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Os atomistas

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Capítulo i - Os Atomistas - Erwin Schrödinger
Tópico i.1 - Uma Introdução às Idéias de Demócrito
 
Capítulo do Livro “A Natureza e os Gregos” de Erwin Schrödinger, publicado pela primeira vez em 1954, pela editora da Universidade de Cambridge (Inglaterra). A Tradução foi feita da edição de 1996, ).“A Natureza e os Gregos” e “Ciência e Humanismo”. 
Erwin Schrödinger(1887-1961) foi um físico austríaco com contribuições fundamentais para a Teoria da Mecânica Quântica e, por isso, recebeu o prêmio Nobel de Física de 1933.
A antiga teoria atômica, de Leucipo (1) e Demócrito (2), é a verdadeira precursora do atomismo moderno? 
Essa pergunta foi feita freqüentemente e opiniões muito diferentes foram registradas. Gomperz (3), Cournot (4), Bertrand Russell (5), J. Burnet (6) dizem: Sim!. Enquanto Benjamin Farrington (7) diz que é “de alguma maneira” e que as duas teorias têm muito em comum. Charles Sherrington (8) acha que não, apontando o caráter puramente qualitativo do antigo atomismo e o fato de que sua idéia básica, corporificada na palavra “átomo” (que não pode ser cortado nem dividido), enfraquece o significado da palavra "átomo". Não é do meu conhecimento que algum estudioso dos clássicos tenha esse veredito negativo.
Quando um cientista trata do tema, ele observará que é a Química - e não a Física - o domínio apropriado das noções sobre átomos e moléculas. Mencionará o nome de Dalton (9) (nascido em 1766) e omitirá, neste contexto, o nome de Gassendi (10) (nascido em 1592). Foi este último quem definitivamente reintroduziu o atomismo na ciência moderna. Gassendi chegou até o Atomismo após estudar a substancial quantidade de escritos de Epicuro (11) (nascido ao redor 341 a. C.), que adotou a teoria de Demócrito, de quem somente pequenos fragmentos originais chegaram até nós. É notável que na Química, após o monumental desenvolvimento que se seguiu às descobertas de Lavoisier (12) e Dalton, um forte movimento (“energeticistas”), dirigido por Wilhelm Ostwald (13) (1853-1932), e apoiado pelas posições de Ernst Mach (14) (1838-1916), levantasse, no fim do século XIX, a proposta de se abandonar o atomismo. Dizia-se então que o atomismo não era necessário para a Química e deveria ser abandonado como hipótese improvável e sem nenhuma prova experimental. 
A questão a respeito da origem do atomismo antigo e sua conexão com a teoria moderna é de interesse atual e muito mais do que um fato puramente histórico. Nós retornaremos a ela. Primeiramente, vamos apresentar os principais pontos das idéias de Demócrito. São eles:
(I) Os átomos, de tão pequenos, são invisíveis. São feitos do mesmo material ou natureza (φνσις), mas há uma multitude enorme de formas e de tamanhos, e isto é sua principal propriedade. Os átomos são impenetráveis e agem pelo contato direto, empurrando e girando uns aos outros. Assim, as mais variadas formas de agregação e ligação de átomos, iguais ou diferentes, produzem a variedade infinita de corpos materiais, como nós os observamos, em sua múltipla interação entre si. O espaço fora deles é vazio - uma idéia que parece natural para nós - mas que era sujeito à grande controvérsia na Antiguidade, porque muitos filósofos concluíram que a coisa que não é, não pode ser ou existir ; isto quer dizer que não pode haver o espaço vazio! 
(II) Os átomos estão em perpétuo movimento e nós podemos concluir que este movimento é irregular e desordenadamente distribuído em todas as direções. Conclusão razoável para átomos que estão em movimento perpétuo, mesmo nos corpos que estão em repouso ou se movem a baixa velocidade. Demócrito indica explicitamente que no espaço vazio não há acima e abaixo, na frente ou atrás, nenhuma direção é privilegiada. O espaço vazio é isotrópico, nós diríamos hoje. 
(III) Seu movimento contínuo persiste por si mesmo, não existe repouso. Essa descoberta, por suposição, da lei da inércia, deve ser considerada como um grande feito, pois ela contradiz claramente a experiência cotidiana. A Lei da Inércia foi restabelecida 2000 anos mais tarde por Galileu (15), que a deduziu pela engenhosa generalização de cuidadosas experiências com pêndulos e esferas rolando planos inclinados. No tempo de Demócrito isso não parecia de modo nenhum aceitável. Foi certamente difícil para Aristóteles (16), que considerava perpétuo apenas o movimento circular dos corpos celestiais que persistiria indefinidamente. Nos tempos atuais, nós diríamos que os átomos são dotados de massa inercial, que os fazem continuar seu movimento no espaço vazio e movimentar outros átomos que com eles colidirem. 
(IV) O peso ou gravidade não eram considerados como uma propriedade primitiva dos átomos. Foi descrito, de uma maneira bastante engenhosa, que o movimento geral de um redemoinho fazia com que os átomos maiores e maciços tendessem para o centro, onde a velocidade rotacional é menor, enquanto que os átomos mais leves eram empurrados e jogados para longe do centro, para o espaço. Ao ler essa descrição, vem à mente uma centrífuga, embora nesta, naturalmente, o comportamento seja completamente o oposto, pois na centrífuga os corpos mais pesados são empurrados para fora, enquanto que os mais leves tendem para o centro. Por outro lado, se Demócrito tivesse algum dia feito uma xícara de chá e o agitado com uma colher, ele observaria que as folhas do chá se recolheriam no centro do copo - um excelente exemplo para ilustrar sua teoria. A verdade aqui é, novamente, o oposto, pois o cisalhamento é mais forte no meio do que próximo às paredes da xícara, pois estas atuam no sentido de frear o movimento. O que mais nos espanta é: alguém que relaciona a idéia de gravidade a um redemoinho contínuo sugeriria, automaticamente, um modelo de mundo de simetria esférica, e assim uma terra esférica. Mas não foi este o caso: Demócrito manteve-se, de forma inconsistente, fiel ao modelo de uma Terra em formato de tamborim; e continuou a considerar as revoluções diárias dos corpos celestiais como reais, enquanto que a Terra-tamborim residia num colchão de ar. Talvez a repugnância que ele tinha pelas bobagens dos Pitagóricos (17) e Eleáticos (18) levava-o a rejeitar qualquer teoria por eles proposta.
Figura i.a -Erwin Schrödinger (1887-1961). Físico austríaco, prêmio Nobel de Física de 1933.
Notas:
(1) Leucipo de Mileto (? 500 a. C. - ? ): filósofo grego. É considerado o mestre de Demócrito de Abdera. 
(2) Demócrito de Abdera (? 460 a. C. - 370 a.C.): filosófo grego, considerado o autor da teoria atômica ou do atomismo. 
(3) Theodor Gomperz (1832-1912): filósofo austríaco, nascido na atual Eslováquia, autor de muitos estudos sobre a filosofia da Grécia Antiga.
(4) Antoine Augustin Cournot (1801-1877): filósofo e matemático francês. 
(5) Bertrand Russell (1872-1970): filósofo e matemático britânico, Nobel de Literatura de 1950 e autor do livro “História da Filosofia Ocidental”. 
(6) John Burnet (1863-1928): estudioso britânico da filosofia grega. 
(7) Benjamin Farrington (1891–1974): escritor irlandês. 
(8) Charles Scott Sherrington (1857-1952): médico, cientista e filósofo inglês, ganhador do prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1932. 
(9) John Dalton (1766-1844): químico e físico britânico, autor da primeira teoria atômica da era moderna. 
(10) Pierre Gassendi (1592-1655): filósofo e astrônomo francês, que tentou articular o atomismo de Epicuro com o Cristianismo. 
(11) Epicuro (340 - 270 a.C.): filósofo grego, atomista e criador da Escola de Epicuro. 
(12) Antoine-Laurent de Lavoisier (1743 -1794): cientista francês, considerado o Pai da Química Moderna. Ele formulou a primeira versão da Lei da Conservação da Matéria, descobriu e nomeou o oxigênio (1778) . 
(13) Friedrich Wilhelm Ostwald (1853-1932): químico alemão, recebeu o Prêmio Nobel da Química em 1909. 
(14) Ernst Mach (1838-1916): filósofo e físico austríaco. 
(15) Galileu Galilei (1564 -1642): físico, matemático e astrônomo italiano. É considerado um dos fundadoresda Ciência. 
(16) Aristóteles de Estagira (384 a. C. - 322 a. C.): filósofo grego, cuja obra exerceu grande influência intelectual até o Renascimento europeu. 
(17) Pitagóricos: termo usado para designar os seguidores do filósofo grego Pitágoras (?565 - ? 490 a.C)
(18) Eleáticos: escola dos filósofos pré-socráticos, fundada pelo filósofo Parmênides (início do século V a. C),em uma colônia grega na costa sudeste da Itália.
Capítulo i - Os Atomistas - Erwin Schrödinger
Tópico i.2 - A Alma Feita de Átomos
Em minha opinião, a derrota mais grave que a teoria sofreu, e que a condenou a se transformar em “Bela-Adormecida” por muitos séculos, era devido à sua extensão à alma. A alma foi considerada como composta de átomos materiais, particularmente pequenos e de grande mobilidade, espalhando-se provavelmente por todo o corpo e desenvolvendo todas as suas funções. Isso é triste, porque esta explicação sobre a alma afastou da teoria atomista os melhores e mais profundos pensadores dos séculos seguintes. Nós, entretanto, devemos ter cuidado para não fazer um exame demasiado severo de Demócrito. É apenas um pequeno erro para um homem cuja profunda compreensão da teoria do conhecimento provarei agora. Ele assumiu, junto com a teoria atômica, a velha crença, ancorada firmemente nas línguas até hoje, de que a alma é respiração. Todas as palavras antigas para a alma significavam originalmente o ar ou a respiração:, , spiritus (Latim), anima (Latim), athman (Sânscrito) (nas línguas modernas: expirar, animado, inanimado, psicologia, etc.). Bem, essa respiração é ar, e o ar é composto de átomos e, assim, a alma é composta de átomos. É um atalho direto para o problema metafísico central, que ainda não foi resolvido até hoje. (Veja a discussão primorosa no livro de Charles Sherrington (1) “O Homem na sua Natureza”).
Isto teve uma conseqüência terrível, que assombrou os pensadores durante muitos séculos e que, de forma um pouco alterada, ainda hoje nos confunde e desafia. O mundo-modelo, consistindo de átomos e espaço vazio, implementa o postulado básico de que a Natureza é compreensível, contanto que, em qualquer instante, o movimento subseqüente dos átomos possa ser determinado pela suas posições e velocidades atuais. Assim, a configuração num determinado instante engendra a necessidade da configuração seguinte, e esta da próxima, e assim por diante, para sempre. Tudo é determinado estritamente pela condição inicial. Fica difícil entender como esta teoria poderia incluir o comportamento de seres vivos, inclusive nós, que somos cientes de poder escolher, em grande medida, os movimentos de nosso corpo pelo livre arbítrio da nossa mente. Se, então, esta mente ou alma é ela mesma composta de átomos que se movem de maneira determinista, não parece sobrar espaço para a ética ou para o comportamento moral. Nós somos compelidos, pelas leis da Física, a fazer exatamente, em cada momento, apenas a coisa que nós deveríamos fazer. Qual o sentido em se deliberar sobre o que é certo ou errado? Existe lugar para a lei moral, se a lei natural é superior e a frustra inteiramente?
Esta antinomia (2) continua sem solução até hoje, como era há vinte e três séculos atrás. Mesmo assim nós podemos analisar a proposição de Demócrito, separando-a numa parte muito crível e outra absurda. Ele admitiu:
(a) que o comportamento de todos os átomos dentro de um corpo vivo é determinado pelas leis físicas da Natureza, e;
(b) que alguns destes átomos compõem o que nós chamamos de mente ou alma.
A seu favor, considero que ele se manteve fiel à proposição (a), mesmo que isso implique em uma antinomia, com ou sem a proposição (b). Certamente, se você admitir (a), o movimento de seu corpo é predeterminado, mas você não esclarece sobre os sentimentos que fazem que você o mova, seja qual for a sua opinião sobre o que é a mente.
A proposição (b) é verdadeiramente absurda.
Figura.i.b. - Heráclito e Democrito.
Notas:
(1) Charles Scott Sherrington (1857-1952): médico, cientista e filósofo inglês, ganhador do prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1932.
(2) Antinomia (ou paradoxo): é a afirmação simultânea de duas proposições (teses, leis, etc.) contraditórias entre si.
Capítulo i - Os Atomistas - Erwin Schrödinger
Tópico i.3 - As Diferenças entre Demócrito e Epicuro
Infelizmente, os sucessores de Demócrito, Epicuro e seus discípulos não tiveram força intelectual suficiente para enfrentar a antinomia. Epicuro abandonou a proposição crível de (a) e aderiu ao equívoco absurdo proposto em (b). A diferença entre os dois homens, Demócrito e Epicuro, era que Demócrito estava modestamente ciente de que ele nada sabia, enquanto Epicuro estava muito certo de que sabia quase tudo. 
Epicuro adicionou ao sistema um outro absurdo, conscientemente repetido por todos os seus seguidores, incluindo, naturalmente, Lucrécio Caro (1). Epicuro era um sensualista de linhagem pura. Quando os sentidos nos dão evidência segura, nós devemos segui-los. Onde isso não acontece, então nos é permitido propor qualquer tipo de hipótese razoável para explicar o que nós vemos. Infelizmente, ele incluiu, entre as coisas sobre as quais os sentidos nos dão evidência conclusiva e indubitável, o tamanho do Sol, da Lua e das estrelas. Falando sobre o Sol, ele argumentou: (a) que sua circunferência tem contorno definido, não é borrada; (b) que nós sentimos o seu calor. 
Ele argumentou, ainda, que, se um grande incêndio terrestre estiver perto o bastante para que nós discirnamos os seus contornos claramente e consigamos sentir o calor emanando pelo fogo, então nós seremos capazes de definir o seu tamanho real, “nós o veremos do tamanho que ele é”. Conclusão: o Sol, a Lua e as estrelas são do tamanho que nós os vemos, nem maiores nem menores. 
O absurdo principal é, naturalmente, a expressão “tão grande como nós os vemos”. É impressionante que, mesmo estudiosos modernos, quando falam nisso, não fiquem estarrecidos com essa expressão sem sentido, mas sim pelo fato de Epicuro ter acreditado nela. Ele não distinguiu entre o tamanho angular(2) e o tamanho linear, vivendo em Atenas quase três séculos após Tales (3), que mediu a distância entre navios por triangulação, como nós hoje o fazemos. 
Mas, façamos um exame literal de suas palavras. Que pode ter significado? Quão grande, então, nós vemos o Sol? E quão distante está ele, se for tão grande como nós o vemos? Para um observador na Terra, o tamanho angular do Sol é de 1/2 grau. Assim você pode facilmente calcular que, se ele estiver 10 milhas(4)) afastado, ele terá um diâmetro de aproximadamente 1/10 de uma milha ou 500 pés(5). Não acho que alguém ache que o Sol dê mesmo a impressão imediata de ser tão grande quanto uma catedral. Mas consideremos que o Sol tenha de dez a quinze vezes esse tamanho, o que daria um diâmetro de uma milha e meia e uma distância de 150 milhas. Isso quer dizer que aquele Sol que se via durante a manhã em Atenas, no leste, estava de fato surgindo da costa da Ásia Menor(6).
Será que ele pensava que o Sol passava horizontalmente sobre o Mediterrâneo? Com sua ignorância sobre tamanho angular, esse pensamento é completamente possível. 
De qualquer forma, creio que isso mostra que, depois de Demócrito, a Física foi conduzida por filósofos que não tinham nenhum interesse real na Ciência e que, pela grande influência que eles tiveram como filósofos, acabaram por destruir a Ciência, apesar do brilhante trabalho especializado que estava sendo realizado em Alexandria e em outros locais. Como conseqüência, a Física teve pouca influência no comportamento da população em geral e em grandes intelectuais da época, como Cícero (7), Sêneca (8) e Plutarco (9).
Figura i.c - Tamanho angular.
Notas:
(1) Tito Lucrécio Caro (96? a.C. – 55? a.C.): poeta romano, autor do poema “Da natureza das coisas” e discípulo das idéias de Epicuro. 
(2) Tamanho angular é o ângulo formado por duas linhas imaginárias que partem do olho de um observador e atingem as extremidades do objeto observado. Ele é medidoem graus, minutos e segundos que são subdivisões do grau:.O tamanho angular observado de um objeto depende do tamanho do objeto e da distância que objeto se encontra do observador. Por exemplo, estima-se que o Sol possui um diâmetro 400 vezes maior do que a Lua. Entretanto a Lua, numa eclipse, cobre totalmente o diâmetro do Sol por que o Sol está, aproximadamente, 400 vezes mais longe da Terra do que a Lua está. Para um observador na Terra, o tamanho angular da Lua e do Sol é o mesmo e vale 1/2 grau. O tamanho angular é utilizado em Astronomia para se avaliar o tamanho dos objetos celestes.
(3) Tales de Mileto (625? a. C- 547? a. C): primeiro filósofo ocidental de que se tem notícia, nascido em Mileto. 
(4) 1 milha= 5.280 pés = 1.400 metros. 1 pé = 30,48 centímetros. 
(5) . 
(6) Ásia Menor: parte da Turquia que fica na Ásia.
(7) Marco Túlio Cícero (106 a. C. - 43 a. C.): filósofo, orador, escritor e político romano.
(8) Lúcio Sêneca (4 a. C - 65 d. C): filósofo romano. 
(9) Plutarco (47-127 d.C.): filósofo, historiador e ensaísta grego do período greco-romano. 
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Tópico i.4 - O Retorno do Atomismo: Gassendi e Descartes
Retornemos às perguntas históricas levantadas no começo deste capítulo, onde se disse que elas significavam muito mais do que somente o interesse histórico. Nós estamos em frente de um dos casos mais fascinantes da História das Idéias. O ponto impressionante é o seguinte: das vidas e dos escritos de Gassendi e de Descartes, que introduziram o atomismo na ciência moderna, nós sabemos, como fato histórico real, que, ao assim fazerem, estavam inteiramente cientes de adotarem a teoria de filósofos clássicos cujos escritos eles diligentemente estudaram. Mais importante: todas as características básicas da teoria antiga sobreviveram na teoria atomística contemporânea. Muito melhorada, trabalhada e burilada, mas essencialmente - usando o padrão do filósofo da natureza e não a visão míope do especialista - a mesma. Por outro lado, nós sabemos que, nem uma ínfima parte da evidência experimental que um físico moderno tem para sustentar essas características básicas, era do conhecimento de Demócrito ou de Gassendi. 
Sempre que esse tipo de coisa acontece, podem-se levantar duas hipóteses. A primeira é que os pensadores gregos fizeram uma ótima suposição que se provou, mais tarde, correta. A segunda é que o padrão de pensamento em questão não está baseado exclusivamente em evidências recentemente descobertas, como os pensadores modernos acreditam, mas na conjunção de fatos muito mais simples, sabidos antes, e nas estruturas a priori, ou mesmo numa inclinação natural do intelecto humano. 
Na eventualidade de a segunda alternativa ser provada, isso será de uma importância capital. Não é necessário, óbvio, que isso, se absolutamente certo, nos induza a abandonar a idéia do atomismo como uma mera ficção de nossa mente. Mas ela nos levará a uma introspecção mais profunda sobre a origem e a natureza da visualização feita pela nossa mente. Essas considerações nos incitam a investigar, se possível, como os filósofos clássicos foram conduzidos à sua concepção sobre átomos imutáveis e o vácuo? 
Por tudo que sei, não existe nenhuma pista para nos guiar. Hoje em dia, se nós, ou qualquer pessoa, emitimos opiniões científicas próprias ou de terceiros, nós nos sentimos obrigados a explicar porque nós ou eles possuem essas idéias. O mero fato de que alguém acredite nisto ou naquilo, sem motivação, é desinteressante para nós. 
Essa não era a prática mais comum na Antiguidade. Os textos doxográficos (1) simplesmente relatam, por exemplo, que “Demócrito considerava...”. É notável, partindo do nosso ponto de vista contemporâneo, que Demócrito, ele mesmo, considerasse sua reflexão como uma criação do intelecto. Isso pode ser visto no fragmento 125, apresentado no final do Tópico 6, e também no fragmento 11 do mesmo Tópico, sobre a distinção entre os dois tipos de veículos para se obter conhecimento - o genuíno e o obscuro. O último são os sentidos. Eles, os sentidos, nos deixam na mão quando nós tentamos penetrar em regiões muito pequenas do espaço. Então o método genuíno de se obter o conhecimento, apoiado num órgão refinado do pensamento, vem em nosso socorro. Que isso se refere inter alia (2) com a teoria atômica, é óbvio, embora nenhum fragmento existente o mencione explicitamente. 
O que guiou o refinado órgão de pensamento de Demócrito a produzir o conceito de átomo? 
Figura i .d - Pierre Gassendi e René Descartes.
Notas:
(1) Doxográficos: costuma-se dividir a Filosofia Grega em dois períodos: antes e depois de Sócrates (470- 399 a.C.). Os filósofos anteriores a Sócrates são chamados de pré-socráticos e escreveram obras que não chegaram até os dias de hoje. Tudo o que se sabe sobre eles é indireto, baseado em pequenos trechos de seus escritos, citados por autores que vieram depois deles (os fragmentos dos pré-socráticos) e em descrições feitas por autores posteriores a Sócrates (os testemunhos ou doxografia). 
(2) Do Latim: “entre outras coisas”. 
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Tópico i.5 - Como Demócrito concebeu a idéia dos átomos ?
Demócrito era intensamente interessado em geometria, não um mero entusiasta como Platão (1); era um geômetra de renome. O teorema que diz que o volume de uma pirâmide ou de um cone é um terço do produto de sua base pela altura é de sua autoria. Para ele, que sabia cálculo, isso era lugar-comum, mas já encontrei bons matemáticos que tiveram algum problema em recordar a prova elementar que aprenderam no Ensino Básico austríaco. 
Demócrito não poderia ter chegado ao teorema sem usar, em uma etapa ao menos, um substituto para o cálculo, como fazem ou faziam os estudantes do ensino básico austríaco, usando o princípio de Cavalieri (2), pelo menos na Áustria (3)). Demócrito teve uma reflexão profunda sobre o significado e as dificuldades dos infinitesimais - um paradoxo interessante que ele, obviamente, deve ter enfrentado ao refletir sobre a resolução do teorema. Considere que um cone é cortado por dois planos paralelos a sua base; os dois círculos produzidos pelo corte (o círculo menor acima e o maior abaixo, mais próximo da base) são iguais ou desiguais? Se desiguais, e como isso vale para todos os possíveis planos que cortassem o cone, a parte ascendente da superfície do cone não seria lisa, mas coberta de pequenos degraus. Se você disser que são iguais, então, pela mesma razão, isso não significaria que todas as seções paralelas são iguais e, assim, que o cone é um cilindro? 
Disso e dos títulos dados a dois outros escritos (“Sobre a diferença de opinião ou o contato de um círculo e de uma esfera” e “ Sobre linhas e sólidos irracionais”) tem-se a impressão de que Demócrito finalmente chegou a uma clara distinção entre os conceitos geométricos de um sólido, uma superfície ou uma linha, com as propriedades bem definidas (por exemplo, uma pirâmide, uma superfície quadrada ou uma linha circular), e, de outro lado, a realização mais ou menos imperfeita desses conceitos num corpo físico. Platão, um século mais tarde, vislumbrou a primeira categoria entre suas “idéias” (4); os conceitos de Demócrito não eram, acredito, os protótipos dos conceitos de Platão. Neste último, a coisa embaralhou-se com a Metafísica. 
Junte-se a isso o fato de que Demócrito não só conhecia as teorias dos filósofos jonianos (5), mas também pode-se dizer que ele deu prosseguimento àquela escola filosófica. O último dos filósofos jônicos, Anaxímenes, propôs, em pleno acordo com o ponto de vista contemporâneo, que as mudanças momentâneas observadas na matéria são somente aparentes e devido aos fenômenos de rarefação e condensação da matéria. 
Mas tem sentido dizer que a matéria não muda, se cada pedaço dela, por menor que seja, é diluído ou comprimido? 
O geômetra Demócrito foi competente para conceituar este “por menor que seja”. A maneira óbvia é pensar que todo corpo físico é, de fato, composto de inúmeros corpospequenos, que permanecem sempre imutáveis, pois, quando o material se dilui é porque eles, os corpos pequenos, ficaram longe uns dos outros; e o material se condensa quando eles se agregam muito próximos entre si, num volume pequeno. Para que isso ocorra, dentro de certos limites, é necessário que o espaço entre eles seja vazio, isto é, não contenha nada. Ao mesmo tempo, a integridade das assertivas geométricas puras pode ser salvaguardada, justificando-se os paradoxos e os desafios colocados pelos conceitos geométricos, como resultado de realizações físicas que são imperfeitas. 
A superfície de um cone real, ou de qualquer corpo real, não é de fato lisa, porque a camada de átomos da superfície é cheia de vazios e protuberâncias entre eles. O filósofo Protágoras (6) (que levantou desafios desse tipo) propôs que uma esfera real, em repouso, em um plano real, não deve ter apenas um ponto de contato com ele, mas sim uma pequena região inteira de quase contato. Tudo isso, porém, não impede a exatidão da geometria pura. Que tal fenômeno era percebido por Demócrito, pode ser inferido de uma observação de Simplício (7), o qual nos diz que, segundo Demócrito, seus átomos são fisicamente indivisíveis, mas são, no sentido matemático, divisíveis ad infinitum. 
Figura i.e - Teorema de Demócrito.
Notas:
(1) Platão (428 a.C. - 347 a.C): filósofo grego, discípulo de Sócrates, fundador da Academia e mestre de Aristóteles. 
(2) Francesco Cavalieiri (1598-1647): geômetra italiano que inventou um método geométrico para calcular o volume de sólidos que é anterior à invenção do cálculo diferencial. 
(3) Onde Erwin Schrödinger estudou. 
(4) As idéias não são, para o filósofo grego Platão (428-347 a.C.), representações intelectuais, formas abstratas do pensamento; são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim, a idéia de homem é o homem abstrato perfeito e universal, de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e defeituosas. 
(5) Jônia, também Jónia ou Iônia, (Ιωνία, em grego), é uma região que corresponde hoje à costa sudoeste da Península de Anatólia, na atual Turquia. Nessa área viveram os fundadores da Filosofia Grega ou Pré-Socráticos. 
(6) Protágoras (480 a.C.- 410 a.C.): filósofo grego, contemporâneo de Sócrates (470 -399 a.C.). 
(7) Simplício (490 d.C.- 560): filósofo nascido na ilha de Chipre, estudou e comentou os textos de Aristóteles e de outros filósofos gregos. 
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Tópico i.6 - O Século XX: Triunfo do Atomismo
Durante os últimos cinqüenta anos nós obtivemos a “evidência experimental da existência real de corpúsculos discretos”. Existe um grande número de observações interessantes que nós não poderemos resumir aqui, e que os atomistas, no fim do século XIX, não antecipariam nem nos seus sonhos mais desvairados. Nós podemos ver, com nossos próprios olhos, os traços lineares gravados dos trajetos de partículas elementares únicas na "Câmara de Nuvens" de Wilson (1) e em emulsões fotográficas. Nós temos os instrumentos (contadores Geiger) que respondem com um clique audível a uma única partícula de raio cósmico que entre no instrumento. Além disso, se o instrumento possuir um medidor elétrico tal que, a cada clique, o medidor avance uma unidade, então ele contará o número das partículas que chegam num certo intervalo de tempo. Tais contagens executadas por métodos diferentes e sob circunstâncias variadas estão em total acordo entre si, e com as teorias atômicas desenvolvidas muito antes que estas evidências diretas estivessem disponíveis. Os grandes atomistas, de Demócrito até Dalton, no século XVIII, Maxwell (2) e Boltzmann (3), no século XIX, entrariam em êxtase frente às provas palpáveis de suas teorias. 
Mas, ao mesmo tempo, a teoria atômica moderna está mergulhada em uma crise. Não há nenhuma dúvida de que a teoria de uma partícula simples é demasiado ingênua. E isto não é de se espantar, se levarmos em contas as especulações que propusemos sobre a origem do atomismo. Se elas estiverem corretas, o atomismo foi forjado então como uma arma para superar as dificuldades do continuum matemático, do qual, como nós vimos, Demócrito estava inteiramente ciente. Para ele, o atomismo foi o meio para unir o golfo que separa os corpos reais da Física das formas geométricas idealizadas da Matemática pura. Mas não somente para Demócrito. De certa maneira o atomismo executou uma tarefa através da sua longa historia: a tarefa de facilitar nosso raciocínio sobre corpos palpáveis. Um pedaço de matéria é resolvido, em nosso pensamento, num grande número de constituintes, contudo finito. Nós podemos imaginar a contagem deles, quando, ao mesmo tempo, somos incapazes de dizer o número dos pontos existentes numa linha reta de um centímetro de comprimento. Nós podemos contar, mentalmente, o número de impactos mútuos num intervalo de tempo. Quando o hidrogênio e o cloro se unem para formar o ácido clorídrico, nós podemos, em nossa mente, emparelhar os dois tipos de átomos e pensar que cada par se une para dar forma a um pequeno novo corpo, uma molécula de um composto. Esta contagem, este emparelhamento, toda esta maneira de pensar jogou um papel proeminente na descoberta dos teoremas físicos mais importantes. Seria impossível, neste sentido, pensar a matéria como uma geléia contínua e desestruturada. Assim, o atomismo provou ser infinitamente proveitoso. Contudo, quanto mais pensamos sobre o Atomismo, menos ficamos com a impressão de que se trata de uma verdadeira teoria. 
É realmente fundado, exclusivamente, numa estrutura objetiva “do mundo real em torno de nós”? Não seria uma maneira importante, condicionada pela natureza do ser humano, de entender - que Kant (4) chamaria de “a priori”? 
É benéfico para nós, assim acredito, preservar a mente extremamente aberta para as provas palpáveis da existência de partículas individuais, sem diminuir nossa admiração profunda para o gênio daqueles experimentadores que nos forneceram esta riqueza de conhecimento. Eles estão aumentando-o dia após dia e ajudando-nos, desse modo, a alterar a situação com respeito ao triste fato de que nossa compreensão teórica sobre o assunto, arrisco-me a dizer, diminui quase na mesma velocidade. 
Vou concluir este capítulo citando alguns fragmentos agnósticos e céticos de Demócrito, que mais me impressionaram. A tradução segue a de Cyril Bailey(5). 
( fragmento 6) Um homem deve aprender neste princípio que ele está distante da verdade. 
( fr. 7) Nós não sabemos nada verdadeiramente sobre qualquer coisa, mas, para cada um de nós, a opinião do outro é um influxo (isto é, lhe feito saber por um influxo de “imagens” vindo de fora). 
( fr. 8) Aprender verdadeiramente o que cada coisa é, é uma matéria incerta. 
( fr. 9) Na verdade nós não sabemos nada precisamente, mas somente quando isto produz mudanças na disposição de nosso corpo, e das coisas que nele entram e o impingem. 
( fr. 117) Nós não sabemos nada verdadeiramente porque a verdade se encontra escondida nas profundezas.
E agora o famoso diálogo entre o intelecto e os sentidos: 
( fr. 125) Intelecto: Doce é uma convenção e amargo é uma convenção, quente é uma convenção, frio é uma convenção, cor é uma convenção; na verdade só há os átomos e o vazio. 
Os Sentidos: Pobre mente! De nós você está tirando as evidências com as quais você quer nos derrubar? Sua vitória será sua própria queda. 
Figura i.f - A Câmara de Nuvens também conhecida como Câmara de Wilson(1) é usada para detectar partículas de radiação ionizante. Na sua forma mais básica a câmara consiste de um ambiente isolado contendo vapor d´água supersaturado e superesfriado. Quando uma partícula alfa ou beta interagem com esta emulsão, ela ioniza estas partículas. Os íons resultantes atuam como agentes nucleantes do vapor de água. A alta energia de partículas alfa e beta deixam rastros porque muitos íons são formados ao longo da sua trajetória. O formato do rastro dependerá do tipo dapartícula sub-atômica: partículas alfa deixam rastros largos e retos enquanto os rastros deixados por elétrons são finos e mostram evidências das deflexões sofriadas por eles.
Notas:
(1) Uma câmara de nuvens, também chamada de câmara de Wilson, em homenagem a seu inventor, Charles T. R. Wilson (1869-1959), prêmio Nobel de Física de 1927, é um dispositivo que mostra o rastro deixado por partículas subatômicas. 
(2) James Clerk Maxwell (1831-1879): físico britânico, criador da Teoria do Eletromagnetismo. 
(3) Ludwig Boltzmann (1844-1906): físico austríaco, um dos criadores da Teoria da Mecânica Estatística. 
(4) Emmanuel Kant (1724-1804): filósofo alemão cuja obra ainda exerce influência em várias áreas do conhecimento. Para Kant, é a capacidade de representação -em nosso cérebro- do objeto, que torna possível a sua apreensão e não o objeto que torna a representação possível. 
(5) Cyril Bailey(1871-1957), Estudioso inglês da Antiguidade Clássica.

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