 624: "e se podemos agora encontrar meios de provat que essa
propriedade per tence efetivamen te à vontade humana (e assim igualmente aquela de todos os
seres razoáveis), será assirn demonstrado não somente que a razão pura pode ser prática. mas
que ela somente, e não a razão empir icamente limitada, é prática de modo incondicionado·
14 lbid , V 42; P li, p 658
93
Compreender
citar suas modalidades, por outro para consolid ar sua infl uência na von tade
humana Esses dois aspectos são, ademais, indissociáveis no espírito de Kan t:
mostrar por que a consciência moral é um dado inexplicável con tribui para
dispensar-lhe um efeito rnáximo no agir h umano Essa vocação concreta da
moral kan tiana, sua preocu pação em i nfluenciar realn1ente o compor tamen to
do homem, aparece desde a Fundamentação da metafísica dos costumes
Kan t reflete, com efeito, desde a primeira seção, com ceI ta admiração
so bre a faculdade de julgar prática da humanidade A função da
humanidade deve, pois, ser limitada nesse campo: não se tra ta de in
troduzir considera ções estranhas ao conhecimen to moral comum, mas
somen te de expor mais claramen te e mais completamen te os principias e o
sistema. "A inocência é uma coisa bela; mas é pena que saiba se preservar
tão pouco e que se dei xe tão facilmente seduzir'"L a filosofia moral deve
simplesmen te proteger a consciência comum, dar-lhe uma solidez e uma
consistência suplementar Ela deve, sobretudo, ir ao encontro da dialética
natural do espírito humano, que bem gostar ia de acomodar a justa
consciência que tem do dever à satisfação de suas tendências e seus desejos
A filosofia deve, finalmen te, produzir uma critica completa da razão prática
para fortalecer definitivamente os elemen tos
morais já presen tes no conhecimen to popular
É, pois, ainda uma vez e muito logicamente na Crítica da razão prática
que essa preocupação toma sua forma conceitual mais satisfatória, pois a
clareza da elaboração do fato inicial da consciência moral está diretamen te
ligada à sua penetração no coração do homem
Se no pensamen to kantiano a afirmação do formalismo moral e de sua
justificação é absolu tamente determinan te, um dos elementos desse forma
lismo - a pureza da lei - parece ser para Kan t o objeto de uma
especial preocupação e de uma atenção reiterada, como se o que impor
tasse para a moral não fosse tanto a realidade da moralidade mas a afirmação
mais pura e, por conseguin te, a mais dura do fato da obrigação, livre de toda
empiria, mas também de toda dimensão antropológica, sentimen tal e até
mesmo -como mostraremos -de todo aspecto teórico
A pureza da lei não seria, pois, simplesmen te uma das conseqüências da
elaboração kantiana do dever moral -na resistência à sensibilidade ou na es
tri ta posição da distinção teórica/prática -mas, na raiz do conjunto de proce
dimentos argumentativos da moral kantiana, a condição de existência da mo-
15 Fundamentação da metafisica dos costurnes ( F!v!C), AK IV, 405; P 11. p 265
94
O fato do
dever
ralidade; a preocupação de afirmar essa pureza tornar-se-ia, assiln, anterior à
própria vida da moral, uma preocupação cujo esquecimen to seria, como afirma
Kant na Doutrina da virtude , a eutanásia da moral'' O combate contra a dialética
natural do espíri to humano, sempre pron to a submeter a lei ao desejo
17
, impõe
se, então, não apenas como uma necessidade teórica, 1nas primeiramente corno 
uma questão de vida ou morte da moralidade, quer dizer, in fine , da humanidade 
Dito de outro modo: o objetivo primeiro da moral kantiana não é a construção 
de uma nova ética do comportamento, mas a salvaguarda do abismo que separa 
a descrição teórica e a descrição prática, ou a obsessão de não oferecer à expe 
riência senão a fina ponta de uma lei, purificada de tudo o que possa perturbar 
sua dolor osa inscrição no corpo do ser razoável, ainda que essa lei não viesse a 
ter conseqüências maiores que a má consciência daquele que a tomasse
Essa preocu pação com a pureza do descritivo não é, todavia, sarnen te a
marca de uma probidad e exemplar em 1elação à lei: ela enraiza-se em uma
preocupação aparentemen te oposta, a da eficácia da lei ou de sua mais profun
da penetração no espírito do homem como ser razoável Essa busca da eficá
cia apar ece desde o início da Pundan1entação da rnetaffsica dos costurnes: assim
como a divisão do trabalho é condição para a saída do estado de bar bárie, as
sim essa divisão, aplicada à filosofia, impõe-se para aumen tar a ren tabilidade
do trabalho do pensamen to'" Preservar o dever de toda con tribuição estran
geira, de toda sedução exterior, é assegurar-lhe uma influência mais poderosa
do que todos os motivos que se possam encontrar no campo da experiência;
é permitir-lhe maior influência na vontade; é, finalmen te, dar-lhe um espaço
maior na consciência e, desse modo, a esperança, se não a certeza, de uma real
aplicação do dever moral, ainda que apenas em autên tica receptividade à lei
A pureza da lei é, assim, a vida da moral e sua própria dignidade, o que lhe
permite servir de princípio pr á ticorn; a pureza da obrigação -sua indecidibi-
16 Cf Doutrina da virtude. AK VI. 378; P rI I. p 655: "Se não obser varmos essa distinção,
se postularmos em princípio a eudemonia (o principio da felicidade) em lugar do da e!eutero
nomia (princípio da liberdade na legislação interior)., disso resultará a eutanásia (a n1orte suave)
de toda a moral'
17 Cf FMC . AK IV, 405; P II. p 266: ··Assim se desenvolve insensivelinente no uso prático
da razão comum. quando cul tivada. uma dialêtica'·
18 Cf ibid . AK IV 388; P II. p 244: ''Na medida em que os trabalhos não são diferencia
dos e divididos. em que cada um ê um ·a1tísta dos sete instrumentos· as atividades per mane
cem na maior bar bárie'
19 Cf ibid . AK IV 411; P II. p 2 73: '"que é essa pureza de origem que os torna precisamen
te dignos.. como o são, de nos servir de princípios práticos supremos·
95
Compreender
!idade e sua injustificabilidade -é a última pedra de toque de toda metafisica
dos costumes, assim como também aquilo que nela é in tangível, incompreen
sível, o que o filósofo nos limites da razão humana só pode conceber da lei,
sua inconcebibilidade'° O que r estará da moral não é sua elaboração, mas seu
fato; não a obediência à lei, mas o ser-obrigado do homem; não a justificação
teórica do dever, mas sua marca, no respeito
No fundo, escrever uma moral pode reduzir-se a iden tificar os mal-enten
O fato do dever
primeira cri tica, pois nenhum conhecimen to teórico dessa liberdade é aqui
afirmado'°; mas pensar a liberdade não é conhecê-la, e uma filosofia conse
qüente pode fazê-lo porq ue deve fazê-lo
Os imperativos:
o homem e seu
dever
didos ligados a toda ten tativa ética21 e voltar ao essencial, isto é, ao que não
pode mais ser fundado As observações nesse sentido são bastante numerosas
no conjunto da filosofiaprática de Kant". Quando Kant escreve:
Mas como é possível essa consciência das leis morais, ou, o que resulta na mesma
coisa, como é possível a consciência da liberdade? É o que não se pode mais ex
plicar; pode-se simplesmen te mostrar que é possível admi ti-lo sem contradição
na crítica teórica2J,
não devemos ler ai o reconhecimento de um fracasso, mas a identificação de
uma verdade primeira: o fato da moral é incompreensível O fato da razão é
absolutamen te certo; é, pois, impossível justificá-lo A lei e a liberdade são
dadas, sem que jamais se possa nem demonstrá-las experimentalmen te, nem
conhecê-las cientificamente, entendendo-se que uma e outra são entidades
racionais, ou inteligíveis, das quais nenhuma intuição é concebível
A posição do fato da razão permite-nos postular legitimamente no
mun do in teligível a existência de uma realidade, a liberdade, da qual
nenhuma experiência é possível Não há ai nenhuma transgressão dos
principias da
20 Cf ibid , AK IV 463; P II, p 33 7: 'Assim, não compreendemos. sem düvida, a necessi dade
prática incondicionada do irnperativo moral, n1as ao menos compreendernos sua incom
preensibilidade. e isso é tudo o que se pode razoavelmente exigir de uma filosofia que se esfo1ça
em alcançar em seus principias os limites da razão humana·
21 Cf CRPr, AK V 7; P II, p 613: "Somente uma crítica detalhada da razão prática pode le van tar
todos esses mal-entendidos e revelar plenamen te essa maneira conseqüen te de reflexão que
constitui precisamente sua principal van tagem'·
22 Veja-se sobretudo A religião nos limites da sirnples razâo. AK VI, 138s ; P !II, p 168s , e
igualmente Teoria e prdtica. AI< VIII, 287; P III, p 267: "O fato de o homem ser conscien te de
poder fazê-lo porque deve fazê-lo abre dentro dele um abismo de disposições divinas que o
fazem experiinentar uma espécie de temor sagrado dian te da gt andeza e do caráter sublime de
seu verdadeiro destino'·
23 lbid , AK V 46; P li, p 663
96
A análise da formulação kan tiana do dever moral exige uma leitura conjunta
da Fundamentação e da Critica da razão prática O primeiro texto, mais
simples e mais concreto, tenta enunciar sob uma forma acessível o conteúdo da
lei moral de modo a permitir sua eventual aplicação A segunda Crítica
pouco se detém nesse ponto, preferindo insistir, como nós mesmos o fizemos nas
páginas precedentes, no caráter originário da consciência moral Não h uma
ruptura entre as duas obras, mas uma inflexão sensivel na apresentaça dos
conceitos -sem dúvida, a Critica está mais próxima que a F undarnentaçao da
posição kantiana definitiva
As palavras do dever
Per corramos rapidamen te o texto de 1785 O segundo tempo da segunda
seção abre-se corn uma distinção kan tiana característica de seu pensamen to
Todo 0 ser age, para Kan t, segundo leis Os fenômenos naturais obedecem
às leis físicas Os seres razoáveis agem, por sua vez, segundo a represen
tação que fazem das leis às quais desejam se submeter Aqui, a von tade é a
capa cidade de escolher os principias da ação, e deve ser identificada à
própria razão como razão prática No homem, todavia, essa iden tificação
da von tade à razão torna-se problemática pela influência que essa mesma
von tade sofre por parte das condições subjetivas da sensibilidade Disso
decorre um con flito -uma tensão -que transforma a lei em uma
obrigação, pars o homem não é capaz de conformar-se a ela de modo
algum, ele que con tinua a ser racional e sensível
24 Cf ibid , AK V 56; P II. p 675
97
,
Compreender
O pnncípio da
universalidade
A par tir dessa definição da obrigação, Kant pode enunciar a do imperativo: "a
represen tação de um princípio objetivo, na medida em que esse principio é
exigível para uma vontade, chama-se um comando (da razão), e a fórmula do
comando charna-se um imperativo"25 O imperativo enuncia, pois, o dever para
um ser que não o respei ta necessariamen te Ele não diz Iespei to, assim, a um
ser perfeitamente bom, em quem o querer está de imediato de acordo com a
lei moral. Por conseguin te, não há imperativos senão para os homens, sendo o
ser divino nat uralmente, e por definição, moral
É preciso, entretanto, proceder às distinções indispensáveis no interior do
conjunto dos imperativos Alguns, os imperativos hipotéticos, afirmam a neces
sidade prática de aplicar certos meios para chegar a um fim visado. Um ou tro,
o imperativo categórico, representa a necessidade de uma ação em si mesma,
sem que essa necessidade derive de um objetivo qualquer Os primeiros
afirmam que uma ação é boa em vista de um fim possível (o imperativo é,
então, qualificado de problematicamente prático) ou real (neste caso é chamado
de necessariamen te prático); o segundo declara a ação necessária em si
mesma, e enuncia assim um princípio apodicticamen te prático (quer dizer,
absolutamente necessário)
Kan t determina, em seguida, o conteúdo desses diferentes imper ativos
Aqueles que têm por objeto designar o melhor meio de se chegar a um fim pos
sivel são irr-.perativos de habilidade Ele dá o exen1plo seguin te: se u1n r néclicu
quer rapidamen te curar seu pacien te, então deve proceder desta ou daquela
maneira. Encontramos, por ém, um fim que os homens perseguem sempre: a
felicidade Fala-se, então, de imperativos da prudência para qualificar o enun
ciado dos métodos mais eficazes para sua conquista. Finalmen te, o imperativo
categórico não diz respei to ao conteúdo efetivo da ação e àquilo que even tual
mente poderia disso resultar, mas à sua forma somente, e à in tenção que pre
side à ação Fala-se en tão de moralidade Enquan to os imperativos hipotéticos
deságuam em regras de habilidade e em conselhos de prudência, somen te o
imperativo categórico supõe uma necessidade sem condição, e formula-se por
um comando Só ele, em definitivo, tem uma dimensão moral
A questão é saber como esses imperativos são possíveis As regras da ha 
bilidade, os conselhos de prudência não represen tam problemas especificas 
Nos dois casos, a proposição que contém o imperativo é analítica: a análise da
25 FM C AI< IV 413: P 11. p 2 75
98
O lato do dever
finalidade permite determinar os meios para atingi-los, sem que seja necessário
sair do conceito deste fim É claro que as coisas são mais complexas para os
conselhos de prudência, pois o fim -a felicidade -é uma idéia tão indetermi
nada que é difícil entender como se poderia dai deduzir uma descrição tão pouco
precisa dos meios para alcançá-la A tal ponto que "o problema que consiste em
determinar de modo seguro e geral qual a ação a favorecer a felicidade de um
ser razoável é um problema absolutamente insolúvel"'" Estabelecer condições
de possibilidade do imperativo categórico apresenta dificuldades bem mais im
portan tes Com efeito, não se pode deduzir o dever da finalidade da ação, ou de
suas conseqüências, pois o ato não seria mais, então, realizado por dever, mas
em vista de um r esultado O imperativo categórico deve, pois, ser considerado
como uma proposição sintética que une a vontade e a lei moral
Curiosamente, Kan t abandona subitamen te a busca dos fundamentos
do imper ativo categórico, como se bastasse ter notado suas especificidades 
Como uma solução satisfatória do problema implica uma cr itica da razão prá 
tica -esta é esboçada na terceira seção -, I(an t con tenta-se em insistir 
no fato de que o imperativo categórico é uma lei prática, que se impõe 
indepen den temente de toda finalidade particular Isto posto, pode ser ú til 
dar sua fór mula, na falta de melhor explicação
A primeira formulação do impera tivo categórico baseia-se em sua iden ti
dade de forma e conteúdo Um imperativo hipotético recebe seu con teúdo do
fim buscado. O imper ativo categórico, por sua vez, comand a absolutamente:
sua forma é a universalidade do dever; sua matéria é a necessidade de cumprir
o dever pelo dever Disso decorre que o imperativo categórico é in teiramentedefinido pela necessária conformidade do principio de minha ação -sua má
xima -com a forma da lei em geral, a universalidade. Pode-se en tão dizer
que o imperativo categórico afirma: "age unicamen te segundo a máxirna que
faz
que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se tor ne u1na lei universal"27 A lei
mor al é tão universal quan to uma lei da nat ur eza, que funciona aqui corno
um modelo Devo agir de tal modo que a universalização de minha máxima
seja para mim desejável Isso não significa interrogar-se sobre as possíveis
conse quências da minha ação (o que acon teceria se todo mundo fizesse
como eu?), mas aplicar-lhe um teste, permitindo identificar sua moralidade em
virt ude da exigência, para o dever, de ser seguido como uma lei
26 lbid . AK IV 418; P !!, p 282
21 !bid , AK IV 421; P !!. p 285
99
Compreender
Kant indica um primeiro exemplo: tome-se um homem desesperado, de
sejoso de suicidar-se A máxima de sua ação é, pois, a seguinte: por amor a
mim mesmo, pr efiro abandonar a vida Kant replica: o amor a si é um princípio
que leva ao desenvolvimen to da vida Não se pode fazer dele, sem con
tradição, um motivo universal de destruição da vida O exame do preceito
conduz aqui a uma contradição lógica no in terior da natureza O exemplo
seguin te obedece à mesma lógica O princípio de um individuo que toma
emprestado dinheiro, tendo decidido jamais devolvê-lo, consiste em dizer que a
necessidade legitima a men tira A universalização da máxima conduz
necessariamente à impossibi lidade de toda promessa e de todo con trato; a
men tira perde todo sentido, ao mesmo tempo em que o concei to de verdade
A ação aqui examinada torna-se ela mesma contraditória, pois destrói a
instituição que se permi te não respei tar Os dois exemplos seguin tes são de
natureza um pouco diferen te Kant não diz que a universalização da máxima da
preguiça e do egoísmo leva a uma con tradição, mas que não posso querer essa
universalização, na medida em que ela se con trapõe às necessidades da razão,
no primeiro caso de desenvolver seu talen to, no outro de poder con tar com a
assistência do outro
Agi r de modo con trário à moral consiste em estar conscien te da im
possibilidade de universalizar sua máxima, concedendo-se uma exceção à
lei Não posso querer a universalidade da men ti ra, mas posso permi tir-me
men ti r de tem pos em tempos, a titulo excepcional Como vemos, o impera
tivo categórico funciona corno um teste teórico de moralidade Sua validade
vem da própria razão, ela não deve de modo algu m ser deduzida da natureza
humana e dos sentimen tos próprios ao homem A situação do filósofo mo
ralista é, assim, delicada Ele não pode, com efei to, fundar a moral sobre a
na tu reza, nem sobre a felicidade Por princípio, a lei que formula o imperati
vo ca tegórico vale por si mesma, e faz abstração de toda experiência real As
ten tativas para apoiar a moral em uma tendência do homem ou da nat ureza
são, ambas, provas de preguiça in telec tual
A Critica da razão prática não se preocu pa com exemplos Ela se
contenta em afirmar a lei fundamental da razão pura prática, sob uma forma
idêntica à da Fundamentação:
Age de ta! 1nodo que a máxírna de tua vontade possa, ao rnes1no te1npo, sempre
va ler como pri ncípio de uma legislação universal 211
C R.Pr AK V 30; P II, p 643
100
O fato do dever
Em vez de esclarecer essa fór mula pelo estudo dos casos par ticulares,
Kant adia o problema da aplicação do imperativo categórico -no caso espe
cífico da razão pura prática -o problema da aplicação do imperativo categó
rico Ele prefere dirigir sua atenção para o conceito que irá unificar a idéia de
lei e a de liberdade: a autonomia
Autonomia e autopos1ção
A Fundamentação não propõe uma teoria completa da autonomia O
conceito in tervém apenas na busca de urna nova form ulação do imperativo
categórico capaz de fornecer uma determinação completa
A Critica da razão prática marca de modo mais sensível a importância da
idéia de autonomia Nela realiza-se a junção de um conceito negativo da li
berdade como independência em relação ao determinismo causal e de uma
concepção positiva, que a torna o agen te de uma determinação própria 29 Ela
se opõe a toda tentativa de submeter a vontade a uma determinação externa,
quer dizer, a um objeto O ser moral é livre porque é au tônomo, é moral porque
está submetido a uma legislação que provém de sua própria razão
Que não nos enganemos, todavia, acerca do conceito de autonomia Kant
não compreende o sujeito humano como um ser todo-poderoso, capaz de afir
mar sua própria lei O homem descobre em si a lei moral, ele a enuncia, tenta
aplicá-la, mas não a cria, na verdade
Assim como a razão teórica não estava livre para formular ou não as ques 
tões da metafisica, tampouco é livre a razão prática em r elação à lei moral É 
claro, a autonomia da razão prática implica que, por ela, o homem é sujeito e 
objeto da lei: mas ele não é livre para submeter-se ou não a ela A razão prática 
é originariamente sujeita à lei, ela afeta a si mesma, abrindo em seu seio o 
espaço de uma desproporção en tre seu poder e o que dela é exigido.O factum 
rationis é a 1narca dessa sujeição moral, tan to mais singular quanto é constit u 
tiva de verdadeira au tonomia Nesse sentido, o fato da consciência da lei é um 
dom anterior ao exercicio da razão, o modo prático do ser-afetado da razão30 
A razão prática institui-se na realidade especifica de um facturn incomensurá 
vel para a razão, mas que, todavia, não vem senão de seu próprio bojo
29 Cf ibid . AK V. 33; P 11. p 647
30 Cf J L NA NCY. L'im pêrati fcattigorique. Paris. Flamrnarion, 1983. p 21
101
Compreender
Não se trata, como se imagina, de voltar ao sentimento moral ou à
posição de uma natureza humana originariamen te moral, da qual decorreria
o essen cial de filosofia prática Mas Kan t, ao afirmar no principio de seu
trabalho o fato da razão como consciência da lei, introduz na constituição
transcenden tal do homem uma forma de passividade àquilo que ultrapassa
sua finitude, que dá um tom particular ao conjunto da moral kantiana,
temperando sem cessar a vontade de autonomia osten tada pela presença
insistente de uma lei que a
razão sem dúvida formula, mas que não criou31
A critica da fe/ 1c1dade
Autonomia versus heteronomia Kan t opõe o principio último de sua moral à
totalidade dos princípios materiais, que submetem a von tade a um objeto que
lhe é externo Um de seus principias materiais, a felicidade, atrai
singularmen te a atração de Kant Sua critica da felicidade, mais sutil do que
se possa ter dito, marca a originalidade kantiana entre o rigor da
determinação racional de sua moral e sua relativa benevolência em relação
àquilo que o homem deseja
Distingue-se, geralmente, na filosofia prática, a ética da moral Nada na
etimologia dos dois termos justifica essa distinção Ela é, na r ealidade, o fato
de uma convenção de in terpretação, destinada a separar duas maneiras de
conceber o papel da filosofia moral Fala-se, assim, de ética para designar
uma reflexão sobre os meios de se chegar a um fim almejado, definido
comumente pela expressão "vida boa"; a moral, ao contrário, é en tendida
como o estudo das normas universais da ação Essas duas orien tações corr
espondem esque maticamen te a duas tradições: a primeira, que parte de
Aristóteles, é chamada teleológica (tem a ver com os fins); a segunda, que
parte de Kan t, é chamada deon tológica (relativa à norma)
A corrente de pensamen to nascida com Aristóteles põe no cen tro de toda
ética o conceito de felicid ade. Mais exatamen te; a vida feliz é considerada 
o bem supremo, aquele ao qual necessariamen te tende toda atividade 
humana Essa felicidade não é, para Aristóteles, uma forma mais ou menos 
sofisticada
31 Cf sobre este ponto G KR UEGER, Critique et rnorale chez I<ant'. Paris. Beauchesne, 1961. p
129:"[Na autonom ia. a razão] sefaz o n1andatário da lei. ela quer por si mesn1a fazê-la tespei
tat ; quer dizer. a razão proclama a lei em seu nome próprio como se fosse o autor dessa lei
Ela se apropria da lei con10 se fosse seu próprio projeto. e é precisamen te desse modo que é
obrigada pela lei
102
O fato do dever
de egoísmo; ela consiste sempre em uma conformidade com a virtude, ela 
pr ópria determinada pela disposição de escolher o justo meio, a boa medida 
Não há aqui, contrariamen te ao que vimos na F'unda1nentação , um princípio 
de universalização das máximas da ação Trata-se antes de escolher, caso a 
caso, o melhor, sem buscar uma perfeição inatingível ou um bem absoluto A 
ética é questão de discernimento, de deliberação quanto ao que é preferível 
em vista das circunstâncias, das pessoas envolvidas ou das conseqüências 
previsíveis do ato
Para Aristóteles, como para muitos filósofos, especialmente dos séculos
XVII e X:Vlll, a busca da felicidade define o quadro de toda a moralidade É
claro que encon tramos na história da filosofia uma grande variedade de de
finições da felicidade, segundo se incorpore a ela a virtude, o prazer, a pr eo
cupação com o outro ou mesmo considerações, sociais, estéticas, políticas ou
religiosas Em todos os casos, o critério de avaliação dos comportamentos é
sua colaboração mais ou menos importan te para a construção da vida boa
I(ant certamente não é o primeiro a con testar essa proximidade entre mo
ralidade e felicidade. Desde a Antiguidade, isso foi questionado com a
afirma ção de que a verdadeira moralidade poderia implicar uma forma de
renúncia à felicidade A moral kantiana é, todavia, a forma mais perfeita e a
mais severa dessa critica da idéia de felicidade, de que Kant não nega o
caráter desejável, mas cuja inutilidade postula na elaboração da moral
A idéia da felicidade está muito presen te nos textos de Kant Ela jamais é
criticada por si mesma, nem rejeitada como um princípio fundamen talmente
mau, mas sempre formulada em uma hierarquia que a submete ao dever, úni
co conceito autêntico de moral Kant o aborda de uma grande diversidade de
pontos de vista tanto em sua Fundamentação da metafisica dos costumes como
na Crítica da razão prática
Desde a primeira seção da Fundamentação, Kan t reconhece que pode pa
recer natural querer assegurar a própria felicidade Ele também observa que,
se todo homem persegue a felicidade, é absurdo fazer dela uma obrigação A
definição que dá da boa von tade certamente corrobora essa análise, pois o valor
desta deve ser estabelecido sem referência a um fim visado, ou a um resultado
esperado, e, portanto, sem referência a uma felicidade even tualmente obtida
A felicidade intervém uma segunda vez na Fundamentação no momento
em que Kant afirma a distinção entre o imperativo categórico e o imperativo
hipotético Entre esses últimos encontram-se os imperativos da prudência, que
enunciam o que é preciso fazer para chegar ao fim que todos perseguem, o
bem-
103
Compreender
estar. Como são passiveis tais imperativos"? Em principio, basta analisar o fim
para deduzir seus meios. Mas o problema aqui é que esse fim, a felicidade, é
um conceito muito pouco determinado, a tal ponto que, "apesar do desejo que
todo homem possui de chegar a ser feliz, ninguém jamais pode dizer em
termos precisos e coerentes o que verdadeiramente deseja e quer"32 O
procedimento de Kant é simples: suponhamos -o que ele contesta -que a
moralidade possa ser identificada com a felicidade; não é sequer possível
estabelecer comandos se o objetivo visado é tão indeterminado quanto o é a
felicidade
A Critica da razti.o prática reformula em termos ainda mais precisos essa
recusa a in tegrar a felicidade aos fundamen tos da moral. Ela é ai descri ta
como um princípio empírico, que se pode buscar por meios amorais, e que
compromete a pureza da mor alidade ao submeter a von tade a uma determi
nação externa Todavia, Kant matiza essa posição especificando que "a razão
pura prática não exige que se renuncie a toda pretensão de felicidade, mas
somen te que, desde de que se trata de dever, não a tomemos absolutamente
en1 consideração" 33 O bem-estar não é in teiramen te negativo, poique dá às
vezes ao individuo os meios para cumprir seus deveres Mas fazer disso um
pri ncipio moral provocaria danos comparáveis à i n trodução de dados
sensí veis nas 1natemáticas
Finalmen te -esta é uma con tribuição especifica da segunda Crítica
-, a felicidade é considerada por Kan t um dos dois elemen tos consti tu
tivos do bem supremo Kant afirma que a von tade é necessariamente
determinada para visar o bem supremo Este não é nem a virtude sem a
felicidade, nem uma fe licidade sem virtude, mas a unidade dos dois conceitos
Resta decidir qual sua relação A tese segundo a qual a busca da felicidade
produz um principio de in tenção virt uosa é absolutamen te falsa, na medida
em que a boa vontade não deve depender de sua capacidade de nos dar
felicidade Por outro lado, pensar que a intenção virtuosa produz a felicidade
é parcialmen te justificado, se ao menos se distingue o tempo da virtude
-nossa vida terrestre -e o tempo da felicidade -uma even tual vida
futura A felicidade em questão jamais será objeto da experiência, mas somen
te um ideal que se pode esperar se, duran te a vida, zelarmos para dela nos
tornarmos dignos Voltaremos a este ponto
Posição do fato moral, filosofia da liberdade, purificação progressiva da
lei, elogio da autonomia Os principais elementos da moral kantiana ai es-
32 FMC, AK IV: 418: P II. p 281
33 CRPr. AK V, 93: P I I, p 2 70
104
O fato do
dever
tão Fal ta determinar o objeto da razão pura prática, ou da vontade, conteúdo
do segundo capi tulo da analitica Kant poderá enfim, uma vez resolvida essa
questão, debruçar-se sobre as modalidades efetivas do agir moral
O bem e a mai
Por concei to da razão prática en tendo a representação de um objeto como um
efei to possível pela liberdade'·'
O conceito de possibilidade deve aqui ser esclarecido Não se trata de sa
ber se o sujei to é fisicamen te capaz de alcançar um objetivo proposto à sua
vontade: tr ata-se de estabelecer o juizo que decidirá se alguma coisa é ou não
um objeto para a von tade como razão prática, quer dizer, para a vontade au
tônoma Kant fala, assim, de possibilid ade moral, determinada pela própria
lei, independen temen te do fato de que o objeto seja ou não efetivamen te rea
lizável Será qualificado de bem o "objeto necessário da faculdade de desejar""
e de mal "o objeto necessário da faculdade de aversão"" Teremos en tendido,
em vista do que precede, que esses concei tos de bem e mal não são absoluta
mente determinados pelos de prazer e dor Eles são postulados a priori pela
própria lei moral, independentemen te de toda sensação agradável ou desa
gradável Toda tentativa de definir a ação moral a partir de um concei to do
bem definido independentemen te da lei é absurda, e os antigos muitas vezes
incorr eram nesse err o fatal. Em lugar de partir de uma idéia confusa do bem
soberano, fazendo da ética uma lenta aquisição desse bem, é preciso conceber
a moral como a posição de uma lei moral que determina a priori seus próprios
objetos Quer er o bem é pois, in fine, quer er a forma da lei, e não poderá ser
qualificad a de boa senão a ação que terá com sucesso passado pelo teste de
universalização de sua máxima Kant apenas percorre a problemática do bem
e do mal como objetos da liberdade. longe de se desinteressar pela questão,
ele prefere tratá-la em sua maior dificuldade: de um lado, refletindo na possi
bilidade última do bem supremo como conciliação da felicidade e da virtude;
de outro, perscrutando a parte sombria da humanidade, pelo conceito de mal
3Q Ibid AK V 5 7; P ll, p 677
35 Ibid , AK V: 58; P II, p 678
36 Ibid
105
Compreender
radical Nos dois casos, Kant aventura-se até os confins da moral e da religião,e é, pois, sob esse aspecto que encontraremos novamente o bem e o mal
A moral do ato
O itinerário da Critica da razão prática é limpido Após ter definido a lei moral
e postulado a consciência dessa mesma lei como fato da razão, após ter deter
minado quais poderiam ser os objetos da von tade, Kant irá ater-se à aplicação
concreta da lei em atos efetivos
A t1polog1a
Conforme o caráter ainda fundamental da segunda Critica , ele não irá aqui
analisar virtudes par ticulares, que seriam exemplos de manifestações empí
ricas do agir moral Ele con ten ta-se -isso é o essencial -em elaborar um
método universal que permite determinar a priori a moralidade ou a imora
lidade de um ato -a tipologia; em seguida, em pensar a repercussão feno
menal da lei no espir ita humano: o respei to Cumprido este úl timo trajeto,
a moral terá realizado aquilo pelo que se havia empreendido seu estudo: a
posição de um ser racional como ser sob a lei, e a descrição das modalidades
dessa obrigação
O problema da tipologia é o seguinte: como fazer a ligação entre a lei
moral, universal e supra-sensível e a ação moral particular, que procede da
sensibilidade, mas da qual não podemos a priori afirmar a existência? A
Crítica da razão pura levantava uma dificuldade semelhante, buscando um
meio de aplicar conceitos puros do entendimento aos dados da sensibilidade
O esque matismo permitia resolver esse problema de modo relativamente
fácil, pois dispomos realmente de intuições empíricas, que se subsumem aos
conceitos através da faculdade de julgar teórica e da imaginação. Na
prática, é muito diferen te Na verdade, não apenas não temos nenhum
exemplo de ato moral comprovado, ao qual se aplicaria facilmente a lei
moral, mas tampouco existe elemento homogêneo à razão e à sensibilidade,
ao passo que havia um -o tempo -entre a sensibilidade e o entendimento
A distância entre a liberdade e a natureza, a lei e a ação, par ece
impossível de ser preenchida:
106
O fato do dever
A faculdade de julgat sob as leis da razão pura prática parece, pois, submetida a
dificuldades particulares, pr ovenien tes do fato de que uma lei da liberdade
deve se aplicar a ações, como evento que ocorre no mundo sensível e, portanto,
nessa qualidade, pe1 tencente à natureza:i 7
O problema seria insolúvel se fosse preciso determinar uma ação parti 
cular pela lei moral Na realidade, essa não é a função da faculdade de 
julgar prática Ela deve simplesmente passar de um principio universal 
racional -a lei -a uma determinação universal dessa lei, considerado o 
ato previsto - a máxima A mediação exigida da faculdade de julgar faz 
a ligação do universal racional ao universal conceitua!: ela deve, por 
conseguinte, ser confiada ao
entendimen to, a passagem seguinte, entre máxima e ação, não cabendo a uma
critica da razão prática, mas sim a uma doutrina da virtude 38 Podemos assim
tomar as leis enunciadas pelo en tendimen to -as leis da natureza como
um modelo de universalidade para as máximas da ação moral:
A regl'a da faculdade de julgar sob leis da razão pura prática é esta: pergunta a ti
mesmo, considerando a ação que tens em vista como procedente de uma lei da
natureza em que tu mesmo serias par te, se ainda poderias vêla como possível
para tua vontade:rn
Qualquer leitor da Fundamentação da metafisica dos costumes terá, sem
dú vida reconhecido o critério de universalidade que permitia avaliar a morali
dade das máximas Kan t con ten ta-se aqui em formalizar melhor esse critério,
aproximando-o do paradigma de toda universalidade que é, para ele, a lei da
natureza A tipologia é de uso muito cômodo: poderia eu, por exemplo, querer
viver em um mundo onde o principio da mentira fosse tão fixo e determinado
quanto uma lei da natur eza? Posso querer mentir, concedendo-me uma exce
ção à r egra, não posso querer que essa exceção se torne a regra
O procedimento kantiano, aqui, é do começo ao fim analógico: não so
mente na tipologia, propriamente dita, mas desde o parágrafo 8 da
primeira parte, no gesto pelo qual Kant desloca o pmo querer para uma
esfera supra sensivel, onde irá servir de quase-Eu transcenden tal, e onde
objetos -o Bem
37 lbid , AK V 68: P li. p 691
38 Cf ibid , AK V, 69; P II, p 692
39 lbid
107
Compreender
e o Mal -lhe serão propostos A pon to em que o momento de pureza máxi ma
da lei -a afirmação do Faktwn -bem poderia ser sua traição, na medida em
que inaugura o piocesso analógico, fornecendo-nos o conceito de uma nature
za supra-sensível, construido sobre o modelo da natureza real
Essa suspei ta de traição às fron teiras estabelecidas por Kan t, no
cam po crítico, entre universo teórico e universo piático não é justificada
senão se o processo de universalização das máximas, de acordo com o
modelo de universalidade das leis da natureza, entra na determinação da
lei moral Se, ao con trário, podemos mostrar que ele permanece na
realidade in teiramen te teórico, e não serve senão de modo de exame
epistêmico da validade da má xima, a suspeita pode ser afastada e a
tipologia devolvida ao devido lugar - defini tivamente limitada
O exercício de pensamen to da tipologia consiste em considerar a ação e
sua máxima fazendo-a sofrer um exame, a fim de julgar sua qualificação
moral: não se trata absolutamente de dar à máxima assim transformada um
alcance concreto, ou um efei to na realidade, mas de conceder-lhe ou não uma
aprova ção mor al. A inclinação, o desejo ou a aspir ação à felicidade são
descartados pela única razão de sua inadequação puramente epistêmica em
relação ao cri tério de universalidade; desse modo, a reflexão moral não se
apresen ta como a busca de uma aplicação da lei, mas como, segundo as
palavras de Ricoeur, um "pacien te exame dos candidatos ao título de bom,
sem restrições"'º A tipologia não é, pois, senão a formalização mais geral e
mais completa des se teste teórico e - como oper ação de comparação
entre uma máxima e o tipo na tural de sua necessidade -o fato de um
juizo reflexivo", que permite discriminar as máximas morais e aquelas que
não o são A natureza em sua legalidade aparece, pois, como o modus
operandí de um exame teórico da má xima, em virt ude da clareza de sua
necessidade e da determinação de sua cau salidade -elementos ausentes de
uma lei moral que não diz nada além do ser-obrigado do sujeito -, e em
virtude igualmen te, é preciso reconhecer, da presunção de uma quase-
identidade entre a forma teórica do en tendimen to puro e a forma pr ática
da razão pura
A tipologia, assim reconduzida a uma função teórica de verificação da va
lidade da máxima, não entra de maneira alguma na determinação da lei, r esi
dindo inteiramen te no Faktum da obrigação, e ela não pode, por conseguin te,
40 P R1coEUR, Soi-mêrne comme un autre , Paris, Poin ts/Seuil, 1996, p 241
41 Sobre a reflexào como comparação. cf CRP. A 260/B 316
108
O fato do dever
questional' sua pur eza A divisão teoria/prática é, assim, finalmente pre_servd
de toda contaminação, graças ao fato da consciência da lei e à elaboraçao teon
ca do teste de universalização: resta então, como verdadeiro lugar de aplicação
da lei em sua pureza, apenas o efeito desta na sensibilidade, marca única de seu
valor moral, única saída também para essa pur eza em sua recusa de qualquer
desenvolvimento teórico, de qualquer mediação, de qualquer esquematização
que, ao quei er assegurar sua aplicação, dest ruiriam sua essência
Respeito e
humanidade
O exame da máxima da ação pela tipologia não fornece em si mesmo nenhu
ma razão de agir moralmente Kant, muito afastado da ética socrática que
supõe ser bom o agir desde que se conheça o bem, deve, pois, logicamente,
propor um outro motivo para a razão prática O capitulo seguint.e da segunda
Crítica irá buscar tal motivo Sua identificação não garanttra, evidentemen te,
nenhuma ação moral efetiva; mas permi tirá compreender o que se passa com
uma vontade quandoesta é determinada somente pela lei moral, excluindo
qualquer outra razão de agir
Respei to é o nome desse motivo Kan t assim o define:
O respeito <la lei tHural é, pois, u t11 se11li111en tu pt udu:ddo pot un1a causa in te
lectual, e esse sentimento é o único que conhecemos a priori e do qual podemos
perceber a necessidade42
Esse sentimento, bem entendido, não é um sentimento 1noral que dê va
lidade moral a toda ação que dele decorra, mas a marca dolorosa da inscrição
da lei no corpo sensível, causa de uma emoção especifica que reconduz a
ambi güidade do fato da razão, não sendo nem totalmente racional, ne1
tampouc_o in teiramente sensível. Esse sentimento particular é motivo da
razao pur a pr a tica não como causa da ação moral, mas como rebaixamen to,
desencorajamen to da vontade, conscien te de sua inadequação ao que dela é
exigido O respeito aparece, então, como forma subjetiva do fato da razão,
talvez uma via de escuta da razão prática, demarcando na sensibilidade um
campo de moralidade, e não-patologia; e talvez o respei to seja igualmente a
única verdadetra aphcaçao
42 CRPr, AK V, 73; P li, p 697
109
Compreende
r
da lei, nem juízo da ação -questão da tipologia -, nem fundação das leis
do comportamento -questão da doutrina da virtude -, mas pura
obrigação, puro sinal da humanidade submetida à lei'° O respeito é, assim,
não somente a marca da pureza da lei4-1 mas também, como móvel da
razão prática, o cará ter distin tivo da moral, sua mais clara manifestação
Essa definição original do respeito confirma nossa hipótese de partida:
a moral kan tiana não é senão uma paciente elaboração da pureza da lei,
não é senão o respei to pela lei, não é senão receptividade ao próprio dever de
melhor fundamen tar a obrigação
Um segundo argumento pode aqui ser avançado em favor da
prioridade do respeito no conjunto da moral de Kan t Será, com efeito, a
partir desse sen timen to específico que Kan t construirá sua teoria da
humanidade Desde a Fundamentação da metafísica dos costumes, o
respeito é aquilo que dá à hu manidade que recebe a lei sua dignidade, seu
valor incondicionado 45 Vejamos rapidamente esse texto
Depois de ter estabelecido a universalidade como forma do
imperativo categórico, Kant ir á esforçar-se para completar a primeira
fórmula por uma segunda, que determina, ao menos parcialmen te, a
matéria possível do de ver Esta não pode de modo algum ser um objeto
da experiência, pois essa submissão da von tade à sensibilidade destruiria a
moralidade É preciso, pois, que a finalidade do imperativo categórico,
aquele que leva o ser razoável a submeter-se ao critério da universalização,
seja um fim em si, algo que tenha um valor absolu to Ora, o único ser'que
jamais poderá ser reduzido a um meio é o homem A von tade não é moral
senão quando tem como 1notivo o respeito por aquele que é o portador da
vontade, a humanidade Ao fazê-lo, ela nada persegue de exterior a si
mesma, mas apenas o ser particular que é dotado dessa faculdade de querer
O homem não é uma coisa, mas uma pessoa: ele não pode ser empregado
unicamente como um meio, mas deve sempre ser visto como um fim Dai a
famosa fórmula:
43 Cf ibid . AK V 16: P 11. p 100- 101: '·Não se destina a julgai as ações ou mesmo a fun dar a
própr ia lei 1noral obje tiva. en1 vista de dela fazer uma 1ná-.xima em si'
44 Cf ibid , AK V, 79; P 11. p 704 ·· por conseguinte, essa humilhaçao não se dá senão re!ativan1en
te à pureza da lei"
45 Cf FlvIC. AK IV 436; P II, p 303: "Pois ben1. a legislação que determina todo o valor deve ter
precisarnen te para isso u ina dignidade. quer dizer. um valor incondicionado, inconipa ráve!, que
traduz a palavra respeito, ú.nica que fornece a expressão conveniente da estima que un1 ser
razoâvel deve ter por esse valor"
110
O fato do
dever
Age de modo a tratar a humanidade tan to em tua pessoa como na pessoa
de qualquer outr o sempre ao mesmo tempo como u1n fim, nunca
simplesmente como um meiofi
Como é muitas vezes o caso, a Crítica da razão prática desenvolve uma
tese idêntica, mas sob luz diversa Kan t deduz imediatamente a dignidade
do ho mem e sua personalidade da presença nele do d ever, manifesta no
respeito A grandeza do homem não está em sua hipotética capacidade de
agir moralmen te; ela se encon tra naq uilo que o liga, em sua condição
sensível, a uma ordem inteligível: a ordem da liberdade O homem não é
grande porque é bom; ele é grande porq ue tem consciência do seu dever
O homem de Kant não é, pois, definido exclusivamente por sua
finitude, ou pelo infinito que se dá nele, mas pela relação entr e um e ou tro.
A natureza do homem não deve, pois, ser en tendida simplesmente em
oposição àquilo que se dá como supra-sensível: Idéia, lei, Bem, mas como
fundamen to sub jetivo da relação do homem finito com aquilo que o
transcende. "Quanto a esse fundamento, pouco importa onde ele se
encontre"/lJ: não é nem sensibi lidade, nem racionalidade, misterioso como
essa presença em nós da idéia de nossa perfeição, em que não vemos como
"a natureza humana pode ser-lhe receptiva"" A humanidade qualifica
precisamente essa cisão no homem entre
finitude e santidade: com efeito, "se o homem é, sem dúvida, mui to
pouco santo"4!l, "a humanidade, em sua pessoa, deve ser para ele santa"5º Apersona
lidade é, pois, o conceito que em Kant qualifica essa idéia de santidade, 
"na tural, mesmo para a razão mais comum, que pode facilmen te 
apreendê-la"" Kan t não quer dizer com isso que a santidade é a coisa mais
compartilhada do mundo, mas sim que a na tureza humana é definida por 
esse elo entre o homem e a idéia de sua perfeição
Também a personalidade qualifica em Kan t o desdobramento da
consciên cia moral, que Kan t designa como uma "disposição in telec tual
originária"51: por ela, o homem, que todavia só está implicado consigo
mesmo, concebe um
45 Cf ibid , AK IV 429; P l i. p 295
47 A religião nos liniites da sin1ples razão. AK VI 21; P III. p 31
4G lbid . AI( VI. 61: P Ili. p 76
49 CRPr. AK V, 87; P 111. p 714
50 [bid
51 lbid
52 Doutrina da virt11de. AK VI. 439; P III, p 72 7
111
í
Compreender
outro (o homem em geral) para julgar suas ações"' E m sua relação com a
Idéia da lei moral, que é sempre ao mesmo tempo a Idéia de sua própria
santidade, o homem manifesta uma disposição à personalidade, uma
compreensão dessa "idéia da humanidade considerada de modo
,
intelectual"°': o homem é pois de finido por sua receptividade à Idéia de
humanidade, que o afeta e o determina, ainda que apenas na má consciência
A virtude. ou a moral em ação
Posição da lei, definição do respeito como seu efeito, conseqüências sobre o
es tatuto do humano e sua personalidade: a moral kantiana não disse, no
entan to, o que era preciso fazer Kan t, longe de se desin teressar pela efetiva
aplicação da lei, consagra, é veidade, elaborações mais rigorosas à fundação
da metafísica dos costumes Mas a Doutrina da virtude, que prolonga esse
esforço conceitual, não deve ser negligenciada, apesar, é preciso dizer, da
persistente impressão de uma qualidade inferior desse texto em relação à
Critica da razão prática
Percorreremos sua In trodução, que estabelece os princípios da dou
trina da virtude propriamen te dita Em seguida, tentaremos determinar a
relação complexa entre o respeito e os diferen tes sentimen tos que Kan t in
troduz como condição de uma moralidade efetiva
O pon to de par tida de Doutrina da virtude é o mesmo que o da
Fundamen
tação da 1netafísica dos costurnes O pri ncípio moral nada tem a ver com
um pretenso sentimen to, "ele nada é, na verdade, senão a metafisica
obscuramen te pensada, ineien te a todo homem em razão de sua disposição
racional"" A função da metafísica dos costumes está, assim, em perfeita
harmonia com a da Critica da razão prática: não dar ao homem uma lei,
pois a própria humani dade é definida por sua presença,mas garan tir a
influência dessa lei consoli dando-lhe os princípios
Uma doutrina da virtude não é a encenação emotiva e popular dos
fun damentos racionais de toda moral; será o trabalho em si mesmo
racional -
53 Ibid : ..Eis por que. para não estar em contradíção consigo mesma, a consciência do
homem, e1n todos os seus deveres_ deve conceber um outro (que é o homem em gera!) que
não ele mesmo'·
54 A religião nos limites da sirr1ples razão. AK VI, 28; P lll, p 39
55 Doutrina da virtude, AK VI. 376; P III, p 653
112
O fato do
dever
trata-se de uma metafísica -que tentará explicitar os modos concretos
da ação moral atiavés da elaboração de u m certo número de deveres
efetivos Kant começa pois, naturalmente, por definir a relação entre os
conceitos de dever e virtude O primeiro designa a coerção exercida pelo
imperativo cate górico sobie um ser livre, submetido, porém, aos impulsos
da sensibilidade Quando essa coerção provém de nós mesmos, e não do
ex terior, fala-se em dever moral. A virtude adquire sentido nesse conflito
entre sentido e dever e não é, no fundo, senão uma variação da coragem:
O poder e a resolução refletida de opor tuna resistência a um adversário
podero so, porém injusto, chama-se coragem (fortitudo ), e tra tando-se do
adversário da intenção n1oral en1 nós chama-se virtude ( virtus, fortitudo
1noralis)56
A doutrina da virtude tem assim por objeto a matéria do dever, quer
di zer, os fins reais que o individuo se dá, sob a desagradável influência da
lei Esses fins não são visados por um desejo sensível; eles são sempl'e, ao
mes1no tempo, um dever para o sujeito livre A ética não é, no fundo, senão o
conjun to sistemá tico dos fins da razão prática, ou dos deveres que o homem
se dá sem a isso ser obrigado por outros O trajeto que Kant irá seguir
enraiza-se nessa intimidade do laço entre dever e virtude Uma doutrina da
virtude não irá enumerar os fins necessários da von tade, o que rein
troduziria na moral um principio de heteronomia; ela irá deduzir do próprio
devei máximas de ação
que, por sua vez, determinam fins moralmente necessários 57
An tes de estudar em detalhe essas diferen tes máximas, Kan t enuncia
de imediato os fins que são, ao mesmo tempo, deveres Ele apon ta dois
deles: de um lado minha própria perfeição, de outro a felicidade do outrn
E ntenda-se: o que o homem geialmente se propõe como fim -sua própria
felicidade -não pode ser um dever, pois o homem tende a isso naturalmen te
Ser coagido a sei
feliz é uma contradição
Que não nos enganemos sobre o sentido desses dois deveres Kan t
não diz que ser moral significa tender à perfeição, como se o dever fosse
determi nado por um concei to de perfeição exterior à von tade A ordem
conveniente
56 Ibid , AK VI 380; P lll, p 658
57 Cf ibid . AK VI, 382; P III. p 661 ''Na êtica, será. pois. o conceito do dever que deverá
conduzir aos fins, e fundar as mâ.ximas relativas aos fins que devere1nos nos fixar
segundo pnnc1p1os morais
113
Compreender
é a seguin te: o homem concebe a lei moral, ela faz dele um ser digno e para
ele um dever de elevar-se cada vez mais no sentido do concei to de humanida
de que funda sua personalidade É assim "para o homem um dever trabalhar
para sair da rusticidade de sua natureza, da animalidade, para elevar-se até a
humanidade"" Di to de outro modo:
A razão moralmente prática ordena-lhe isso, de modo absoluto, e faz deste firn 
um dever, a fim de que ele seja digno da humanidade que o ha bi ta5!l
Conceber a felicidade do ou tro como um dever é certamente estar mais
próximo do dever comum O argumen to kan tiano é ainda assim curioso: dese
jo necessariamen te a felicidade; mas desejar minha felicidade não é, em si,
mo ral; assim, a única felicidade que pode ser um dever é a felicidade do outro
Kant prossegue Esses dois deveres não podem de modo algum resultar
de uma obrigação jurídica Ele o disse anteriormente, a ética não determina
atos, mas máximas Ela deixa, pois, ao livre-arbítrio o cuidado da atuação, não
possuindo a não-observância do dever moral por definição nenhuma conse
qüência real O dever ético é, assim, diz Kan t, de ampla obrigação: pode-se
estar moralmente satisfeito por ter obedecido ao dever moral, não se pode por
isso ser recompensado juridicamente Kant aplica imediatamente esse critério
aos dois deveres fundamentais. A perfeição pessoal depende da situação de
cada um, nada de preciso pode aqui ser prescrito à liberdade, devendo a razão
con ten tar-se com uma máxima bastan te vaga: "Cultiva as forças do teu
espíri to e do teu corpo para torná-las aptas a todos os fins que possam se
oferecer a ti, ignorando aqueles que possam ser os teus"'º O mesmo em
relação à ge nerosidade física e moral do outro: nada pode determinar a priori
o limite dos sacrifícios que posso dever permi tir para a felicidade dos outros
Depois de ter assim indicado o que podem ser os deveres de virtude, Kant
volta ao que deve constituir seu principio fundamen tal Também ai o conceito
de humanidade revela-se determinante Com efeito, a humanidade não é, em
defini tivo, senão uma r elação da humanidade consigo mesma, ou ainda o
ho mem dando-se por fim a humanidade que o habi ta Pode-se, então,
formular esse princípio da seguin te maneira:
53 lbid AK VI, 387: P 111. p 666
59 lbid
60 lbid . AK VI, 392; P 111. p 673
114
O fato do dever
Age segundo uma máxima cuja lei univer sal possa ser para todos do que pro 
por-se (i.nsm
J(ant permanece no registro do universal que caracteriza suas obias an
teriores Mas aqui, muito mais do que na Fundamentação e na segunda Critica ,
ele irá i n tegrar à sua moral qualidades sensíveis e efetivas, únicas capazes de
permi tir à lei um acesso real e concreto ao espirita humano Ao menos é este o
objeto do texto que se segue imediatamen te à formulação do principio supre
mo de toda doutrina da virtude
O conceito de receptividade ao dever que expressa o respeito surge, no
texto da Doutrina da virtude , associado àquilo que Kan t chama de pré-
noções estéticas E n tr e essas qualidades morais não-r acionais que se pode
exigir do homem, mas que oferecem ao dever condições favoráveis, Kant
coloca o senti mento moral Este é, ao mesmo tempo, o que antecede a
recepção do dever e o efeito da lei mor al sobre o espírito As duas formas de r
eceptividade acham-se aqui singularmente in tricadas, em um jogo de
reciproca condicionalidade que faz do sentimento o elemento auxiliar do r
espeito, e do respeito a causa do sentimento. Como disposições naturais, as
pré-noções estéticas não podem ser objeto de uma obrigação: aliás, não é
preciso forçar o homem nesse senti do, pois todo homem as tem em si,
embora despertas apenas pela consciência da lei Essas qualidades morais não
entram na constituição da moralidade pro priamente dita, mas unicamente em
sua aplicação Elas não são necessárias, como o serão os conceitos da religião
racional que abordaremos adiante; elas são, todavia, indispensáveis à vida da
moral, e são pois, ao menos marginal men te, integráveis a uma metafísica
dos costumes
Esse estatuto in termediário da receptividade estética aparece mui to cla
ramen te na determinação kantiana do sentimento moral Este é , com efei to,
"a receptividade ao prazer ou à dor, provenien te unicamen te da consciência do
acordo ou do conflito entre nossa ação e a lei do dever"61 É a repercussão sen
timen tal da representação da ação em sua r elação com o dever Quando essa
represen tação precede o ato e o conduz, o sentimen to é estético e patológico,
portan to exclui-se da moralidade; quando, por outro lado, vem após a repre
sentação, ele é estético e moral Esse sentirnen to não é, pois, indispensável
à obrigação que se dá antes dele, mas tem a função de r evelador, no sentido
61 lbid , AK VI, 395; P Ili p 677
62 lbid . AK VI, 399; P lll, p 681
115
Compreender
fotográfico do termo, da coerçãocontida no conceito de dever Mais ainda: o
sentimen to moral é uma receptividade originária no homem, que será preciso
cultivar A moral con tém, pois, como dever subordinado a obrigação de refor
çar o impacto sentimental da represen tação da lei, cuja potência motora é tão
mais forte quan to é apresentada em sua maior pureza racional
Kan t vai mais longe ainda nessa valorização do sentimento moral, bas
tante surpreenden te nele Se o distinguimos convenien temen te do senso
moral, que pretende conhecer objetivamen te o bem e o mal, se separamos
precisamen te o moral do patológico, o sentimen to moral deve ser considerado
o principio vital da moralidade. Permite à representação racional do dever en
con trar, cotn efeito, uma ressonância efetiva no homem na totalidade do seu
ser; ele constit ui, além disso, a especificidade da humanidade, cuja ausência,
aliás, impossivel, conduzi ria o homem à pura animalidade A humanidade é
não somente definida pela presença do fato da razão, fundamento de sua dig
nidade; ela é também caracterizada pela receptividade original e universal do
livre-arbitrio, sensível aos conceitos da razão pura práticaG 3
Receptividade da razão à lei racional que a afeta, e receptividade do livre
arbítrio à representação racional da lei. Devemos acrescen tar a essas duas re
ceptividades aquela que assinala o r espeito, considerada na Doutrina da virtude
não como móvel da razão prática, mas como pré-noção estética, dirigida para
nossa própria existência 6!1 Sentimen to único em seu gênero, diz I<:ant, ele é
literalmen te arrancado pela lei n1oral, que 1ne faz esliinar u [neu ser e u .ser do
ou tro, e que funda -o termo vai bem mais longe que o simples acompanha
mento propedêutico -certas ações relativas ao dever para consigo mesmo O
efeito é, aqui, o efeito sentimen tal da lei, não sobre o livre-arbítrio em geral,
mas em nossa relação conosco mesmos Nos dois casos, l{an t, sem deixar de
lado uma grande prudência na abordagem elas qualidades morais, rein tegra ao
funcionamen to da moral dados não-racionais que fazem eco à receptividade
originária da r azão prática A autonomia não é pr ejudicada, mas, an tes, refor
çada em sua efetividade
A importância atribuída por Kant à receptividade estética acompanha-se,
na Doutrina da virtude , de uma dupla expulsão do patológico A fim de assegu-
63 Cf bid ,AK VI. 400; P III, p 682: "tvlas para o bem e o mal (moral) não ternos um
senso especial ;:i[ém daquele que ten1os para a verdade -embora se utilize n1ui tas vezes essa
expres são -, mas temos uma recepcf11idade do livre-arbí trio que lhe pennite ser tnovido
por eles graças â razão pura ptática (e â sua lei), e é a isso que chan1a1nos sentimen to moral..
64 Cf foid . AK VI, 402-403: P III. p 685-686
116
O fato do
dever
rar a prioridade da autonomia moral, de modo a manter a distância qualquer
risco de heteronomia, Kan t deve, por um lado, indicar em que o respei to como
qualidade moral nada tem de patológico e: por ou tro, enfatizar o que separa o
sentimento moral de sua forma pervertida, o pretenso senso moral O in te
resse dessa dupla exclusão está em que ela aqui se apresenta não no nivel dos
principias, mas sim na aplicação da lei moral, um campo em que o perigo da he
teronomia é mui to maior: Kan t retoma, pois, sob uma nova forma a elaboração
racional do respeito que já apresentou na Critica da razão prática , desta vez
em situação de concorrência com figuras ilegí timas da receptividade estética
O respeito, como vimos, é o sentimento genérico para com nossa própria
dignidade e a dignidade de todo homem Esse sentimento é a matriz de um
conjunto de outros sentimen tos estéticos, que é preciso por sua vez distinguir
de suas versões patológicas A humildade, por exemplo, pode legi timamen te
ser a mar ca de uma receptividade do homem à insignificância do seu valor
moral em comparação com a lei; mas ela arrisca-se imediatamen te a cair na
falsa humildade, no orgulho, na ambição A verdadei ra h umildade nasce uni
camen te -é a condição de sua legi timidade -do confron to en tre meu
poder e a santidade da lei Ela revela a dignidade humana, do mesmo modo
que o sentimen to moral revelava a dimensão coercitiva do deverG5 Assi m
elabora do, o respeito pode servir de fundamento dos deveres para consigo
mesmo e dos deveres para com o próximo Este segundo caso apr esenta, aliás,
uma estrutura discriminan te semelhante Por um lado, encon tramos um falso
res
pei to pelo ou tro nascido da comparação do nosso valor com o seu; de ou
tro, o verdadeiro respei to pelo ou tro, que é a restrição de nossa au to-esti ma
pela dignidade da humanidade no outro
A elaboração da receptividade estética do senti men to moral obedece a
principias aparen tados Esse sentimen to é o nome subjetivo do respeito
pela lei moral, ou ainda o efeito sentimen tal da consciência do dever" De
maneira mais geral, pode-se falar de uma estética dos costumes como
apresentação subjetiva da metafísica dos costumes O maquinário estético07
-a expressão é de Kan t - que personifica o vicio e a vi rtude não faz
parte da metafisica propriamen te dita, mas tem, no entan to, um sentido
moral, desde que se pre serve a receptividade estética de toda patologia
emocional
G5 Cf ibid AK VI 435-436; P III p 723- 724
IJB Cf ibid , AK V!. 463; P lll, p 70: "'O respeito à !ei que subjetivarnente é designado
corno sentimen to rnoral, e a consciência do seu dever são uma única e mesma coisa'·
57 Cf ibid , AK VI. 406; P III. p 690
117
Compreender
Respeito por si e pelo outro; sentimen to de prazer e de dor sofrida pro
ceden te da represen tação do dever; esses dois elemen tos, en tre ou tros,
par ticipam da aplicabilidade da lei moral As qualidades morais e os deveres
da virtude não são, é claro, esquemas verdadeiros, pois a lei moral não
pode jamais ser apr esen tada em uma i n tuição. Mas Kan t não hesita em
confiar aos sentimen tos estéticos, tais como se apresen tam nos casos
individuais, um papel de quase-esquematização dos pri ncipias puros do
dever" Tam bém no catequismo moral que conclui a Doutrina da virtude
Kan t insistirá na necessidade de u ma receptividade do aluno, não a
exemplo de u m ou tro
homem (receptividade patológica) mas à Idéia de humanidade nele (recep 
tividade moral)
A partilha critica entre uma boa e uma má receptividade estética permite,
pois, sem ameaçar a autonomia, prolongar a receptividade originária da razão
em uma figura moral não-racional, que, no entan to, é essencial à elaboração
dos deveres particulares
Se os sentimen tos estéticos não podem ser objeto de um dever direto,
eles são objeto, todavia, de um dever indireto: o homem deve cultivar essas
disposições naturais, que permitem às vezes obter do livre-arbí trio o que ape
nas a represen tação racional do d ever não teria podido obter Assim, Kan t
afinna sobre a comiseração que, sem o impulso desse sentimen to em relação
ao outro, não é certo que o puro concei to do dever resul te em sua execução É
claro que tal disposição estética não eleve ser estabelecida como fundamento
da ação, que perderia, então, sua moralidade; mas pode às vezes ser desejável
ou mesmo necessário apoiar a ação moral em uma motivação ex tra-racional 11!l
A exigência de efetividade da lei moral justifica assim uma reduzida severida
de em relação aos sen timen tos estéticos, no limite estreito de sua utilidade,
levando-se em con ta a realização da moralidade É a esse ti tulo que Kan t fala
ainda de um principio de receptividade à retribuição é tica, que permi te ao ho
mem gozar legitimamente de sua própria virtude, ao passo que a Frmdamen-
fiG _C.f ibid . AK V!, 468; P Ili, p 766: "Entretanto. assirn como se exige uma passagem
d_a n1etaf1s1ca da nat ureza para a física, que ten1 suas regiaS particulares. assim se exige, a
justo ti t ulo, algo de análogo da n1etafisica dos cost un1es. ou seja. esquematizar. de certo
inodoos
pri ncípios puros do dever pela aplicaçào destes aos casos da experiência, e apresentá los pr.on
tos para o uso moial prático'
59 e'. ibid ·. AK VI, 45 7; p III. p 752: ..pois esse sentimen to é, pois, UITI impulso implan
tado em nos pela natureza, de fazer aquilo cuja execução a represen tação do dever. por si só, 
nào alcançaria··
1 18
O fato do dever
cação da metafisica dos costumes excluía por principio toda função positiva
para esse tipo de sen timento. O que de modo eviden te estava excluído da
fundação da moralidade pode ser reconhecido agora como um suplemen to
útil dessa mesma moralidade
O formalismo moral kantiano não é atenuado por essa abordagem re
lativizada da receptividade estética Ele é antes aprofundado em um de seus
traços, a receptividade racional, que o fato da razão designa A exigência da
aplicação da lei é o pano de fundo do que consti tui, ao mesmo tempo, o co
ração da moral kantiana e o cmação do homem: a razão afetada Ela provoca
não uma reviravolta na construção da metafísica dos costumes, rnas urn de
senvolvimento estético do sentimen to originário, consti tutivo de um quase
esquematismo moral Encon trar emos um procedimento comparável em um
campo completamente diferente, o da religião Ainda ai, nenhuma negação
da prudência critica e da rejeição do dogmatismo metafisico Todavia, a efeti
vidade da lei moral exige que certos conceitos estranhos aos fundamentos da
moral encontrem no espírito humano um espaço de receptividade, condição
do pr óprio Bem Supremo Esse percurso da Doutrina da virtude é sem dúvida
parcial, e deixamos de lado muitas análises particulares nas quais se expressa
a sutileza psicológica do espirita kantiano O essencial nos parece, ainda
assim, residir nessa profunda preocupação com a eficácia, que é tanto mais
original quanto mais se enraiza em uma preocupação aparen temen te inversa,
a de uma purificação e de uma racionalização extrema dos conceitos morais
Da mora l à religião, ou a religião mora l
Há muitas maneiras de se abordar a religião kantiana, se por isso entendemos
o que Kant diz filosoficamente de Deus e da relação que o homem mantém
com ele Podemos, em um primeiro momen to, nos interessar pelo aspecto
triplamente teológico do problema, estudando a recusa que Kan t propõe de
toda prova teórica da existência de Deus, depois a função que ele atribui à
idéia de Deus em sua filosofia do conhecimento Podemos, assim, insistir na
função moral da referência a Deus, e na complementaridade entre moral e reli
gião Podemos, enfim, enfatizar o concei to de religião da razão, detalhando
as conseqüências críticas que tal concei to implica para as religiões reveladas e
as instituições eclesiásticas Todas essas abordagens são legitimas, e tentar
emos sucessivamente indicar sua pertinência
119
1
Compreender
A sede de Deus
Gostaríamos, todavia, de insistir aqui em duas proposiçõe,s especificamente
kan tianas, que dão ao seu discurso sobre Deus uma tonalidade original A pri
meira afirma que a posição de Deus é o efeito de uma tendência natural do
espírito humano, a mesma que já chamamos no inicio deste livro de desejo das
Idéias. A segunda, que justifica a inserção desta seção em um capitulo consa
grado ao dever moral, define a religião como o conhecimen to de nossos deve
res como mandamen tos divinos Nos dois casos, a religião é uma necessidade
vital; também nos dois casos, é preciso distinguir, pelo exercício da cri tica,
uma forma legitima de crença em Deus de uma forma ao mesmo tempo falsa
e perigosa de fé Seguiremos, pois, os modos dessa divisão crítica, começando
por lembrar em que o homem está, em principio, à espera de Deus
A postura kan tiana em r elação a Deus só se torna compreensível se a
r einscrevemos no con texto global de um homem kan tiano marcado por um
desejo de infini to Esse desejo está na origem, como vimos desde a in trodu
ção, da própria necessidade do trabalho crítico; encon tramos uma segunda
forma na passividade laten te em relação à lei que faz a especificidade da
au tonomia kan tiana; ele está também no principio da atitude par ticular do
homem para com a idéia de Deus Esta, enfim, não tem sentido senão na
perspectiva da esperança, aberta de maneira pragmática na tercei ra das fa
mosas questões da filosofia
Por que e em que condições fazer a pergun ta "O que me é permi tido espe
O fato do dever
mais inicial germinação"70 e que é mais evidente quando a razão é cultivada
A determinação daquilo que nos é permitido esperar funda-se novamente em
uma disposição natural da razão, que aqui assume duas formas: de um lado,
uma r eceptividade à idéia do dever, de outro a necessidade do Bem Supremo
Mas esses dois elementos não tem igual valor, e o primeiro deve pr eceder o
se gundo, se queremos que a moral possa produzir a crença. O conceito de
Deus ele próprio não tem sentido e determinação senão "pela relação com
objeto de nosso dever, como condição de possibilidade de chegar ao seu
objetivo final"71 A disposição religiosa depende, pois, da disposição metafísica
à idéia do dever; a elaboração da terceira pergun ta reconduz, pois, à condição
da aptidão para as Idéias cujo caráter fundamen tal buscamos indicar desde o
início deste tr aba lho Ou, nos termos de Kan t; a receptividade à Idéia de
liberdade -a Idéia do supra-sensível em nós, que se dá como fato -nos
permite determinar a Idéia do supra-sensível fora de nós, objeto de nossa
esperança72
O segundo momen to do questionamento religioso é a afirmação da ne
cessidade do Bem Supremo corno unidade da felicidade e da moralidade O
homem não pode renunciar ao seu fim natural, a felicidade 73 : essa
impossibi lidade torna indispensável a religião, que com base exclusivamen te
na morali dade não é verdadeiramente ú til ou prejudicial, entendendo-se que
a lei moral deve ser respei tada por ela mesma, sem esperança de recompensa
Ou melhor: o desejo de felicidade, ao ocorrer em um con texto em que a
segunda questão já foi levantada, "torna impossível que a razão se torne
indifer ente à maneira de
rar?'' O concei to-chave da passagem entre a segunda e a terceira das questões responder à pergun ta 'O que pode resu 1tar desse cor·r·eto ag1·r que e·o 
nosso .
11.
da filosofia é, talvez, precisamente essa especificidade humana, cuja função 
na moral kan tiana acabamos de descr ever, quer dizer, o fato, para o homem,
A reunião do dever e de uma felicidade conforme à sua plena realização pro
duz a Idéia de um Bem Supremo, depois, sob a condição deste, a Idéia de um
75
de estar sob a lei moral. É nesses termos que Kan t determina o objetivo final legislador moral todo-poderoso, exterior ao homern Se a articulação desses
da própria criação: não um ser santo, mas um ser defeituoso,
considerada a lei que, justamen te porque ele não consegue ser-lhe
adequado, se per gunta o que poderá esperar A partir dessa insuficiência
do homem, o Bem Supre mo -voltaremos à suposta evidência desse
principio - como unidade da felicidade e da moralidade está excluído
como objeto de experiência na terra e remetido à condição de um progresso
indefinido da moralidade e à atividade de um Deus que proporciona uma
felicidade perfeita à perfeição assim alcan çada Sem entrar nos detalhes
dessa prova moral da existência de Deus -o que faremos mais à fren
te -, é preciso notar que Kant, depois de tê-la expos to, observa que
"ela já se encon trava na faculdade racional do homem em sua
1 20
elemen tos -moralidade, felicidade, Bem Supremo, Deus -é absolutamen te
clara, sua realização prática depende da receptividade do homem à questão da
70 CF J, AK V, 458; P li. p 1266
71 lbid . AK V 469: P 11. p 1281
12 Cf ibid . AK V, 4 74; P II, p 1285-1286: ·'temos, assim. e1n nós um princípio que é
suscetível de deterrninar a idéia do SU?ra-sensível en1 nós e. desse modo, também aquela do
supra-sensivel fora de nós
73 Cf Teoria e prática, AK VI I I.2 78; P !li, p 256 -·Renunciar ao seu fim nat ural. a felicida
de, pois isto. co1no todo ser razoâvel finito. em geral. ele não pode' 
711 A religião nos limites da sin1ples razão, AK VI, 5; P II. p 
17 15 Cf ibid . AK VI. 6: P III. p 18
121
Compreender
esperança E também aí, com as mesmas palavras que empregava no prefácio
da Critica da razão pura , Kant não fala senão da impossibilidade para a razão
de ser a isso indiferente
Assim posto o quadro geral da teoria kan tiana da r eligião, podemos,
sem nunca esquecer essa dimensão essencialmente moral da reflexão
religiosa, en trar nos detalhes dos difer entes momen tos constitutivos dessa
teoria O pon to de partida de tal percurso não pode ser senão aquele
escolhido por Kant: a rejeição das provas teóricas da existência de Deus
abrem espaço para uma outra concepção, desta vez moral, da determinação
divina
A impossibilidade de uma 
prova teórica da existência de Deus
O problema da legitimidade de uma prova da existência de Deus é posto desde
as obras de juventude A partir de 1763, em um texto justamen te in titulado O
único fundamento passivei de uma demonstração da existência de Deus, Kan t
des taca o caráter fundamen tal da prova ontológica em relação às outras
provas e indica em que o concei to de existência não pode ser considerado um
predi cado. Mes!Tlo se Kan t mantém, aqui, a possibilidade de uma
demonstração teórica da existência de Deus, ele já formula os principais
argumentos que a Crítica da razão pura utilizará para denunciar sua ilegi
timidade"
Como vimos ao comen tar o inicio da Dialética transcendental , a idéia de
Deus é necessária e nat uralmen te postulada pela razão A fim de avaliar o
eventual uso legi timo, Kant deve indicar o que não é permitido fazer, sob o
risco de transgredir os limites do conhecimento que a Analitica definitivamen
te estabeleceu
Deus é afirmado pela razão Essa mesma razão não pode se con ten tar
com sua própria tendência ao incondicionado, e busca fundamentar o resulta 
do desta por uma argumen tação racional e que possa ser recebida por todos 
Três possibilidades se abrem: ou ela parte da constituição do mundo para, 
elevando-se, chegar ao que é sua indispensável condição; ou ela se atém à 
exis tência em geral para, em um movimento análogo, postular Deus em seu 
prin cipio; ou, finalmente, ela tenta deduzir a necessidade da existência de 
Deus de
7ü Para uma apresentação detalhada desse texto. rernetemos à introduçào fei ta por Syl·
vaio ZAC na edição da Plêiade (P I. p 305ss )
122
O fato do
dever
seu próprio concei to Essas três provas, que Kan t irá sucessivamen te r ejeitar,
têm um nome preciso em filosofia: a primeir a é chamada físico-teológica, a
segunda cosmológica, a terceira ontológica
Contrariamente ao procedimen to comum, I(ant irá enfrentar inicial1nente
a prova ontológica Segundo esta, a própria idéia de Deus inclui a idéia de uma
existência absolutamente necessária e incondicionada Dito de outro modo, e 
Descartes não afirma nada diferente, conceber Deus sem a existência é uma 
con tradição O problema aqui é que se confunde a necessidade do juízo e a 
ne cessidade da coísa Julgar que um triângulo que não tenha tr ês lados é uma 
con tradição é, sem dúvida, legítimo, mas isso não implica que um triângulo 
existan Todavia, a necessidade lógica de um elo entre a afirmaçâo do conceito 
de Deus e sua existência é tão podeiosa e convincente que uma simples 
observação não é suficien te para abatê-la Será preciso, pois, entrar nos 
detalhes da prova
Kan t reformula primeiro, de modo mais preciso, o que acaba de avançar 
rapidamente:
Se en1 um juízo idên tico suprüno o predicado e conservo o sujeito, disto resul ta
urna contradição, por isso digo que o pr edicado convém necessariamen te ao su
jeito Mas se suprimo junto o sujeito e o predicado disto não resulta con
tradição,
pois não há mais nada com que possa haver contradição7ª
Difícil escapar a tal objeção, a menos que se mostr e que o conceito de
Deus, e só ele, justamente não pode ser suprimido A necessidade em jogo
não seria pois somente a do juizo que estabelece um laço entre Deus e a exis
tência, mas a da própria coisa, independen temen te do juízo que dela se faça
Descartes, na quinta das M editações metafisica s , apóia-se, com efeito, nessa
excepcionalidade do conceito de Deus, em que o próprio enunciado demons
tra, na realidade, a existência Nas palavras de Descartes: "Não está em minha
liberdade conceber um Deus sem existência (quer dizer, um ser soberana
men te perfeito sem uma soberana perfeição), como sou livr e para imaginar
um cavalo sem asas ou com asas"7!l
Kant elabora uma formidável réplica a essa resposta cartesiana Ela exige, 
com efei to, que o predicado da existência seja analiticamente compreendido
77 Cf CRP. A 594/B 622
JD lbid
79 R DESCAR r Es, !viéditations métaphysiques. V Ed Adam-Tannery, t IX. p 53
123
r!
Compreender
no conceito de Deus Isso significa que a existência nada acrescenta ao concei
to, e que a idéia que tenho de Deus é perfeitamente idêntica ao próprio Deus,
o que é absurdo A existência não pode ser postulada senão por um juízo sinté
tico Mas, neste caso, não se pode utilizar o principio da não-contradição, que
não se aplica senão aos juizos analíticosºº
Última etapa, decisiva, dessa rejeição, Kant indica por que a existência
não é um predicado real Isso significa que afirmar de um objeto que ele existe
nada acrescenta ao conceito desse objeto Por isso o célebre exemplo:
Cem táleres efetivos não con têm nada mais do que cem táleres possíveis Pois
como os táleres possíveis indicam o conceito e os táleres efetivos o objeto, e
sua posição e111 si mesmo, caso este con tivesse mais do que aquele, meu con
cei to não expressaria mais o objeto inteiro, e por conseguin te não seria mais o
concei to adequadoº 1
A conclusão se impõe naturalmen te: a existência de Deus não pode ser 
analiticamen te compreendida em seu conceito, de um lado, porque um juízo 
de existência é sempre sintético e, de outro, porque a existência não é predicá 
vel Não há senão um meio para demonstrar a existência de um objeto táler 
triângulo ou Deus: é fazer sua experiência sensível, o que justamente .fica ex 
cluído no caso de Deus
Kan t pode, en tão, passar às outras pwvas da existência de Deus Ele não
irá ref utá-las diretamen te, mas apresentá-las à prova on tológica, a fim de
que o golpe aplicado a esta também atinja aquelas
A prova cosmológica pode ser assim resumida: "se alguma coisa existe,
deve existi r também um ser absolutamente necessário Ora, eu, pelo menos,
existo; portan to, um ser absolutamen te necessário existe"ª 2 O pon to de par
tida dessa prova não é a priori , pois trata-se de nossa experiência da existência
em geral Dessa realidade verificável passa-se logicamente à realidade neces
sária de Deus Kan t é bastante severo em relação a essa prova, na qual vê um
emprego inédi to de sofismas de todo tipo O essencial de sua critica consiste
em afirmar que essa prova supõe a identidade do concei to de suprema realida
de com aquele de uma existência necessária A experiência real de que parece
BD Cf CR A 598/B 626
Bl lbid . A 599/B 62 7 
82 lbid . A 604/B 632
124
O fato do
dever
partir essa tese não é senão um artifício para utilizar de outro modo, talvez
mais hábil, o argumento on tológico Há aqui, ao mesmo tempo, erro e
engano; mais ainda: uma pretensão extraordinária, que faz de uma hipótese
eventu almente útil para unificar a experiência do mundo - Deus -uma
realidade teoricamente demonstrável°' Bem podemos admitir a idéia de
Deus como principio heurístico, útil para a unificação do conhecimento
fenomenal: dizer mais seria uma fraude Basta lembrar o que dissemos das
idéias reguladoras em nosso comentário da Dialética
A ter ceira e última prova tem destino idên tico ao dasegunda Mas, ao con 
trário desta, Kant considera com mui to respeito o argumento físico-teológico, 
que deduz a existência de Deus da organização do mundo É, diz ele "o mais 
an tigo, o mais claro e o mais bem apropriado para a razão humana cornum"11il 
Dito isto, essa prova repousa em definitivo igualmen te na prova on tológica 
Ela permite no máximo estabelecer que o ser necessário é um bom arquiteto, 
mas não pode ir além sem fazer um salto ilegítimo na prova cosmológica, não 
sendo esta, por sua vez, senão uma prova on tológica disfarçada
Kan t, finalmente, extrai as conseqüências últimas dessa tripla rejeição:
Afirn10 que todas as tentativas de uma u tilização puramen te especulativa da
ra zão e1n matéria de teologia são absolutamente infrutífer as e que em virtude
de sua natureza interna são nulas e inexistentes
Deus não é um conceito teoricamen te demonstrável Ele é útil como prin
cipio regulador do conhecimen to, mas só se torna indispensável em virtude de
uma profunda inflexão do pensamento kan tiano, que o faz passar da natureza
à liberdade, da ciência à moral Deus não será mais demonstrado, mas postu
lado, quer dizer, afirmado como condição da força da obrigaçãon" da lei mmal,
que é, por sua vez, ao mesmo tempo -lembremos -incerta e indemonstrá
vel A única prova da existência de Deus se enraizará, pois, ainda uma vez, no
fato único que se impõe como uma lei, o fato da razão
B3 Cf ibid , A 612/B 640 
B4 lbid . A 623/B 651
05 Cf ibid , A 634/B 662: "Como há lels práticas que são absolutamen te necessáiias (as
!eis n1orais), se essas leis pressupõem, necessariamente. qualquer existência como condição da
possibilidade da sua força obrigatória. essa existência tem de ser postulada , porque o
condiciona do. donde parte o raciocinio para concluir nesta condição detenninada, é ele próprio
conhecido a priori como absoluta1nente necessário·'
125
Compreender
Deus postulado
Havíamos anunciado no inicio desta seção: a afirmação efetiva de Deus é sub
metida em Kant à da lei moral, por intermédio de um concei to original do Bem
Supremo. Este é produto natural da dialética do espiri ta humano, tenden te
necessaria1nente ao incondicionado Essa tendência é a causa, no campo teóri
co, da ilusão transcenden tal; ela exige, no campo prático, a realização do Bem
Supremo, quer dizer, a efetividade da unidade da lei moral e da felicidade Essa
dialética prática, apesar de sua complexidade, pode no fundo ser reduzida a
uma fórmula bastan te simples: o Bem Supremo realiza a sintese daquilo que
nós devemos fazer e do que desejamos realizar
Essa síntese, todavia, não é justa para com seus componen tes A vir tude
como respei to efetivo da lei moral sempre vem primeiro; em Kant, ela é o Bem
Supremo, aquilo que devemos absolutamen te perseguir O Bem realizado, ou
Bem Supremo, não é, no fundo, senão o Bem Supremo acompanhado de uma
satisfação sensível proporcionada à sua realização, a felicidade Se devemos ,
pois, postular esse concei to como o objeto final da von tade, não é pelo fato do
caráter efetivamen te universal do desejo de ser feliz, mas em razão do fato da
obrigação moral, que nos impele a ser virt uosos
Resta estabelecer a modalidade da síntese consti tutiva do Bem Supremo
Duas soluções, não mais, podem aqui ser consideradas: ou a busca da virtude
significa, no fundo"", buscar a felicidade, ou buscar a virtude produz mecani
camen te a felicidade Kant ilustra essas duas opções com duas referências à
história da filosofia:
O epicurista dizia: ter consciência de sua máxima conduzindo à felicidade, eis aí 
a virt ude; o estóico: ter consciência de sua vir tude, eis a felicidadeª1
Kan t apressa-se em precisar que esses dois pensadores não souberam
pensar corretamente a relação entre a virtude e a felicidade, ten tando desajei
tadamente incluir uma na outra, ou vice-versa, ao passo que, na realidade, se
trata de dois conceitos in teiramen te distin tos Para Epicuro, todo o bem
reside na virtude, estando a virtude con tida na idéia de uma felicidade
corretamen te buscada; para um estóico, todo o bem está na virtude, sendo
a felicidade reduzida a um efeito secundário da virtude É preciso, pois,
romper com essa
86 Cf CRPr, AK V 111; P II, p 743
87 lbid . AK V 111; P II. p 744
126
O fato do
dever
maneira de pensar comum às filosofias helenisticas e enfatizar an tes a hetero
geneidade dos principias que conduzem à felicidade ou à vir tude Somen te um
julgamen to sintético poderá estabelecer a relação entre esses dois termos E ,
portan to, somente uma relação de causalidade pode ser postulada en tre elas,
conforme a lição da Critica da razão pura
Primeiro caso: a felicidade é a causa da virtude É fácil ver o absurdo de
tal afirmação, que faria da autonomia moral uma consequência da busca de
um objeto exterior, a felicidade, busca cuja moralidade nada assegura Igual
destino aguarda a segunda possibilidade: imaginar que a felicidade possa
provir da realização do dever moral significa desen tender-se em relação à
r ealid ade d a seqüência prá tica d as causas e dos efeitos no mundo O u se
comete um erro de 1ure, submetendo a virtude à felicidade; ou se comete
um erro de facto , fazendo a operação inversa Nos dois casos, esvazian1os o
concei to de Bem Supremo de todo con teüdo, ao passo que sua possível reali
zação é exigida da razão prática
Esse confli to, que Kan t chama naturalmente de uma an tinomia,
encontra uma solução não na condenação igual das duas proposições
preceden tes, mas na relativa aceitação da segunda opção, amplamen te
relativizada Kan t toma todas as precauções para dizer:
!\Ião é impossível que a moralidade da in tenção tenha, como causa, corn a felici
dade, como efeito no mundo sensível, uma conexão necessária, senão imediata
ao n1enos mediata (por in termêdio de um autor inteligivel do mundo) -
co nexão que, em uma natu1eza que é simplesrnen te objeto dos sentidos,
jamais poderá ocorrer senão casualrnentellG
Dito de maneira mais simples: a vir tude é causa de uma felicidade real 
que se dá em outra parte, além do mundo sensível e graças à ação de Deus A 
seqüência imediata do texto, no qual Kant retorna à even tual con tribuição dos
estóicos e epicuristas, nada altera ao principio de sua solução de autonomia 
É indispensável ir além da experiência sensivel para que o conceito de Bem 
Supremo seja possivel, o que ele deve ser, pois é necessário
A suspeita de uma traição dos limites definida pela primeir a Critica é leva
da a sério por Kant De que modo a razão se permite postular algo cuja expe
riência jamais poderemos fazer? A resposta kantiana é extr emamente fir me:
o interesse prático tem a supremacia em relação à razão teórica, e esta deve
ao Ibid . AK v. 11s: P 11. P 748
127
Compreender
adaptar-se às exigências da moral, sem, é claro, renunciar ao essencial, quer 
dizer, à impossibilidade de um conhecimen to do supra-sensível°'
No fundo, a doutrina dos postulados se reduz a essa posição de uma pri
mazia da razão prática Devemos pensar aquilo que não podemos conhecer em
virtude de uma obrigação absoluta, e que não sofre nenhuma restrição
Um postulado da razão prática é "uma proposição teórica, mas que, como
tal, não pode ser provada, na medida em que é inseparavelmente ligada a uma
lei prática, que tem a priori um valor incondicionado" 90 É dessa natureza a afir
mação da imortalidade da alma A lógica do argumento é fácil de reconstruir
"Eu" devo ser perfeitamen te virtuoso, portanto santo, para poder aspirar à fe'.
licidade Ora, tal perfeição não é possível aqui embaixo É preciso, por conse
guinte, poder progredir indefinidamen te para a santidade, e para isso possuir
uma alma imortal Postular essa imortalidade é indispensável para poder pen
sar a possibilidade do Bem Supremo Mas isso ainda não é o bastante se falta
o instrumento da síntese efetiva entrea santidade futura e a felicidade espe
rada Kant é, pois, obrigado a fazer um segundo postulado, que nos concerne
em primeiro plano no âmbito desta seção: a existência de Deus. A ordem dos
postulados é essencial. O primeiro torna passive! o Bem Supremo, a santidade;
o segundo assegura a conexão dessa santidade com a felicidade, sem o que 0
Bem Supremo não tem sentido O estatuto dessa posição da existência de Deus
é, na verdade, curioso Kant afirma que a necessidade de admiti-la não é senão
subjetiva; é um dever tender à santidade, mas não se pode considerar um dever
equivalente a afirmação da existência de Deus Ele deve então introduzir um
conceito novo, que permita pensar a afirmação subjetivamen te necessária da
quilo que, pela razão teórica, procede da hipótese, o de crença racional" O que
Kant faz na Critica da faculdade de julgar, sob nome de prova moral, é
absoluta mente semelhante: também aí, Deus é demonstrado pela necessidade
prática de pensá-lo, mesmo se, como veremos, o conceito de Deus assim
obtido tem, na terceira Critica, uma função teórica que não possui na segunda
09 Cf ibid . AK V, 121; P 11. p 756
90 lbid AK V 122; P II. p 75 7
91 Cf ibid . AK V 126; P II, p 762: ·'Considerado en1 relação à exclusiva razão teórica como
princípio. de explicação, este fato não é senão uma hipôtese; mas em relação à in teligibili dade
d_e u1n º,b1eto que. todavia, nos é dado pela lei moral (o Bem Supremo), por tan to de urna
necessidade co pon to de vista prático, esse fa to pode ser chamado de crença, mais exatamente
urna pura crença racional, pois só a razão pura (segundo seu uso teórico assim como prático) é a
fonte de onde jorra··
128
O fato do dever
Deus post ulado faz oscilar a filosofia prática de Kan t da moral para a
reli gião, definida como reconhecimento de nossos deveres como
mandamentos di vinos O homem, ao pensar Deus como aquele que írá fazer
da felicidade perfei ta a seqüência da santidade idealmente alcançada, modifica
seu olhar sobre a lei moral Ela, pois, não é mais somente a marca de sua
autonomia, mas também a assinatura de um Deus, único capaz de realizar a
plenitude pelo Bem Supremo
A moral não é senão a doutrina que nos ensina a ser dignos da felicidade 
A r eligião nos dá a esperança de chegar verdadeiramente a isso. A diferença é,
sem dúvida, essencial, mas o r egistro é sempre o mesmo, o de uma pacien te 
dedução de todos os efeitos da presença em nós da lei moral. Talvez esteja aí 
a chave para compreender a curiosa adjunção aos dois primeiros postulados, 
por Kant, de um terceiro postulado, o da liberdade Deve-se postular a liber 
dade como condição fundamental da busca da santidade, primeiro elemen to 
do Bem Supremo Jamais se conhece a liberdade, mas é preciso pensá-la, o 
que, no fundo, já dizia a analítica da r azão prática, fazendo da liberdade a ratio 
essendi da consciência da lei
Deus indemonstrável, Deus postulado, Deus incognoscível, mas que deve
ser pensado: a teologia kan tiar.a é uma questão de moral, como deverá ser a
religião, inclusive em seus aspec tos institucionais
Deus moral
Antes de abordar a religião propriamen te dita, e o texto que Kan t lhe
consa gra, gostaríamos de nos deter nesta curiosa expressão de teologia
moral, que l(ant utiliza aqui, o mais das vezes, em ressonância com um
outro conceito, também surpreendente: o de fé racional
A religião como
moral
O conceito de Deus pertence à mor al, não à física Somente pela postulação
da lei moral pode-se atribuir a Deus uma série de qualidades particulares:
Deus é perfeito, oniscien te, todo-poderoso, onipresente, eterno" A
originalidade de Kan t não está na natureza desses atributos divinos, que não
poderiam ser
92 Cf ibid , AK V 140; P II p 718
129
Compreender
mais clássicos, mas na maneira pela qual ele os seleciona, não conservando
como características divinas senão o que pode ser vir à moral Encon tramos
nesta breve passagem o principio de toda teologia moral Essa disciplina não é
uma descrição de Deus em sua relação com o mundo natural, nem uma deter
minação daquilo que é em si mesmo, mas uma redução de Deus à sua dimen
são moral A leitura que aqui propomos apóia-se nessa idéia de uma redução:
tanto a teologia como a r eligião serão submetidas a uma espécie de exame
seletivo, que exclui do campo da legi timidade toda proposição moral suscetí
vel de diminuir o efeito da lei moral A religião e a teologia são necessárias
por causa da moral: mas é também por causa da moral que é preciso reduzi-
las a seu núcleo racional, a fim de assegurar um máximo de eficácia à lei
moral
Definida de maneira bastante geral em Kan t como o conhecimento de
todos os nossos deveres enquan to mandamen tos divinos, a religião tem so
br e a moral a van tagem de tornar sensível a obrigação moral pela idéia de
Deus, sem dever postular um Deus objetivamente cognoscivel Ela decorre
da moral, sem dúvida, para permitir que se pense na possibilidade do Bem
Absoluto -a doutrina dos postulados -, mas também para oferecer ao
de ver uma formulação mais eficaz Nas palavr as de Kan t:
l.\lão poden1os tornar sensível a obrigação (a coerção moral) sem pensar, ao mes
mo tempo, en1 um outro e em sua vontade (cuja razão universalmen te legislado
ra não é senão a porta-voz), quero dizer, Deus!l 3
A introdução da idéia de Deus na moral não altera nada em sua matéria;
ela simplesmente permite à razão humana que a produz e a recebe em si obter
uma
1
O lato do dever
intenção religiosa imanente a todas as nossas ações conforrnes ao clever"!IG
A religião como expressão da possibilidade do pensamen to ao infinito de
Deus já estava presen te, de modo implícito, na receptividade da razão à lei
A Doutrina da vi rtude não diz outra coisa quando coloca o conceito ele
Deus no interior da consciência moral Obscuramen te, é claro, mas necessa
riamen te, a razão prática se obriga a agir em conformidade com a Idéia de
Deus, que representa agui aguele a quem devemos prestar con tas"' A Idéia
de Deus, não sua r ealidade, é necessária para formular eficazmen te a lei; ela
é também a Idéia de um juiz, peran te o qual compar ece o homem, inclusive
o homem nownenal Há, pois, no próprio seio da moral um dever de religião,
que nada mais é que um dever do homem para consigo mesmo, mas que em
sua forma especifica manifesta a inadequação da obrigação ao nosso poder
A refeição da /Jeteronomia do rel!
gwso
Essa surpreenden te proximidade da religião e da moral não é passive] senão
pela her ança critica entre uma legitima receptividade à idéia de Deus e a he
teronomia de uma religião11ão purificada de seus con teúdos extramorais. O
principio dessa herança é, como se disse, um principio de redução: "Trata-se
menos de saber o que Deus é, em si mesmo (em sua natureza), do que o que
é pa1a nós con10 ser es n101ais" 9fl A religião é esvazia<lü <le Lu<la on lulugia e de
toda prática que lhe seja derivada Kant parece proceder aqui por uma espé
cie de red ução transcenden tal, que não conserva de Deus senão sua relação
comigo como ser livre, submetido à lei Como corretamen te obser va EricWeil, todo conhecimen to objetivo da nat ureza de Deus faria do homem um
influência maior sobre a vontade na realização dos 
deveres9'
A passagem à r eli
gião inscreve-se no próprio movimento da moral buscando a melhor aplicação
A idéia de Deus é nesse sentido inevitável, ao menos para o homem que aceita
fazer "um esforço moral sério"°' Mais ainda, o respeito pela idéia de Deus não
é jamais um ato unicamente religioso, destacado da realização do dever; ele é
"a
93 Doutrina da virtude. AK VI. 487; P lll. p 786
94 Cf O co11f/ito da s faculdades AK VII, 36; P III. p 83 7-838: '·A religião não se
distingue da moral en1 nenhum pon to pela matéria. quer dizer. pelo objeto. pois ela diz respeito aos deveres em
geral. mas sua difetença em relação a esta é puramen te formal, quer dizer.na medida em que é uma legislação da
razão pura para dar à rnoral. graças à idéia de Deus produzida a partir desta mesma, uma influência na vontade
humana a fi.m de que esta cumpra todos os seus deveres··
95 A religião nos limites da si mples razão, AK VI. 153; P III, p 183
130
técnico da felicidade°' movido pelo temor, não o ser digno e responsável gue
é, mesmo em sua relação com a idéia de Deus O homem pode e deve pensar
95 lbid , AK VI, 154; P Ili, p 184. nnta
97 Doutrina da virtude. AK VI, 439 ; P III, p 728: ''Ê preciso. pois, conceber a consciência como
principio subjetivo de contas a prestar a Deus dos seus atos; rnelhor. este último conceito está
se1npre contido em toda consciência de si n1ora! Aliás. isso não quer dizer que por esta
idéia, para a qual conduz inevitavelmente sua consciência, o homem esteja autorizado -nern,
con1 n1ais razão, obrigado -a admi tir tal ser supremo como existente realn1ente fora dele;
pois esta idéia não lhe é dada objetivarnente pela razão teórica, mas apenas subjetivamente
pela razão prática, obr igando-se, ela n1esn1a. a agir confonne essa idéia'
98 A religião nos lirnites da sin1ples razão, AK VI. 139; P !II, p 170
99 Cf E Wr:n., Problemes kantiens. Paris, Vrin, 1990. p 44
131
Compreender
Deus; mas ele deve sempre também limi tar seu pensamen to à ligaçào en tre
a soberania parcial de um ser marcado pela lei moral e a soberania absoluta
daquele que conduz o mundo
A cri tica kan tiana da religião irá se apoiar constantemen te neste princí pio
de interpretaçào: o que interessa ao filósofo, na religiào, reside unicamen te
naquilo que "con tribui para a realizaçào de todos os deveres humanos como
mandamen tos divinos ..10° Fora dessa con tribuição, a religião é vazia, ou éum
obstáculo ao bem 101 Ficam assim excluídos todos os dados sobrenaturais inde
vidamente conf undidos com o supra-sensivel e1n nós, toda crença puramente
esta tutária sem efeito moral, todo misticis1no inimigo da razão A religião não
é auten tificada, inclusive em seu aspecto histórico e biblico, senão na exata
me dida em que é demonstrada nos fatos sua capacidade de ''tornar
melhores""" os homens e "reuni-los em uma Igreja universal (embora
invisível)" 10"
A receptividade da filosofia à idéia de Deus nào é legi tima senào se o
pen· sarnen to rejeita o religioso patológico, equivalente no dogmatismo
àquilo que a Doutrina da virtude excluía a tí tulo de sentimen to estético
patológico
Kan t irá assim, munido desse princípio hermenêutico, considerar cada
um dos con teúdos positivos da religiào Atendo-se constan temen te aos
con· fins da filosofia, ele distingue, entào, uma legitima r eceptividade
desta aos conceitos moralmen te fecundos - Deus, é claro, n1as também,
en1 parte, a graça ou o perdào -e uma receptibilidade patológica a
comportamen tos inú· teis, ou mesmo doen tios, como o en tusiasmo e o m
isticisrno
A disposiçào moral do homem em experimentar a santidade da idéia de
dever é, para Kan t, absolutamente incompreensível Ela pode suscitar na alma
uma emoção violenta, indo até a exaltação; mas, apesar de seu caráter eminen
temente passional, essa emoçào, na medida em que desperta as melhores in
ten· ções 1norais, deve ser favorecida ·rodavia, e aí intervém a herança critica,
uma religiào racional deve evitar confundir o sentimen to de nossa própria
dignidade com o efei to emocional de elementos ilegitimamen te integrados à
religiào, como os milagres, os mistérios ou um pretenso efeito da graça
anterior ao aperfeiço·
amento moral de si mesmo1°' De um lado, um sentimento intimamente ligado
ao respeito, de outro o entusiasmo, mui tas vezes acornpanhado de superstição
100 A religião nos li mites da si1npfes razão, AK VI. 110; P 1!1. p 133
101 Cf Le Conflit des facultés, AK VII. 48; P !11. p 852
102 lbid , AI( VII. 59; P 111. p 867
103 lbid
104 Cf ibid . AK VI. 53; P 111. p 70
132
O lato do dever
U ma distinçào comparável aplica-se à Idéia personificada do bom princí·
pio que é o Cristo Essa idéia já ocupa um lugar en tre nós, e é um dever geral
par a a h umanidade não apenas ser-lhe receptiva, mas também elevar-se até
ela em direçào ao "arquétipo da intençào ética em sua pureza total"105 Aqui, 
o Cristo é in tei ramen te originário da razão lTIOialmen te legislativa, que 
ma nifesta, pois, originariamen te, uma disposiçào em acolher sua Idéia 
Uma fé moral na figura ideal do Filho de Deus é possível e legítima; ela 
compreende um pouco de mistério, pois a presença dessa Idéia em nós é 
incompreensível IVlas só aun1entariamos o mistério se exigíssemos, alérn 
disso, que o homem acredi tasse na hipóstase sobrena tural dessa Idéia em 
um homem particular De uma legí tima in tegraçào da Idéia do Cris to, 
passaríamos entào à ilegítima exigência de uma fé histórica completamen te i
nútil
As prescrições do dever e todas as Idéias que susten tam sua aplicaçào
estào gravadas pela razão no coraçào do homem A religião moral apenas
cons· ta ta essa situação, apenas dá crédito aos direi tos do coração Dar
provas de incr edulidade moral é , por outro lado, querer que m ilagres -
ou qualquer outra forma de historicidade -venham a consolidar o dever'"" De
jure , a pura crença religiosa faz abstraçào da história como de toda
encarnaçào insti tucio· na! Somen te a fraqueza humana explica que, de facto
, a religiào insti t ui um serviço a Deus, um culto e um texto sagrado A
herança crí tica deverá, pois, constan temen te ater-se a limitar a influência
n1arginal da religião esta tu tária, sempre com o objetivo -ao menos, era o
que queríamos indicar com estes poucos exemplos -de permitir uma
aplicaçào da lei mais eficiente
A reduçào de Deus
O principio redu tor tem como conseqüência uma formulação mui to particular
daquilo que con tém a idéia de Deus É preciso, com efeito, para apreensào
das idéias, e en tre elas a de Deus, só conservar "o que é necessário para a
possibi lidade de pensar uma lei moral"m 7 A reduçào do divino consiste, pois,
nào em negar ou em colocar o problema da existência de Deus, mas em nào
afirmar de
105 lbid . AI< VI. 61; P Ili, p 76
10fi Cf ibid . AK V!. 84; P !l!, p 105: ··Revelar um grau punível de incteclulidade ê,
pois, re cusat-se a atribuir às ptescrições do dever. tais co1no estão gravadas no coração do homem
pela ra zão, uma autoridade suficiente. a menos que elas sejam, aléin disso, corroboradas por
milagres·'
107 CRP,., AK \\137; P li p 775
133
Compreender
Deus senão aquilo que é indispensável ao desenvolvimento da mor al, na me
dida em gue esta é determinada a priori a partir do fato da razão inicial Esta
redução não induz a nenhuma neutralização da transcendência, e menos ainda
da lei Ela, ao contrário, se apresenta como uma das estratégias mais eficazes
de modo a conservar sua aparência, longe das promessas e das consolações da
religião, da qual só é digno aquele que a elas renuncia
A religião nos lirnites da sitnples razão caracteriza-se por uma ten tativa de
racionalização da religião cuja finalidade é, ao mesmo tempo, demonstrar mo 
ralmen te a existência de Deus e trazer à razão o conteúdo da religião revelada 
No final de sua vida, nos textos esparsos que foram r eunidos sob o titulo Opus 
postwnum , Kan t vai mais longe e procede a uma verdadeiia neutralização do
teológico, chegando mesmo a pensar Deus como idéia, deixando em suspenso 
sua existência real Aqui, Kant parte ainda da ética para pensar o religioso: 
todavia, já não se quer mais fundar uma religião moral, mas apenas integrar 
o teológico na definição do ético, de modo analógico Não mais a religião nos 
limites da razão, mas o próprio Deus reconduz à razão, finalmente reduzido a 
não ser senão a um dos meios para melhor expressar a moral
A novidade do Opus postumwn , considerando-se a teoria kantiana do divi
no, reside no lugar designado para DeusComo o foco não é mais a necessida
de de um Bem Supremo que una a moralidade e a felicidade, Deus não é mais
pensado como condição desse bem, e clemonstrado em sua existência por essa
condicionalidade Deus já não é postulado, porém inscrito na formulação do im
perativo categórico Ele não tem mais um papel de auxiliar da moral, destinado
a deixar ao homem sob leis morais a esperança de uma felicidade, mas tem, pelo
con trário, uma função de acen tuação da dificuldade da obrigação O conceito de
Deus toma lugar na descrição da situação ética; e a religião como saber prático
do divino não pode, por conseguinte, ser definida senão como a rninilna, como "o
conhecimento de todos os meus deveres como mandamentos divinos"'°º Mes
mo se às vezes Kant apr esenta certas fórmulas mais brutais, fazendo de Deus o
"sujei to do imperativo categórico dos deveres"108, o conceito-chave que permite
a compreensão da religião kantiana é efetivamente o "como" que une Deus ao
dever humano e cuja dificuldade reside em sua natureza enigmática
Kant esforça-se para manter o equilíbrio entre a au tonomia da moral e
a posição de Deus, real ou ideal ludo se concentr a, pois, na ar ticulação do
108 Opus posttanurn, AK XXH, 116; trad. Ivlarty, Paris, PUF, 1986. p
170 109 Ibid . AK XX, 22: trad M"' ty. p 209
134
O fato do dever
divino aos deveres humanos: Estará Deus na origem destes? Exigirá 0 impera
tivo categórico em seu fundamen to a realidade de Deus? Ao conjun to dessas
questões Kan t responde por um "como se" que designa o limite entre o ético
e
o teológico, sem deixar de constatar sua indissociabilidade O que explica duas
teses sünultâneas: primeiramente, "o imperativo categórico não supõe uma 
substância ordenadora em posição suprema que estaria fora de mim"1H1; em 
segundo lugar, "apesar disso, deve ser considerada como provenien te de um 
ser que tem sobre tudo um poder irresistível'"" A primeira afirmação destaca 
assim a au tonomia do moral e a não-necessidade de um Deus postulado como 
ser fora de tnim; a segunda, ao contrário, insiste na necessidade de um Deus 
em pensamento como origem analógica do imperativo categórico O conceito 
de Deus impõe-se, pois, no momento em que Kan t define o dever em sua au 
tonomia, como o sinal de uma fração de heteronomia, não real, porém ideal, 
sinal de que eu não sou o autor da lei que formulo, e à qual eu me submeto por 
mim mesmo Se Deus não pode ser considerado razão de ser da lei, que é sem 
pre a liberdade, ele entra como parte em sua definição como razão de conhecer, 
justamen te como mar ca da aprioridade da lei e da incon trolável necessidade 
para a liberdade humana de lhe ser submissa Mas, acrescenta Kant imedia 
tamente, "Não há Deus em substância cuja existência seja demonstrada""' 
Nada justificaria substituir a uma teologia ética uma ética teológica que consi 
derasse que os deveres humanos são realmente rnandamentos divinos113
O "como" da definição moral da religião deve, pois, ser encarado no sen
tido de um "como se" Que resta então do concei to de Deus? Nada, ontolo
gicamente Deus não é senão a idéia da deficiência do homem, para quem a
obrigação sempre é dada Ou an tes, Deus é a idéia-limi te de um ser que pode
obrigar sem ser obrigado11 algo impossível para o homem, uma idéia que não
tem significado exceto quando completamente elaboradas a natureza e as con
dições do dever moral
Deus é um ser que não tem senão dir eitos Mas que Deus ordene
-analo gicamen te, é claro -não significa que esses mandamentos instituem
os deve res humanos: há, sem dúvida, identidade entre mandamentos divinos
e deveres humanos, e não dedução destes a partir daqueles, sendo a divindade
causa de
110 Ibid . AK XXI I. 51; trad Marty, p 186
111 Ibid
112 Ibid
113 Cf CFJ, AK V, 485; P !I, p 1298
11!'! Cf Opus posnanwn , AK XXH, 48. trad Ivlarty_ p 184
135
\
Compreender
seu caráter obrigatório Se Deus é um "ser que tem o poder de comandar todos
os seres razoáveis segundo as leis do dever"115 , ele não pode eximir-se dessas leis
corno leis da razão, que a ele se impõem sem ser coe citivas, Deus as respeitando
por elas mesmas Deus não é fonte do dever, mas figura e idéia da santidade,
perfeita adequação do agir ao dever: há deveres de Deus, não só porque tenha
mos que considerar divinos nossos deveres, mas tambêm porque Deus não está
acima das leis como leis da razão ético-prática, nem tampouco, é claro, abaixo
delas Mais exatamen te: essas leis estão nele Como vemos, Deus não traz nada
à natureza do imperativo categórico, não constitui seu dever, nem funda sua
racionalidade A ordem das razões irá sempre da ética ao teológico: e, sublinha
I(ant, "não consideraremos nossas ações obrigatórias porque são mandamentos
de Deus, mas, pelo contrário, nós as vere1nos como mandamen tos divinos por
que a elas estaremos interiormente obrigados"116
Podemos legitimamente nos pergun tar por que Kant mantém tão firme
mente a necessidade desse desvio analógico pela idéia de Deus, ao passo que
parece ter relegado a segundo plano, até mesmo abandonado, a demonstração
de Deus por postulados Para que poderá aqui servir Deus?
Com cuidado para não retirar de Deus todo o papel em seu discurso, Kan
t irá multiplicar as observações indicando a utilidade de Deus para a moral
Po demos distinguir sucessivamen te quatro funções da referência a Deus:
uma função de repr esentação da santidade, uma função catalitica na dicção
da lei, uma função motora, e, finalmente, uma função que se poderia
qualificar de disciplinar A fórmula do conhecimento de todos os deveres
humanos como mandamento tem inicialmente a conseqüência de sublinhar
a santidade e a inviolabilidade desses dever es111 Mais ainda, o próprio
imperativo categórico exige ser expresso nesses termos -" determinar
todos os deveres humanos como mandamentos divinos já se encon tra ern
cada imperativo categórico"118
-para que seja afirmada a diferença absoluta entr e o que é exigido de
mim e aquilo de que sou capaz A idéia de Deus funciona aqui como a
acentuação da humildade do homem peran te a lei; Deus é -e partindo
dai os deveres, que são os seus mandamentos -aquilo dian te de que
"todo joelho deve se dobrar""º O vocabulário paulino que Kan t utiliza
aqui indica que o respeito
115 Ibid , AK XX!I, 115, trad Marty, p 169-
170 116 CRP, A 819/B 847
117 Cf Opus posn1nn1111. AK X!l, 121, trad !Vlar ty. p 174
110 Ibid
119 Ibid
136
O fato do
dever
por Deus r epresen ta analogicamente o respei to pela lei, o desvio pelo divino
acentuando a desproporção ética, dor da obrigação
A in trodução de Deus na formulação dos deveres humanos tem igual 
men te o efeito de aumen tar a força com a qual esses deveres se apresen tam à 
liberdade: ela tem função catalítica com relação ao poder coercitivo das leis da 
razão ético-prática não ao modificá-las -vimos que o pensamento da obriga 
ção sempre precede a idéia de Deus como potência indulgen te por analogia -
mas ao conferir-lhes um vigor suplemen tar120 A terceira função da passagem 
ao teológico decorr e muito diretamente da segunda, pois o endurecimento 
da lei que produz tem como conseqüência exasperar o efeito motor do dever 
Mesmo que Deus não exista, sua idéia deve ser considerada como uma força 
motora agindo sobre a natureza do homem Este ponto encon tra-se em per 
feita continuidade com aquilo que Kant apresenta, notadamente em O conflito 
das faculdades, sobre a utilidade das idéias da razão consider adas em relação à 
realização da moralidade: é a influência das idéias que a religião expressa que 
a distingue da moral, diferença certamente formal, mas que separa duas for 
mulações, uma mais eficaz do que a outra, de um mesmo dever121 Finalmente, 
também ai, sem ruptur a com o que precede, a refer ência a Deus é indispen 
sável à realidade da obediência dos homens à lei Sem a postulaçãopela r azão 
ético-prática de uma idéia subjetivamente fundada da divindade " a razão dos 
homens não seria disciplinada" 122
A teoria da religião elaborada no Opus postumum retoma muitos dos ele
mentos avançados em obras anteriores 'Todavia, ela vai mais longe no mo 
vimento de redução do divino, fazendo de Deus não somente nem principal 
mente um conceito moral deduzido das necessidades do Bem Supremo, mas 
em primeiro lugar o principio de uma formulação do dever que não lhe deixa 
senão uma função analogicamente criadora, abstração feita de sua existência 
A primazia da lei remete o teológico a não ser senão um instrumento de sua
dicção, um papel que a idéia de Deus sem dúvida está apta a desempenhar, 
sem que seja necessário supor um ser todo-poderoso fora de mim
A redução do divino a uma função definitivamente secundária na for
mulação dos deveres humanos tem o efeito ele deslocar a apreensão filosó
fica de Deus de sua natureza para a relação que ele pode ter com o homem
120 Cf ibid . AK XXII, 126; tracl Marty p 178
121 Cf O conmco da s fcrculdades AK VII, 36; P III, p 837
122 Opus posturnum, AK XXI. 147; trad l'vlarty. p 251
137
r
j
Compreender
O conhecimento moral, e portan to útil, de Deus, o único que não é ilusão
transcenden tal, não consiste em "saber o que Deus é em si mesmo 123", mas
em saber "o que é para nós como seres morais" 124 A idéia de Deus que aqui se
impõe não é a idéia de uma substância particular, que seria assim demonstra
da, mas o que mar ca, na razão humana, a relação com a transcendência da lei
A filosofia inscreve-se entre o fora e o dentro da razão trazendo o divino de
uma substancialidade indevidamen te posta do lado de fora de mim para "uma
relação moral em mim"125 Portanto, redução dupla de Deus à sua idéia e da
idéia de um ser exterior à idéia de uma r elação consigo do sujeito moral De 
um poder soberano, fonte analógica da lei, Deus é r econduzido a represen tar 
a discordância moral, que sempre subsiste quando a exigência da lei não é 
abandonada A voz do divino não diz mais que "o tormen to da consciência"12G 
Kant realiza, como vemos, uma completa iden tificação de Deus com a razão 
ético-prática; o objeto da teologia moral não é mais, então, um Deus postula 
do, necessário à esperança da felicidade, mas um ser de pensamento, que nada 
mais expressa senão o movimento pelo qual a razão estabelece para si suas 
próprias leis. Deus não é senão o ideal de uma autonomia que o homem não 
alcança, sob essa forma acabada Ele não é "um ser fora de mim"'2'
A fé pr ática não tem absolutamente necessidade de um Deus real, ela pode
se contentar, mais que isso, ela deve se con tentar "com a idéia de Deus, para a
qual todo esforço moral sério [ ] que vise o bem deve necessariamente levar"r28
Quer dizer isso, então, que Kant exclui o fato de Deus e até mesmo o fato da re
ligião? Seria imprudente adiantar essa conclusão. Sem dúvida, devemos admi
tir que se certas posições de Kant, notadamente a afirmação recorrente da oni
presença da idéia de Deus na moral129 tendem a fazer da religião o
coroamento
do edifício moral, essas mesmas posturas, ao colocar o acen to não em um Deus
real mas em sua idéia, conduzem a uma identificação completa da razão prática
à Deus, que nada mais é do que a morte do religioso À idéia de Deus resta ser
"o conceito de um sujeito que obriga, fora de mim""º -sujeito sem natureza,
123 A religião nos limites da sin1ples razão. AK VI. 139; P III p 170
124 lbid .
12{] Opus postumum, AK XXI. 149; trad Marty. p 252
126 lbid
127 lbid . AK XXI. 45: trad Marty. p 249
128 A religião nos llmit'es da silnples razão, AI< V!. 154; P III. p 183
129 Cf Opus postuminn. AK XXII. 118; trad Marty. p 171
130 Jbid . AK XXII, 15; trad Marty, p 201
138
O fato do dever
sem essência, talvez sem existência, sem agir distinto da santidade ideal, sem
outro dever senão aqueles que a razão lhe atribui, a ele como a nós, mesmo sem
relação com o homem, pois essa relação não é, afinal, nada mais que a relação
consigo mesma da pessoa sob leis morais Deus como ens rationis
Kant não podia absolutamente ir mais longe na racionalização da religião
e sua red ução à moral A importância do procedimento está à altura de seu
objetivo: assegurar à lei moral uma eficiência máxima no coração do hon1em
O imenso edificio conceitual da primeir a Critica não possuía, no fundo, outro
objetivo senão liberar espaço par a esse trabalho de elaboração da moral A fi
losofia kantiana não podia ficar ai Por um lado, na medida em que os campos
da natureza e da moral, tão obstinadamente dissociados, ter ão que inventar
as modalidades de suas relações, por ou tro na medida em que Kan t está muito
longe de ignorar ou de desprezar as necessárias conseq üências jurídicas e insti
tucionais de sua exigência moral É nessas duas direções que iremos con tinuar
nosso percurso pelo corpus kantiano, começando por aquilo que constitui, sem
dúvida, seu ponto mais alto: a Critica da faculdade de julgar
139
,
CAPÍTULO IV
o princípio reflexivo
Já o haviamas mencionado ao apresen tar o dispositivo kantiano em seu con
jun to O problema da terceira Crítica tem um nome: o imenso abismo que se
para natureza e liberdade Na diversidade das direções tomadas por esse tex to
nebuloso, a idéia de uma necessária unidade dos domínios da razão é sem dú
vida o ponto focal de todo o empreendimento As duas primeiras criticas mos
traram como estavam estruturados o campo da natureza e o da liberdade A
terceira, em sua in trodução, terá que indicar em que a faculdade de julgar
pode ocupar o lugar de mediação ou de instância de passagem por cima do
abismo que a própria critica cavou. Ela irá também indicar aquilo que, no
fundo, reali za concretamente no juízo esse trabalho relacional, ou seja, a
reflexão
O lugar da reflexão
Voltemos, pois, ao texto de in trodução.O território da experiência está divi
dido em dois domínios. Mas há, no campo critico, três faculdades superio
res de conhecer e tr ês faculdades da alma O texto em que Kant afirma essas
duas tripartições segue-se imediatamen te à delimitação terminológica entre o
141
Compreender campo, o território e o domínio ·Trata-se, aqui, de tr azer uma solução para o conflito terri
torial entre nat ureza e liberdade; mais ainda, trata-se de mostrar que toda a Critica da
faculdade de julgar é uma ten tativa de reunificar em um só sistema as duas
partes da filosofia, como indica o tit ulo da terceira seção da In trodução: "Da
cri tica da faculdade de julgar como meio de ligação das duas partes da
filosofia em um todo"'
A função da faculdade de julgar
O r aciocinio de Kan t é o seguin te: há dois domínios e, considerando sua le 
gislação, duas faculdades de conhecer a que se referem, o en tendimento e a 
razão Todavia, no conjun to das faculdades de conhecimen to, há um termo 
intermediário entr e o en tendimen to e a razão, ou seja, a faculdade de julgar 
Pois, em gesto muito problemático, Kant passa da tripartição das faculdades 
de conhecer à das faculdades da alma Esse gesto constitui o elemen to-chave 
do conjun to do raciocínio, pois tem por objetivo afirmar o elo essencial entre 
o papel de mediador da faculdade de julgar e aquele, nas faculdades da alma, 
do prazer e da dor Esse laço permite estabelecer o fato de que uma cri tica do 
juízo estético é aquilo que é preciso empreender para pensar a unidade das 
faculdades superiores do conhecer, e desse modo os domínios onde legislam 
Di to de outro n1odo: urna crilica <lu sentirnen tu de prac;er ligado ao juízo 
esté tico permite compreender como funciona a faculdade de julgar em sua 
função de mediação entre razão e en tendimento, liberdade e natureza
A faculdade de julgar deve ter um princípio próprio em virtude de uma
suposição posta pela necessidade, para toda faculdade, de respei tar asregras
de seu funcionamento: no caso do entendimento e da razão, a regra é a lei, e as
leis determinam um domínio; no caso da faculdade de julgar, a regr a é princí
pio de busca segundo leis, e principio puramen te subjetivo, que não determi
na senão a si mesmo. l(an t prossegue afirmando um paren tesco natural entre
a familia das faculdades de con hecer e o das faculdades da alma: a faculdade de
conhecer, o sentimen to do prazer e da dor e a faculdade de desejar
O passo foi dado: havíamos partido de dois domínios, temos agora três
faculdades da alma, com a forte suposição de que aquilo que faz a mediação
das faculdades da alma deve também fazer a mediação dos domínios e das fa-
1 CF J. AK V 176: P 11. p 930
142
O princípio reflexivo
culdades que ai legislam Sub-repticiarnen te, Kan t introduz aqui um elemento
imprevisto: o sentimen to Com efeito, com o entendimento, a razão e a fa
culdade de julgar, estávamos, ao que parece, confinados ao campo do conhe
cer Com esse sentimen to entra em cena um elemen to nem especificamen te
teórico ou cognitivo, nerr1 particularmen te intelectual A aproxirr1ação entr e a
faculdade de julgar e o sentimento de prazer e de dor produz, sem que Kan t
explique essa mudança, uma profunda inflexão do questionamento: de uma
mediação epistemológica, o método kan tiano orienta-se agora para uma me
diação estético-reflexiva Pela introdução do sentimen to, o problema da pas
sagem é assim deslocado, ou recentrado em seu ponto de neutralidade, nem
teórico, nem prático, nem pura espon taneidade, nem pura passividade
Se o problema foi agora deslocado, não está inteiramente resolvido, pois
aquilo em que se apóia - a afirmação do papel mediador do sentimen to
e sua analogia com o ela faculdade de julgar -ainda não está verdadeiramen te
estabelecido A comparação da faculdade de julgar com o sentimen to se impõe
porque a afinidade entre razão e poder de desejar, por um lado, entendimento e
poder de conhecer, por outro, é tão manifesta que os terceiros termos res pec
tivos só podem se corresponder Com efeito, o en tendimen to responde
imediatamen te à faculdade do conhecimento, na medida em que impõe leis
a priori; assim, a razão é imediatamen te legisladora da faculdade de deseja12
Essa dupla atribuição não represen ta um problema; mas pode-se, por outro
lado, perguntar qual é a real ligação entre a faculdade de julgar e o sentimen to
Kan t não diz, pois, como queria o paralelismo, que o sentimento do prazer e
da dor tem seu principio na faculdade d e julgar, mas mais misteriosamente
que há "urna certa conformidade da faculdade de julgar com o sentimento de
prazer" 3, cuja natureza não se pode, neste nivel, estabelecer, tampouco sua
possibilidade, e que não é afirmada senão a ti tulo de suposição natural
Se reconstituímos o conjun to do procedimen to analógico, parece que o
objetivo da Critica da faculdade de 1ulgar -a mediação dos dominios
-não é alcançável senão em razão da analogia entre a mediação lógica das
faculda des de conhecer e a mediação sen timen tal das faculdades da alma,
analogia que, por sua vez, não é imaginável senão em vir tude de duas
teses: de um
2 Cf ibid . AI( V 168; P 11. p 918 Ou ainda Al<XX 20 7; P 11. p 359, "Ora, o poder de co
nhecer segundo conceitos ten1 seus princípios a priori no entendimento puro (em seu conceito
da natureza), o poder de desejar na razào (ern seu conceito da liberdade)"'
3 lbid . AK XX 208; P 11. p 860
143
Compreender
lado, a afirmação do caráter mediador do sentimento; de outro, a afinidade
do sentimento e da faculdade de julgar
I'odo o problema consiste, pois, em indicar por que a mediação sentilnen
tal ou estética é a passagem obriga tória para pensar a mediação terri torial
Segundo o procedimento de dramatização que lhe é familiar, Kan t insiste
mui to no fato de que "do conhecimen to ao sentimento de pr azer e de
desprazer não há nenhuma passagem através dos conceitos'''\ ou de que o
prazer e a dor "não são modos de conhecimen to"º Mais ainda, o juízo
estético é definido por sua incapacidade de acolher em si um conhecimen to
como predicado' : de modo que traz eviden temen te dificuldades a ligação no
estético, e na própria expressão do juízo estético, daquilo que como juízo é,
inicialmen te, um poder superior de conhecer e daquilo que, como sentimento,
isoladamen te é refratá rio a todo conhecimento
Kant define o juízo estético não só negativamente, pela impossibilidade
de dele fazer um conhecimen to, mas também como "aquele cujo fundamen to
de determinação se encontra em uma sensação que está ligada de modo ime
dia to ao sentimento de prazer e de desprazer"' Mais importan te ainda, o juízo
estético é considerado uma classe de juízo da rnes1na tnaneira que os juízos
teó ricos e práticos" Ao proceder a esta nova divisão tripartite segundo o tipo
de juízo, Kan t tira as conseq üências da conformidade especifica entre
faculdade de julgar e sentimento, e, sobretudo, atribui ao juízo estético o
lugar de ex pr essão dessa conformidade, da qual já demonstramos a função
fundadora e a importância para a pr ópria pertinência de uma cri tica do gosto
no problema critico Isso sem dúvida não significa que o juízo teleológico, que
afirma a fina lidade da natur eza, seja simplesmente secundário na terceira
CríUca Mas isso significa sem dúvida alguma que na estética a função
mediadora da faculdade de julgar é mais eviden te, mais fácil de entender e
descrever, também mais próxima dessa neutralidade exigida de toda
passagem
Ao fazer do juízo estético o lugar dessa conformidade particular das
facul dades, Kan t, em definitivo, faz bem mais do que elaborar uma critica
do gos to: ele fornece, como escreve Deleuze, um terceiro modelo, de acordo
com o
q lbid , AK XX, 229: P li, p 885
5 lbid AK XX 232; P li p
887 u lbid ,AK XX, 224: P li
p 878 J lbid
O Cf ibid , AK XX, 226; P 11. p 881
144
O principio reflexivo
modelo teórico e o modelo prático, para as relações interfacultárias, no qual as
faculdades têm acesso a um livre acordoº, certamen te finalizado, mas
segundo um regime bem diverso de finalidade: o da reflexão
Estética, teleologia e reflexão
Kant extrai a função quase legislativa da reflexão considerando a rede das fa
culdades que o juízo relaciona por uma série de distinções, que pouco a pouco
constroem um tipo ideal da reflexão Ele procede em dois tempos: primeira
men te, delimitar estritamente reflexão e determinação; em seguida, mostra1
em que a estética apresenta um conceito próprio da reflexão, o que não faz a
teleologia, fornecendo assim um novo argumento para a primazia da estética
na resolução do problema da unidade dos domínios da filosofia
O juízo aparece na Critica da razão pura antes de tudo como poder de
sub sunção do particular ao universal, e faculdade de aplicação dos
conceitos'° A segunda seção da Primeira introdução da Critica da faculdade
de julgar parece prosseguir nessa mesma linha, qualificando a faculdade de
julgar de "poder de subsumir o par ticulaI ao universa1" 11 O termo subsunção
parece indicar que o universal -aqui, o conceito -é dado, e que é preciso
simplesmen te aplicá lo, ou encon trar o particular, especificando-o Não é
senão pela in trodução do operador determinação/reflexão na análise da
faculdade d e julgar que outras modalidades de juízo se afirmam, mesmo se
essa introdução não baste para delimi tar a especificidade da reflexão Esta é
definida, n um pri meiro momen to, como o "ato de comparar e ju ntar
representações dadas com outras ou co1n seu poder de conhecer, relativamen
te a um concei to assim possível"12 O juízo reflexivo é, assim, a faculdade de
pensar u m conceito possível a partir de um conjunto de represen tações par
ticulares, ao passo que o juízo determi nan te aplica um concei to ou uma lei
dada a essas represen tações Como tal, o juízo reflexivo não pode in tervir
senão onde nenhum conceito, nenhuma lei, teórica ouprática, são
determinan tes, quer dizer, em um espaço de indeter minação das relações
facultárias
9 Cf G Deleuze. La philosophie critique de f( anr. op cit . p 178 
10 Cf CRP, A 133/B 172
11 Cf J AK XX. 201: P li, p 854
12 lbid , AK XX, 211; P li, p 864
145
Compreender Dois campos de intervenção da reflexão pura podem, então, ser designa dos no espaço
crítico: pri1neiramen te, no campo teórico, o espaço que separa as leis da natureza em sua
pluralidade, e a idéia de sua unidade; em seguida, no terri tório da experiência, o que nela se
refere, na qualidade de estética ao sentimento de prazer e de dor do sujei to
Nos dois casos, a faculdade ele jul gar reflexiva deve produzir ela mesma a
regra de sua determ inação e dispor, portanto, em seu princípio transcendental,
elo equivalen te a uma legislação justamen te onde esta não é mais possível
Se a estética surgiu como o pon to de neutralidade e de resolução do pro
blema da passagem entre os campos, res ta de termina r agora que ela é
também o lugar de manifestação privilegiada da reflexão pur a em sua função
de quase
legislação da rede facultária, o que torna indispensável uma análise severa dos
elementos que distinguem estética e teleologia
Essa distinção apóia-se em três séries de argumentos: a primeira funda
se na diferença elas faculdades em jogo em um caso e no outro; a segunda, no
operador subjetivo/objetivo aplicado ao princípio transcendental da faculdade
de julgar; a terceir a, na determinação de um espaço mais ou menos próprio,
mais ou menos especifico da teleologia e da estética na cartografia crítica
O primeiro pon to é pos tulado por Kan t em sua elaboração da noção de
técnica ela natureza. Esta pode, com efeito, aparecer em duas configurações 
facultárias di feren tes Quando a ap t eensão do que é diverso da sensibilidade
pela imaginação concorda livremen te com a apresentação do concei to pelo
en tendimen to, sem que este seja deter1ninan te, "en tendimen to e 
imaginação combinam-se recipr ocamen te na simples reflexão para apresen 
tar sua obra, e o objeto é percebido como final unicamente pela faculdade de 
julgar" 13 Essa finalidade do objeto é aqui subjetiva, e o juízo que a postula 
não pode, pois, ser qualificado de juízo de conhecimento, mas de juízo r 
eflexivo estético Este é, assim, consti tuído pelo livre jogo da imaginação e 
do entendimen to O juízo teleológico, por sua vez, põe em jogo outras 
faculdades, pois com para os conceitos do en tendimen to com a razão e seu 
principio sistemá tico, qualificando, então, de final a forma do objeto, 
permitindo o acordo dessas duas faculdades em sua apr eensão" Essa 
finalidade é objetiva, e o juízo que
13 lbid . AK XX. 221: P ll. p 874
1ll Cf ibid , AK XX, 221; P II. p 875: ·· e se a faculdade de julgar compara tal conceito do
entendimento com a razão e com seu pr incípio da possibilidade de um sistema _ então, quando
essa forma é reencontrada no objeto. a finalidade é objeto de um juízo de apreciação objetiva'
146
O principio reflexivo
a afirma pode ser considerado um juízo de conhecimen to, embora em nada
seja determ inan te e não se tra te aqui de aplica r urn concei to da razão a uma
plu ralidade de concei tos do en tendimen to, mas de ju lgar universa lmen te
seu livre acordo No juízo teleológico, pois, a razão e o en tendime n to é que
estão relacionados, segundo um modo de relação semelhan te àquele que une
imaginação e en tendimen to no juízo estético
Juizo subjetivo, sentimen tal, estranho ao conhecimento, por um lado; juí
zo subjetivo de alcance objetivo, e nesse sentido pertencendo, como tal, aos
juízos de conhecimento, do outro: assim delimitados, não parece que esses dois
tipos de juízo reflexivos puros possam coexistit' em um mesmo espaço, tan to
suas diferenças superam a semelhança de sua estrutura reflexiva E essa é a
terceira via para distingui-los, cuja especificidade é indicar não apenas o que faz
a diferença entre teleologia e estética, mas também estabelecer uma certa hie
rarquia en tre elas, de modo que um dos dois tipos ele juízo, na medida em que
tem seu próprio pri ncípio, manifesta com mais pureza ainda a reflexão pura
Os juízos teleológicos têm, em uma primeira abordagem, a van tagem de
fechar o sistema da filosofia e de pertencer mais do que os juizos estéticos à
crí tica da razão pura em seu sentido mais geral" Ao mesmo tempo, a teleolo
gia pertence de fa to ao campo teórico, uma vez que o juízo teleológico serve
de pri ncípio heurístico e deve ser considerado um princípio transcenden tal de
conhecimen to Se a teleologia não é o lugar privilegiado da passagem en tre os
domínios, é porque o princípio da reflexão pura não se apresen ta aí segundo
seu mais elevado grau de pureza, e porque é novamen te na estética que se
expressa essenciahnen te esse princípio, co1no principio do consenso, no sen
timen to, das faculdades da alma e das faculdades de represen tação
O primeiro argumento que Kant apresen ta em prol dessa recentralização
da questão da reflexão para o estético consiste em afirmar que apenas 0 juí
zo estético con tém seu próprio fundamen to de determinação, sem que este
dependa de nenhuma maneira de outro poder de conhecer, ao passo que o
principio elo juízo teleológico deriva, em certo sentido, do ptincípio unificador
da razão, mesmo se este não tem aí papel determinan te10 A partir desse ar
gumen to fundamen tal, Kant irá trazer, em acusação contra a teleologia, toda
uma série de elemen tos a favor dessa primazia do estético tendo em vista a
pureza da reflexão que ai se faz
15 Cf ibid , AK XX, 241; P 11. p 899
16 Cf ibid . AI< XX. 243; P l i, p 902
147
Compreender
Assim, imediatamente depois de ter distinguido as duas par tes da Critica
da faculdade de julgar, Kan t afirma que somen te a faculdade de julgar
estética, na medida em que é a única que contém um princípio reflexivo puro,
constitui uma "faculdade particular de apreciar as coisas segundo uma regra,
não apenas conceitos"", ao passo que a "faculdade de julgar teleológica nào é senão a fa
culdade de julgar reflexiva em geral"", quer dizer, a reflexào determinada pelo
domínio teórico em que ela se aplica, que não se determina in teiramen te a si mesma
Finalmen te, é preciso observar que, se o conceito de uma finalidade real da natur eza é
certamen te um princípio regulador do poder de conhecer", o juízo estético é, em 1elação ao
sentimento, constitutivo 20
Essa posição da primazia do estético em relação à pureza do principio re
flexivo ai empregado permite a Kant finalmente afirmar, ao final da In trodução,
que o jogo sentimental das faculdades é sem dúvida aquilo que torna possível o
acordo entre os campos teórico e prático A estética é assim, defini tivamente, o
lugar de expressão de toda a passagem, o ponto onde se mostra, pura, a reflexào
em sua funçào de unidade e de compatibilidade transcendental As duas partes
da terceira Critica irão, sem dúvida atrair nossa atenção Mas a primeira deverá
sempre ser considerada, além de suas teses próprias, a expressão da harmonia
fundamen tal entre os diferentes momentos do pensamen to kan tiano
Do belo ao sublime:
as faculdades em sua livre correspondênci a
Nào se pode dizer que Kant seja um verdadeiro conhecedor em matéria de arte
Suas reflexões sobre o belo não pretendem ser urna rnedi taçào sobre a arte tal
corno ela existe, mas urna deterrninaçào fundamental daquilo que é o belo, caso
tal conceito tenha sentido Encontramos traços desse trabalho desde 1764 em
Observações sobre o sentimento do belo e do sublime Kant, por urna série de
obser vações mui tas vezes pertinentes, coloca ai o esboço de sua distinção
fundamen tal entre o belo e o sublime Mas é preciso esperar a Critica da
faculdade de julgar para assistir à elaboração de urna verdadeira teoria do belo
17 lbid . AK V 194; P I I. p 951
10 lbid . AK V 194; P 11. p 952
19 Cf ibid , AK V, 19 7; P lip 955
20 Cf ibid
148
O principio reflexivo
A estética do bel
o
O que é um juizo de gosto? É um juízo que certifica a existência de um prazer
especial ligado à represen tação de um objeto dado Não se refere à pr ópria
natureza desse objeto, mas sim ao jogo das faculdades em sua apreensào A
estética não é, pois, a descriçào das qualidades que um objeto deve possuir
para ser qualificado de belo; ela é a análise do sen timen to particular que ne
cessariamen te acompanha o juízo "este objeto é belo"
O que é o belo?
O primeiro momen to do tex to abor da a qualidade desse juízo de gosto Kan t
procede por con traste com os outros tipos de juízos possíveis Assim, embora
o juízo que trata do bem suscite um interesse prático, embora o juizo que tra
ta do que é agradável não se faça sem um in teresse sensível, o juízo do
gosto é totalmen te desin teressado O espectador do belo nào tem nenhum in
teresse particular pelo objeto Pode-se assim dizer que
o gosto é a faculdade de julgar e de apreciar um objeto ou um modo de represen
tação por uma sa tisfação ou por um desprazer. independenten1ente de qualquer
interesse Chama-se belo o objeto dessa sa tisfação 21
O segundo momento é, sem dúvida, mais importante A própria idéia de bele
za contém uma pretensão ao universal ausente da apreciação do caráter agradável
Dizer de alguma coisa que é bela significa, na realidade, exigir que todo homem
formule o mesmo juízo Não nos confundamos: I<.ant não afirma que a universa
lidade do juízo de gosto deve ser confirmada pela ex1'eriéncia, corno se a beleza
fosse o produto de urna sondagem Essa voz universal necessária a todo juízo de
gosto é apenas urna Idéia", urna exigência de direito, nào uma constatação de
fato
É fácil entender: essa exigência deve ser fundada, ou melhor, deve po
der apoiar-se em um princípio que permi ta sua realização Kan t afirma en tào
que o estado da alma consecutivo à repr esen tação do belo é um prazer co
municável universalmen te, na medida em que é o juízo de um livre jogo das
faculdades, no caso a imaginação e o entendimen to Sendo estas faculdades
21 lbid . AI( V 211; P li p 967
22 Cf i bicl AI( V, "16; P 11. P 974
149
Compreender
universais, tambérn o é seu livre jogo, o que torna co1nunicável o prazer que
delas se ex trai A imaginação e o entendi men to não estão aqui em uma
relação determinan te, corno é o caso do conhecimento Essas faculdades
estão em uma relação flexível, livre, desprovida de conceito, em singular
harmonia
Da finalidade
Para compreender como funciona tal harmonia, Kant in trod uz a idéia da
fi nalidade, objeto do terceiro momento Na realidade, o prazer obtido pela
con templação do belo não pode ser o fato de uma relação qualquer entre a
i maginação e o entendimen to Não há prazer senão na "consciência da fina
lidade puramen te formal no jogo das faculdades de conhecer do sujeito"" O
sentimento do belo é a constatação de que nossas faculdades são capazes de
se organizar livremente em um equilíbrio finalizado. A finalidade em questão
não reside, pois, no próprio objeto: uma obra de arte, uma paisagem não têm
nenhuma finalidade objetiva, no sentido de possuír em uma u tilidade ou uma
perfeição pr óprias Ela não pode ser senão subjetiva, mesmo se faz uso de
uma faculdade própria da objetividade, o en tendimen to
O juízo do belo sempre é un iversal Mas isso não implica que se possa
determinar um critério un iversal do belo, que seria por hipótese válido em
Lu<las as épocas e para todas as civilizações, como o é um conceito do en ten
dimen to em sua u tilização cognitiva Não se pode falar de um Ideal de beleza
como de um ar quétipo, quer dizer, uma simples Idéia da razão, segundo a qual
se possa julgar esteticamen te os objetos artísticos e naturais Kan t especifica
ainda: essa Idéia da beleza não é o resultado de uma pluralidade de experiên
cias sucessivas, pelas quais se possa estabelecer os pon tos comuns de todas as
coisas belas Ela é, anterionnent:e à experiência , a Idéia de uma harmonia das
fa culdades em seu livre jogo, condição mesma da existência do belo, do
mesmo modo que o esquema tismo é a condição da experiência do
verdadeiro" Kant dai extrai, por fim, uma terceira definição do belo:
A beleza é a forma da finalidade de um objeto, na medida em que é percebida 
nesse objeto se1n representação de un1 fzrn 2 li
23 Jbid . AK V 222: P 11. p 982
24 Cf ibid , AK V 234: P li, p 997 
25 Jbid . AK V 236: P 11. p 999
150
O princípio reflexivo
O senso comum
Definido segundo a qualidade, a quantidade e em sua relação com a finalidade, o
belo não se define segundo o gênero de prazer que proporciona Kant especifica
aqui o que é no fundo a comunicabilidade do prazer estético Ele a condiciona
a u1n senso connun , que permi te compreender como se poderia exigir o assenti
men ta de todos a cada vez que se considera belo um objeto Esse senso comum
é o resul tado do livre jogo de nossas faculdades" Não é absolutamen te a coloca
ção empírica em comum dos juízos estéticos É o que deve ser pressuposto para
que um prazer universalmente comunicável seja simplesmente possível. Graças
à posição dessa norma ideal do senso comum, pode-se legi timamente exigir ele
ou tro que julgue o belo como eu, e que experimente um idên tico prazer acerca
dos mesmos objetos, exigência sem dúvida de direito, não de fato Talvez nada
haja no mundo de belo, mas se existe o belo é preciso então assim julgá-lo Kan t
termina sua exposição destacando a legalidade livre da imaginação, aqui em rela
ção com o en tendimento, anunciando a revolução que irá provocar o conceito de
sublime nessa harmonia facultária Voltaremos a este pon to mais detidamente
A questão do gosto fundamento e
d1alét1ca
U1n rápido olhar no índice da terceira C"riticn confirma: essa ohra foi construí
da de maneira estranha Podia-se, com efei to, esperar que Luna reflexão acerca
da arte e da estética em geral prolongasse a definição da beleza Mas não é o
que acontece, e l(an t prefere i nserir aqui suas reflexões sobre o sublüne Só
depois disso retoma o desenvolvimen to natural da obra, procedendo à dedu
ção dos juízos estéticos, quer dizer, à análise aprofundada de sua condição de
possibilidade Pode-se, todavia, justificar essa construção observando que não
é absurdo fazer a teoria de todas as configurações facul tárias (entendimen to
imaginação par a o belo; razão-imaginação para o sublime), antes de indicar
seu principio. Por amor à simplicidade, apresen taremos separadamente o
início da analítica do sublime, passando imediatamen te à dedução dos juízos
estéticos, relativos -como diz Kan t de imediato -não ao sublime, mas ao
belo
O que é um juizo de gosto? Sua primeira característica é determinar "seu
objeto (como beleza) do pon to de vista da satisfação, reivindicando a aprova-
2ü Cf ibid , AK V, 238: P 11. p 1001
151
Compreender
ção de cada um, como se se tratasse de um juizo objetivo"27 Como juizo esté 
tico, é sempre subjetivo, e não pode ser relativo senão a um objeto particular 
Dir-se-á de uma tulipa que ela é bela, não se pode dizer de todas as tulipas que 
são belas Ao mesmo tempo, esse juízo particular se dirige a todos os sujeitos, 
deles exigindo um acordo perfei to Essa concordância do universal e da subje 
tividade é possível quando se concebe uma livre concordância das faculdades, 
imaginação e entendimen to, fornecendo à primeira a liberdade do juízo, à se 
gunda sua universalidade, como faculdade da lei Kan t sem dúvida já indicou 
brevemen te em que consistia o prazer suscitado por essa concordância Mas 
efetivamente não disse por que era possível. A resposta a essa pergunta é rá pi 
da e simples O concei to ele beleza afirma somen te que
podemos legi tin1a1nente supor presen tes universalmente em cada homem essas
condições subjetivas da faculdade de julgar que encon tramos em nôs, e que cor r
etamen te subsumimoso objeto dado sob essas condições211
A universalidade das faculdades do conhecimen to legitima a universali
dade de seu livre jogo no juízo ele gosto A concepção dessa universalidade, to
davia, supõe um movimento do espíri to, ou mais exa tamen te da faculdade de
julgar reflexiva, que se abre ao u niversal a partir do singular À idéia de tal po
der da faculdade de julgar Kan t chama senso comum, termo que já havia em
pregado antes, mas que desta vez considera do ponto de vista da reflexão em
geral Afirmando que ultrapassa aqui os limi te de uma critica do gosto, Kan t
especifica o que entende por senso comum, atribuindo-lhe três ináxi rnas:
1 Pensar por si n1esn10 -1nâxima do entendimento
2 Pensar pondo-se no lugar do ou tro mâxima da faculdade de julgai
3 Pensa r em concotdãncia consigo mesmo -máxima da razão 2 ª
O juízo de gosto u tiliza mais particularmen te a segunda máxima, que
Kant qualifica de pensamento aberto Julgar o belo é, com efeito, sempre sair
ele condições subjetivas para adotar momen taneamente um pon to d e vista
universal, presen te em todo juizo estético
27 lbid . AK V 281; P li, p 105 7
20 lbid . AK V 290; P li, p 1068
29 Cf ibid .AK V 294; P li, p 1073-1074
152
O principio reflexivo
Assi m determinado, o gosto não é dependen te de um in teresse qualquer,
ne1n para o que é agradável, nem para o que é bom Ele não é senão o nome
das faculdades em liberdade, ou do universal humano quando não está deci
dido nem a conhecer, nem a agir moralmente
Apenas depois de ter assim refletido sobre o próprio sentido do termo
beleza e sobre suas condições Kan t finalmen te se in teressa, poderiamas di
zer, pela beleza na arte Não podemos evitar certa decepção com o con teúdo
das análises kan tianas a r espeito, tão grande é o con traste entre a acuidade de
suas análises filosóficas e a ausência de sensibilidade artística autên tica
Podemos, ainda assim, relembrar um cer to número de teses funda1nen
tais que tiveram uma influência considerável na estética do idealismo alemão
e na filosofia da arte dos dois últimos séculos A primeir a, e sem dúvida a
mais significa tiva dessas teses, é a seguin te:
A arte não pode ser chamada de bela senâo quando temos consciência de que se
tra ta indubi tavelmente de arte mas toma para nós a aparência da natur eza30
A arte deve parecer com a natureza ao mesmo tempo e1n que manifesta
seu caráter próprio, e deve evitar a imi tação laboriosa Na realidade, somen te
a in teligência permite essa singular concordância entre a nat ureza e a arte,
uma in teligência tomada aqui como disposição ina ta do espíri to, um talen
to par ticular para inscrever em u ma produção cul tural original e exe1nplar a
finalidade presen te na natureza A in teligência não é o gosto Ela procede de
uma capacidade prod utiva, não é comunicável como o prazer estético, ela é
esse poder de dar uma alma à matéria
A criação artística é o prod uto da imaginação Esta não é somente o pra
zer de in t ui r ou de perceber pelos sentidos Ela pode também, no livre jogo
de que é capaz, prod uzir uma idéia estética , à qual nenhum concei to determi
nado será adequado O poeta nada mais faz que apresen tar tais idéias: elas
evocam -essa é a razão de seu poder -o além da experiência, ao mesmo
tempo em que revolucionam a legalidade do en tendime nto" Ela tem da idéia
a tensão para o infini to que, por direi to, têm as idéias da razão; mas toma
corpo na sensibilidade, utilizando-a para animar o espírito, fazendo-o tender
para aquilo que não é mais sensibilidade Essa animação do espíri to é o indi
cio de uma obra genial: ela sempre faz pensar muito, nada dá a conhecer
30 lbid , AK V, 306; P 11, p 1088
31 Cf ibid . AK V 314; P 11. p 109 7-1098
153
Compreender
As páginas que se seguem aplicam o critério aqui definido às artes exis
ten tes Como é costume seu, Kant divide e classifica os diferen tes tipos de
artes, hierarquizando-as A importância desta parte da terceira Critica é acima de tudo
histórica, ela nada nos ensina sobre a natureza própria da beleza
Con trariamente ao enorme edifício da dialética transcenden tal da Crí tica da razão
pura , a dialética da Critica da faculdade de julgar é de grande concisão Os problemas
abordados não têm a mesma ampli tude, nem a mes ma dificuldade Por que uma dialética?
Simplesmen te porque a faculdade de julgar, assim como a razão, tende às
vezes a afi rmar teses aparen temen te contraditórias, naquilo que Kant
chama de antinomia do gos to Ela opõe as seguin tes afirmações:
1ª Tese O juízo de gosto não se funda em conceitos, pois nesse caso seria
possível contraditá-las (decidir por meio de provas)
2ª Antitese O juízo de gosto funda-se em conceitos, pois do con trário não se
poderia sequer, apesar da diversidade contida nesse juízo, discuti-lo (promover a
pretensão à unanimidade necessária a esse juízo):12
Dito de ou tro modo: se há concei to, deve ser possível falar do belo como
do conhecimento; se não há conceito, nada se pode dizer a respeito A con
tradição é apenas aparente. l\la realidade, o juízo de guslu u tiliza certamen te
um conceito, o de finalidade subjetiva, mas sem que esse conceito seja deter
minan te Não se pode pois contradizer o gosto, quer dizer, demonstrar que
o outro está errado em fazer um juízo diferen te do nosso Ao mesmo tempo,
uma vez que há conceito, há universal em quan tidade suficien te para que se
possa disctir a respei to e, eventualmen te, não estar de acordo acerca daquilo
que deve ser considerado belo
Os últimos parágrafos da dialética são em mui tos sen tidos mais im
portan tes do que essa solução, na verdade bastante previsível, da antino
mia do gosto Kan t apresen ta ai sua concepção do simbolismo, a partir ela
tese f undamen tal segundo a qual o belo é o símbolo do bem Conscien te,
sem dúvida, do caráter enigmático de tal afirmação, Kan t aplica-se, inicial
men te, a distinguir o simbolismo do esquematismo Dois tipos de apresen
tação (hipotipose na linguagem kan tiana) são passiveis: ou se apresen ta a
32 lbid , AK V 339; P III, p 112 7
154
O princípio reflexivo
priori i n tuições corresponden tes a conceitos do en tendimen to, dispondo-se
de esquen1as; ou se submete a priori uma in tuição a um concei to da razão,
que por definição não pode ser apresentada na sensibilidade A faculdade
de julgar reporta-se nos dois casos a seu poder de ligação Mas, embora a
apresen tação do concei to do entendimen to seja indire ta no esquematismo,
a apresentação simbólica é indireta Tomemos o seguinte símbolo. Um moi
nho é o símbolo de um Estado despótico, diz Kan t Que faz aqui a faculdade
de julgar? Primeiramen te, ela aplica o conceito de causalidade ao moinho: o
moinho é determ inado em seu movimento por uma força que lhe vem do ex
terior Em seguida, ela aplica a regra da reflexão que acaba de usar para outro
objeto, o Estado É claro que não há nenhuma relação direta entre o moinho
e o Estado despótico Mas o funcionamen to da causalidade é análogo nos
dois casos: esse Estado é governado do exterior pelo déspota como o moinho é
movido do exterior pelo ven to"
Falta definir em que o belo é o símbolo do bem, indicando a proximidade
do funciona1nen to da reflexão no juízo estético e no juízo moral Primeir o
elemen to a ser atribuído a tal analogia: o caráter imediato do prazer propor cio
nado por um e outro conceito Mais importan te, sem dúvida, o belo e o bem
agradam independen temente de qualquer interesse empírico Terceiro ele
men to: a imaginação é livre nos dois casos Livre quando ela concorda com a
legalidade do en tendimen to; livre, ainda, quando aprecia o acordo da von tade
com ela mesma na ação moralmen te boa Finalmente, uma e outra agradam
universalmen te Esse conjun to de semelhanças faz com que o gosto seja uma
propedêutica à moral, ensinando a imaginação a encon trar uma satisfação au
tên tica fora da sedução da sensibilidade"
An tes de passar dafinalidade subjetiva do juízo estético à finalidade obje
tiva do juízo teleológico, gostaríamos de vol tar a esse texto tão impressionan
te que é a analítica do sublime Ele parece provocar, assim como o conceito que
apresen ta, uma espécie de sismo na organização do sistema kan tiano, tal seu
impacto sobre as categorias habi tuais A importância dessa passagem r eside
-ao menos será esta nossa hipótese de leitura -no poder de ruptura
intro duzido pelo sublime, um poder que revela -bem mais que outros
textos -a verdadeira base do pensamento crítico
33 Cf ibid . AK V, 352; P li. p 1143
34 Cf ibid , AK V 353-354; P li, p 1144-1145
155
Compreender
O desequilíbr io do sublime
A passagem do belo ao sublime apóia-se em três argumentos: primeiramente, na diferença das
faculdades em jogo nos dois casos; em seguida, na diferença de es tatuto desse jogo de
faculdades, que, justamente, não está mais unificado no su blime; e finalmente, na diferença de
função da imaginação nessas duas situações
Do belo ao sublime
Se o juízo do belo é fato do livre jogo da imaginação e do entendimento, o juízo
do sublime é o da simples concordância entre a imaginação e a razão35 Assim,
como escreve lyotard, "a diferença entre o sublime e o belo não é de acento; é
uma diferença transcendental A passagem de um a outro significa, para a ima
ginação, que esta muda de parceiro facultário"36 Tal mudança não se faz sem
violência, nem sem necessidade: se a imaginação é expulsa do tranqüilo jogo
que fazia com o entendimento, se um novo parceiro, menos compreensivo, lhe é
imposto, é que sua tarefa mudou Já não se trata de apreender a diversidade sen
sível, delimitada no espaço, mas de apreender a própria imensidão daquilo que,
sem formas ou limites, apresenta-se como sublime, despertando no espírito esse
sentimento de desagradável prazer Nesta primeira abordagem, o sublime é a
expressão de uma espécie de acordo misterioso no reflexo de suas faculdades
que a tudo se opõem e que são, ademais, usadas aqui de modo contrário: a ima
ginação, normalmente limitada a uma função espaciotemporal de objetividade,
está orien tada para o infinito; a razão, inicialmente determinação da lei, produz
um conceito do indeterminado indubi tavelmente singular
O segundo desses elementos é igualmente importan te: consiste em afir 
mar que o sublime não será o resultado de um jogo de faculdades, mas sim uma
relação séria entre a imaginação e a razão O prazer do belo está imediatamen te
ligado ao que Kant chama de "sentimento de elevação da vida"37, que também 
é, simultaneamente, atração e jogo da imaginação Tudo no belo agrada, imedia 
tamente; a imaginação aí brinca, termo a tomar aqui em seu sentido primeiro 
Mas com o sublime rompe-se o encanto Tudo é grave Ou melhor, o prazer é
35 Cf i bid . AK V, 256: P II, p 1024
36 J -F LYO lARD. Leçons sur /" Analytique du sublime. Paris, Gali!ée. 1991. p 80
37 Cf ibid , AK V 244: P !!, p J OIO
156
O principio reflexivo
diferido após o choque da sensação de um súbito "bloqueio das forças vi tais"'°
Se há prazer, este é apenas indireto, nessa extensão da vida libertada de seu
freio Não é mais, pois, simples felicidade, mas sim uma emoção; e a imaginação
não é mais envolvida em um jogo agradável, mas em séria atividade O sublime
não tem atrativos, nem ornamentos; e a emoção que suscita não merece, nem
mesmo depois, que se utilize a seu respeito o termo prazer posi tivo Essa grave
emoção é apenas um prazer negativo, prazer mesclado de admiração, de respei
to, de terror secreto que aniquila defini tivamente o jogo da imaginação
O terceiro elemen to que marca a diferença entre o belo e o sublime reside
no modo de trabalho da imagin2ção E nquanto no juízo de gosto a imagina
ção, embora ativa, permanece antes estática, ela é violentamente posta em
movimen to no sublime, de modo que a natureza con templativa do estético é,
por assim dizer, atenuada, ou posta ela mesmo e1n movimen to, o que a apro
xima do campo da ação, do campo prático
Finalidade e wntraflnaÍ!dade do sublime
Decididamen te, o sublime parece ser um elemen to perturbador na cartografia
crítica Essa perturbação assume várias formas, que Kan t distingue cuidado
samen te Assim, o sublime é, sucessivamen te:
1 "Con trário a toda finalidade para nossa faculdade de julgar ;
2 "Inadequado à nossa faculdade de apresentação";
3 Aquilo que "faz violência à nossa imaginação" 3!.l
O primeiro elemen to da desr egulação do sublime é sua relação singular 
com o conceito de finalidade A diferença entre o belo e o sublime com relação 
à finalidade é, nesse sentido, bem eviden te: com efeito, enquanto a percepção 
da beleza da natureza produz um sentimen to de prazer devido à adequação 
particular desse objeto às faculdades, o sentimento do sublime é despertado 
pela aparência de uma completa inadequação do objeto à faculdade de julgar 
Essa emoção sublime será tão mais forte quan to o objeto aparecerá em um 
primeiro tempo contrafinal
38 lbid
39 lbid , AK V 245: P 11. p 1011
157
Compreender
Depois de ter afirmado a oposição entre a finalidade do belo e a con tra 
finalidade do sublime, Kan t indica imedia tamen te que, stricto sensu , só é 
su blime o sentimento do espíri to suscitado à vista de um objeto particular 
da natureza, não o próprio objeto, salvo se por extensão O que na natureza 
po deria provocar a emoção do sublime seria, então, aquilo que em si se 
apresenta como con trário à ordem, ao ordenamento, à organização 
harmoniosa das for mas e leis: o caos, a desordem, a desolação, a tempestade ou o oceano 
em fúria A con tr afinalidade do sublime torna impossível sua utilização na consideração da 
natureza Adernais, ela funda a exclusão do sublime da crítica da faculdade
de julgar a estética propriamen te dita, que leva Kant a rejeitar em apêndice o texto que lhe
é consagrado40
A inadequação do sublime
O segundo traço desregulador do sublime é sua inadequação ao poder de 
repre sentação Trata-se, aqui, não de um dos poderes de conhecer 
-sensibilidade, imaginação, entendimento, razão, faculdade de julgar - 
mas do dispositivo constitutivo da apr esentação esquemática, que une a 
sensiblilidade, a imagina ção e o entendimento Afirmando que o sublime lhe
é inadequado, Kan t não diz que o objeto dito sublime é incognoscível, mas
que na ten tativa que pode riam empreender essas faculdades - cujo uso 
é normalmente cognitivo - para compreendê-lo esteticamen te, quer 
dizer, em relação livre urnas com as outras, elas fracassarão, e esse fracasso 
as fará sofrer Essa inadequação aparece mais particularmente do ponto de 
vista da quantidade, ou do ponto de vista matemático O sublime é, então, 
aquilo que é grande, para além de toda com paração" : é "urna grandeza que 
só é comparável a si rnesrna"42 A experiência do sublime ocorre quando a 
imaginação, corno faculdade de avaliar a grandeza, é convocada pela razão,
no momento em que a percepção do objeto informe ou absolutamente 
grande deve tender ao infinito, respondendo assim à sua exi gência de 
totalidade absoluta Kant desloca aqui o lugar da inadequação e pro jeta o 
desacordo poder/objeto para um desacordo facultário entre a imaginação
40 Cf lbid . AK V. 246; P II. p 1012: ·· A teoria do subliine [é] un1 simples apêndice do 
juízo estético''
41 Cf ibid , AK V 24 7: P II. p 1013
42 Ibid , AK V, 250: P II. p 250
158
O princípio reflexivo
e a razão, o que resulta na revelação do sentimen to de urn poder supra-
sensivel em nós e, dessa forma, na terceira definição do sublime, a mais
completa: "É sublime aquilo que revela urna faculdade do espírito que
ultrapassa qualquer critério dos sentidos, pelo único fato de que não se pode
senão pensá-lo"43
A impotência da imaginação em apresentar o infinito que a razão dela
exige não pode ser revelada em outro campo senão o da estética. Com efeito,
no campo teórico, a cooperaçãoda imaginação com o entendimen to sempre é
possível, mesmo com uma imensa grandeza, pois esta pode ser matematica
men te divisível e mensurável Mas a estimativa estética da grandeza obedece
a urna lógica absolutamen te diferen te: não se trata aqui de medir sucessiva
men te as partes de um objeto, estimativa da grandeza que não tem limites,
mas sim de apreender imediatamente, de um só golpe, a in tegr alidade do
ob jeto Limitada à gr andeza apreensível de um único golpe, sem composição,
a imaginação atinge seu limite, ela sai do jogo que a ligava ao entendimen to
no sentimento do belo e se atemoriza dian te de seu novo parceiro Ela cai,
nada mais pode apresen tar, exceto sua impotência O entendimen to está
perdido, a imaginação diminuída, mas nessa diminuição já se elevam urna outr
a faculda de e urna outra finalidade
A violência do sublime
Depois de ter determinado a qualidade particular da emoção sublime, Kant
passa, como anunciado, ao sublime dinâmico da nat ureza, quer dizer, ao su
blime considerado do ponto de vista do poder de desejar Essa modalidade do
sublime é igualmente lugar de violência, aquela feita à imaginação onde quer
que ela se imponha a si mesma O sublime dinâmico da natureza é aquilo
que, corno força, provoca em nós o temor, sem, todavia, ter um real poder
sobre nós, quer dizer, sem aniquilar nosso próprio poder de resistir-lhe44 To
davia, não existe emoção sublime senão através de uma severa restrição que
resulta de fato em urna completa neutralização das forças da natureza Com
efeito, para que o sentimento do sublime possa se expressar, é preciso que a
manifestação da força da natureza provoque um temor, um pavor, sem que
nos sintamos verdadeiramen te afetados em nossa existência por essa for ça
43 Ibid
44 Cf ibid . AK V 260: P II. p 1030
159
Compreender ameaçadora É preciso, então, que o sujeito que percebe a força da
nat ureza se encontre em segurança para que sua emoção em face
das demonstrações aterrorizantes da potência da natureza -
furacões, vulcões, oceanos e1n fú ria -possa ser qualificada de sublime
Assim, são qualificados de sublimes os objetos da nat ureza que despertam
forças na alma revelando em nós um poder de resistência de uma outra
espécie, poder supra-sensível que nos dá a coragem de nos medir com a
aparente onipotência da nat ureza O raciocínio kan tiano é aqui singularmen
te tort uoso: a força da nat ureza é muito maior do que a força física de que
dispomos; esta primeira oposição nos conduz a uma derrota, a um desprazer,
a uma violência feita à imaginação Mas, pela transposição estética do
conflito de forças, este é transformado em conflito de poderes: nessa
segunda configuração, o poder da natureza é, por sua vez, humilhado pelo
poder do homem, que, pela razão, pode considerar a si mesmo como
independente para ofer ecer a essa natureza uma resistência de outra ordem
bem diferen te, resistência moral
O que se chama impropriamente de sublime não é, na realidade, senão 
a apresentação sensível da inadequação de toda apresen tação sensível àquilo 
que, no espírito, se dirige às idéias da razão Não é pois, aqui, o objeto da 
na tureza, nem sequer a idéia da razão, mas aquilo que no espírito é suscitado 
pelo primeiro e tornado possível pela segunda. A in tenção kan tiana é clara: o 
sublime não é do campo da natureza, que não é senão a causa de sua revelação 
E essa noção da estética que não dá lugar a nenhuma apresen tação real, extin 
guindo-se a estética A única coisa a que o sublime pode finalmen te se aplicar 
propriamen te é uma certa disposição do espíri to45 que tem, em particular, o 
traço de ser conforme e compatível com aquela que prod uza uma Idéia moral
A conveniência das inconveniências
Inicialmente, o sublime parece ser o próprio conceito da inadequação, da in
conveniência Mesmo se a concordância do sublime é concordância discordan
te, dar-se con ta dele por essa única via torna incompreensível a afirmação se
gundo a qual a emoção sublime é um prazer Com efeito, Kant não diz que essa
emoção é primeiro um desprazer, depois um prazer, mas que ela é um prazer
negativo que, enquanto prazer, deve ser o sinal de urna harmonia particular
45 Cf ibid . AK V 256: P 11. p 1025
160
O princípio reflexivo
Aqui,o texto kan tiano é mui to in tricado:
O sen tin1ento do sublime é, pois, um sentimento de desprazer suscitado pela ina
dequação na avaliação estética da grandeza, da itnaginação em relação à avaliação
da razão; n1as susci ta igualmente um prazer provocado pelo acordo en tre precisa
men te esse juízo sobre a inadequação da mais alta faculdade sensível e as idéias da
razão, na medida em que o esforço para alcançá-las é para nós uma 1ei'1u
A emoção do sublime é pois a emoção resultan te de um acordo entre a
inadequação estética e a inadequação moral Compreende-se assim bem me
lhor a relação no sublime entre a estética e a moral: não apenas o sentimen to
do sublime é u ma disposição do espíri to com parável e compa tível com
aque la que prod uz a lei moral, mas também não há emoção sublime senão
por um acordo en tre essa disposição moral e a disposição susci tada pela
apreen são estética de certos objetos da natureza Assim, a emoção do
sublime está em relação de estrei to paren tesco com o respeito à lei mor al,
definida corno "o sen timen to de impotência de nossa faculdade em alcançar
urna Idéia, que para nós mesmos é uma lei"'17
A impotência da imaginação revela a presença no espíri to de urna facul
dade suscetível de exigir o infinito, faculdade que tem sua verdadeira deter
minação na destinação supra-sensível do homen1 f\Iesse prin1eiro momento,
parece que a emoção do sublime é diretamen te uma modalidade do respeito,
urna vez que estabelece a relação entre urna faculdade impotente e uma idéia
como lei; mas essa identidade é imediatamen te negada pelo segundo tem po
do raciocínio kantiano, que define o sentünen to do sublime não estritamen te
como respei to, mas como sentimen to suscitado por uma sub-repção do res
pei to propriamen te dito -respeito pela idéia da humanidade em nós -de
um respeito pelo objeto'"
Se o belo nos prepara para o desin teresse, o sublime é, assim, a
apresentação estética do respeito, o que permice a IZan t afirmar, ao termo
dessa comparação entre a estética e a moral, que "o bem [ ] não deve ser
representado, quando jul gado de maneira estética, como sendo belo, mas antes
como sendo sublime""
4ü lbid AK V 25 7: P 11 p 1026-102 7
iil lbid , AK V, 257: P 11. p 1026
43 Cf ibid
49 lbid , AK V, 2 71: P li p 1044
161
Compreender
O parentesco entre a teoria do sublime e a 1noral, como se ve, é cada vez
mais afirmado Finalmente, ele se apóia em uma certa racionalidade do
sublime
Racwnalidade do sublime
A função da razão na gênese da emoção do sublime toma a forma de uma
certa r eceptividade"° do espíri to às Idéias Segundo o complexo
mecanismo que ana lisamos, a emoção sublime supõe a incompatibilidade
da imaginação com as idéias da razão: não há, pois, emoção sublime salvo
se essa incompatibilidade pode ser sentida, e portan to se o espírito está em
relação com as Idéias Essas Idéias não são nem Idéias estéticas, nem a
Idéia da totalidade indetermi na da, rnas Idéias racionais e práticas, o que
aparece muito claramente no texto, pois Kan t fala do campo prático" em
cuja dir eção a razão atrai a imaginação, e depois das Idéias éticas52 ,
necessárias à correta percepção do sublime Se a pri meira intervenção da
razão como causa do desprazer do sublirr1e é "automáti ca'', essa segunda
in tervenção como condição do seu prazer exige, assim, uma disposição
suplementar que não é dada de imediato -a receptividade - e uma
cultura sem a qual o que é sublime aparece simplesmente corno aterrori
zante A afetação da razão como condição de possibilidade da
universalidade da cultura, do respeito e, portanto, da emoção sublime faz
da exposição desta aomesmo tempo sua dedução: o sublime tem, assim, o
privilégio de afirmar imediatamente pelas faculdades que supõe e põe em
jogo a universalidade dos juízos estéticos que lhe dizem respei to"
O sublime jamais terá sido apenas uma emoção Mas, penetrado pelas
linhas ela racionalidade que ela harmoniza, essa emoção não tem significado
senão como expressão de uma idealidade especifica, idealidade estética e prá
tica, ou estética porque prática, sem no entanto ser estética da prática Ele é
o lugar da concen tração dos opostos transcenden tais, forma última do pon to
de neutralidade que nos apareceu ao longo de nossa lei tura das I n troduções
como lugar próprio do questionamento critico
50 Cf ibid . AK V. 265; P li. p 1036
51 Cf ibid . AK V 265; P 11. p 103 7
52 Cf ibid
53 Cf ibid . AK V 280; P 11, p 1055: ··nossa exposiçào dos juízos sobre o sublime da natu
ieza foi ao n1esmo ten1po sua deduçao··
162
O principio reflexivo
Os fins da natureza
Esclareçamos de imediato: Kan t não afirma que a natureza é organizada por
princípios finais determinan tes que perm itiriam sua explicação Seu conceito
de finalidade da natur eza se constrói, pelo con trário, por uma série de restri
ções que definem seu campo de legitimidade. Trata-se apenas de mostrar em
que a harmonia entre o en tendimen to e a razão perm ite estabelecer analogi
camen te uma finalidade da nat ureza, que nos assiste em seu conhecimen to
A faculdade de julgar reflexiva con ten ta-se aqui em enu nciar um principio
regu lador da ciência, que o faz tender à sua mais elevada unidade
A teleologi a no principio da
ciência
A finalidade posta pela faculdade de julgar teleológica não é subjetiva, na me
dida em que não trata da organização finalizada elas faculdades Ela tem, sem
dúvida, um alcance objetivo Mas essa objetividade não é material, no sentido
em que o concei to de fim aqui afirmado significa que as coisas são realmen
te determinadas por aquilo a que parecem tender Kan t afina, pois, progr
essiva men te sua concepção de finalidade, para limitá-la aos seres
organizados, cuja apreensão não se pode fazer sem usar uma tal concepção
Podemos, então, enunciar o seguin te princípio:
Um produto organizado da nat ureza é um produ to no qual tudo é fi1n e recipro 
camen te também é meio51
Nem a razão, nem o entendimento podem produzir tal conceito Mas sua
posição dá a uma e ao outro um fio condutor indispensável à ciência A utiliza
ção da finalidade da natureza permite uma ampliação do conhecimento, sem
que no entanto seja necessário excluir o r11ecanis1no dessa mesma natureza,
cujo en tendimento é postulado pela legalidade A faculdade de julgar não é
aqui siinples instrumen to supérfluo, que viria, ao final, unificar uma ciência
da na tureza que poderia a justo titulo deixá-la lado Ela é a condição
inevitável da própria ciência, o rebaixamento da relação harmoniosa das leis
da natureza em
54 lbid . AK V 366; P 11. p 1168
163
·
Compreendei
um todo orgãnico Poder-se-ia então falar, de modo legítimo, de previdência da
natureza, de economia da natureza, restando conscien tes de que essa é uma ma
neira de falar, e que o conceito de natureza não tem poder deterrninan te sobre
seu próprio conteúdo
Finalidade e técnica da natur
eza
Como vemos, a análise da faculdade de julgar teleológica é de grande brevi 
dade Tan to a dialética como a metodologia apresentam dificuldades de ou 
tra ordem O primeiro desses textos repousa no pri ncipio de toda dialética 
A faculdade de julgar teleológica produziria, ela mesma, uma an tinomia Esta
opõe a tese mecãn ica à an titese finalista Dito de ou tro modo: ora a faculda 
de de julgar funda-se somen te no conceito do en tendimen to, que impõe um 
estrito mecanismo, ora certas experiências específicas fazem pensar que urna 
finalidade 2ge no in terior da natureza 55 A lógica que produz essa an tinomia
é de fácil constatação O espírito humano, quando conhece, não utiliza senão 
o concei to único de causalidade mecânica Não estando a razão, todavia, ern 
condições de afirmar legitimamen te uma organ ização finalizada das leis, me 
cân ica, ela delega essa tarefa à faculdade de julgar, que afirma a finalidade 
sem exigir por isso uma organização finalizada determinan te da natureza
A an tinomia é resolvida pela distinção entre determinação e regulação 
Somen te o mecanismo é determinan te; mas a faculdade de julgar pode legi ti 
mamen te afirmar o concei to de finalidade, desde que este se con ten te em ser
"uma simples idéia, cuja realidade não se busque em absolu to admitir, mas 
que apenas serve de fio condu tor para a r eflexão"ti!i
A reserva é, pois, severa Toda u tilização determinan te da finalidade na
tureza que pretenda explicá-la em referência a uma organização final é ilegí ti
ma Esse procedimen to, ao transferir ao próprio objeto aquilo que procede da
harmon ização necessária de nossas faculdades de conhecer, faz pender a criti
ca para o lado do dogma tismo Mas, ao mesmo tempo, ao man ter firmemen te
esse in terdirn, Kant considera que a idéia da natureza "é im possível se não for
associada à idéia de uma prod ução i n tencional"fil
55 Cf ibid , AK V 387; P 11_ p 1180-1181
56 lbid ,AI( v 389; P 11 p 1183
57 ibid _ AI< V, 398; P II, p 1195
164
O princípio reflexivo
A reflexão dá aqui um passo suplementar, passando da simples posição de
uma finalidade da natu reza como pri ncípio regulador para sua compreensão
como o efeito de uma in teligência superior à nossa, que, de certo modo, ade
quaria nossas faculdades de conhecer à organização da natureza Assim , Kan t
termina por afir1nar:
A firn de ao menos pensar a possibilidade de tal acordo das coisas da natureza
com a faculdade de julgar [ ] devemos ao n1esmo tempo ter em rnen te um ou tro
en tendimen to en1 relação ao qual, e isto. sem dúvida, antes de qualquer finalida
de que lhe seja atribuída, possa1nos representar con10 necessário esse acordo das
leis da natureza com nossa faculdade de julgar 5!1
Não há aqui prova da existência real ou possível de um ser dotado de
tal in teligência Há apenas a constatação de que nossa faculdade humana de
conhecer é feita de tal modo que é necessariamen te conduzida a buscar um
fundamen to supremo do mundo, para dar conta de sua organ ização finali
zada _ A explicação mecânica deve, sem dúvida, ser mantida tão longe quan to
passivei; mas deve ser completada por uma idéia da natureza como produ to
de um Deus, único capaz de assegurar-lhe a unidade
Res ta estabelecer -é esse o objeto da metodologia -o estatuto
especi fico daquilo que acaba de ser dito Devemos considerar que o principio
de um en tendimen to divino, fundador da finalidade da na tur eza, procede
ainda da ciência ou que se inclina já para a teologia? A resposta de Kan t é
clara: a teleo logia não pertence a nenhuma dou trina; a própria idéia de dou
trina implica um conhecimen to real, quer dizer, determinante Ela, por ou tro
lado, pertence à critica , pois permite melhor utilização de nossas
faculdades, sem aumen tar em nada sua prod ução real, do ponto de vista
cognitivo Não conhecemos melhor nem a natureza nem Deus pelo principio
teleológico; por outro lado, en tendemos melhor o funcionamen to de nossa
faculdade de julgar O pon to último para onde esta pode nos levar é a
posição, ao principio comum do mecanismo e do finalismo, de um substrato
supra-sensível da natureza, que permi te pensar sua unidade O
aprofundamen to de tal idéia conduzirá Kant a afastar-se pouco a pouco da
consideração tão-somen te dos fins da natureza para entrar no âmbito
humano
50 lbid AK V,40 7; P li p 1205
165
Compreender Os fins do homem
A seqüência imediata do texto dedica-se a dar à finalidade um nome posto pela
faculdade de julgar teleológica Os seres organizados, vegetais e animais, que
formam a na tureza devem, segundo o pri ncipio da finalidade, existir poruma
razão precisa, que permita conceber sua organização especifica S e buscarmos a
finalidade do reino vegetal, poderemos considerar que sua organização sub
mete-se à sua utilidade para a alimentação dos animais; se prosseguirmos a
pesquisa i nterrogando-nos sobre a utilidade desses animais, seremos levados a
colocar o homem como fim último da natur eza Esse primeiro resultado da
faculdade de julgar reflexiva ainda não é satisfatório É preciso, com efeito,
pergun tar-se o que no ho1ne111 deve ser realizado pela natureza Ou
concebemos a natureza em sua benevolência como algo que nos conduz à
felicidade, ou consideramos que a finalidade da natureza é precisamente a
aptidão do ho mem em dar fins a si mesmo -aquilo que Kant chama de
cultura
O fim ultimo da natureza
·Tudo na experiência da na tureza e da história nos mostra que o homem não
foi feito para ser feliz Por outro lado, o homem busca efetivamente ser feliz , e
a natureza deve, pois, dar-lhe condições m ínimas dessa tensão para a felicida
de, quer dizer, o poder de propor-se fins. A cultura é, pois, sem dúvida, o fim
último da natureza Mas Kant não pára por ai Podemos distinguir, com efeito,
várias formas de cultura. Convém, pois, estabelecer uma tipologia precisa se
queremos dispor de um conceito exato de fim último da natureza O texto da
terceira Crítica é pouco eloqt.i.ente a respeito, e torna-se necessário apoiar a
análise em outras fontes Poder emos, então, compr eender melhor como Kant
pode passar de uma posição ele fim último da natureza - a cultura - à
do objetivo final da existência da própria natureza -a moralidade como
aquilo que permite a cultura
Cultura e moralidade
Podemos, em primeiro lugar, distinguir três sentidos para a palavra "cultura",
corresponden tes às três disposições fundamen tais do homem À disposição
166
O principio reflexivo
par a a animalidade, manifestação do homem como ser vivo, corresponde, em
sua forma mais elaborada, a habilidade e o dominio da natureza; à disposição
para a humanidade como ser não apenas vivo, mas também razoável, corres
ponde a disciplina como resul tado jurídico-poli tico desta dupla natureza; fi
nalmen te, à personalidade, quer dizer, à capacidade de responsabilidade, cor 
responde a forma mais alta de cultura: a moralidade 59
Se o termo in termediário varia nas diferen tes definições que Kan t faz da
cultura, suas formas inferiores e superiores não mudam: de um lado, uma dis
posição essencialmente produzida pela nat ureza e seu mecanismo, cuja histó
ria é possível retraçar; elo outro, uma personalidade imediatamen te ligada à
presença, no homem, do fato da r azão prática, cujo lugar se pode estabelecer,
mas que não é, de modo algum, o produto de um desenvolvimen to regular A
passagem do fim último ao objeto final da natureza no fundo nada mais faz
do que suceder ao desenvolvimen to da própria cultura, de sua forma inferior, a
habilidade, ao seu aperfeiçoamento mor al
A habilidade não pode, de modo algum, contribuir para a dignidade do ho
mem; se, por um lado, pode servir para sua satisfação, deve submeter-se previa
mente à legislação universal da razão para poder ser qualificada moralmen te A
qualidade necessária para ser digno da felicidade "é absolutamen te distinta da
habilidade de obter uma satisfação"'" O progresso da moralidade pode bem ser
precedido de um desenvolvimento da habilidade: este em nada contribui com
aquele Produzida pela natureza, a habilidade dela faz parte e não tem, portanto,
nenhum direi to de impor leis à liberdade, o que somente a idéia do dever pode
fazer, a cuja receptividade corresponde a moralidade como cultura
No desenvolvimen to da cultura, a disciplina ocupa o segundo lugar de
pois da habilidade. É o caso, individualmen te, em primeiro lugar, do domínio
das tendências na turais em vista da moralidade. Kan t fala aqui de "ginástica
ética"'", mas é sobretudo coletivamen te que a cultura da disciplina encontra seu
lugar de aplicação O texto da Critica da faculdade de julgar é mui to claro a
esse respei to:
A condição for mal sob a qual a na tur eza pode sozinha alcançar essa intenção 
final que lhe é própria é essa disposição na relação dos homens entre eles em que
59 Cf A religião nos limites da simples razão. AK Vl. 26; P Ili, p 37-38
GO Teoria e prdtica. AK VIIC 279; P II, p 256
61 Cf Doutrina da virtude_ AK VI. 485; P lfl, p 784
167
Compreender
ao dano que se causam as liberdades em conflito 111útuo opõe-se o poder 
legal,
err1 um todo que se chama a 5ocíedade civiJfi1
A civilização da disciplina precede, como a habilidade, a cultura moral: ela dá lugar a uma
organização política fundada no direi to de coerção e que, como todo corpo político, inclusive a
República, não precisa da moralidade em ato dos cida dãos Nesse estágio de cultura moral, a
oposição e mesmo a guerra con tinuam a ser, pois, um meio indispensável para fazer progredir
a civilização; apenas quan do a receptividade às idéias se tiver desenvolvido, ou quando uma
abertura às idéias tiver sido organizada no seio das instituições de direito estri to, uma outra
forma de política será concebível, baseada não mais no direi to de coerção, mas
na suscetibilidade à Idéia do direi to Voltaremos a este ponto
A cultura, que Kant considera o fim último da natureza, dá lugar a uma
civilização da habilidade, por um lado, e à sociedade civil, por outro Mas a
pr ópria essência da cultura reside em outra parte Ela é antes de tudo essa
capacidade moral do homem em vista da qual o próprio mundo foi criado. A
faculdade de julgar teleológica postulava em seu principio um substra to supra
sensível da unidade da natureza lemos uma via de acesso a esse supra-sen
sivel: o ho1nem como ser moral, quer dizer, como nournenon Ai está o objeto
final da criação, pois não podemos mais nos pergun tar por que tal ser existe,
sendo o homem moral seu próprio fim"
Assim, chamar o objeto final da natureza não nos traz novos conhecimen
tos, pois este é ainda um resul tado da reflexão. Mas pode-se, dessa forma, es
pecificar um pouco o conceito de Deus que resultava da teleologia física Deus
não é, en tão, pensado unicamente como principio intencional da finalidade da
natureza, mas também como o ser que irá organizá-la ern vista da moralidade
do homem Podemos, então, reflexivamen te -ainda não há saber teológico
-atribuir-lhe a onisciência, a onipotência, a bondade e a justiça que são ne 
cessárias a essa organização 6 1
Vimos como Kant postulava a existência de Deus como postulado da 
razão prática; ele volta a esse pon to por um caminho um pouco diferente 
O argumen to é simples: a faculdade de julgar nos conduz necessariamen te 
à idéia de um objetivo final Este é, em sua forma perfeita, o bem supremo
62 CF J, AK VI. 432: P l i. p 1235
63 lbid . AI( V 436; P li, p 1239
üq Cf ibid . AK V 444; P l i, p 1250
168
O princípio reflexivo
como unidade da moralidade e da felicidade Deus é a causa moral sem a qual
essa unidade não é concebível, nem por conseguin te a idéia de um objeto final
postulado, en tretan to, pela faculdade de julgar'"
As restrições habituais não tardam a se seguir: nada é eviden temen te
determinado teoricamen te por essa prova moral Não se trata senão de uma
crença prática, indispensável à ação, o que, como destaca Kan t, não é pouco
Com efei to, deve-se considerar essa crença como
o principio pennanen te do coração, que admi te co1no verdadeiro aquilo que é
necessário pressu por como condição para a possibilidade do objeto final moral
suprerno, e111 razão da obrigação que dai decorrelHi
Dificilmen te se pode ir mais longe no conceito de Deus Com essas linhas, 
chegamos ao final do edifício ela terceira Critica Como vemos, os objetivos do 
texto, tão diversos quan to con tradi tórios, foram todos, ao menos parcialmen 
te, abordados A reflexão encontrou sua regra, na estética como na teleologia A
natureza encontrousua unidade final As faculdades puderam se harmo 
nizar A filosofia encon trou no supra-sensível - que aflora no sublime, 
no simbolismo do belo como na moralidade do homem -a condição 
suprema de sua unidade, a chave da passagem entre liberdade e na tureza 
Será ainda preciso passar pela política kan tiana Nós a vimos no esforço 
empreendido por l(an t para inscrever concretamen te a lei moral na natureza, 
ainda que apenas no respeito; veremos um mes1no esforço aplicado na tensão 
entre a normati vidade política originada do direito e a massa humana em que 
deverá se mani festar A faculdade de julgar reflexiva irá aí encon trar trabalho a
fazer
65 Cf ibid , AK V 450; P 111. p 1256
üG lbid . AK V 4 70; P li, p 1282
169
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Capitulo V
o arquipélago da política
O fato é conhecido e suscitou muitas tentativas de explicação: Kan t nunca escre
veu uma Crítica da razão política Embora tenha determinado integralmente as
condições de possibilidades do conhecimento, embora tenha sabido r efundit em
razão a moral, embora tenha elaborado os princípios de um juizo estético uni
versal, Kant não construiu um sistema unificado dos fundamentos da política
Resistências do político
Várias interpretações podem ser propostas sobre essa ausência A primeira,
mais radical, consiste em afirmar que não há filosofia politica em Kant En
contraríamos, então, nos textos uma reflexão sobre a história, uma teoria do
direito, um certo número de proposições esparsas mais ou 1nenos referentes
ao campo polí tico, mas nada que possa sequer de longe corresponder a uma
autên tica doutrina filosófica do político A segunda opção, certamente mais
legítima, tem como princípio escolher um ou outro escrito de Kan t para nele
ler, excluin do qualquer outro, o essencial da filosofia política de Kant Pode-
se, assim, re duzir a política kantiana à sua filosofia do direi to Pode-se
igualmente fazer do
171
Compreender
senso comu1n, presente na estética, o lugar próprio do questionamen to políti
co1 Estas duas primei ras in ter preta ções não nos parecem fundadas Sem
negar a complexidade dessa questão, dois argumen tos podem aqui ser
invocados Por um lado, a politica não é simplesmen te um objeto a ser
tomado pela filosofia, mas um problema que, por direito, diz respeito a toda a
filosofia, não somen te a uma obra particular Por outro lado, mais
fundamentalmen te, a poli tica é talvez um campo que resiste a toda tentativa
de compreensão sintética, pela dificulda de e pela diversidade de dificuldades
que suscita Assim, explicar a política com cer ta probidade filosófica exige do
filósofo adotar uma pluralidade de pon tos de vista e de métodos respei tosa
das diferen tes facetas da questão
No arquipélago do poli tico, podemos distinguir três registros que Kan t
a plica às vezes sucessivamen te, às vezes conjun ta1nen te ao problema polí 
tico:
1 O ponto de vi sta antropológico-teleológico: trata-se de refletir, com base em
u111a análise do que são o homem e seu comportamen to na história , acerca
do que é possível esperar da humanidade Permanecendo, de maneira geral,
mui to pessimista eni sua descrição do espetáculo dado pelos honiens em
coletivi dade, Kant é antes otimista quan to ao progresso histórico A na
tureza é fei ta de tal modo que aquilo que inicialmente pode pa recer uni
defei to do homem pode se rnostra1 que está no princípio de seu
desenvolvimen to comu111 Esse laço singular en tre an tropologia e história
pode, por sua vez , se1 abordado a partir de uma tripla perspectiva:
perspectiva teórica, na procura de uni fio condutor que torne inteligível o
curso da história (Idéia de urna hístória uni versal do ponto de vista
cosn1opolita ); perspectiva prática, quando a finalidade histórica deve servil
de apoio ao que é politicamen te necessário instaurar
( Ru1no à paz per pétua ); finalmen te, perspec tiva nior al, quando um acon
teci nien to histórico torna-se o sinal de uma disposição moral da
humanidade, fundamen to de seu real progresso (0 conflito das faculdades )
2 Ponto de vista juridic0Mnorn1ativo: Kan t considera aqui o problema politico se gundo os princípios
racionais que se deve aplicar a ele, antes de toda expe riência, a ti tulo de nonnas absolutas Ele elabora
para esse fim uma metafí sica dos costun1es, con tendo uma verdadeira Doutrina do direito que procede à
construção dos funda111en tos do direito, com base unicamente na razão, como havia feito para a
moralidade na Critica da razão prática T rata-se aqui não de saber o que o homem e ou pode fazer, mas o
que os homens devern co-
1 Cf ARE NO'T, ]uger, Sur la philoso phie politíque de K ant Paiis,Seuil,
1991
172
O arq11ipélago da politica
letivarnente realizar para formar u111a com unidade justa, dotada de uni
poder legitimo Aqui, a experiência é esvaziada em beneficio de consider
ações estr i tamen te racionais Encontramos igualmente em Rurno à paz per
pétua alguns elementos que penni tem pensar a polí tica a priori com urna
niesrna indepen dência em relação à experiência
3 Ponto de vista téo1ico-judicativo: reflete, desta vez concretamen te, acerca do
que podem fazer o poli tico, o jurista e o cidadão e111 si tuações particulares
ou em carnpos de aplicação específicos Encon tra111os, assim, na Doutrina
do direito análises mui to concre tas em relação a cer tas passagens do direito
pri vado Esse pon to de vista aparece igualmente em certas passagens de O
que são as Luzes?, Teoría e prâtica , O conflito das faculdades e tanibém,
sem dúvida, e111 Ru1no à paz per petua Pode-se também falar de registro
juclicativo, já que o juízo r eflexivo, assiin como foi elaborado na terceir a
Critica , f unciona aqui como instãncia de passagen1entre a norma política,
que é da ordem da razão, e as instituições reais, que são da ordem da
sensibilidade
Há, pois, efetivamente uma filosofia política de Kan t Mas é preciso pro
curá-la na disseminação dos modos de abor dar a politica e na relação entre
esses diversos registros Apenas integrando a totalidade dos pon tos de vista
pode-se considerar de modo apropriado o pensamen to kantiano: este encon
tra, assim, sua potência e seu refinamento na busca das passagens entre as di
feren tes ilhas do arquipélago da politica Ela aplica, finalmen te, o
instrumento próprio da filosofia kan tiana, a reflexão, que a Crítica da
faculdade de julgm descreveu e que encon tra aqui um terreno de exercício
privilegiado
História e política
A perspectiva teleológica está, sem dúvida, bastan te presente na terceira Crí
tica Mas a idêia de iuna história universal do ponto de vista cosrnopolitico
afirma mais explici tamen te a natureza daquilo que pode ser esperado da
humanidade e a u tilidade de tal posição da finalidade histórica
Caos da história e consolação da
filosofia
O ponto de partida do tex to expressa de imediato o que parece consti tuir
o postulado fundamental do pensamen to kantiano da história: se o
desenvol-
173
Compreender
vimen to dos comportamen tos individuais parece proceder do mais completo
caos, a história da humanidade em sua globalidade deve poder manifestar uma
certa coerência O filósofo, submetido a essa obrigação de racionalidade, deve,
pois, abandonar a consideração inútil das von tades particulares para ten tar
ler nos acon tecimen tos a presença de um desígnio da natureza 2 Essa
expressão não deve ser en tendida como a crença, na verdade absurda, em um
projeto de uma nat ureza toinada no sentido de uma pessoa; Kan t apenas
queI mostrar que é preciso encon trar na história um fio condutor que lhe
confira uma coe rência semelhan te àquela que uma vontade todo-poderosa
poderia lhe dar
A primeira etapa dessa busca consiste em postular os dois princí pios
seguin tes: de um lado, as disposições nat urais de uma criatura são sempre
chamadas a se desenvolver in teiramen te; de outro, essas disposições nat
urais,racionais, no homem, não pode1n se verificar senão no nivel da espécie,
não no nível individ ual Com base nesses dois princípios, Kan t deduzirá o que
poderia parecer proceden te de um otimismo ingênuo, indicando as
modalidades do desenvolvimen to ela humanidade:
Cluis a natureza que o homem tirasse i n teirarnente de si mes1no tudo aquilo que
ul tra passa o or denan1en to 1necânico de sua existência an in1al. e que não
partici pa de nenhuma habilidade ou perfeição senão aquelas que ele n1esrno
cdou para si, independentemen te do instin to, por sua própria razão 3
A natureza, ao exigir essa racionalidade do progresso, na realidade conde
na o homem à infelicidade. Com efeito, a razão é particularmen te inapta para
tornar feliz o homem Ela apenas pode torná-lo digno de ser feliz Ao mesmo
tempo, não se pode esperar do homem que ele seja imediatamen te racional; a
natureza vai ter que lu tar para obter de um ser não-razoável que este se com
porte co1no se seus atos fossem racionais Dito de outro modo: o otimismo his
tórico não pode repousar em uma concepção generosa da natureza humana; o
homem é irracional, e ele não se submete espon taneamen te àquilo que a
razão lhe apresenta como algo que deve ser realizado
A quarta proposição resolve esse problema: a na tureza irá se apoiar no ca
ráter híbrido do homem para obter dele o que responde à sua própria vocação
O homem é dotado de uma insociável sociabilidade Ele tende naturalmen te a
2 Cf Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolítico. AK VIU. 18; P II, p
188
3 l bid , AK VIII, 19; P 11. p 190
174
O arquipélago da política
associar-se, 1nas resiste espon tanemente a essa tendência, buscando sempre
singularizar-se Essa tensão interior do homem o coloca na obrigação de que
rer dominar seus semelhan tes, desenvolvendo seus talentos, não por bondade
ele alma, mas por ambição A humanidade em sua totalidade progride sob a
influência dessa insociável sociabilidade: a exigência racional ai se realiza -a
história é finalizada -, sem que seja preciso cair na ingenuidade de uma
hu manidade concebida como agen te que realmente age com racionalidade
Kan t indica, em seguida, a forma institucional resultante dessa disposi
ção da na tureza: a humanidade, forçada a disciplinar-se para sobreviver, irá se
organizar politicamen te I n teriormen te, fundando uma sociedade civil juridi
camen te estabilizada; ex teriormente, construindo uma sociedade das nações
de modo a assegurar a paz coletiva Nos dois casos, não se pode esperar perfei
ção ou progresso do próprio homem Deve1nos apenas esperar que uma me
lhor construção jurídica impeça as pulsões humanas de obstar seu desenvol
vimen to cul tural A formulação dessa organização finalizada da humanidade
corresponde à de um plano oculto da na tureza Mas também ai o vocabulário
kan tiano deve ser interpretado com prudência Kan t não diz que a natureza
deter1nina a história nesse sentido, o que equivaleria a atribuir a uma Idéia da
razão -os fins da natureza -o poder que somen te possuem os conceitos do
entendimen to: determi nar positiva1nen te o inundo fenomenal
A Idéw de uma história universal deve, pois, ser tomada como texto teó
rico Mesmo se Kan t menciona a u tilidade prática ela formulação de um fim
da história, ela tem, antes de tudo, uma função reguladora, perm itindo uma
apresen tação mais sistemática dos acon tecimen tos históricos Assim, ela abr
e uma perspectiva consoladora, que nos convida a não descrer do homem
Sua vocação não é apresentar uma norn1a real para a ação humana
Natureza e progresso político
Kan t u tiliza a tese de uma finalidade da história em um segundo con texto,
bastan te diferen te A tese em si não foi modificada A questão ainda é afir
mar que a na tureza orien ta os co1nportamen tos humanos para um objeto
posi tivo, u tilizando o que aparen temen te procede de uma antropologia
ne ga tiva Mas a função dessa formulação é, desta vez, bem mais prática:
Rumo à pa z per pétua irá, na verdade, fazer da finalidade da história um
motivo para esperar que a paz seja realmente possível, considerando que a
nat ureza parece orien tar-se em sua direção
175
Compreender
A natureza não é, pois, apenas o conjunto dos fenômenos, como já vimos
na Idéia de urna história universal Podemos, desde que se considere a 
direção para a qual se orien ta, en tendê la como uma operária preocupada 
com a efi ciência Em nosso caso, ela parece participar do estabelecimen to 
de relações harmoniosas entr e os ho1nens A natureza se faz providência se a 
concebemos nessa con tribuição pacien te e equilibrada para um objetivo 
racional Kan t não afirma que sua tese se apóia na experiência; ele faz dela 
uma simples hipótese O estatuto desta é, todavia, bastan te singular Não se 
tra ta apenas de organi zar graças a ela o conhecimen to da natureza dos 
homens Ela é antes exigida pela própria razão, que deve poder encontrar-lhe
um fundamento natural ao que é moralmente necessário O que será dito da 
natureza deve, pois, ser sub metido ao dever jurídico de estabelecimen to da 
paz, como fundamen to mecâ nico da liberdade dos indivíduos e das nações
Que fez, pois, a natureza, para apoiar o esforço da razão? Ela dispersou 
os homens por toda a superficie da terra, permitiu-lhes suportar todos os cli 
mas, conduziu-os a "contrai r relações rnais ou menos jurídicas"'1 Após alguns 
exemplos bem detalhados das capacidades de adaptação do homem, caracte 
rísticos de seu gosto pela geografia humana, Kan t afirma que a guerra é o meio 
escolhido pela natur eza para dispersar os homens pela totalidade elo globo E 
acrescen ta esta observação de bom senso: a natureza não teve que provocar a 
guerra, mas esta encon tra sua raiz na na tureza humana, o que se pode ver no
valor e na e:1ergia que os ho1nens dedicam à guerra ·rudo isso, todavia, não 
é essencial para o propósi to kan tiano A adaptação ao clima e a dispersão das
populações são elemen tos que precedem a construção jurídica que i nteressa a 
Kant É preciso, pois, entender como a natureza pode conduzi r os homens à 
paz, mesrno que não queira1n. É aqui que será necessário apelar ao concei to de
república, an teriormen te exposto por Kan t nesse texto e ao qual voltaremos 
Guardemos simplesmen te aqui o que depende ela teleologia
A natureza não pode favorecer a paz se os homens não erigem consti tui
ções republicanas, como o primeiro ar tigo defini tivo bem demonstrou Po
deriamas pensar que tal Constituição, "única que é totalmen te conforme aos
direitos do homem"';, só é acessível a um povo moralmente perfeito Na rea
lidade, o inverso está mais próximo da verdade Quan to mais os homens têm
tendências egoístas e interesseiras, mais a injunção racional ao direito encon-
lJ Rumo à paz perpét11a. AK Vlll, 363; P III. p 356
5 lbid . AK VIII, 366; P Ili, p 359
176
O arquipélago da
politica
trará eco entre os individuas tornados infelizes por suas próprias tendências 
O homem politico deve simplesmen te organizar o Estado de tal maneira que 
o jogo das paixões individuais provoque mecanicamen te um equilíbrio com 
parável ao que a razão teria estabelecido se tivesse meios para tan to Trata-se 
unicamen te de tirar partido do mecanismo da natureza para obrigar, pela for 
ça do direito, um homem moralmen te ruim a ser um bom cidadão Mesmo um
povo de demônios é capaz de fundar uma república, desde que a in teligência 
política auxilie a na tureza em seu curso ordinário
Curiosa1nente, I<:an t irá buscar em exemplos de política in ternacional a
ilustração para aquilo que acaba de anunciar e que não dizia respei to senão à
política in terna O paralelismo entre os dois níveis o au toriza e permi te a
Kant abordar o que realmen te in teressa aqui Os Estados, considerados como
i ndi víduos, não têm que progredir moralmen te para se organizar
juridicamente de modo conforme à razão A natureza quer que

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