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Le monde diplomatique edição sobre feminismo

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9 771981 752004
00126
2 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018
NOVA GUERRA DOS ESTADOS UNIDOS?
POR SERGE HALIMI*
O alvo iraniano
E
m 5 de fevereiro de 2003, o secre-
tário de Estado norte-america-
no, Colin Powell, mostrou ao 
Conselho de Segurança das Na-
ções Unidas um frasco que conteria an-
traz e comentou fotos de satélite dos lo-
cais secretos onde se fabricariam armas 
químicas. Essa encenação – admitida 
posteriormente por seu autor – serviria 
em seguida de rampa de lançamento 
publicitário para a Guerra do Iraque. 
Em 11 de dezembro de 2017, a embaixa-
dora norte-americana junto às Nações 
Unidas, Nikki Haley, postou-se diante 
dos fragmentos enormes de um míssil 
pretensamente iraniano que não atin-
gira o alvo. Declarou que o míssil havia 
sido disparado do Iêmen contra um ae-
roporto civil saudita, “um país do G20”. 
“Com risco de matar centenas de civis 
inocentes [...]. Apenas imaginem que 
seu alvo fosse o aeroporto de Washing-
ton ou Nova York. Ou de Paris, Londres, 
Berlim.” O tamanho da arma lhe per-
mitiria chegar tão longe? Pouco impor-
ta: mais uma vez, a questão era fabricar 
o medo para justificar a guerra.
Catorze anos depois de destruir o 
Iraque, o governo norte-americano es-
colhe o Irã como alvo.
Sua falta de imaginação seria diver-
tida caso o assunto se prestasse à fan-
tasia. Em 2003, Powell havia denuncia-
do igualmente a existência de laços 
“sinistros” entre Saddam Hussein e a 
Al-Qaeda. Em 1º de novembro último, 
a mesma conversa: a CIA dava a públi-
co um maço de documentos encontra-
dos no Paquistão após o assassinato de 
Osama bin Laden que provariam a 
existência de laços desnaturados entre 
alguns dos herdeiros (sunitas) deste 
último e o poder (xiita) de Teerã. So-
mos levados a acreditar que Washing-
ton já se esqueceu do apoio, bem real 
dessa vez, dado a Bin Laden quando ele 
lutava no Afeganistão contra os sovié-
ticos. Ou da venda ilegal de armas ao 
Irã por Ronald Reagan, que esperava 
assim financiar seus amigos da extre-
ma direita nicaraguense.
Na época, ninguém se valeu desses 
pretextos para declarar guerra aos Es-
tados Unidos... Em contrapartida, 
atualmente a ânsia de acabar com o Irã 
aproxima a monarquia saudita, o go-
verno israelense e diversas autoridades 
norte-americanas. O influente senador 
republicano Tim Cotton, saudado co-
mo o próximo diretor da CIA, não vê a 
hora de entrar em ação. Acha que todos 
os desafetos diplomáticos de Washing-
ton (Irã, Coreia do Norte, China, Rús-
sia, Síria, Ucrânia) exigem uma “opção 
militar”. E o perigo representado pelo 
Irã (maior, segundo ele, que o da Coreia 
do Norte) justificaria “uma campanha 
naval e aérea de bombardeios contra 
sua infraestrutura nuclear”.1
O presidente Barack Obama ob-
servava, há dois anos, que o orça-
mento militar iraniano não ia além 
de um oitavo do orçamento dos alia-
dos regionais dos Estados Unidos e 
de um quadragésimo do orçamento 
do Pentágono. Ainda assim, rufam 
bem alto os tambores contra uma 
pretensa ameaça iraniana. Nesse cli-
ma de guerra psicológica, o ministro 
francês das Relações Exteriores não 
tinha coisa mais inteligente a fazer, 
em 18 de dezembro último, do que 
denunciar, em Washington, a vonta-
de de “hegemonia” do Irã? 
*Serge Halimi é diretor do Le Monde 
Diplomatique.
1 “A Foreign Policy for ‘Jacksonian America’” [Uma 
política externa para a “América jacksoniana”], The 
Wall Street Journal, 9-10 dez. 2017.
RUBENS NAVES SANTOS JR ADVOGADOS, 40 ANOS: 
UMA HISTÓRIA DE GRANDES CAUSAS.
www.rubensnaves.com.br
3
EDITORIAL
POR SILVIO CACCIA BAVA
Our Revolution
©
 C
la
u
d
iu
s
A
o final da campanha presiden-
cial de Bernie Sanders, nos Es-
tados Unidos, em 2016, ficou a 
pergunta: o que fazer com mi-
lhões de pessoas que se engajaram em 
sua campanha e abraçaram suas pro-
postas de transformação social que ti-
nham como prioridade enfrentar o 
rentismo e melhorar a qualidade de vi-
da dos norte-americanos, especial-
mente dos mais pobres?
A resposta foi a criação de um mo-
vimento político, independente, orga-
nizado pela sociedade civil, que apos-
ta na mudança progressiva do sistema 
político e assume uma agenda de defe-
sa de direitos e da democracia. Esse 
movimento se chama Our Revolution 
(Nossa Revolução) e grande parte de 
seus integrantes são jovens que se en-
tusiasmaram com a campanha de 
Sanders à presidência. 
Ao final de um ano de existência, o 
Our Revolution tem 380 grupos de ba-
se, organizados em 49 estados dos Es-
tados Unidos, mobiliza milhares de 
voluntários, ajudou a eleger dezenas de 
candidatos, desde diretores de escolas 
e vereadores até deputados estaduais e 
federais, pretende disputar cargos pú-
blicos no âmbito do Executivo, além da 
direção do Partido Democrata do nível 
mais local ao nível nacional. E o movi-
mento político declara estar apenas 
começando a atuar na cena pública. 
O Our Revolution pretende trans-
formar a política norte-americana 
para que os sistemas políticos e eco-
nômicos respondam às necessidades 
das famílias trabalhadoras. São três 
objetivos interligados: revitalizar a 
democracia norte-americana, capa-
citar líderes progressistas e elevar a 
consciência política de milhões de 
pessoas que se envolveram na cam-
panha presidencial do senador Ber-
nie Sanders para apoiar causas pro-
gressistas. O Our Revolution vai dar 
às pessoas uma voz no sistema políti-
co ativando apoiadores e engajando 
milhões de norte-americanos no pro-
cesso político. 
Sua avaliação é de que a mídia cor-
porativa falhou em grande parte ao 
cobrir as questões críticas para o futu-
ro do país: dos efeitos devastadores 
das alterações climáticas ao declínio 
da classe média. O Our Revolution vai 
educar o público sobre as questões 
mais prementes, confrontando a na-
ção com as soluções que estão sendo 
oferecidas. Esse esforço garantirá que 
novas vozes serão ouvidas e se torna-
rão uma parte importante do diálogo 
municipal, estadual e nacional.
Ao longo de seu primeiro ano de 
existência, o Our Revolution recebeu 
doações em dinheiro de cerca de 230 
mil norte-americanos, com uma mé-
dia de US$ 22 por doação. Arrecadou 
assim mais de US$ 5 milhões, exclu-
sivamente de pessoas físicas, única 
forma de financiamento que admite. 
Todos aqueles que doarem mais de 
US$ 250 terão seu nome identificado 
no site do movimento, e o limite para 
doações individuais é de US$ 5 mil, a 
menos que doações maiores específi-
cas sejam aprovadas pela direção do 
movimento.
Segundo o Our Revolution, a ques-
tão da desigualdade de renda e riqueza 
é o grande problema moral e a grande 
questão econômica e política do nosso 
tempo. Sua avaliação é de que há algo 
profundamente errado quando uma 
única família norte-americana possui 
mais riqueza do que os 130 milhões de 
norte-americanos mais pobres. A rea-
lidade é que, nos últimos quarenta 
anos, Wall Street e a classe dos bilioná-
rios têm manipulado as regras para 
concentrar a riqueza e a renda nas 
mãos das pessoas mais ricas e mais 
poderosas do país. 
O Our Revolution está enviando 
uma mensagem à classe dos bilioná-
rios: “Vocês não podem ter tudo. Não 
podem ter enormes isenções de im-
postos, enquanto crianças neste país 
passam fome. Não podem continuar 
enviando empregos para a China, en-
quanto milhões de norte-americanos 
estão à procura de trabalho. Não po-
dem esconder seus lucros nas Ilhas 
Cayman e em outros paraísos fiscais, 
enquanto existem enormes necessida-
des não satisfeitas em todos os cantos 
desta nação. Sua ganância tem de aca-
bar. Vocês não podem aproveitar todos 
os benefícios da América e se recusara 
aceitar suas responsabilidades como 
norte-americanos”. 
Entre suas principais propostas es-
tá dobrar o valor do salário mínimo; 
igualar os salários de homens e mulhe-
res para as mesmas funções; investir 
maciçamente na construção de rodo-
vias, portos, estradas de ferro, aeropor-
tos, sistemas públicos de transportes, 
sistemas de saneamento etc.; assegu-
rar educação e saúde pública gratuita e 
de qualidade em todos os níveis, e cre-
ches para todas as crianças em idade 
pré-escolar; fortalecer os sindicatos de 
trabalhadores; obrigar a divisão dos 
grandes conglomerados financeiros 
para que possam se submeter a regula-
ções democráticas.
O Our Revolution surge do desen-
canto com o sistema político e com os 
partidos Democrata e Republicano, 
ambos controlados pelas elites. É um 
movimento político de empodera-
mento da cidadã e do cidadão comum, 
de radicalização da democracia, de re-
fundação do sistema político. Talvez 
tenhamos alguma coisa a aprender 
com essa experiência, que ainda vai 
dar muitos outros frutos! 
4 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018
A REVOLUÇÃO SERÁ FEMINISTA
2017, o ano 
das bruxas 
em ação
©
 O
dy
r
Se há um Brasil que caminha célere para as trevas, 
é ali mesmo onde há cinzas que os movimentos feministas 
atuam, resistem, existem. É nesse sentido que se pode tomar
a política feminista como a mais forte manifestação ao
contra-ataque conservador que tem varrido a política brasileira
POR CARLA RODRIGUES*
E
ra o dia seguinte ao 8 de Março 
de 2017 e à greve geral convoca-
da pelas mulheres contra o atual 
governo, cuja crise institucional 
se arrasta desde a retirada da presi-
denta Dilma Rousseff da Presidência 
da República. Caminhava por uma 
calçada estreita no centro do Rio de Ja-
neiro quando cruzaram comigo dois 
homens. De um deles ouvi, enquanto 
passava por mim: “Mas essas mulhe-
res têm de sair da rua, essas mulheres 
estão fazendo muito barulho”. A ad-
versativa com que a frase parecia co-
meçar indicava uma contrariedade, 
quase um desgosto. Agora, que aos ho-
mens que usurparam o poder parecia 
haver alguma chance de fazer as tais 
reformas exigidas pela abstrata enti-
dade chamada mercado, enfim havia 
aparecido no radar político daquele 
executivo a incômoda categoria “mu-
lheres que protestam”. 
De debacle em debacle, o governo 
Temer chega a 2018 – que legalmente 
deve ser seu último ano – sem ter co-
meçado, em que pesem os sucessivos 
golpes que se seguiram, seja na uni-
versidade, nas leis trabalhistas, na po-
lítica de saúde mental, nas artes e na 
cultura. Mas – e repito a adversativa 
como provocação – a ação das mulhe-
res na política nunca esteve tão em 
evidência. Se fosse para escolher uma 
única imagem para representar 2017, 
apontaria para a que mais parece nos 
ofender: uma bruxa sendo queimada, 
uma enorme boneca de pano mimeti-
zando a filósofa feminista Judith Butler 
no tribunal da Inquisição.
Se há um Brasil que caminha célere 
para as trevas, é ali mesmo onde há 
cinzas que, a cada vez, os movimentos 
feministas atuam, resistem, existem. É 
nesse sentido que se pode tomar a polí-
tica feminista como a mais forte mani-
festação ao contra-ataque conservador 
que tem varrido a política brasileira. 
Em grande medida, porque as mulhe-
res são o alvo mais frágil ao ataque, 
mas ali mesmo onde seria a nossa 
maior fraqueza estamos também na 
ponta mais forte de resistência. Para 
isso, é preciso pensar a política como 
um jogo de forças ativas e reativas, 
uma relação dialética entre avanços e 
recuos, em que cada passo adiante 
ameaça e, portanto, provoca novas 
violências. Nesse ir e vir, no fluxo e no 
refluxo das forças, justifica-se a conta-
bilidade dos movimentos feministas 
em ondas.1
Há uma grande controvérsia sobre 
essa divisão. Embora a estratégia este-
ja estabelecida como forma de marcar 
os momentos de maior intensidade 
das lutas pela emancipação das mu-
lheres, o fato é que, se tomarmos a on-
da como uma metáfora, correremos 
sempre o risco de estar começando de 
novo, porque as ondas varrem do solo 
as marcas do passado. Haveria ainda 
5
uma interpretação pior: “isso é onda”, 
forma jocosa de se referir à política fe-
minista como aquilo que, por só inte-
ressar às mulheres, não teria nenhu-
ma importância no cenário de disputa 
de poder nacional e internacional. Mi-
nha hipótese é oposta e parte do prin-
cípio de que fazer política feminista 
tem sido, em todas essas ondas históri-
cas, trazer ao debate público os temas 
mais candentes para a sociedade. E 
justamente por isso as forças conserva-
doras insistem em nos dizer que “esta-
mos fazendo muito barulho”, porque 
estamos afirmando que os problemas 
de gênero não são meras questões re-
gionais, muito ao contrário, são o pon-
to central a partir do qual se pode colo-
car em pauta o interesse comum. 
A cada reivindicação dos feminis-
mos, em geral empurrada para escan-
teio como uma demanda específica, 
equivale uma pauta global, o que me 
permite defender que a luta contra a 
opressão das mulheres é a própria luta 
contra a opressão. Tomo em defesa da 
minha hipótese a expansão dos femi-
nismos negros como o melhor exem-
plo: a estrutura racista do Estado brasi-
leiro é fundante na desigualdade entre 
pessoas brancas e pessoas negras, en-
tão é fundamental denunciar, confron-
tar e enfrentar o racismo presente nas 
relações sociais. Não é outra coisa o 
que as mulheres negras estão fazendo 
nas ruas, nas marchas nacionais, na 
Marcha do Orgulho Crespo, exibindo 
seus cabelos rebeldes aos processos de 
embranquecimento que são marca da 
violência histórica do Estado brasileiro 
contra o corpo das pessoas negras. 
O filósofo Michel Foucault afirma 
que o Estado só consegue garantir sua 
função de assassino se funcionar, “no 
modo do biopoder, pelo racismo”. O 
que ele definiu como biopoder é forma 
política de controle sobre os corpos, 
controle que, do meu ponto de vista, se 
dá preferencialmente sobre os corpos 
marcados pela subalternidade, ou, pa-
ra falar como Michelle Perrot, sobre os 
excluídos da história: operários, mu-
lheres e prisioneiros. Por isso, faz senti-
do pensar que o corpo das mulheres é o 
alvo preferencial do biopoder, do cons-
trangimento de suas ações e liberdade. 
Se é verdade que as mulheres são o pri-
meiro alvo do biopoder, pode ser ver-
dade também que os feminismos são a 
constituição histórica da resistência a 
esse controle estatal sobre os corpos. 
Nas quatro grandes ondas da história 
dos movimentos feministas, a liberda-
de do corpo contra a opressão do Esta-
do é centro da disputa. 
Foi assim na Revolução Francesa, 
quando as mulheres denunciaram que 
o corpo feminino estava excluído da 
concepção de universalidade; foi as-
sim quando as sufragistas lutaram pa-
ra ter seu corpo contado como eleitoras 
e, com isso, aprimoraram os sistemas 
de representação democrática; tem si-
do assim desde a segunda metade do 
século XX, quando a segunda onda fe-
minista se levantou contra a violência 
exercida sobre o corpo das mulheres e 
a terceira onda permitiu perceber que 
a violência é contra todo corpo que 
carregue a marca da feminilidade, so-
bremarcada por raça, classe, religião, 
lugar de moradia e/ou nascimento, 
idade, sexualidade, idioma e uma infi-
nidade de indicadores que reforçam as 
estratégias do biopoder e da violência. 
Para falar da quarta onda feminis-
ta, retomo a primeira Marcha das Va-
dias, realizada em 2011 no Canadá e 
em diversos outros países que imedia-
tamente aderiram, inclusive o Brasil.2 
Foi puxada por jovens estudantes ca-
nadenses que, diante da reivindicação 
de atuação policial contra os estupros 
ocorridos em torno do campus da uni-
versidade, ouviram do chefe de polí-
cia: “Se não querem ser estupradas, 
não saiam na rua vestidascomo va-
dias”. As mulheres se mobilizaram va-
lendo-se da estratégia que o movimen-
to queer já havia adotado: subverter o 
termo “vadia” de sua conotação nega-
tiva para usá-lo de forma debochada 
contra a violência que ele pretende 
perpetrar. A participação do movi-
mento de legalização da prostituição 
foi importante para reforçar a pauta da 
descriminalização da profissão, numa 
dinâmica muito própria dos feminis-
mos brasileiros: a articulação entre as 
reivindicações globais e os itens do de-
bate local. 
A resposta do policial de Toronto é 
apenas a face mais evidente da opres-
são sobre o corpo da mulher, que deve 
ser mantido sob controle, enquanto o 
do homem pode e deve gozar do impe-
rativo da liberdade absoluta. Contra 
essa forma estrutural de violência, 
manifesta em diferentes fenômenos, 
uma nova geração de mulheres come-
çou a retomar as ruas, inúmeros cole-
tivos de jovens feministas se organiza-
ram, inclusive nas universidades e 
escolas públicas de ensino médio, co-
mo tão bem mostra o documentário 
Primavera das mulheres, de Antonia 
Pellegrino.3 Era setembro de 2015 
quando manifestações ocuparam 
ruas, praças e redes sociais para pedir, 
no grito de #ForaCunha, a queda do 
1 Sobre isso, ver Magda Guadalupe Santos, “O fe-
minismo na história: suas ondas e desafios episte-
mológicos”. In: Maria de Lourdes Borges e Márcia 
Tiburi (orgs.), Machismos e feminismos, EdUFSC, 
Florianópolis, 2014. 
2 A esse respeito, indico a leitura do trabalho de Car-
la Gomes (PPGSA/UFRJ).
3 Disponível em: <https://globosatplay.globo.com/
gnt/v/6229352/>.
presidente da Câmara que, naquele 
momento, além de autor do Projeto de 
Lei n. 5.069 – que volta a exigir boletim 
de ocorrência para o atendimento, na 
rede pública, das mulheres vítimas de 
estupro que desejem realizar o aborto 
legal –, era um dos mentores do golpe 
que viria a derrubar, poucos meses de-
pois, a presidenta Dilma.
O PL de Cunha era apenas um sinal 
de como os retrocessos na política 
apontavam para o corpo das mulheres 
em primeiro lugar. Em dezembro de 
2017, foi a vez da PEC 181, cujo objetivo 
original era ampliar o direito à licença-
-maternidade em casos de nascimento 
de bebês prematuros. Depois, foi 
transformada num projeto que visa à 
proibição do aborto em casos já autori-
zados por lei, como estupro, anencefa-
lia fetal e risco de morte para a mãe. Na 
contraofensiva, um grupo de organi-
zações feministas organizou um ma-
nifesto público no qual 270 mulheres, 
inclusive eu, declararam já ter realiza-
do aborto e apoiaram a decisão da jo-
vem Rebeca Mendes, cujo recurso ao 
STF pedindo autorização para inter-
rupção de gravidez foi negado.
Se a imagem de uma bruxa sendo 
queimada na porta do Sesc Pompeia é 
exemplar de um ano poderoso, vale 
evocar também a publicação de Calibã 
e a bruxa – Mulheres, corpo e acumula-
ção primitiva, livro da feminista italia-
na Silvia Federici que conta a história 
do capitalismo como uma história de 
guerra contra as mulheres e a história 
da resistência das mulheres nas Amé-
ricas como as “principais inimigas do 
domínio colonial”. Não é por outra ra-
zão que as teorias feministas no Brasil 
se colocam, há tempos, o problema da 
importação da bibliografia feminista e 
a importância de afirmar nossos sabe-
res localizados, para falar como Don-
na Haraway.
O campo acadêmico feminista co-
meçou a se constituir no Brasil no final 
do século XIX graças a uma dupla es-
tratégia: a validação dos argumentos 
pela emancipação da mulher com ba-
se na importação de pensadoras euro-
peias – com destaque para o trabalho 
da educadora Nísia da Floresta, tradu-
tora da inglesa Mary Woolstonecraft 
no Brasil – e a inclusão de pautas lo-
cais, como o fim da proibição do ensi-
no para mulheres. Essa disjuntiva per-
manece estratégica até hoje. Receber a 
filósofa Judith Butler no Brasil foi uma 
oportunidade de dimensionar a im-
portância que tem hoje o pensamento 
político feminista, ameaçador a ponto 
de mobilizar tantas forças reacioná-
rias ao mesmo tempo. 
Nos anos 1980, a norte-americana 
Susan Faludi identificou os discursos 
conservadores que insistiam na tese 
de que as feministas já teriam conse-
guido todas as conquistas de que pre-
cisavam e, pior, estavam infelizes com 
o ponto aonde haviam chegado. Se-
gundo eles, estava na hora de recuar. 
Dentro dos movimentos feministas, 
no entanto, a questão era oposta: co-
mo ampliar as lutas? O sopro de vigor e 
resistência veio com a publicação, em 
1989, de Gender Trouble [Problemas de 
gênero], livro que marca a entrada de 
Butler no campo da teoria feminista. 
Inspirada principalmente pelos traba-
lhos das feministas Gayle Rubin e Mo-
nique Wittig, Butler trava um debate 
com a filosofia existencialista de Simo-
ne de Beauvoir a fim de interrogar o 
que ela chama de ligação natural entre 
sexo e gênero. Afinal, se não se nasce 
mulher, torna-se mulher, em que esta-
ria fundamentada a ligação entre um 
corpo de fêmea e a construção de uma 
pessoa do gênero feminino? 
Nesse momento, a terceira onda fe-
minista se dobrou sobre si mesma, se-
guindo a proposta de Butler de que o 
feminismo deixasse de ser feito apenas 
em nome do sujeito mulher, e de sua 
provocação surgiram novos sujeitos e a 
oportunidade de ampliação dos femi-
nismos para além dos direitos das mu-
lheres, mais uma vez sobrepondo a luta 
contra a opressão das mulheres à luta 
contra toda forma de opressão. Univer-
sal e particular ao mesmo tempo, para-
doxal como provocação, agonística co-
mo método. 
Foi mais ou menos assim que as 
mulheres voltaram a ser as bruxas da 
história, aquelas que não se calam 
diante das opressões e injustiças, as 
que são queimadas e mortas – seja co-
mo metáfora, seja no alto índice de fe-
minicídios no país – por denunciarem 
que, sem nem mesmo termos chegado 
a algo que pudéssemos chamar de Es-
tado de bem-estar social, já estamos 
em furioso processo de desmonte do 
pouco que havíamos alcançado. 
*Carla Rodrigues é filósofa, professora de Fi-
losofia (UFRJ) e pesquisadora (PPGF/Faperj)
.
A cada reivindicação 
dos feminismos, 
em geral empurrada 
para escanteio como 
uma demanda 
específica, equivale 
uma pauta global
Sem nem mesmo 
termos chegado a algo 
que pudéssemos 
chamar de Estado de 
bem-estar social, já 
estamos em furioso 
processo de desmonte
6 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018
FEMINISMOS E DISPUTA POLÍTICA NO BRASIL
A exclusão das mulheres é incontornável para compreender os limites da nossa democracia. Foi nesse contexto 
de exclusão que as mulheres atuaram na história recente do Brasil. Sem a análise dessa atuação, corremos o risco de 
não compreender alguns dos embates agudos na política brasileira hoje e indagar: “De onde surgiram essas mulheres?”
POR FLÁVIA BIROLI*
De onde surgiram essas mulheres?
A 
política tem sido, historicamen-
te, um espaço masculino. Basta 
um rápido olhar para as hierar-
quias nos partidos políticos, o 
plenário dos legislativos nacionais, es-
taduais e municipais ou para os gabi-
netes onde estão instalados os inte-
grantes do primeiro escalão nos 
governos para que se entenda o que 
isso significa. Não é de agora que é as-
sim. Embora no Brasil as mulheres te-
nham direito a voto desde 1932 e o 
exerçam em condições iguais às dos 
homens desde 1946, sua presença em 
cargos políticos tem sido restrita. 
A partir de meados do século XX, 
foi sendo difundido o entendimento 
de que há algo de errado quando um 
processo regido por regras apresenta-
das como neutras em relação ao sexo 
resulta em assimetrias tão visíveis, 
eleição após eleição. No Brasil, a sub-
-representação das mulheres na políti-
ca passou gradualmente a ser tratada 
como um problema, no debate públi-
co, a partir do processo de transição 
da ditadurade 1964 para o regime de-
mocrático. Em 1997, foi aprovada a lei 
que reserva para elas 30% das vagas 
nas listas partidárias, nas eleições pa-
ra a Câmara dos Deputados, as assem-
bleias estaduais e as câmaras munici-
pais. Embora tenha sido pouco efetiva, 
com ela mais alguns passos foram da-
dos no reconhecimento público de 
que a sub-representação das mulheres 
é algo a ser superado. 
Ainda assim, a aposta dos partidos 
nas candidaturas femininas e os resul-
tados das eleições permaneceram 
muito aquém do objetivo. O ambiente 
político institucional também não se 
tornou menos hostil para as mulheres 
que, apesar das barreiras, vencem elei-
ções e ocupam cargos. A primeira mu-
lher eleita para a Presidência da Repú-
blica no país foi deposta, em 2016, em 
um processo marcado pela misoginia. 
O novo ocupante do posto, Michel Te-
mer, nomearia, então, um ministério 
inteiramente formado por homens 
brancos. A repercussão a essa nomea-
ção mostrou, mais uma vez, que a de-
núncia do caráter masculino da políti-
ca tinha sido incorporada ao debate 
público de modo significativo, mas 
que as barreiras persistiam. 
A exclusão das mulheres é incon-
tornável para compreender os limites 
da nossa democracia, antes e depois 
de 2016. O que vou dizer talvez pareça 
paradoxal, mas foi nesse contexto de 
exclusão que as mulheres atuaram, 
sistematicamente, na história recente 
do Brasil. Sem a análise dessa atua-
ção, corremos o risco de não com-
preender alguns dos embates agudos 
na política brasileira hoje e indagar 
inocentemente: “De onde surgiram 
essas mulheres?”.
Durante a ditadura de 1964, os fe-
minismos se organizaram na descon-
fiança em relação ao Estado, algo que 
se modificaria com a democratização, 
nos anos 1980. Conquistas significati-
vas desse período expressam a institu-
cionalização da agenda feminista, so-
bretudo na saúde, com a criação, em 
1983, do Programa de Assistência Inte-
gral à Saúde da Mulher (Paism), e no 
combate à violência, com a criação das 
Delegacias Especializadas de Atendi-
mento à Mulher (Deams), a partir de 
1985. Esse foi também o ano de criação 
do Conselho Nacional dos Direitos da 
Mulher (CNDM), na esteira da institu-
cionalização, desde 1982, de conselhos 
similares nos estados e municípios. 
A atuação na Assembleia Consti-
tuinte, que contava com apenas 26 mu-
lheres eleitas (5% do total de parlamen-
tares), resultou da articulação do 
CNDM com organizações de trabalha-
doras rurais, trabalhadoras domésticas, 
centrais sindicais (CGT e CUT), asso-
ciações profissionais, grupos feminis-
tas e movimentos sociais de todo o país. 
A “Carta das mulheres aos constituin-
tes” priorizava temáticas “gerais” e “es-
pecíficas”, simultaneamente. A aborda-
gem dos problemas das mulheres 
conjugava gênero, classe, raça e sexuali-
dade na defesa da reforma agrária, de 
direitos trabalhistas, de direitos repro-
dutivos e sexuais, de acesso universal à 
saúde e à seguridade. 
O pacto social expresso na Consti-
tuição de 1988 sofreria uma série de re-
veses, mas criaria também um novo 
patamar para as disputas políticas. 
Nos anos 1990, a incorporação de dire-
trizes neoliberais do Consenso de 
Washington pelo governo brasileiro 
impôs recuos nos investimentos so-
ciais e na regulação pública de setores 
importantes da economia. Ao mesmo 
tempo, fóruns internacionais de deba-
tes com forte participação de diferen-
tes setores da sociedade civil organiza-
da e acordos multilaterais abriam a 
possibilidade de constranger mais di-
retamente os Estados nacionais a reco-
nhecer a diversidade entre as pessoas e 
promover o respeito à igual dignidade 
por meio de leis e de políticas. Novas 
compreensões dos direitos em disputa 
e dos grupos que demandavam reco-
nhecimento como sujeitos políticos le-
gítimos se estabeleceram. Foi esse o 
ambiente em que movimentos LGBT e 
feministas ampliaram seus recursos 
materiais e simbólicos para atuar nos 
espaços nacionais. Houve custos, ajus-
tes em suas agendas, mas também 
houve ganhos de legitimidade. 
Foi também nos anos 1990 e no 
processo de mobilização na esfera in-
ternacional que foi criada uma das 
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7
principais coalizões feministas de 
abrangência nacional, a Articulação 
de Mulheres Brasileiras (AMB), funda-
da em 1994. Pouco depois, em 2000, se-
ria fundada a Marcha Mundial de Mu-
lheres, originada do movimento “2000 
razões para marchar contra a pobreza 
e a violência”. Nos dois casos, o hori-
zonte programático anunciado foi a 
democratização radical do Estado e o 
combate à agenda neoliberal e seus 
efeitos. Além disso, a larga presença de 
mulheres e organizações nos encon-
tros do Fórum Social Mundial desde 
sua primeira edição, em 2001, anun-
ciava uma participação intensa dos fe-
minismos na construção de alternati-
vas políticas na virada do século. 
Entendo que adentramos o século 
XX com novos pontos de inflexão na 
trajetória política dos feminismos. 
Elenco, abaixo, três razões para esse 
entendimento.
A partir da chegada do Partido dos 
Trabalhadores (PT) ao governo, em 
2003, cresceu o diálogo com os movi-
mentos feministas e a presença de suas 
representantes no Executivo federal. A 
Secretaria de Políticas para Mulheres, 
criada em 2003, correspondeu à am-
pliação de recursos e potencial de ar-
ticulação no âmbito estatal. A maior 
efetividade dos dispositivos para par-
ticipação previstos desde a Constitui-
ção de 1988 também teve seu papel. 
Houve, no período, quatro Conferên-
cias Nacionais de Políticas para Mulhe-
res (em 2004, 2007, 2011 e 2016), que 
reuniram milhares delas em Brasília. 
Ao mesmo tempo – e ainda é preci-
so compreender as conexões entre as 
duas coisas, uma vez que essa não é 
uma realidade apenas nacional –, o fe-
minismo ultrapassou os circuitos dos 
movimentos, organizações e encon-
tros existentes até aquele momento. O 
campo feminista se ampliou e se tor-
nou menos centralizado, com coleti-
vos surgindo por todo o país e formas 
de mobilização facilitadas pela inter-
net. Campanhas contra o assédio se-
xual e contra o racismo com que se de-
frontam as mulheres negras no Brasil, 
para utilizar dois exemplos, têm mi-
grado das redes sociais para as pági-
nas dos grandes jornais. Nas denún-
cias feitas pelas mulheres, é evidente o 
recurso a uma linguagem proveniente 
das lutas e da crítica feminista que se 
acumulou nas décadas anteriores.
Ao mesmo tempo, e esta é a terceira 
razão que elenco, o feminismo se tor-
naria ainda mais diverso. Vem de lon-
ge o diálogo com organizações de mu-
lheres negras e lésbicas e a abordagem 
interseccional dos problemas das mu-
lheres brasileiras. Desde pelo menos 
os anos 1970, documentos e jornais fe-
ministas demonstravam preocupação 
com a realidade diversa e desigual das 
brancas e das negras, das que vivem 
em centros urbanos e em áreas rurais, 
das que se profissionalizavam e alcan-
çavam salários acessíveis a uma par-
cela restrita da população e das traba-
lhadoras domésticas em que se 
apoiaram para que a divisão sexual do 
trabalho e o cuidado demandado pe-
los filhos fossem atenuados. Mas os 
anos 2000 trouxeram mais vozes à ce-
na. Algumas delas puderam ser ouvi-
das nas ruas e nos documentos das 
Marchas das Margaridas (2000, 2003, 
2007 e 2011), da Marcha Nacional das 
Mulheres Negras (2015), da Marcha 
das Vadias (2011 e 2012). Puderam ser 
ouvidas também nas manifestações 
em defesa do direito ao aborto ocorri-
das por todo o Brasil em novembro de 
2015, motivadas por um projeto de lei 
da Câmara dos Deputados que, se 
aprovado, comprometerá o atendi-
mento de mulheres que sofreram estu-
pro na rede pública de saúde, nas ma-
nifestações contra o então presidente 
da Câmara dos Deputados, Eduardo 
Cunha, e em defesa da democracia.
É preciso registrar que essas infle-xões ocorreram ao mesmo tempo que 
os conflitos em torno do gênero se tor-
navam mais agudos nas disputas polí-
ticas. Ao menos desde 2014, com o iní-
cio dos debates sobre o Plano Nacional 
de Educação, vem sendo gestada a ver-
são brasileira da campanha interna-
cional contra a agenda da igualdade de 
gênero e do respeito à diversidade se-
xual. Embora tenha origem no Vatica-
no ainda nos anos 1990, como reação 
ao avanço da agenda de gênero em en-
contros internacionais como a IV Con-
ferência Mundial sobre a Mulher da 
ONU, que aconteceu em Pequim, em 
1995, ela chegou ao centro das dispu-
tas políticas em diversos países latino-
-americanos na segunda década do 
século XX. No Brasil, cresce com a on-
da conservadora que investe contra o 
pacto social representado pela Consti-
tuição de 1988 e contra os fundamen-
tos da agenda de direitos humanos e 
sociais que balizou, desde então, as 
controvérsias e os eventuais avanços 
na construção de normas e políticas. 
Os feminismos se tornaram mais 
visíveis, as reações se tornaram mais 
abertas. O feminismo de Estado, que 
cresceu com a chegada do PT ao gover-
no em 2003, pode ser lido por seus li-
mites, mas também pelo que produziu 
nesse contexto. Houve alguma aceita-
ção dos termos em que os governos pe-
tistas se estabeleceram, é verdade. 
Mas houve também uma série de re-
sultados. Os Planos Nacionais de Polí-
ticas para Mulheres, produzidos nesse 
período, são documentos significati-
vos. Incorporam os resultados das 
Conferências Nacionais de Políticas 
para Mulheres e demonstram a im-
portância da estrutura organizacional 
adquirida com a Secretaria de Políti-
cas para Mulheres. Graças a essa es-
trutura, mulheres ligadas aos movi-
mentos feministas contribuíram para 
a construção da legislação que igualou 
os direitos das trabalhadoras domésti-
cas aos de outros trabalhadores (PEC 
das Domésticas, 72/2013, regulamen-
tada em junho de 2015), para a crimi-
nalização e combate à violência contra 
as mulheres (Lei Maria da Penha, 
11.340, sancionada em 2006, e Lei do 
Feminicídio, 13.104, sancionada em 
março de 2015), para normas e políti-
cas públicas com o objetivo de garan-
tir direitos reprodutivos e direitos se-
xuais (Normas Técnicas do Ministério 
da Saúde, editadas em 2005 e 2011), 
para a adoção de orientações educa-
cionais e políticas de incentivo para 
uma socialização mais igualitária 
(Programa Brasil sem Homofobia, de 
2004, e Programa Mulher e Ciência, de 
2005). São alguns exemplos. Muitos 
deles poderiam também ser utilizados 
para discutir a dinâmica de avanços e 
retrocessos que se estabeleceu, com as 
exigências de recuos na agenda de gê-
nero pelos grupos conservadores que 
formaram a base de apoio dos gover-
nos petistas no período. 
O que vem sendo definido em algu-
mas abordagens e análises políticas 
como uma política de “identidades” 
tem uma história e um alcance políti-
co bem mais amplos. Os feminismos, 
assim como os movimentos LGBT, ne-
gros e indígenas, contribuíram para 
politizar a política no período de cons-
trução democrática. Esse é, em minha 
compreensão, o principal motivo para 
que se transformem em alvos neste 
momento. Agenda moral conservado-
ra e projeto neoliberal convergem na 
promoção do fechamento da demo-
cracia, atuando pela retirada de direi-
tos fundamentais, mas também para a 
difusão de uma lógica que depende da 
despolitização e da reprivatização de 
diferentes dimensões da vida.
Uma das maneiras de abordar a his-
tória das democracias liberais é pensá-
-la como um processo em que o acesso 
a direitos individuais se ampliou ao 
mesmo tempo que se definiram barrei-
ras de novo tipo para o acesso de gru-
pos, de temas e de interesses ao espaço 
político. A própria conformação do es-
paço da política é uma questão funda-
mental nessa dinâmica. As fronteiras 
entre o que seria parte da vida domésti-
ca e pessoal e o que teria caráter públi-
co e relevância política permitiram iso-
lar espaços, sujeitos e experiências, 
retirando-lhes o caráter político. Esse é 
um dos sentidos em que as mulheres 
entraram em desvantagem na esfera 
pública no mundo moderno. 
Essa mesma perspectiva nos leva à 
ação política dos movimentos sociais. 
Movimentos feministas, movimentos 
LGBT, movimentos negros e movi-
mentos indígenas têm pautas e histó-
rias distintas e, em alguns casos, con-
flitivas. Mas chamo atenção aqui para 
o fato de sua luta envolver o questiona-
mento das fronteiras da política. É que 
a conformação do ambiente e das ins-
tituições políticas é, em muitos senti-
dos, a história de sua exclusão. Seu 
corpo, suas experiências e, em muitos 
casos, a linguagem com que as trazem 
a público em sua luta organizada são 
“estrangeiras” à política que assim se 
definiu. Há uma relação significativa 
entre a conformação da esfera pública 
estatal como “lugar de enunciação de 
todo discurso que aspire a revestir-se 
de político”, para citar Rita Segato em 
La guerra contra las mujeres, e as bar-
reiras enfrentadas por grupos margi-
nalizados para a politização de rela-
ções cotidianas de opressão. 
Nos esforços de politização reali-
zados pelos movimentos sociais que 
mencionei, outras arenas e identida-
des vêm a público. Os feminismos po-
litizaram o cotidiano da exploração 
do trabalho das mulheres; a violência 
doméstica; o controle do seu corpo 
por pais, companheiros e pelo Estado; 
o caráter masculino do Estado e da po-
lítica mais amplamente. Evidencia-
ram o caráter de gênero dos modelos 
explicativos hegemônicos, mostrando 
que a neutralidade pode ser bem posi-
cionada, por implicar a reprodução 
das assimetrias. A tematização da 
perspectiva das mulheres, assim como 
de suas necessidades e de seus interes-
ses, permitiu evidenciar quais perspec-
tivas, quais necessidades e quais inte-
resses são considerados em uma 
política masculina. Por isso, a posicio-
nalidade foi trazida ao debate público 
como fundamento da legitimidade 
das pautas defendidas pelos movi-
mentos – ainda que disso derivem li-
mites que eu não teria como discutir 
aqui. A caracterização daqueles que 
são majoritários na política como “ho-
mens, brancos e proprietários” pode 
ter até se tornado um clichê na luta 
política, no contexto ambivalente de 
que procurei falar neste artigo. Mas 
ela apresenta um esforço que não é 
banal: mostrar que a atuação desses 
homens é, como qualquer atuação po-
lítica, posicionada e identificada so-
cialmente. 
*Flávia Biroli é professora do Instituto de 
Ciência Política da UnB.
Os feminismos, assim 
como os movimentos 
LGBT, negros e indígenas, 
contribuíram para 
politizar a política no 
período de construção 
democrática
8 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018
FEMINISMOS E DIVERSIDADES
O feminismo brasileiro hoje não é só jovem e empoderado. O bonde das feministas históricas 
e o bonde das feministas hashtag dialogam na construção das ações. O feminismo como um todo 
é plural, diversificado e capaz de produzir convergências
POR MARIELLE FRANCO*
O novo sempre vem
E
m 1975, um grupo de mulheres 
organizou um evento na Asso-
ciação Brasileira de Imprensa 
(ABI), no Rio de Janeiro, sobre a 
situação das mulheres no Brasil. Fo-
ram mais de quatrocentas participan-
tes, num movimento que deu início ao 
Centro da Mulher Brasileira (CMB), 
primeira organização feminista no 
país. Mais de quatro décadas depois, 
ocupamos o mesmo espaço, agora co-
mo mulheres, negras, trans, faveladas, 
professoras, nordestinas, mães, enfim, 
mulheres em toda a sua diversidade. 
No evento de outrora, mulheres 
negras fizeram críticas contundentes 
à organização que, apesar de contar 
com personagens importantes da luta 
contra a ditadura, não abarcou a di-
versidade de experiências do que é ser 
mulher. No final de novembro de 2017, 
fizemos da ABIum espaço de debate 
político. Um debate vivo, cheio de 
nuances, em que cinco centenas de 
nós afirmamos que vamos ocupar a 
política, os espaços de poder; contu-
do, não em uma ocupação meramente 
“cotista”. Há, inegavelmente, um novo 
momento, uma marcha em fermenta-
ção de mulheres rumo à apropriação 
dessas engrenagens.
Chegamos a 2018 colhendo frutos 
de décadas de lutas das mulheres por 
melhores condições de vida e por mais 
igualdade nos espaços de tomada de 
decisões. Nesse período, é inegável 
que o feminismo se tornou mais diver-
so, em especial com os avanços das 
pautas de raça, orientação sexual e 
identidade de gênero, e também nas 
reflexões sobre as diversas experiên-
cias pelas quais as mulheres passam, 
como a maternidade. Essa diversidade 
se expressa nas ruas, em manifesta-
ções, e nas redes sociais, por meio de 
páginas, aplicativos, blogs e vídeos.
Fala-se muito que estamos vivendo 
uma nova onda feminista, embora a 
ideia de onda indique um rompimento 
maior do que como acontece na histó-
ria de fato. A mídia propaga a ideia de 
que há um “novo feminismo”, mas na 
verdade o que vivemos é o resultado de 
uma convergência de diferentes ex-
pressões do feminismo que, mesmo 
com estratégias de atuação muito di-
versas, têm em comum a compreen-
são de que a internet é um espaço de 
diálogo e articulação política. O femi-
nismo brasileiro hoje não é só jovem e 
empoderado. O bonde das feministas 
históricas e o bonde das feministas 
hashtag dialogam na construção das 
ações. O feminismo como um todo é 
plural, diversificado e capaz de produ-
zir convergências. 
Desde a eleição de 2010 vivemos 
uma conjuntura marcada por contra-
dições importantes no que se refere às 
questões de gênero. O saldo das mani-
festações e campanhas que se segui-
ram foi a necessidade de uma repre-
sentação política mais diversa. As 
mulheres se colocaram como uma for-
ça política importante no cenário na-
cional, em especial as negras e indíge-
nas. Assumimos o papel de apontar 
para o que seria o “novo” de verdade 
na política: inverter o jogo, sair da po-
sição de subalternidade na sociedade 
para ocupar espaços de formulação, 
de desenvolvimentos programáticos e 
de projetos, de tomadas de decisão.
Apesar de termos chegado a alguns 
lugares importantes, a representação 
política das mulheres ainda é ínfima, e 
a das mulheres negras é ainda pior. 
Mulheres negras somos cerca de 25% 
da população brasileira, segundo cen-
so do IBGE de 2010. Segundo o “Retra-
to das desigualdades de gênero e raça” 
(Ipea, 2015), somos também a maior 
parte das pessoas desempregadas, que 
trabalha sem carteira assinada, como 
empregada doméstica ou com menor 
renda domiciliar per capita. Essa situa-
ção não é por acaso, é fruto de um de-
senvolvimento civilizatório que foi ca-
paz de desumanizar e objetificar o 
corpo das mulheres negras.
Em meio a tanta desigualdade, ao 
racismo e ao sexismo que insistem em 
nos violentar, a chegada da mulher ne-
gra à institucionalidade surpreende. 
Nossa presença assusta o conluio 
masculino, branco e heteronormativo. 
Ao mesmo tempo, nos vemos diante 
do desafio de construir um projeto po-
lítico que não exclua as questões que 
nos trouxeram até aqui, que não as 
torne secundárias e que se mantenha 
afinado com as lutas dos movimentos.
Ironicamente, se em 1975 as mu-
lheres reunidas estavam em luta con-
tra a ditadura militar, agora estamos 
em enfrentando um governo ilegítimo 
e os golpes cotidianos que ele promove 
em nossos direitos e em nossas liber-
dades. Em um cenário de graves retro-
cessos e da ação articulada das forças 
religiosas no Congresso Federal, as 
mulheres estão conseguindo impedir 
as mudanças de legislação pela articu-
lação de formas muito diversas de fa-
zer feminismo por meio do fortaleci-
mento mútuo. Estamos resistindo aos 
ataques racistas cotidianos e tentando 
encontrar caminhos para superar a si-
tuação de miséria em que a crise colo-
cou as pessoas que moram nas favelas, 
periferias e no campo, fortalecendo as 
iniciativas de economia solidária e de 
fortalecimento de movimentos como 
o MTST e o MST. 
Graças ao surgimento de grupos 
como o PretaLab, à formação sobre se-
gurança digital da Universidade Livre 
Feminista, à MariaLab e às Blogueiras 
Negras, estamos resistindo à difusão 
do discurso de ódio e às novas formas 
de violência que acontecem no âmbito 
virtual. Quando ouvimos o Slam das 
Minas, levando a poesia falada das 
mulheres para os diferentes territórios 
e reinventando a ideia de batalha – elas 
não competem nos recitais, elas estão 
lado a lado, se complementando na 
performance –, sabemos quem somos, 
as vozes que se escutam, que se aco-
lhem, que fazem política o tempo to-
do. Essa resistência é nova também em 
sua estética!
A PartidA Feminista está mobiliza-
da para lançar candidatas e fazer o de-
bate sobre a importância de eleger fe-
ministas comprometidas com os 
projetos de transformação. O movi-
mento, surgido em 2015, quando ati-
vistas se reuniram para discutir o sen-
tido e a possibilidade de um partido 
feminista brasileiro, reúne coletivos 
de mulheres de partidos e movimen-
tos diversos de todo o Brasil. Ou seja, 
de forma articulada, as eleições de 
2018 estão sendo gestadas. Iniciativas 
para uma representação mais diversa 
devem ser reeditadas, além de instru-
mentos para o financiamento coletivo 
das campanhas.
Em nosso encontro recente na ABI, 
partimos da ideia de que “uma mu-
lher puxa a outra” – um dos motes da 
Marcha das Mulheres Negras em 2017. 
Reunimos mulheres que se destaca-
ram no cenário político do Rio de Ja-
neiro e que são potenciais candidatas 
a diversos espaços de poder – câmaras 
estaduais e federal, sindicatos, parti-
dos e associações diversas –, com des-
taque para as mulheres negras. Isso 
porque o recado foi dado nas eleições 
de 2016, e aqui no Rio de Janeiro se-
guimos à frente da Comissão da Mu-
lher para pautar o debate de gênero na 
Câmara partindo da nossa perspecti-
va. Talíria Petroni tem enfrentado o 
desafio de construir um mandato ne-
gro, popular e feminista como a única 
mulher na Câmara de Niterói. Áurea 
Carolina, em Belo Horizonte, inova ao 
criar a “gabinetona” aberta às mais di-
ferentes lutas e ao mesmo tempo aten-
ta aos afetos, à poesia e ao autocuida-
do. Nós aprendemos umas com as 
outras, estamos buscando formas de 
fazer política que não sejam mera re-
produção do que sempre foi feito, por-
que isso nos deixa mais fortes para 
ocupar espaços da institucionalidade, 
apesar de todos os retrocessos. Mas 
não queremos ficar sozinhas nesse es-
paço, queremos outras e que transfor-
mem a política.
O evento recente da ABI foi gesta-
do dentro de um mandato parlamen-
tar, mas não só por ele. Uma rede de 
mulheres independentes de filiações 
partidárias se uniu para demandar e 
organizar o encontro. Por si só essa 
movimentação descortina um novo 
momento. O sistema político, tal qual 
(não) funciona hoje precisa ser urgen-
temente transformado. Nossa aposta 
é que outras mulheres sejam fortaleci-
das para ocupar os espaços de poder. 
E, para isso, qualquer projeto político 
de esquerda não pode ignorar as 
questões que trazemos. 2018 que nos 
aguarde! 
*Marielle Franco é vereadora do Rio de Ja-
neiro pelo Psol.
Nós aprendemos 
umas com as outras, 
estamos buscando 
formas de fazer política 
que não sejam mera 
reprodução do que 
sempre foi feito
9
A LÓGICA DO CAPITAL GENEALÓGICO
Na era digital, dados genealógicos como coleções fotográficas passam do status de patrimônio histórico 
comum ao de capital econômico possuído por algumas empresas. Assim, a própria noção de um patrimônio 
como bem comum universal tem de ser reinventada
POR FRÉDÉRIC KAPLAN E ISABELLA DI LENARDO*
Árvores de dinheiro
N
o coração da Granite Moun-tain, a alguns quilômetros de 
Salt Lake City, a Igreja de Jesus 
Cristo dos Santos dos Últimos 
Dias, também chamada de Igreja Mór-
mon, protege em um quarto-forte seu 
tesouro: 3,5 bilhões de imagens de do-
cumentos familiares compilados em 
microfilmes. Esses documentos tra-
zem informações sobre a genealogia 
de mais de 5 bilhões de pessoas graças 
aos registros de estado civil coletados 
em mais de uma centena de países. 
Organização sem fins lucrativos fun-
dada em 1894, a Sociedade Genealógi-
ca de Utah, rebatizada de FamilySear-
ch (Pesquisa de Família), oferece 
acesso gratuito a esse ouro paciente-
mente coletado. 
A busca genealógica está no cora-
ção da doutrina e das práticas reli-
giosas dos mórmons. Na esperança 
de uma ressurreição generalizada, 
os membros da Igreja reconstroem 
suas relações familiares em diversas 
gerações, para oferecer a cada an-
cestral corretamente identificado 
um batismo salutar. A pesquisa de 
uma cadeia ininterrupta de ligações 
até Adão representa assim, em sua 
crença, uma maneira de salvar a hu-
manidade. Por essa razão, a Family-
Search troca seus dados com outras 
instituições genealógicas, eventual-
mente com objetivo comercial.
Em outro porão da Granite Moun-
tain, a empresa Ancestry.com propõe, 
como a FamilySearch, uma interface 
de acesso a uma grande base de dados 
genealógica, desta vez paga. As duas 
empresas colaboram estreitamente 
uma com a outra desde 2014. Mas a 
oferta comercial da Ancestry.com dá 
acesso a 19 bilhões de documentos 
históricos e seduz mais de 2 milhões 
de inscritos, que pagam em média US$ 
200 por ano. A empresa propõe, entre 
outras coisas, um teste de DNA que, 
por menos de US$ 100, permite desco-
brir novas “conexões” familiares com 
pessoas e lugares e já conta com mi-
lhões de perfis genéticos para afinar as 
pesquisas. Com a comercialização 
proibida na França pela Lei de Bioética 
– que os reserva para fins puramente 
científicos, judiciários ou médicos –, 
os testes de DNA genealógicos fazem 
grande sucesso em escala mundial. 
Em Israel, a empresa MyHeritage.com 
teve em uma dezena de anos uma as-
censão fulgurante. Comprando suces-
sivamente diversas empresas de ge-
nealogia, ela propõe a mais de 80 
milhões de usuários inscritos o acesso 
a 7 bilhões de informações históricas. 
Em 2013, a empresa concluiu um acor-
do com a FamilySearch; depois, em 
2014, com a 23andMe, líder dos testes 
genéticos de grande público. Obrigada 
desde 2013 pela administração norte-
-americana a renunciar ao essencial 
de suas pretensões em matéria de pre-
dição médica, a 23andMe colocou sua 
tônica na genealogia para desenvolver 
uma base de perfis genéticos, a maior 
do mundo. 
Essas empresas genealógicas têm, 
ao longo dos anos, acumulado uma 
nova forma de capital: o capital genea-
lógico. Sua especificidade? O valor de 
cada árvore é ainda maior quando po-
de ser relacionado com outras árvores. 
Ao comprar empresas que possuíam 
uma base genealógica local, a MyHeri-
tage.com construiu um banco de da-
dos cujo valor ultrapassa de longe a so-
ma dos valores das bases iniciais. As 
dinâmicas capitalísticas se encontram 
reforçadas. Quando mais cada empre-
sa propõe informações genealógicas, 
mais seus serviços podem seduzir os 
inscritos e mais os lucros permitem 
que se aumente o capital, seja sob a 
forma de campanha de digitalização, 
seja comprando outras empresas do 
mesmo setor. Em alguns anos, essa ló-
gica conduziu à dominação de um pu-
nhado de agentes mundiais que, na 
ausência de uma legislação na área, 
podem garantir sua posição monopo-
lística com parcerias.
As vastas coleções de árvores ge-
nealógicas, pacientemente recons-
truídas graças ao entusiasmo de mi-
lhares de pesquisadores e de amadores 
que trabalham em arquivos públicos, 
passaram do status de patrimônio his-
tórico comum ao de capital econômi-
co possuído por algumas empresas. 
Para muitos pesquisadores e genealo-
gistas amadores, essa agregação re-
presenta um progresso: os motores de 
busca permitem navegar com grande 
eficiência em bases de dados imensas. 
Encontramos agora facilmente docu-
mentos sobre nossos ancestrais, quan-
do, há apenas alguns anos, tais pes-
quisas teriam demandado meses de 
trabalho em arquivos. 
No entanto, essa mudança de sta-
tus dos dados históricos nos leva tam-
bém a questionar sobre o futuro dos 
grandes sistemas de informação, ago-
ra submetidos à lógica capitalista. A 
“grande árvore da humanidade”, to-
mada por algumas empresas, não de-
fendida como patrimônio e não reco-
nhecida como um capital, ainda não é 
considerada um objeto político, mas já 
é um objeto do mercado econômico 
global.1 Aqueles que a possuem podem 
vender seu acesso ao maior pagador, 
incentivado por uma fonte de infor-
mações sem precedentes. Os clientes 
da 23andMe descobriram, assim, que 
a empresa tinha revendido seus dados 
a mais de uma dezena de laboratórios 
farmacêuticos...
NOVAS DINÂMICAS DO CAPITALISMO
A área da genealogia não é o único 
setor atingido. Diversas coleções foto-
gráficas inicialmente constituídas por 
historiadores da arte ou institutos de 
pesquisa foram, da mesma forma, rea-
grupados em bases de dados iconográ-
ficos com caráter comercial que, se-
gundo a lógica do mercado, foram 
progressivamente agregadas para se-
rem hoje administradas por um pu-
nhado de agentes. O arquivo de Otto 
Bettmann, fundado em 1936 sobre a 
base de 25 mil imagens que ele mesmo 
tinha produzido como conservador de 
museu, ilustra essas dinâmicas. A co-
leção foi comprada pela Corbis, em-
presa de Bill Gates, para criar um capi-
tal iconográfico de 100 milhões de 
imagens, e tem por ambição cobrir a 
integralidade da existência humana, 
protegida também nos porões de uma 
montanha, desta vez em Boyers, na 
Pensilvânia. A empresa acabou de ser 
comprada pelo Visual China Group, 
que garante, com a Getty Images, a 
gestão comercial desse tesouro. 
Esses exemplos genealógicos e ico-
nográficos são apenas casos particula-
res de um fenômeno mais amplo: o ca-
pitalismo patrimonial. Os documentos 
dos arquivos históricos se transfor-
mam em capital digital com alto valor 
integrativo, enquanto os dados patri-
moniais constituem recursos limita-
dos. Por essa razão é preciso imaginar 
os riscos dos controles monopolísticos 
em matéria de conservação, de política 
de acesso e de reutilização. 
Diante dessas novas dinâmicas do 
capitalismo global, a própria noção de 
um patrimônio como bem comum 
universal deve ser reinventada. As 
grandes bases de dados do passado 
não coincidem mais hoje com os inte-
resses culturais de um só país ou de 
uma só comunidade. Por suas cober-
turas espaço-temporais, elas adquiri-
ram uma dimensão mundial e por es-
sa razão devem ser pensadas como 
um recurso crítico para preparar nos-
so futuro. 
*Frédéric Kaplan e Isabella di Lenardo 
são membros do Laboratório de Humanida-
des Digitais, da Escola Politécnica Federal de 
Lausanne, na Suíça.
1 Ler o dossiê “À qui appartient votre ADN?” [A 
quem pertence seu DNA?], Le Monde Diplomati-
que, jun. 2008.
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10 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018
E
m 24 de outubro de 1995, o Con-
gresso norte-americano adotou 
por ampla maioria um texto que 
determinava a transferência da 
embaixada dos Estados Unidos em Is-
rael de Tel Aviv para Jerusalém até, o 
mais tardar, 31 de maio de 1999. Em-
bora essa transferência fosse uma de 
suas promessas eleitorais durante a 
campanha de 1992, o presidente Bill 
Clinton recusou-se a assinar o “Ato da 
Embaixada de Jerusalém”, apesar de 
sua entrada em vigor em 8 de novembro 
de 1995. Os sucessores de Clinton, Geor-
ge W. Bush e Barack Obama, fizeram o 
mesmo, achando também que os Esta-
dos Unidos deveriam aguardar a regu-
lamentaçãodo conflito israelo-palesti-
no e atender ao consenso internacional 
sobre o estatuto de Jerusalém.
Para evitar que essa lei entrasse em 
vigor, os presidentes norte-america-
nos assinavam sua suspensão provisó-
ria de semestre em semestre, tal como 
fez Donald Trump em junho de 2017. 
Decidindo, em 6 de dezembro último, 
reconhecer a cidade como capital de 
Israel, o novo presidente pôs termo a 
essa abordagem ambígua. Sobretudo, 
ela contraria a Resolução n. 476 do 
Conselho de Segurança das Nações 
Unidas, a qual, em 30 de junho de 
1980, declarou nulas e sem efeito todas 
as medidas adotadas por Israel que 
“modificam o caráter geográfico, de-
mográfico e histórico da Cidade San-
ta”. Um mês depois, o Knesset (Parla-
mento israelense) votou uma “lei 
fundamental” declarando a cidade, 
“inteira e unificada, capital de Israel”. 
O Conselho de Segurança reagiu no 20 
de agosto seguinte, votando1 a Resolu-
ção n. 478, que pedia aos Estados-
-membros a retirada de suas missões 
diplomáticas de Jerusalém. Depois 
disso, com raríssimas exceções – a 
Costa Rica e El Salvador conservaram 
ali uma embaixada até o início dos 
anos 2000 –, Jerusalém só acolheu al-
guns consulados: as embaixadas per-
maneceram em Tel Aviv.
Em Israel, a iniciativa de Donald 
Trump foi recebida com alegria pelo 
público2 e com euforia pelo poder. Pou-
cos comentaristas perceberam que a 
Casa Branca evita resolver a questão da 
soberania plena e exclusiva de Israel 
sobre Jerusalém ao deixar claro que 
seus limites concretos deverão ser defi-
UM RECONHECIMENTO ILEGAL
Ao quebrar o consenso internacional em torno do estatuto de Jerusalém, cidade santa para judeus, cristãos
e muçulmanos, o presidente Donald Trump conduziu seu país ao isolamento. Uma ampla maioria da Assembleia Geral 
da ONU criticou a decisão que coloca um obstáculo à paz. No terreno, porém, a política do fato consumado continua
POR CHARLES ENDERLIN*
Jerusalém, o erro fundamental
nidos no quadro das negociações sobre 
o estatuto final da cidade. Acrescente-
-se a isso que, nos termos de sua edifi-
cação e da compra do terreno onde 
possa ser construída, a Embaixada dos 
Estados Unidos não será transferida 
tão cedo para Jerusalém. Em diversas 
ocasiões, o secretário de Estado norte-
-americano, Rex Tillerson, declarou 
que essa transferência não ocorrerá 
antes de dois ou três anos. Isto é, após o 
fim do mandato de Trump...
Para a Autoridade Palestina, po-
rém, trata-se de uma ruptura da legiti-
midade internacional sobre a qual ela 
se apoia desde o início das conversa-
ções de paz. Trata-se também de um 
novo fracasso da estratégia da Organi-
zação para a Libertação da Palestina 
(OLP) diante de Israel – fracasso cujas 
causas são múltiplas. Alguns o remon-
tam ao começo do processo de Oslo. 
Em 29 de julho de 1993, no auge das 
negociações secretas em Halversbole, 
na Noruega, Yoel Singer, consultor ju-
rídico israelense, escrevia em seu rela-
tório ao primeiro-ministro Yitzhak 
Rabin e ao ministro das Relações Exte-
riores, Shimon Peres, em Jerusalém: “A 
OLP pretende rejeitar a transferência 
dos poderes civis até a retirada de 
Tsahal de Gaza e Jericó. Explicaram-
-nos que esses poderes devem ser 
transferidos à autoridade da OLP-Tú-
nis, quando de sua chegada a Gaza, e 
não a palestinos do interior”.3 Na épo-
ca, a Autoridade Palestina estava em 
Túnis e queria se encarregar das nego-
ciações, limitando a influência de per-
sonalidades políticas que viviam nos 
territórios. Como consequência dessa 
rivalidade, a ausência, na equipe de 
negociadores, de dirigentes do interior 
(que conheciam melhor a situação lo-
cal) se fez sentir desde o início das 
conversações.
ASSIMETRIA INTRÍNSECA
Quando se discutiu a autonomia de 
Gaza e Jericó, em meados de outubro 
de 1993, no Egito (em Taba, ao sul do 
Sinai), pudemos constatar a frustra-
ção de Khalil Tufakji, o cartógrafo pa-
lestino de Jerusalém Oriental, que não 
teve autorização para entrar na sala de 
conferência. Os dirigentes vindos de 
Túnis cometiam erro após erro, enga-
nando-se sobre o traçado do limite 
territorial de Jericó... Valia a pena ob-
servar a diferença de logística das 
equipes israelense e palestina. A pri-
meira dispunha de notebooks de últi-
ma geração e de pilhas de CDs com si-
mulações preparadas por juristas do 
mais alto nível. A outra tomava notas 
em blocos de papel. Só mais tarde a 
OLP recorreria a juristas internacio-
nais de maior gabarito profissional. Os 
palestinos não conseguiram quebrar 
essa assimetria intrínseca, durante as 
negociações, entre uma organização 
de libertação e um Estado.
A equipe de Faisal al-Husseini 
(1940-2001), o chefe que gozava de 
muita popularidade entre os palesti-
nos do interior, não deixou de advertir 
contra a multiplicação das colônias is-
raelenses nos territórios ocupados. 
Ainda assim, não há em nenhum dos 
acordos assinados pela OLP uma cláu-
sula sequer que estipule expressamen-
te o fim da colonização, no entanto 
considerada ilegítima à luz do direito 
internacional e das numerosas resolu-
ções do Conselho de Segurança da 
ONU, das quais a última (n. 2.334) data 
de dezembro de 2016.
Os palestinos supõem que dois tex-
tos assinados com Israel proíbem a co-
lonização. A declaração de princípios 
de setembro de 1993 estipula no artigo 
IV que “as duas partes consideram a 
Cisjordânia e a Faixa de Gaza uma uni-
dade territorial única, cuja integridade 
será preservada durante o período de 
transição”. O Acordo Provisório sobre a 
Autonomia (às vezes chamado de Oslo 
2), de setembro de 1995 (artigo 31-7), 
reza em seguida: “Nenhuma das duas 
partes tomará a iniciativa ou adotará 
medidas para modificar o estatuto da 
Cisjordânia e da Faixa de Gaza na ex-
pectativa dos resultados das negocia-
ções sobre o estatuto permanente”.
Todos os governos israelenses rejei-
taram esses argumentos palestinos. 
Em 1996, membros do círculo do líder 
da OLP, Yasser Arafat, nos respondiam 
a esse respeito: “Pouco importa. De 
qualquer maneira, teremos nosso Es-
tado em 1999 e as colônias não estarão 
mais lá!”. Em maio de 2001, fizemos es-
ta pergunta ao presidente da Autorida-
de Palestina: “O número de colonos na 
Cisjordânia aumenta mês a mês... O 
que vocês acham disso?”. Sua resposta 
foi lapidar: “Eles irão embora! Sim, 
irão embora!”.
Arafat pensava poder regular a 
questão com uma transigência: uma 
troca de território entre Israel e a Pa-
lestina para permitir a instalação de 
colonos do centro da Cisjordânia em 
assentamentos situados na linha ver-
de, a fronteira surgida do armistício is-
raelo-jordaniano de 3 de abril de 1949. 
Após o fracasso das últimas negocia-
ções de Taba, em janeiro de 2001, as 
duas partes entregaram a Miguel Mo-
ratinos, o emissário europeu, uma lis-
ta de seus acordos e desacordos:4 “A 
Manifestação em Istambul contra a decisão de Trump de reconhecer Jerusalém como 
capital de Israel
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parte israelense declarou não precisar 
manter assentamentos no Vale do Jor-
dão por motivos de segurança, o que 
se reflete nos mapas por ela apresenta-
dos. Esses mapas se baseavam num 
conceito demográfico de assentamen-
tos que incorporava 80% dos colonos. 
A parte israelense traçou um mapa 
que representava a anexação de 6% 
dos territórios palestinos. [...] O mapa 
palestino previa a anexação, por Israel, 
de 3,1% da Cisjordânia, e isso no qua-
dro de uma troca de territórios”. Dife-
rença de 2,9%, apenas...
Com relação a Jerusalém, porém, a 
dificuldade não foi superada. As partes 
reconheciam ter concluído acordos 
parciais a propósito dos novos bairros 
israelenses da cidade oriental, com os 
palestinos se dizendo prontos a aceitar 
a soberania israelense sobre o distrito 
judaico da Cidade Velha, uma parte do 
subúrbio armênioe o muro ocidental 
(ou Muro das Lamentações), cujo com-
primento devia ser delimitado. Mas foi 
impossível chegar a bom termo quanto 
à Esplanada das Mesquitas, ou Haram 
al-Sharif (“O Nobre Santuário”), lugar 
santo para os muçulmanos porque ali 
estão a Cúpula da Rocha e a Mesquita 
Al-Aqsa (de onde o profeta Maomé te-
ria empreendido sua viagem noturna 
para o céu). Os judeus, porém, conside-
ram aquele o sítio onde se erguia o 
Templo de Jerusalém, o local mais sa-
grado do judaísmo.
A LEI DA MAIORIA
Num dia de março de 2002, tarde 
da noite, após uma longa conversa 
com Yasser Arafat, um assessor do pre-
sidente palestino nos confiou, discre-
tamente e pedindo-nos segredo: “Você 
sabe... O sonho de Abu Amar [nome de 
guerra de Arafat] é proclamar a inde-
pendência da Palestina no Haram al-
-Sharif. Ele dirá: ‘Não há motivo algum 
para que um palestino decida voltar a 
Israel e se torne israelense. Os palesti-
nos virão conosco a fim de construir 
[nosso] Estado!’”. Em suma, Jerusalém 
Oriental como capital em troca da re-
núncia ao direito de retorno dos refu-
giados à sua região de origem.
Já em 10 de dezembro de 2000, após 
uma rodada de negociações secretas 
no hotel David Intercontinental, em Tel 
Aviv, Yasser Abed Rabbo, o negociador 
palestino, nos revelava diante da câ-
mera: “Agora, acho que eles querem 
mesmo chegar a um acordo, talvez por 
medo de uma vitória da direita nas 
próximas eleições. Devemos concluí-lo 
daqui a duas ou três semanas. Pela pri-
meira vez, os israelenses aceitaram o 
princípio da soberania palestina sobre 
o Haram al-Sharif”. À tarde, Gilead 
Sher, principal negociador do primei-
ro-ministro trabalhista Ehud Barak, 
punha as coisas em seu devido lugar: 
“Não sei como os palestinos puderam 
crer que estivéssemos prontos a renun-
ciar à soberania sobre o Monte do Tem-
plo”. Shlomo Ben-Ami, ministro das 
Relações Exteriores israelense, não es-
tava autorizado a fazer essa concessão 
fundamental e, ao longo de todas as 
negociações seguintes, os palestinos 
esperaram – em vão – que ela fosse re-
petida pela delegação israelense.5
A reunião de Camp David, em ju-
lho de 2000, destinada a promover um 
acordo de paz definitivo entre is-
raelenses e palestinos, havia fracassa-
do na questão do lugar santo. Para o 
governo israelense, estava fora de 
questão aceitar a soberania palestina 
sobre a Esplanada das Mesquitas. 
Ehud Barak fora categórico: “Não co-
nheço um chefe de governo que aceite 
assinar a transferência da soberania 
sobre o Primeiro e o Segundo Templo 
[a Esplanada das Mesquitas], que é a 
base do sionismo. [...] A soberania pa-
lestina sobre a Cidade Velha seria tão 
dura [de suportar] quanto um luto, 
mas, se não nos separarmos dos pales-
tinos, se não pusermos fim ao conflito, 
mergulharemos na tragédia”.6
Em agosto de 2003, Yasser Arafat 
autorizou vários de seus principais 
consultores, liderados por Yasser 
Abed Rabbo, a negociar com uma de-
legação da oposição de esquerda is-
raelense presidida por Yossi Beilin e 
Amnon Lipkin Shahak, ex-chefe do 
Estado-Maior. Chegaram a um acor-
do em dezembro do mesmo ano. 
Chamado “Iniciativa de Genebra”, 
esse acordo baseou-se no princípio 
do trade off (permuta), recusado por 
Israel. Os palestinos renunciariam ao 
direito de voltar e receberiam em tro-
ca a soberania sobre o Haram al-Sha-
rif/Monte do Templo. Ariel Sharon, o 
primeiro-ministro, chamou de “trai-
dores” os signatários israelenses, en-
quanto Arafat, de seu lado, felicitou 
os negociadores de um texto sem ne-
nhum alcance prático.
Eleito chefe da autoridade autôno-
ma da OLP após o desaparecimento 
de Arafat, em novembro de 2004, 
Mahmoud Abbas só pôde dar conta, 
bem ou mal, do status quo. Recuperou 
sua polícia e seus serviços de seguran-
ça, destruídos pelo esmagamento da 
Segunda Intifada, restabeleceu a 
coordenação securitária com o Exér-
cito e o Shin Beth (serviço de seguran-
ça interna israelense) e obteve alguns 
êxitos diplomáticos, entre os quais a 
admissão na Unesco como Estado 
(em 2011). No ano seguinte, a Assem-
bleia Geral da ONU concedia à Pales-
tina o estatuto de Estado observador, 
não membro.
No entanto, Israel mudou muito no 
curso dos anos. Mahmoud Abbas en-
frenta um dos governos mais direitistas 
da história do país, no qual os elemen-
tos religiosos e messiânicos dão o tom. 
No plano interno, o governo israelense, 
chefiado por Benjamin Netanyahu, 
considera a democracia a lei da maio-
ria, com proteções mínimas às mino-
rias. Pretende definir Israel como um 
Estado judaico e democrático – nessa 
ordem –, onde só os judeus teriam ple-
nos direitos. Em março de 2016, 79% 
dos judeus israelenses interrogados nu-
ma pesquisa eram favoráveis a “um tra-
tamento preferencial para os judeus”. 
Ou seja, uma forma de discriminação 
contra os não judeus.7 Portanto, a pers-
pectiva da solução dos dois Estados não 
passa de uma miragem.
A ocupação da Cisjordânia vai se 
eternizando, com os quase 400 mil is-
raelenses que habitam hoje as colô-
nias situadas em 60% do território, 
anexadas de fato – sem contar os 200 
mil residentes nos novos bairros ju-
daicos de Jerusalém. Compare-se es-
se número com os 151.200 israelenses 
que moravam nas colônias da Cisjor-
dânia e Gaza em 1996. A esquerda e 
as ONGs israelenses que ousam criti-
car e combater a ocupação são o tem-
po todo qualificadas, pelo poder, de 
antipatrióticas ou mesmo de traido-
ras. Leis são votadas para restringir 
suas atividades.8
Tudo isso leva Matti Steinberg, ex-
-analista principal do Shin Beth,9 a 
afirmar: “O status quo não é estável, 
mas evolui na direção que leva inexo-
Em 4 de julho de 1967, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou 
uma resolução (n. 2.253) que invalidava 
“as medidas tomadas por Israel a fim de 
modificar o estatuto da cidade de Jeru-
salém”. Reiterou essa posição em 14 de 
julho, com a Resolução n. 2.254. De seu 
lado, o Conselho de Segurança das Na-
ções Unidas se pronunciou várias vezes 
sobre esse tema. Em 21 de maio de 
1968, a Resolução n. 252 considerou 
que “todas as medidas e disposições 
legislativas ou administrativas tomadas 
por Israel, inclusive a desapropriação 
de terras e bens imobiliários, que ten-
dem a modificar o estatuto jurídico de 
Jerusalém são inválidas, não podendo 
alterar esse estatuto”. Essa posição foi 
repetida pelas resoluções n. 267 (3 jul. 
1969), 271 (15 set. 1969) e 298 (25 
set. 1971). Em 1º de março de 1989, a 
Resolução n. 465 considerou que “to-
das as medidas tomadas por Israel a 
fim de modificar o caráter físico, a com-
posição demográfica, a estrutura insti-
tucional ou o estatuto dos territórios 
palestinos e de outros territórios ára-
bes ocupados desde 1967, inclusive 
Jerusalém, ou partes destes, não têm 
nenhuma validade jurídica. A política e 
as práticas de Israel que consistem em 
instalar elementos de sua população e 
novos imigrantes nesses territórios 
constituem violação flagrante da Con-
venção de Genebra [12 ago. 1949], re-
lativa à proteção das pessoas civis em 
tempos de guerra”.
Em 30 de junho de 1980, o Conselho 
de Segurança reafirmou, na Resolução 
n. 476, “a necessidade imperiosa de pôr 
fim à ocupação prolongada dos territó-
rios árabes ocupados por Israel desde 
1967, inclusive Jerusalém”, e concluiu: 
“Todas as medidas que modificaram o 
caráter geográfico, demográfico e his-
tórico do estatuto da Cidade Santa de 
Jerusalém são nulas e sem efeito”. Em 
20 de agosto de 1980, a Resolução n. 
478 decidiu “não reconhecer a ‘lei fun-
damental’ e as outras ações de Israel 
que, em virtude dessa lei, procuram mo-
dificar o caráter e o estatuto de Jerusa-
lém; e pede [...] aos Estados que instala-
ram missões diplomáticas em Jerusalém 
que as retirem da Cidade Santa”.
Enfim, em 23 de dezembro de 2016, 
o Conselho de Segurança reafirmouque “a criação, por Israel, de colônias de 
povoamento nos territórios palestinos 
ocupados desde 1967, inclusive Jeru-
salém Oriental, não tem nenhuma base 
jurídica, constituindo uma violação fla-
grante do direito e um grande obstáculo 
à solução dos dois Estados, bem como 
à instauração de uma paz global, justa e 
duradoura”.
*Akram Belkaïd é jornalista.
1 Por catorze votos a favor e abstenção dos Estados 
Unidos.
2 Segundo uma pesquisa publicada em 14 de de-
zembro de 2017 pelo Jerusalem Post, 77% dos 
judeus israelenses interrogados consideravam a 
administração Trump pró-israelense. No primeiro 
ano da administração Obama, eram apenas 4%.
3 Charles Enderlin, Paix ou guerres [Paz ou guer-
ras], Fayard, Paris, 2004.
4 Charles Enderlin, Le Rêve brisé [O sonho destruí-
do], Fayard, Paris, 2002. Esse texto, redigido por 
Yossi Beilin, ministro israelense da Justiça, e Abu 
Alla, principal negociador palestino, foi rejeitado 
por Gilead Sher, representante pessoal do primei-
ro-ministro Ehud Barak, do qual era também chefe 
de gabinete.
5 Ibidem.
6 Ibidem.
7 Aluf Benn, “The End of the Old Israel” [O fim da 
velha Israel], Foreign Affairs, jul. 2016.
8 Charles Enderlin, “Em Israel, a hora da inquisição”, 
Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2016.
9 Matti Steinberg lecionou nas universidades de 
Princeton, Heidelberg e Hebraica de Jerusalém.
10 Entrevista ao autor, Jerusalém, 12 dez. 2017.
SOB A ÓTICA DO DIREITO INTERNACIONAL
Por Akram Belkaïd*
ravelmente as partes para as areias 
movediças de uma realidade binacio-
nal onde Israel, dominador, tentará 
impor sua vontade aos palestinos api-
nhados em enclaves territoriais”.10 
*Charles Enderlin é jornalista e autor, entre 
outras obras, de Au nom du temple. Israël et 
l’irrésistible ascension du messianisme juif 
(1967-2013) [Em nome do Templo. Israel e a 
irresistível ascensão do messianismo judaico 
(1967-2013)], Seuil, Paris, 2013.
12 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018
O FIM DO SEGUNDO CONSENSO DIPLOMÁTICO NORTE-AMERICANO
Qual é a inspiração da 
política externa de Trump?
Há um ano a ascensão de Donald Trump ao poder modificava a posição dos Estados Unidos em variados assuntos: 
acordos comerciais, clima, confronto com a Coreia do Norte e com o Irã, alinhamento incondicional a Israel. Porém, 
a ruptura comporta diversos elementos de continuidade em relação às escolas históricas da diplomacia norte-americana
POR OLIVIER ZAJEK*
N
o dia 6 de novembro de 2017, 
em uma nota virulenta do New 
York Times intitulada “Aniver-
sário do apocalipse”, a edito-
rialista Michelle Goldberg evocou com 
intensidade o primeiro ano de admi-
nistração de Donald Trump. Um “pe-
sadelo”, ataca ela, durante o qual “o 
impensável se tornou cotidiano”.1 A 
julgar pela quantidade de reprovações 
expressas por especialistas e formado-
res de opinião do eixo BosNyWash 
(Boston, Nova York, Washington), Gol-
dberg não parece ser a única a experi-
mentar um sentimento de expropria-
ção quanto à evolução pela qual passa 
os Estados Unidos depois das investi-
das do 45º presidente.
O descompasso entre a adminis-
tração atual e as elites tradicionais 
norte-americanas explode. A cena po-
lítica, eletrizada pelas declarações e 
caprichos de Trump, assim como pe-
las condenações de adversários cada 
vez mais exasperados, parece uma 
permanente rixa cultural, na qual 
conservadores, populistas e progres-
sistas, alimentados pelo ódio, não 
poupam golpes baixos, sob o olhar dos 
parceiros internacionais de Washing-
ton, assim como de seus concorrentes. 
Esse pandemônio se deve inteiramen-
te ao novo presidente? Talvez não. A 
deriva maniqueísta do debate norte-a-
mericano é na verdade anterior ao pre-
sidente Trump. Longe de ser a causa da 
extrema polarização atual, o inquilino 
da Casa Branca, contudo, encarna sua 
expressão mais visível.
UM AGLUTINADOR... CONTRA SI MESMO
Assim, não é na cena política inter-
na que se deve procurar a verdadeira 
ruptura trazida por essa abordagem ao 
mesmo tempo ardilosa, hesitante, 
brutal, obstinada, confusa e narcisista 
do “trumpismo”: as consequências se 
dão, antes, no campo das relações in-
ternacionais. Até agora, a prática ex-
terna norte-americana estava marca-
da por um relativo consenso em 
termos de princípios, valores e gran-
des orientações estratégicas. Zbigniew 
Brzezinski, ex-conselheiro da admi-
nistração de Jimmy Carter e um dos 
arquitetos do esquema de dominação 
do mundo “livre” antes e depois da 
Guerra Fria, explicava esse consenso e 
posicionava os Estados Unidos como 
autoridade soberana e interessada no 
mundo, porém benevolente: “Dotada 
de extraordinária onipresença mun-
dial, a América tem o direito de se be-
neficiar de um nível de segurança su-
perior a todos os outros países [...]. 
Esse papel terá mais chance de ser 
bem-sucedido e aceito se o resto do 
mundo admitir que a grande estraté-
gia da América visa instaurar uma co-
munidade mundial de interesses com-
partilhados”,2 defendia.
No entanto, Trump – para quem o 
mundo é um caos (a mess), e o homem, 
“o mais maldoso de todos os animais”3 
– não parece longe de pensar que Brze-
zinski, falecido no último 26 de maio, 
era, no fundo, o oráculo supervalori-
zado de uma época datada. A “nova or-
dem mundial” não seria a “ordem do 
novo mundo”? O presidente dos Esta-
dos Unidos não lamentaria muito se 
assim fosse, desde que algumas pro-
messas à sua base eleitoral fossem 
cumpridas, os Estados Unidos supe-
rassem seus concorrentes no plano 
militar e saísse vitorioso dos acordos 
bilaterais que viesse a firmar no futu-
ro. Trump não acredita, portanto, que 
o interesse norte-americano repouse 
em parcerias mutuamente benéficas 
na Ásia-Pacífico, Europa e Oriente Mé-
dio. De fato, anulou o Acordo Transpa-
cífico; desmantelou o Tratado Norte-
-Americano de Livre Comércio (Nafta); 
questionou o acordo de livre-comércio 
com a Coreia; e interrogou-se – retori-
camente – sobre a utilidade da Organi-
zação do Tratado do Atlântico Norte 
(Otan), denunciando o comportamen-
to de “passageiro clandestino” da 
maior parte de seus tributários euro-
peus, em primeiro lugar a Alemanha.
Abalados por esse incessante turbi-
lhão de questionamentos sistemáticos, 
os pilares de apoio da “grande estraté-
gia” gestada a partir das acomodações 
de forças pós-Segunda Guerra Mun-
dial parecem – à primeira vista – vaci-
lar. Os profissionais da diplomacia 
norte-americana assistem a essas per-
turbações sem poder reagir. Dois ter-
ços dos postos de trabalho do Depar-
tamento de Estado não foram 
preenchidos pela administração, pois 
o presidente os julga “totalmente inú-
teis”.4 A esse desdém, os especialistas 
em política internacional opõem seu 
cordial desprezo, declarando que o 
presidente não tem visão, projeto di-
retor ou estratégia. Desse ponto de 
vista, Trump dá mostras de suas su-
bestimadas capacidades aglutinado-
ras... contra si mesmo: seus apoiado-
res estão sendo recrutados tanto – algo 
chocante – pelos institucionalistas li-
berais do Partido Democrata quanto 
pelos republicanos herdeiros do neo-
conservadorismo da era Bush. “O ver-
dadeiro problema com os planos de 
política internacional de Trump? É 
que ele não tem nenhum”, preocupa-
-se o liberal David Ignatius no Washin-
gton Post.5 Será que Trump pretende 
levar os Estados Unidos para certo 
egoísmo diplomático, indigno da mis-
são moral do país? Ou está apenas na-
vegando sem compasso ou bússola, 
confiando nos instintos?
O primeiro problema dos comenta-
ristas atuais da política externa norte-
-americana é supor uma estabilidade 
que estaria em risco com a atual admi-
nistração de Trump, como no caso de 
Robert Zoellick, ex-presidente do Ban-
co Mundial, secretário de Estado ad-
junto e diretor-geral da Goldman Sa-
chs. “A política externa de Trump

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