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9 771981 752004 00126 2 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018 NOVA GUERRA DOS ESTADOS UNIDOS? POR SERGE HALIMI* O alvo iraniano E m 5 de fevereiro de 2003, o secre- tário de Estado norte-america- no, Colin Powell, mostrou ao Conselho de Segurança das Na- ções Unidas um frasco que conteria an- traz e comentou fotos de satélite dos lo- cais secretos onde se fabricariam armas químicas. Essa encenação – admitida posteriormente por seu autor – serviria em seguida de rampa de lançamento publicitário para a Guerra do Iraque. Em 11 de dezembro de 2017, a embaixa- dora norte-americana junto às Nações Unidas, Nikki Haley, postou-se diante dos fragmentos enormes de um míssil pretensamente iraniano que não atin- gira o alvo. Declarou que o míssil havia sido disparado do Iêmen contra um ae- roporto civil saudita, “um país do G20”. “Com risco de matar centenas de civis inocentes [...]. Apenas imaginem que seu alvo fosse o aeroporto de Washing- ton ou Nova York. Ou de Paris, Londres, Berlim.” O tamanho da arma lhe per- mitiria chegar tão longe? Pouco impor- ta: mais uma vez, a questão era fabricar o medo para justificar a guerra. Catorze anos depois de destruir o Iraque, o governo norte-americano es- colhe o Irã como alvo. Sua falta de imaginação seria diver- tida caso o assunto se prestasse à fan- tasia. Em 2003, Powell havia denuncia- do igualmente a existência de laços “sinistros” entre Saddam Hussein e a Al-Qaeda. Em 1º de novembro último, a mesma conversa: a CIA dava a públi- co um maço de documentos encontra- dos no Paquistão após o assassinato de Osama bin Laden que provariam a existência de laços desnaturados entre alguns dos herdeiros (sunitas) deste último e o poder (xiita) de Teerã. So- mos levados a acreditar que Washing- ton já se esqueceu do apoio, bem real dessa vez, dado a Bin Laden quando ele lutava no Afeganistão contra os sovié- ticos. Ou da venda ilegal de armas ao Irã por Ronald Reagan, que esperava assim financiar seus amigos da extre- ma direita nicaraguense. Na época, ninguém se valeu desses pretextos para declarar guerra aos Es- tados Unidos... Em contrapartida, atualmente a ânsia de acabar com o Irã aproxima a monarquia saudita, o go- verno israelense e diversas autoridades norte-americanas. O influente senador republicano Tim Cotton, saudado co- mo o próximo diretor da CIA, não vê a hora de entrar em ação. Acha que todos os desafetos diplomáticos de Washing- ton (Irã, Coreia do Norte, China, Rús- sia, Síria, Ucrânia) exigem uma “opção militar”. E o perigo representado pelo Irã (maior, segundo ele, que o da Coreia do Norte) justificaria “uma campanha naval e aérea de bombardeios contra sua infraestrutura nuclear”.1 O presidente Barack Obama ob- servava, há dois anos, que o orça- mento militar iraniano não ia além de um oitavo do orçamento dos alia- dos regionais dos Estados Unidos e de um quadragésimo do orçamento do Pentágono. Ainda assim, rufam bem alto os tambores contra uma pretensa ameaça iraniana. Nesse cli- ma de guerra psicológica, o ministro francês das Relações Exteriores não tinha coisa mais inteligente a fazer, em 18 de dezembro último, do que denunciar, em Washington, a vonta- de de “hegemonia” do Irã? *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 “A Foreign Policy for ‘Jacksonian America’” [Uma política externa para a “América jacksoniana”], The Wall Street Journal, 9-10 dez. 2017. RUBENS NAVES SANTOS JR ADVOGADOS, 40 ANOS: UMA HISTÓRIA DE GRANDES CAUSAS. www.rubensnaves.com.br 3 EDITORIAL POR SILVIO CACCIA BAVA Our Revolution © C la u d iu s A o final da campanha presiden- cial de Bernie Sanders, nos Es- tados Unidos, em 2016, ficou a pergunta: o que fazer com mi- lhões de pessoas que se engajaram em sua campanha e abraçaram suas pro- postas de transformação social que ti- nham como prioridade enfrentar o rentismo e melhorar a qualidade de vi- da dos norte-americanos, especial- mente dos mais pobres? A resposta foi a criação de um mo- vimento político, independente, orga- nizado pela sociedade civil, que apos- ta na mudança progressiva do sistema político e assume uma agenda de defe- sa de direitos e da democracia. Esse movimento se chama Our Revolution (Nossa Revolução) e grande parte de seus integrantes são jovens que se en- tusiasmaram com a campanha de Sanders à presidência. Ao final de um ano de existência, o Our Revolution tem 380 grupos de ba- se, organizados em 49 estados dos Es- tados Unidos, mobiliza milhares de voluntários, ajudou a eleger dezenas de candidatos, desde diretores de escolas e vereadores até deputados estaduais e federais, pretende disputar cargos pú- blicos no âmbito do Executivo, além da direção do Partido Democrata do nível mais local ao nível nacional. E o movi- mento político declara estar apenas começando a atuar na cena pública. O Our Revolution pretende trans- formar a política norte-americana para que os sistemas políticos e eco- nômicos respondam às necessidades das famílias trabalhadoras. São três objetivos interligados: revitalizar a democracia norte-americana, capa- citar líderes progressistas e elevar a consciência política de milhões de pessoas que se envolveram na cam- panha presidencial do senador Ber- nie Sanders para apoiar causas pro- gressistas. O Our Revolution vai dar às pessoas uma voz no sistema políti- co ativando apoiadores e engajando milhões de norte-americanos no pro- cesso político. Sua avaliação é de que a mídia cor- porativa falhou em grande parte ao cobrir as questões críticas para o futu- ro do país: dos efeitos devastadores das alterações climáticas ao declínio da classe média. O Our Revolution vai educar o público sobre as questões mais prementes, confrontando a na- ção com as soluções que estão sendo oferecidas. Esse esforço garantirá que novas vozes serão ouvidas e se torna- rão uma parte importante do diálogo municipal, estadual e nacional. Ao longo de seu primeiro ano de existência, o Our Revolution recebeu doações em dinheiro de cerca de 230 mil norte-americanos, com uma mé- dia de US$ 22 por doação. Arrecadou assim mais de US$ 5 milhões, exclu- sivamente de pessoas físicas, única forma de financiamento que admite. Todos aqueles que doarem mais de US$ 250 terão seu nome identificado no site do movimento, e o limite para doações individuais é de US$ 5 mil, a menos que doações maiores específi- cas sejam aprovadas pela direção do movimento. Segundo o Our Revolution, a ques- tão da desigualdade de renda e riqueza é o grande problema moral e a grande questão econômica e política do nosso tempo. Sua avaliação é de que há algo profundamente errado quando uma única família norte-americana possui mais riqueza do que os 130 milhões de norte-americanos mais pobres. A rea- lidade é que, nos últimos quarenta anos, Wall Street e a classe dos bilioná- rios têm manipulado as regras para concentrar a riqueza e a renda nas mãos das pessoas mais ricas e mais poderosas do país. O Our Revolution está enviando uma mensagem à classe dos bilioná- rios: “Vocês não podem ter tudo. Não podem ter enormes isenções de im- postos, enquanto crianças neste país passam fome. Não podem continuar enviando empregos para a China, en- quanto milhões de norte-americanos estão à procura de trabalho. Não po- dem esconder seus lucros nas Ilhas Cayman e em outros paraísos fiscais, enquanto existem enormes necessida- des não satisfeitas em todos os cantos desta nação. Sua ganância tem de aca- bar. Vocês não podem aproveitar todos os benefícios da América e se recusara aceitar suas responsabilidades como norte-americanos”. Entre suas principais propostas es- tá dobrar o valor do salário mínimo; igualar os salários de homens e mulhe- res para as mesmas funções; investir maciçamente na construção de rodo- vias, portos, estradas de ferro, aeropor- tos, sistemas públicos de transportes, sistemas de saneamento etc.; assegu- rar educação e saúde pública gratuita e de qualidade em todos os níveis, e cre- ches para todas as crianças em idade pré-escolar; fortalecer os sindicatos de trabalhadores; obrigar a divisão dos grandes conglomerados financeiros para que possam se submeter a regula- ções democráticas. O Our Revolution surge do desen- canto com o sistema político e com os partidos Democrata e Republicano, ambos controlados pelas elites. É um movimento político de empodera- mento da cidadã e do cidadão comum, de radicalização da democracia, de re- fundação do sistema político. Talvez tenhamos alguma coisa a aprender com essa experiência, que ainda vai dar muitos outros frutos! 4 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018 A REVOLUÇÃO SERÁ FEMINISTA 2017, o ano das bruxas em ação © O dy r Se há um Brasil que caminha célere para as trevas, é ali mesmo onde há cinzas que os movimentos feministas atuam, resistem, existem. É nesse sentido que se pode tomar a política feminista como a mais forte manifestação ao contra-ataque conservador que tem varrido a política brasileira POR CARLA RODRIGUES* E ra o dia seguinte ao 8 de Março de 2017 e à greve geral convoca- da pelas mulheres contra o atual governo, cuja crise institucional se arrasta desde a retirada da presi- denta Dilma Rousseff da Presidência da República. Caminhava por uma calçada estreita no centro do Rio de Ja- neiro quando cruzaram comigo dois homens. De um deles ouvi, enquanto passava por mim: “Mas essas mulhe- res têm de sair da rua, essas mulheres estão fazendo muito barulho”. A ad- versativa com que a frase parecia co- meçar indicava uma contrariedade, quase um desgosto. Agora, que aos ho- mens que usurparam o poder parecia haver alguma chance de fazer as tais reformas exigidas pela abstrata enti- dade chamada mercado, enfim havia aparecido no radar político daquele executivo a incômoda categoria “mu- lheres que protestam”. De debacle em debacle, o governo Temer chega a 2018 – que legalmente deve ser seu último ano – sem ter co- meçado, em que pesem os sucessivos golpes que se seguiram, seja na uni- versidade, nas leis trabalhistas, na po- lítica de saúde mental, nas artes e na cultura. Mas – e repito a adversativa como provocação – a ação das mulhe- res na política nunca esteve tão em evidência. Se fosse para escolher uma única imagem para representar 2017, apontaria para a que mais parece nos ofender: uma bruxa sendo queimada, uma enorme boneca de pano mimeti- zando a filósofa feminista Judith Butler no tribunal da Inquisição. Se há um Brasil que caminha célere para as trevas, é ali mesmo onde há cinzas que, a cada vez, os movimentos feministas atuam, resistem, existem. É nesse sentido que se pode tomar a polí- tica feminista como a mais forte mani- festação ao contra-ataque conservador que tem varrido a política brasileira. Em grande medida, porque as mulhe- res são o alvo mais frágil ao ataque, mas ali mesmo onde seria a nossa maior fraqueza estamos também na ponta mais forte de resistência. Para isso, é preciso pensar a política como um jogo de forças ativas e reativas, uma relação dialética entre avanços e recuos, em que cada passo adiante ameaça e, portanto, provoca novas violências. Nesse ir e vir, no fluxo e no refluxo das forças, justifica-se a conta- bilidade dos movimentos feministas em ondas.1 Há uma grande controvérsia sobre essa divisão. Embora a estratégia este- ja estabelecida como forma de marcar os momentos de maior intensidade das lutas pela emancipação das mu- lheres, o fato é que, se tomarmos a on- da como uma metáfora, correremos sempre o risco de estar começando de novo, porque as ondas varrem do solo as marcas do passado. Haveria ainda 5 uma interpretação pior: “isso é onda”, forma jocosa de se referir à política fe- minista como aquilo que, por só inte- ressar às mulheres, não teria nenhu- ma importância no cenário de disputa de poder nacional e internacional. Mi- nha hipótese é oposta e parte do prin- cípio de que fazer política feminista tem sido, em todas essas ondas históri- cas, trazer ao debate público os temas mais candentes para a sociedade. E justamente por isso as forças conserva- doras insistem em nos dizer que “esta- mos fazendo muito barulho”, porque estamos afirmando que os problemas de gênero não são meras questões re- gionais, muito ao contrário, são o pon- to central a partir do qual se pode colo- car em pauta o interesse comum. A cada reivindicação dos feminis- mos, em geral empurrada para escan- teio como uma demanda específica, equivale uma pauta global, o que me permite defender que a luta contra a opressão das mulheres é a própria luta contra a opressão. Tomo em defesa da minha hipótese a expansão dos femi- nismos negros como o melhor exem- plo: a estrutura racista do Estado brasi- leiro é fundante na desigualdade entre pessoas brancas e pessoas negras, en- tão é fundamental denunciar, confron- tar e enfrentar o racismo presente nas relações sociais. Não é outra coisa o que as mulheres negras estão fazendo nas ruas, nas marchas nacionais, na Marcha do Orgulho Crespo, exibindo seus cabelos rebeldes aos processos de embranquecimento que são marca da violência histórica do Estado brasileiro contra o corpo das pessoas negras. O filósofo Michel Foucault afirma que o Estado só consegue garantir sua função de assassino se funcionar, “no modo do biopoder, pelo racismo”. O que ele definiu como biopoder é forma política de controle sobre os corpos, controle que, do meu ponto de vista, se dá preferencialmente sobre os corpos marcados pela subalternidade, ou, pa- ra falar como Michelle Perrot, sobre os excluídos da história: operários, mu- lheres e prisioneiros. Por isso, faz senti- do pensar que o corpo das mulheres é o alvo preferencial do biopoder, do cons- trangimento de suas ações e liberdade. Se é verdade que as mulheres são o pri- meiro alvo do biopoder, pode ser ver- dade também que os feminismos são a constituição histórica da resistência a esse controle estatal sobre os corpos. Nas quatro grandes ondas da história dos movimentos feministas, a liberda- de do corpo contra a opressão do Esta- do é centro da disputa. Foi assim na Revolução Francesa, quando as mulheres denunciaram que o corpo feminino estava excluído da concepção de universalidade; foi as- sim quando as sufragistas lutaram pa- ra ter seu corpo contado como eleitoras e, com isso, aprimoraram os sistemas de representação democrática; tem si- do assim desde a segunda metade do século XX, quando a segunda onda fe- minista se levantou contra a violência exercida sobre o corpo das mulheres e a terceira onda permitiu perceber que a violência é contra todo corpo que carregue a marca da feminilidade, so- bremarcada por raça, classe, religião, lugar de moradia e/ou nascimento, idade, sexualidade, idioma e uma infi- nidade de indicadores que reforçam as estratégias do biopoder e da violência. Para falar da quarta onda feminis- ta, retomo a primeira Marcha das Va- dias, realizada em 2011 no Canadá e em diversos outros países que imedia- tamente aderiram, inclusive o Brasil.2 Foi puxada por jovens estudantes ca- nadenses que, diante da reivindicação de atuação policial contra os estupros ocorridos em torno do campus da uni- versidade, ouviram do chefe de polí- cia: “Se não querem ser estupradas, não saiam na rua vestidascomo va- dias”. As mulheres se mobilizaram va- lendo-se da estratégia que o movimen- to queer já havia adotado: subverter o termo “vadia” de sua conotação nega- tiva para usá-lo de forma debochada contra a violência que ele pretende perpetrar. A participação do movi- mento de legalização da prostituição foi importante para reforçar a pauta da descriminalização da profissão, numa dinâmica muito própria dos feminis- mos brasileiros: a articulação entre as reivindicações globais e os itens do de- bate local. A resposta do policial de Toronto é apenas a face mais evidente da opres- são sobre o corpo da mulher, que deve ser mantido sob controle, enquanto o do homem pode e deve gozar do impe- rativo da liberdade absoluta. Contra essa forma estrutural de violência, manifesta em diferentes fenômenos, uma nova geração de mulheres come- çou a retomar as ruas, inúmeros cole- tivos de jovens feministas se organiza- ram, inclusive nas universidades e escolas públicas de ensino médio, co- mo tão bem mostra o documentário Primavera das mulheres, de Antonia Pellegrino.3 Era setembro de 2015 quando manifestações ocuparam ruas, praças e redes sociais para pedir, no grito de #ForaCunha, a queda do 1 Sobre isso, ver Magda Guadalupe Santos, “O fe- minismo na história: suas ondas e desafios episte- mológicos”. In: Maria de Lourdes Borges e Márcia Tiburi (orgs.), Machismos e feminismos, EdUFSC, Florianópolis, 2014. 2 A esse respeito, indico a leitura do trabalho de Car- la Gomes (PPGSA/UFRJ). 3 Disponível em: <https://globosatplay.globo.com/ gnt/v/6229352/>. presidente da Câmara que, naquele momento, além de autor do Projeto de Lei n. 5.069 – que volta a exigir boletim de ocorrência para o atendimento, na rede pública, das mulheres vítimas de estupro que desejem realizar o aborto legal –, era um dos mentores do golpe que viria a derrubar, poucos meses de- pois, a presidenta Dilma. O PL de Cunha era apenas um sinal de como os retrocessos na política apontavam para o corpo das mulheres em primeiro lugar. Em dezembro de 2017, foi a vez da PEC 181, cujo objetivo original era ampliar o direito à licença- -maternidade em casos de nascimento de bebês prematuros. Depois, foi transformada num projeto que visa à proibição do aborto em casos já autori- zados por lei, como estupro, anencefa- lia fetal e risco de morte para a mãe. Na contraofensiva, um grupo de organi- zações feministas organizou um ma- nifesto público no qual 270 mulheres, inclusive eu, declararam já ter realiza- do aborto e apoiaram a decisão da jo- vem Rebeca Mendes, cujo recurso ao STF pedindo autorização para inter- rupção de gravidez foi negado. Se a imagem de uma bruxa sendo queimada na porta do Sesc Pompeia é exemplar de um ano poderoso, vale evocar também a publicação de Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumula- ção primitiva, livro da feminista italia- na Silvia Federici que conta a história do capitalismo como uma história de guerra contra as mulheres e a história da resistência das mulheres nas Amé- ricas como as “principais inimigas do domínio colonial”. Não é por outra ra- zão que as teorias feministas no Brasil se colocam, há tempos, o problema da importação da bibliografia feminista e a importância de afirmar nossos sabe- res localizados, para falar como Don- na Haraway. O campo acadêmico feminista co- meçou a se constituir no Brasil no final do século XIX graças a uma dupla es- tratégia: a validação dos argumentos pela emancipação da mulher com ba- se na importação de pensadoras euro- peias – com destaque para o trabalho da educadora Nísia da Floresta, tradu- tora da inglesa Mary Woolstonecraft no Brasil – e a inclusão de pautas lo- cais, como o fim da proibição do ensi- no para mulheres. Essa disjuntiva per- manece estratégica até hoje. Receber a filósofa Judith Butler no Brasil foi uma oportunidade de dimensionar a im- portância que tem hoje o pensamento político feminista, ameaçador a ponto de mobilizar tantas forças reacioná- rias ao mesmo tempo. Nos anos 1980, a norte-americana Susan Faludi identificou os discursos conservadores que insistiam na tese de que as feministas já teriam conse- guido todas as conquistas de que pre- cisavam e, pior, estavam infelizes com o ponto aonde haviam chegado. Se- gundo eles, estava na hora de recuar. Dentro dos movimentos feministas, no entanto, a questão era oposta: co- mo ampliar as lutas? O sopro de vigor e resistência veio com a publicação, em 1989, de Gender Trouble [Problemas de gênero], livro que marca a entrada de Butler no campo da teoria feminista. Inspirada principalmente pelos traba- lhos das feministas Gayle Rubin e Mo- nique Wittig, Butler trava um debate com a filosofia existencialista de Simo- ne de Beauvoir a fim de interrogar o que ela chama de ligação natural entre sexo e gênero. Afinal, se não se nasce mulher, torna-se mulher, em que esta- ria fundamentada a ligação entre um corpo de fêmea e a construção de uma pessoa do gênero feminino? Nesse momento, a terceira onda fe- minista se dobrou sobre si mesma, se- guindo a proposta de Butler de que o feminismo deixasse de ser feito apenas em nome do sujeito mulher, e de sua provocação surgiram novos sujeitos e a oportunidade de ampliação dos femi- nismos para além dos direitos das mu- lheres, mais uma vez sobrepondo a luta contra a opressão das mulheres à luta contra toda forma de opressão. Univer- sal e particular ao mesmo tempo, para- doxal como provocação, agonística co- mo método. Foi mais ou menos assim que as mulheres voltaram a ser as bruxas da história, aquelas que não se calam diante das opressões e injustiças, as que são queimadas e mortas – seja co- mo metáfora, seja no alto índice de fe- minicídios no país – por denunciarem que, sem nem mesmo termos chegado a algo que pudéssemos chamar de Es- tado de bem-estar social, já estamos em furioso processo de desmonte do pouco que havíamos alcançado. *Carla Rodrigues é filósofa, professora de Fi- losofia (UFRJ) e pesquisadora (PPGF/Faperj) . A cada reivindicação dos feminismos, em geral empurrada para escanteio como uma demanda específica, equivale uma pauta global Sem nem mesmo termos chegado a algo que pudéssemos chamar de Estado de bem-estar social, já estamos em furioso processo de desmonte 6 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018 FEMINISMOS E DISPUTA POLÍTICA NO BRASIL A exclusão das mulheres é incontornável para compreender os limites da nossa democracia. Foi nesse contexto de exclusão que as mulheres atuaram na história recente do Brasil. Sem a análise dessa atuação, corremos o risco de não compreender alguns dos embates agudos na política brasileira hoje e indagar: “De onde surgiram essas mulheres?” POR FLÁVIA BIROLI* De onde surgiram essas mulheres? A política tem sido, historicamen- te, um espaço masculino. Basta um rápido olhar para as hierar- quias nos partidos políticos, o plenário dos legislativos nacionais, es- taduais e municipais ou para os gabi- netes onde estão instalados os inte- grantes do primeiro escalão nos governos para que se entenda o que isso significa. Não é de agora que é as- sim. Embora no Brasil as mulheres te- nham direito a voto desde 1932 e o exerçam em condições iguais às dos homens desde 1946, sua presença em cargos políticos tem sido restrita. A partir de meados do século XX, foi sendo difundido o entendimento de que há algo de errado quando um processo regido por regras apresenta- das como neutras em relação ao sexo resulta em assimetrias tão visíveis, eleição após eleição. No Brasil, a sub- -representação das mulheres na políti- ca passou gradualmente a ser tratada como um problema, no debate públi- co, a partir do processo de transição da ditadurade 1964 para o regime de- mocrático. Em 1997, foi aprovada a lei que reserva para elas 30% das vagas nas listas partidárias, nas eleições pa- ra a Câmara dos Deputados, as assem- bleias estaduais e as câmaras munici- pais. Embora tenha sido pouco efetiva, com ela mais alguns passos foram da- dos no reconhecimento público de que a sub-representação das mulheres é algo a ser superado. Ainda assim, a aposta dos partidos nas candidaturas femininas e os resul- tados das eleições permaneceram muito aquém do objetivo. O ambiente político institucional também não se tornou menos hostil para as mulheres que, apesar das barreiras, vencem elei- ções e ocupam cargos. A primeira mu- lher eleita para a Presidência da Repú- blica no país foi deposta, em 2016, em um processo marcado pela misoginia. O novo ocupante do posto, Michel Te- mer, nomearia, então, um ministério inteiramente formado por homens brancos. A repercussão a essa nomea- ção mostrou, mais uma vez, que a de- núncia do caráter masculino da políti- ca tinha sido incorporada ao debate público de modo significativo, mas que as barreiras persistiam. A exclusão das mulheres é incon- tornável para compreender os limites da nossa democracia, antes e depois de 2016. O que vou dizer talvez pareça paradoxal, mas foi nesse contexto de exclusão que as mulheres atuaram, sistematicamente, na história recente do Brasil. Sem a análise dessa atua- ção, corremos o risco de não com- preender alguns dos embates agudos na política brasileira hoje e indagar inocentemente: “De onde surgiram essas mulheres?”. Durante a ditadura de 1964, os fe- minismos se organizaram na descon- fiança em relação ao Estado, algo que se modificaria com a democratização, nos anos 1980. Conquistas significati- vas desse período expressam a institu- cionalização da agenda feminista, so- bretudo na saúde, com a criação, em 1983, do Programa de Assistência Inte- gral à Saúde da Mulher (Paism), e no combate à violência, com a criação das Delegacias Especializadas de Atendi- mento à Mulher (Deams), a partir de 1985. Esse foi também o ano de criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), na esteira da institu- cionalização, desde 1982, de conselhos similares nos estados e municípios. A atuação na Assembleia Consti- tuinte, que contava com apenas 26 mu- lheres eleitas (5% do total de parlamen- tares), resultou da articulação do CNDM com organizações de trabalha- doras rurais, trabalhadoras domésticas, centrais sindicais (CGT e CUT), asso- ciações profissionais, grupos feminis- tas e movimentos sociais de todo o país. A “Carta das mulheres aos constituin- tes” priorizava temáticas “gerais” e “es- pecíficas”, simultaneamente. A aborda- gem dos problemas das mulheres conjugava gênero, classe, raça e sexuali- dade na defesa da reforma agrária, de direitos trabalhistas, de direitos repro- dutivos e sexuais, de acesso universal à saúde e à seguridade. O pacto social expresso na Consti- tuição de 1988 sofreria uma série de re- veses, mas criaria também um novo patamar para as disputas políticas. Nos anos 1990, a incorporação de dire- trizes neoliberais do Consenso de Washington pelo governo brasileiro impôs recuos nos investimentos so- ciais e na regulação pública de setores importantes da economia. Ao mesmo tempo, fóruns internacionais de deba- tes com forte participação de diferen- tes setores da sociedade civil organiza- da e acordos multilaterais abriam a possibilidade de constranger mais di- retamente os Estados nacionais a reco- nhecer a diversidade entre as pessoas e promover o respeito à igual dignidade por meio de leis e de políticas. Novas compreensões dos direitos em disputa e dos grupos que demandavam reco- nhecimento como sujeitos políticos le- gítimos se estabeleceram. Foi esse o ambiente em que movimentos LGBT e feministas ampliaram seus recursos materiais e simbólicos para atuar nos espaços nacionais. Houve custos, ajus- tes em suas agendas, mas também houve ganhos de legitimidade. Foi também nos anos 1990 e no processo de mobilização na esfera in- ternacional que foi criada uma das © S u ry a ra 7 principais coalizões feministas de abrangência nacional, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), funda- da em 1994. Pouco depois, em 2000, se- ria fundada a Marcha Mundial de Mu- lheres, originada do movimento “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência”. Nos dois casos, o hori- zonte programático anunciado foi a democratização radical do Estado e o combate à agenda neoliberal e seus efeitos. Além disso, a larga presença de mulheres e organizações nos encon- tros do Fórum Social Mundial desde sua primeira edição, em 2001, anun- ciava uma participação intensa dos fe- minismos na construção de alternati- vas políticas na virada do século. Entendo que adentramos o século XX com novos pontos de inflexão na trajetória política dos feminismos. Elenco, abaixo, três razões para esse entendimento. A partir da chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo, em 2003, cresceu o diálogo com os movi- mentos feministas e a presença de suas representantes no Executivo federal. A Secretaria de Políticas para Mulheres, criada em 2003, correspondeu à am- pliação de recursos e potencial de ar- ticulação no âmbito estatal. A maior efetividade dos dispositivos para par- ticipação previstos desde a Constitui- ção de 1988 também teve seu papel. Houve, no período, quatro Conferên- cias Nacionais de Políticas para Mulhe- res (em 2004, 2007, 2011 e 2016), que reuniram milhares delas em Brasília. Ao mesmo tempo – e ainda é preci- so compreender as conexões entre as duas coisas, uma vez que essa não é uma realidade apenas nacional –, o fe- minismo ultrapassou os circuitos dos movimentos, organizações e encon- tros existentes até aquele momento. O campo feminista se ampliou e se tor- nou menos centralizado, com coleti- vos surgindo por todo o país e formas de mobilização facilitadas pela inter- net. Campanhas contra o assédio se- xual e contra o racismo com que se de- frontam as mulheres negras no Brasil, para utilizar dois exemplos, têm mi- grado das redes sociais para as pági- nas dos grandes jornais. Nas denún- cias feitas pelas mulheres, é evidente o recurso a uma linguagem proveniente das lutas e da crítica feminista que se acumulou nas décadas anteriores. Ao mesmo tempo, e esta é a terceira razão que elenco, o feminismo se tor- naria ainda mais diverso. Vem de lon- ge o diálogo com organizações de mu- lheres negras e lésbicas e a abordagem interseccional dos problemas das mu- lheres brasileiras. Desde pelo menos os anos 1970, documentos e jornais fe- ministas demonstravam preocupação com a realidade diversa e desigual das brancas e das negras, das que vivem em centros urbanos e em áreas rurais, das que se profissionalizavam e alcan- çavam salários acessíveis a uma par- cela restrita da população e das traba- lhadoras domésticas em que se apoiaram para que a divisão sexual do trabalho e o cuidado demandado pe- los filhos fossem atenuados. Mas os anos 2000 trouxeram mais vozes à ce- na. Algumas delas puderam ser ouvi- das nas ruas e nos documentos das Marchas das Margaridas (2000, 2003, 2007 e 2011), da Marcha Nacional das Mulheres Negras (2015), da Marcha das Vadias (2011 e 2012). Puderam ser ouvidas também nas manifestações em defesa do direito ao aborto ocorri- das por todo o Brasil em novembro de 2015, motivadas por um projeto de lei da Câmara dos Deputados que, se aprovado, comprometerá o atendi- mento de mulheres que sofreram estu- pro na rede pública de saúde, nas ma- nifestações contra o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e em defesa da democracia. É preciso registrar que essas infle-xões ocorreram ao mesmo tempo que os conflitos em torno do gênero se tor- navam mais agudos nas disputas polí- ticas. Ao menos desde 2014, com o iní- cio dos debates sobre o Plano Nacional de Educação, vem sendo gestada a ver- são brasileira da campanha interna- cional contra a agenda da igualdade de gênero e do respeito à diversidade se- xual. Embora tenha origem no Vatica- no ainda nos anos 1990, como reação ao avanço da agenda de gênero em en- contros internacionais como a IV Con- ferência Mundial sobre a Mulher da ONU, que aconteceu em Pequim, em 1995, ela chegou ao centro das dispu- tas políticas em diversos países latino- -americanos na segunda década do século XX. No Brasil, cresce com a on- da conservadora que investe contra o pacto social representado pela Consti- tuição de 1988 e contra os fundamen- tos da agenda de direitos humanos e sociais que balizou, desde então, as controvérsias e os eventuais avanços na construção de normas e políticas. Os feminismos se tornaram mais visíveis, as reações se tornaram mais abertas. O feminismo de Estado, que cresceu com a chegada do PT ao gover- no em 2003, pode ser lido por seus li- mites, mas também pelo que produziu nesse contexto. Houve alguma aceita- ção dos termos em que os governos pe- tistas se estabeleceram, é verdade. Mas houve também uma série de re- sultados. Os Planos Nacionais de Polí- ticas para Mulheres, produzidos nesse período, são documentos significati- vos. Incorporam os resultados das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres e demonstram a im- portância da estrutura organizacional adquirida com a Secretaria de Políti- cas para Mulheres. Graças a essa es- trutura, mulheres ligadas aos movi- mentos feministas contribuíram para a construção da legislação que igualou os direitos das trabalhadoras domésti- cas aos de outros trabalhadores (PEC das Domésticas, 72/2013, regulamen- tada em junho de 2015), para a crimi- nalização e combate à violência contra as mulheres (Lei Maria da Penha, 11.340, sancionada em 2006, e Lei do Feminicídio, 13.104, sancionada em março de 2015), para normas e políti- cas públicas com o objetivo de garan- tir direitos reprodutivos e direitos se- xuais (Normas Técnicas do Ministério da Saúde, editadas em 2005 e 2011), para a adoção de orientações educa- cionais e políticas de incentivo para uma socialização mais igualitária (Programa Brasil sem Homofobia, de 2004, e Programa Mulher e Ciência, de 2005). São alguns exemplos. Muitos deles poderiam também ser utilizados para discutir a dinâmica de avanços e retrocessos que se estabeleceu, com as exigências de recuos na agenda de gê- nero pelos grupos conservadores que formaram a base de apoio dos gover- nos petistas no período. O que vem sendo definido em algu- mas abordagens e análises políticas como uma política de “identidades” tem uma história e um alcance políti- co bem mais amplos. Os feminismos, assim como os movimentos LGBT, ne- gros e indígenas, contribuíram para politizar a política no período de cons- trução democrática. Esse é, em minha compreensão, o principal motivo para que se transformem em alvos neste momento. Agenda moral conservado- ra e projeto neoliberal convergem na promoção do fechamento da demo- cracia, atuando pela retirada de direi- tos fundamentais, mas também para a difusão de uma lógica que depende da despolitização e da reprivatização de diferentes dimensões da vida. Uma das maneiras de abordar a his- tória das democracias liberais é pensá- -la como um processo em que o acesso a direitos individuais se ampliou ao mesmo tempo que se definiram barrei- ras de novo tipo para o acesso de gru- pos, de temas e de interesses ao espaço político. A própria conformação do es- paço da política é uma questão funda- mental nessa dinâmica. As fronteiras entre o que seria parte da vida domésti- ca e pessoal e o que teria caráter públi- co e relevância política permitiram iso- lar espaços, sujeitos e experiências, retirando-lhes o caráter político. Esse é um dos sentidos em que as mulheres entraram em desvantagem na esfera pública no mundo moderno. Essa mesma perspectiva nos leva à ação política dos movimentos sociais. Movimentos feministas, movimentos LGBT, movimentos negros e movi- mentos indígenas têm pautas e histó- rias distintas e, em alguns casos, con- flitivas. Mas chamo atenção aqui para o fato de sua luta envolver o questiona- mento das fronteiras da política. É que a conformação do ambiente e das ins- tituições políticas é, em muitos senti- dos, a história de sua exclusão. Seu corpo, suas experiências e, em muitos casos, a linguagem com que as trazem a público em sua luta organizada são “estrangeiras” à política que assim se definiu. Há uma relação significativa entre a conformação da esfera pública estatal como “lugar de enunciação de todo discurso que aspire a revestir-se de político”, para citar Rita Segato em La guerra contra las mujeres, e as bar- reiras enfrentadas por grupos margi- nalizados para a politização de rela- ções cotidianas de opressão. Nos esforços de politização reali- zados pelos movimentos sociais que mencionei, outras arenas e identida- des vêm a público. Os feminismos po- litizaram o cotidiano da exploração do trabalho das mulheres; a violência doméstica; o controle do seu corpo por pais, companheiros e pelo Estado; o caráter masculino do Estado e da po- lítica mais amplamente. Evidencia- ram o caráter de gênero dos modelos explicativos hegemônicos, mostrando que a neutralidade pode ser bem posi- cionada, por implicar a reprodução das assimetrias. A tematização da perspectiva das mulheres, assim como de suas necessidades e de seus interes- ses, permitiu evidenciar quais perspec- tivas, quais necessidades e quais inte- resses são considerados em uma política masculina. Por isso, a posicio- nalidade foi trazida ao debate público como fundamento da legitimidade das pautas defendidas pelos movi- mentos – ainda que disso derivem li- mites que eu não teria como discutir aqui. A caracterização daqueles que são majoritários na política como “ho- mens, brancos e proprietários” pode ter até se tornado um clichê na luta política, no contexto ambivalente de que procurei falar neste artigo. Mas ela apresenta um esforço que não é banal: mostrar que a atuação desses homens é, como qualquer atuação po- lítica, posicionada e identificada so- cialmente. *Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da UnB. Os feminismos, assim como os movimentos LGBT, negros e indígenas, contribuíram para politizar a política no período de construção democrática 8 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018 FEMINISMOS E DIVERSIDADES O feminismo brasileiro hoje não é só jovem e empoderado. O bonde das feministas históricas e o bonde das feministas hashtag dialogam na construção das ações. O feminismo como um todo é plural, diversificado e capaz de produzir convergências POR MARIELLE FRANCO* O novo sempre vem E m 1975, um grupo de mulheres organizou um evento na Asso- ciação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, sobre a situação das mulheres no Brasil. Fo- ram mais de quatrocentas participan- tes, num movimento que deu início ao Centro da Mulher Brasileira (CMB), primeira organização feminista no país. Mais de quatro décadas depois, ocupamos o mesmo espaço, agora co- mo mulheres, negras, trans, faveladas, professoras, nordestinas, mães, enfim, mulheres em toda a sua diversidade. No evento de outrora, mulheres negras fizeram críticas contundentes à organização que, apesar de contar com personagens importantes da luta contra a ditadura, não abarcou a di- versidade de experiências do que é ser mulher. No final de novembro de 2017, fizemos da ABIum espaço de debate político. Um debate vivo, cheio de nuances, em que cinco centenas de nós afirmamos que vamos ocupar a política, os espaços de poder; contu- do, não em uma ocupação meramente “cotista”. Há, inegavelmente, um novo momento, uma marcha em fermenta- ção de mulheres rumo à apropriação dessas engrenagens. Chegamos a 2018 colhendo frutos de décadas de lutas das mulheres por melhores condições de vida e por mais igualdade nos espaços de tomada de decisões. Nesse período, é inegável que o feminismo se tornou mais diver- so, em especial com os avanços das pautas de raça, orientação sexual e identidade de gênero, e também nas reflexões sobre as diversas experiên- cias pelas quais as mulheres passam, como a maternidade. Essa diversidade se expressa nas ruas, em manifesta- ções, e nas redes sociais, por meio de páginas, aplicativos, blogs e vídeos. Fala-se muito que estamos vivendo uma nova onda feminista, embora a ideia de onda indique um rompimento maior do que como acontece na histó- ria de fato. A mídia propaga a ideia de que há um “novo feminismo”, mas na verdade o que vivemos é o resultado de uma convergência de diferentes ex- pressões do feminismo que, mesmo com estratégias de atuação muito di- versas, têm em comum a compreen- são de que a internet é um espaço de diálogo e articulação política. O femi- nismo brasileiro hoje não é só jovem e empoderado. O bonde das feministas históricas e o bonde das feministas hashtag dialogam na construção das ações. O feminismo como um todo é plural, diversificado e capaz de produ- zir convergências. Desde a eleição de 2010 vivemos uma conjuntura marcada por contra- dições importantes no que se refere às questões de gênero. O saldo das mani- festações e campanhas que se segui- ram foi a necessidade de uma repre- sentação política mais diversa. As mulheres se colocaram como uma for- ça política importante no cenário na- cional, em especial as negras e indíge- nas. Assumimos o papel de apontar para o que seria o “novo” de verdade na política: inverter o jogo, sair da po- sição de subalternidade na sociedade para ocupar espaços de formulação, de desenvolvimentos programáticos e de projetos, de tomadas de decisão. Apesar de termos chegado a alguns lugares importantes, a representação política das mulheres ainda é ínfima, e a das mulheres negras é ainda pior. Mulheres negras somos cerca de 25% da população brasileira, segundo cen- so do IBGE de 2010. Segundo o “Retra- to das desigualdades de gênero e raça” (Ipea, 2015), somos também a maior parte das pessoas desempregadas, que trabalha sem carteira assinada, como empregada doméstica ou com menor renda domiciliar per capita. Essa situa- ção não é por acaso, é fruto de um de- senvolvimento civilizatório que foi ca- paz de desumanizar e objetificar o corpo das mulheres negras. Em meio a tanta desigualdade, ao racismo e ao sexismo que insistem em nos violentar, a chegada da mulher ne- gra à institucionalidade surpreende. Nossa presença assusta o conluio masculino, branco e heteronormativo. Ao mesmo tempo, nos vemos diante do desafio de construir um projeto po- lítico que não exclua as questões que nos trouxeram até aqui, que não as torne secundárias e que se mantenha afinado com as lutas dos movimentos. Ironicamente, se em 1975 as mu- lheres reunidas estavam em luta con- tra a ditadura militar, agora estamos em enfrentando um governo ilegítimo e os golpes cotidianos que ele promove em nossos direitos e em nossas liber- dades. Em um cenário de graves retro- cessos e da ação articulada das forças religiosas no Congresso Federal, as mulheres estão conseguindo impedir as mudanças de legislação pela articu- lação de formas muito diversas de fa- zer feminismo por meio do fortaleci- mento mútuo. Estamos resistindo aos ataques racistas cotidianos e tentando encontrar caminhos para superar a si- tuação de miséria em que a crise colo- cou as pessoas que moram nas favelas, periferias e no campo, fortalecendo as iniciativas de economia solidária e de fortalecimento de movimentos como o MTST e o MST. Graças ao surgimento de grupos como o PretaLab, à formação sobre se- gurança digital da Universidade Livre Feminista, à MariaLab e às Blogueiras Negras, estamos resistindo à difusão do discurso de ódio e às novas formas de violência que acontecem no âmbito virtual. Quando ouvimos o Slam das Minas, levando a poesia falada das mulheres para os diferentes territórios e reinventando a ideia de batalha – elas não competem nos recitais, elas estão lado a lado, se complementando na performance –, sabemos quem somos, as vozes que se escutam, que se aco- lhem, que fazem política o tempo to- do. Essa resistência é nova também em sua estética! A PartidA Feminista está mobiliza- da para lançar candidatas e fazer o de- bate sobre a importância de eleger fe- ministas comprometidas com os projetos de transformação. O movi- mento, surgido em 2015, quando ati- vistas se reuniram para discutir o sen- tido e a possibilidade de um partido feminista brasileiro, reúne coletivos de mulheres de partidos e movimen- tos diversos de todo o Brasil. Ou seja, de forma articulada, as eleições de 2018 estão sendo gestadas. Iniciativas para uma representação mais diversa devem ser reeditadas, além de instru- mentos para o financiamento coletivo das campanhas. Em nosso encontro recente na ABI, partimos da ideia de que “uma mu- lher puxa a outra” – um dos motes da Marcha das Mulheres Negras em 2017. Reunimos mulheres que se destaca- ram no cenário político do Rio de Ja- neiro e que são potenciais candidatas a diversos espaços de poder – câmaras estaduais e federal, sindicatos, parti- dos e associações diversas –, com des- taque para as mulheres negras. Isso porque o recado foi dado nas eleições de 2016, e aqui no Rio de Janeiro se- guimos à frente da Comissão da Mu- lher para pautar o debate de gênero na Câmara partindo da nossa perspecti- va. Talíria Petroni tem enfrentado o desafio de construir um mandato ne- gro, popular e feminista como a única mulher na Câmara de Niterói. Áurea Carolina, em Belo Horizonte, inova ao criar a “gabinetona” aberta às mais di- ferentes lutas e ao mesmo tempo aten- ta aos afetos, à poesia e ao autocuida- do. Nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera re- produção do que sempre foi feito, por- que isso nos deixa mais fortes para ocupar espaços da institucionalidade, apesar de todos os retrocessos. Mas não queremos ficar sozinhas nesse es- paço, queremos outras e que transfor- mem a política. O evento recente da ABI foi gesta- do dentro de um mandato parlamen- tar, mas não só por ele. Uma rede de mulheres independentes de filiações partidárias se uniu para demandar e organizar o encontro. Por si só essa movimentação descortina um novo momento. O sistema político, tal qual (não) funciona hoje precisa ser urgen- temente transformado. Nossa aposta é que outras mulheres sejam fortaleci- das para ocupar os espaços de poder. E, para isso, qualquer projeto político de esquerda não pode ignorar as questões que trazemos. 2018 que nos aguarde! *Marielle Franco é vereadora do Rio de Ja- neiro pelo Psol. Nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito 9 A LÓGICA DO CAPITAL GENEALÓGICO Na era digital, dados genealógicos como coleções fotográficas passam do status de patrimônio histórico comum ao de capital econômico possuído por algumas empresas. Assim, a própria noção de um patrimônio como bem comum universal tem de ser reinventada POR FRÉDÉRIC KAPLAN E ISABELLA DI LENARDO* Árvores de dinheiro N o coração da Granite Moun-tain, a alguns quilômetros de Salt Lake City, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, também chamada de Igreja Mór- mon, protege em um quarto-forte seu tesouro: 3,5 bilhões de imagens de do- cumentos familiares compilados em microfilmes. Esses documentos tra- zem informações sobre a genealogia de mais de 5 bilhões de pessoas graças aos registros de estado civil coletados em mais de uma centena de países. Organização sem fins lucrativos fun- dada em 1894, a Sociedade Genealógi- ca de Utah, rebatizada de FamilySear- ch (Pesquisa de Família), oferece acesso gratuito a esse ouro paciente- mente coletado. A busca genealógica está no cora- ção da doutrina e das práticas reli- giosas dos mórmons. Na esperança de uma ressurreição generalizada, os membros da Igreja reconstroem suas relações familiares em diversas gerações, para oferecer a cada an- cestral corretamente identificado um batismo salutar. A pesquisa de uma cadeia ininterrupta de ligações até Adão representa assim, em sua crença, uma maneira de salvar a hu- manidade. Por essa razão, a Family- Search troca seus dados com outras instituições genealógicas, eventual- mente com objetivo comercial. Em outro porão da Granite Moun- tain, a empresa Ancestry.com propõe, como a FamilySearch, uma interface de acesso a uma grande base de dados genealógica, desta vez paga. As duas empresas colaboram estreitamente uma com a outra desde 2014. Mas a oferta comercial da Ancestry.com dá acesso a 19 bilhões de documentos históricos e seduz mais de 2 milhões de inscritos, que pagam em média US$ 200 por ano. A empresa propõe, entre outras coisas, um teste de DNA que, por menos de US$ 100, permite desco- brir novas “conexões” familiares com pessoas e lugares e já conta com mi- lhões de perfis genéticos para afinar as pesquisas. Com a comercialização proibida na França pela Lei de Bioética – que os reserva para fins puramente científicos, judiciários ou médicos –, os testes de DNA genealógicos fazem grande sucesso em escala mundial. Em Israel, a empresa MyHeritage.com teve em uma dezena de anos uma as- censão fulgurante. Comprando suces- sivamente diversas empresas de ge- nealogia, ela propõe a mais de 80 milhões de usuários inscritos o acesso a 7 bilhões de informações históricas. Em 2013, a empresa concluiu um acor- do com a FamilySearch; depois, em 2014, com a 23andMe, líder dos testes genéticos de grande público. Obrigada desde 2013 pela administração norte- -americana a renunciar ao essencial de suas pretensões em matéria de pre- dição médica, a 23andMe colocou sua tônica na genealogia para desenvolver uma base de perfis genéticos, a maior do mundo. Essas empresas genealógicas têm, ao longo dos anos, acumulado uma nova forma de capital: o capital genea- lógico. Sua especificidade? O valor de cada árvore é ainda maior quando po- de ser relacionado com outras árvores. Ao comprar empresas que possuíam uma base genealógica local, a MyHeri- tage.com construiu um banco de da- dos cujo valor ultrapassa de longe a so- ma dos valores das bases iniciais. As dinâmicas capitalísticas se encontram reforçadas. Quando mais cada empre- sa propõe informações genealógicas, mais seus serviços podem seduzir os inscritos e mais os lucros permitem que se aumente o capital, seja sob a forma de campanha de digitalização, seja comprando outras empresas do mesmo setor. Em alguns anos, essa ló- gica conduziu à dominação de um pu- nhado de agentes mundiais que, na ausência de uma legislação na área, podem garantir sua posição monopo- lística com parcerias. As vastas coleções de árvores ge- nealógicas, pacientemente recons- truídas graças ao entusiasmo de mi- lhares de pesquisadores e de amadores que trabalham em arquivos públicos, passaram do status de patrimônio his- tórico comum ao de capital econômi- co possuído por algumas empresas. Para muitos pesquisadores e genealo- gistas amadores, essa agregação re- presenta um progresso: os motores de busca permitem navegar com grande eficiência em bases de dados imensas. Encontramos agora facilmente docu- mentos sobre nossos ancestrais, quan- do, há apenas alguns anos, tais pes- quisas teriam demandado meses de trabalho em arquivos. No entanto, essa mudança de sta- tus dos dados históricos nos leva tam- bém a questionar sobre o futuro dos grandes sistemas de informação, ago- ra submetidos à lógica capitalista. A “grande árvore da humanidade”, to- mada por algumas empresas, não de- fendida como patrimônio e não reco- nhecida como um capital, ainda não é considerada um objeto político, mas já é um objeto do mercado econômico global.1 Aqueles que a possuem podem vender seu acesso ao maior pagador, incentivado por uma fonte de infor- mações sem precedentes. Os clientes da 23andMe descobriram, assim, que a empresa tinha revendido seus dados a mais de uma dezena de laboratórios farmacêuticos... NOVAS DINÂMICAS DO CAPITALISMO A área da genealogia não é o único setor atingido. Diversas coleções foto- gráficas inicialmente constituídas por historiadores da arte ou institutos de pesquisa foram, da mesma forma, rea- grupados em bases de dados iconográ- ficos com caráter comercial que, se- gundo a lógica do mercado, foram progressivamente agregadas para se- rem hoje administradas por um pu- nhado de agentes. O arquivo de Otto Bettmann, fundado em 1936 sobre a base de 25 mil imagens que ele mesmo tinha produzido como conservador de museu, ilustra essas dinâmicas. A co- leção foi comprada pela Corbis, em- presa de Bill Gates, para criar um capi- tal iconográfico de 100 milhões de imagens, e tem por ambição cobrir a integralidade da existência humana, protegida também nos porões de uma montanha, desta vez em Boyers, na Pensilvânia. A empresa acabou de ser comprada pelo Visual China Group, que garante, com a Getty Images, a gestão comercial desse tesouro. Esses exemplos genealógicos e ico- nográficos são apenas casos particula- res de um fenômeno mais amplo: o ca- pitalismo patrimonial. Os documentos dos arquivos históricos se transfor- mam em capital digital com alto valor integrativo, enquanto os dados patri- moniais constituem recursos limita- dos. Por essa razão é preciso imaginar os riscos dos controles monopolísticos em matéria de conservação, de política de acesso e de reutilização. Diante dessas novas dinâmicas do capitalismo global, a própria noção de um patrimônio como bem comum universal deve ser reinventada. As grandes bases de dados do passado não coincidem mais hoje com os inte- resses culturais de um só país ou de uma só comunidade. Por suas cober- turas espaço-temporais, elas adquiri- ram uma dimensão mundial e por es- sa razão devem ser pensadas como um recurso crítico para preparar nos- so futuro. *Frédéric Kaplan e Isabella di Lenardo são membros do Laboratório de Humanida- des Digitais, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça. 1 Ler o dossiê “À qui appartient votre ADN?” [A quem pertence seu DNA?], Le Monde Diplomati- que, jun. 2008. © D a n ie l K o n d o 10 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018 E m 24 de outubro de 1995, o Con- gresso norte-americano adotou por ampla maioria um texto que determinava a transferência da embaixada dos Estados Unidos em Is- rael de Tel Aviv para Jerusalém até, o mais tardar, 31 de maio de 1999. Em- bora essa transferência fosse uma de suas promessas eleitorais durante a campanha de 1992, o presidente Bill Clinton recusou-se a assinar o “Ato da Embaixada de Jerusalém”, apesar de sua entrada em vigor em 8 de novembro de 1995. Os sucessores de Clinton, Geor- ge W. Bush e Barack Obama, fizeram o mesmo, achando também que os Esta- dos Unidos deveriam aguardar a regu- lamentaçãodo conflito israelo-palesti- no e atender ao consenso internacional sobre o estatuto de Jerusalém. Para evitar que essa lei entrasse em vigor, os presidentes norte-america- nos assinavam sua suspensão provisó- ria de semestre em semestre, tal como fez Donald Trump em junho de 2017. Decidindo, em 6 de dezembro último, reconhecer a cidade como capital de Israel, o novo presidente pôs termo a essa abordagem ambígua. Sobretudo, ela contraria a Resolução n. 476 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a qual, em 30 de junho de 1980, declarou nulas e sem efeito todas as medidas adotadas por Israel que “modificam o caráter geográfico, de- mográfico e histórico da Cidade San- ta”. Um mês depois, o Knesset (Parla- mento israelense) votou uma “lei fundamental” declarando a cidade, “inteira e unificada, capital de Israel”. O Conselho de Segurança reagiu no 20 de agosto seguinte, votando1 a Resolu- ção n. 478, que pedia aos Estados- -membros a retirada de suas missões diplomáticas de Jerusalém. Depois disso, com raríssimas exceções – a Costa Rica e El Salvador conservaram ali uma embaixada até o início dos anos 2000 –, Jerusalém só acolheu al- guns consulados: as embaixadas per- maneceram em Tel Aviv. Em Israel, a iniciativa de Donald Trump foi recebida com alegria pelo público2 e com euforia pelo poder. Pou- cos comentaristas perceberam que a Casa Branca evita resolver a questão da soberania plena e exclusiva de Israel sobre Jerusalém ao deixar claro que seus limites concretos deverão ser defi- UM RECONHECIMENTO ILEGAL Ao quebrar o consenso internacional em torno do estatuto de Jerusalém, cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos, o presidente Donald Trump conduziu seu país ao isolamento. Uma ampla maioria da Assembleia Geral da ONU criticou a decisão que coloca um obstáculo à paz. No terreno, porém, a política do fato consumado continua POR CHARLES ENDERLIN* Jerusalém, o erro fundamental nidos no quadro das negociações sobre o estatuto final da cidade. Acrescente- -se a isso que, nos termos de sua edifi- cação e da compra do terreno onde possa ser construída, a Embaixada dos Estados Unidos não será transferida tão cedo para Jerusalém. Em diversas ocasiões, o secretário de Estado norte- -americano, Rex Tillerson, declarou que essa transferência não ocorrerá antes de dois ou três anos. Isto é, após o fim do mandato de Trump... Para a Autoridade Palestina, po- rém, trata-se de uma ruptura da legiti- midade internacional sobre a qual ela se apoia desde o início das conversa- ções de paz. Trata-se também de um novo fracasso da estratégia da Organi- zação para a Libertação da Palestina (OLP) diante de Israel – fracasso cujas causas são múltiplas. Alguns o remon- tam ao começo do processo de Oslo. Em 29 de julho de 1993, no auge das negociações secretas em Halversbole, na Noruega, Yoel Singer, consultor ju- rídico israelense, escrevia em seu rela- tório ao primeiro-ministro Yitzhak Rabin e ao ministro das Relações Exte- riores, Shimon Peres, em Jerusalém: “A OLP pretende rejeitar a transferência dos poderes civis até a retirada de Tsahal de Gaza e Jericó. Explicaram- -nos que esses poderes devem ser transferidos à autoridade da OLP-Tú- nis, quando de sua chegada a Gaza, e não a palestinos do interior”.3 Na épo- ca, a Autoridade Palestina estava em Túnis e queria se encarregar das nego- ciações, limitando a influência de per- sonalidades políticas que viviam nos territórios. Como consequência dessa rivalidade, a ausência, na equipe de negociadores, de dirigentes do interior (que conheciam melhor a situação lo- cal) se fez sentir desde o início das conversações. ASSIMETRIA INTRÍNSECA Quando se discutiu a autonomia de Gaza e Jericó, em meados de outubro de 1993, no Egito (em Taba, ao sul do Sinai), pudemos constatar a frustra- ção de Khalil Tufakji, o cartógrafo pa- lestino de Jerusalém Oriental, que não teve autorização para entrar na sala de conferência. Os dirigentes vindos de Túnis cometiam erro após erro, enga- nando-se sobre o traçado do limite territorial de Jericó... Valia a pena ob- servar a diferença de logística das equipes israelense e palestina. A pri- meira dispunha de notebooks de últi- ma geração e de pilhas de CDs com si- mulações preparadas por juristas do mais alto nível. A outra tomava notas em blocos de papel. Só mais tarde a OLP recorreria a juristas internacio- nais de maior gabarito profissional. Os palestinos não conseguiram quebrar essa assimetria intrínseca, durante as negociações, entre uma organização de libertação e um Estado. A equipe de Faisal al-Husseini (1940-2001), o chefe que gozava de muita popularidade entre os palesti- nos do interior, não deixou de advertir contra a multiplicação das colônias is- raelenses nos territórios ocupados. Ainda assim, não há em nenhum dos acordos assinados pela OLP uma cláu- sula sequer que estipule expressamen- te o fim da colonização, no entanto considerada ilegítima à luz do direito internacional e das numerosas resolu- ções do Conselho de Segurança da ONU, das quais a última (n. 2.334) data de dezembro de 2016. Os palestinos supõem que dois tex- tos assinados com Israel proíbem a co- lonização. A declaração de princípios de setembro de 1993 estipula no artigo IV que “as duas partes consideram a Cisjordânia e a Faixa de Gaza uma uni- dade territorial única, cuja integridade será preservada durante o período de transição”. O Acordo Provisório sobre a Autonomia (às vezes chamado de Oslo 2), de setembro de 1995 (artigo 31-7), reza em seguida: “Nenhuma das duas partes tomará a iniciativa ou adotará medidas para modificar o estatuto da Cisjordânia e da Faixa de Gaza na ex- pectativa dos resultados das negocia- ções sobre o estatuto permanente”. Todos os governos israelenses rejei- taram esses argumentos palestinos. Em 1996, membros do círculo do líder da OLP, Yasser Arafat, nos respondiam a esse respeito: “Pouco importa. De qualquer maneira, teremos nosso Es- tado em 1999 e as colônias não estarão mais lá!”. Em maio de 2001, fizemos es- ta pergunta ao presidente da Autorida- de Palestina: “O número de colonos na Cisjordânia aumenta mês a mês... O que vocês acham disso?”. Sua resposta foi lapidar: “Eles irão embora! Sim, irão embora!”. Arafat pensava poder regular a questão com uma transigência: uma troca de território entre Israel e a Pa- lestina para permitir a instalação de colonos do centro da Cisjordânia em assentamentos situados na linha ver- de, a fronteira surgida do armistício is- raelo-jordaniano de 3 de abril de 1949. Após o fracasso das últimas negocia- ções de Taba, em janeiro de 2001, as duas partes entregaram a Miguel Mo- ratinos, o emissário europeu, uma lis- ta de seus acordos e desacordos:4 “A Manifestação em Istambul contra a decisão de Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel © R eu te rs / O sm an O rs al 11 parte israelense declarou não precisar manter assentamentos no Vale do Jor- dão por motivos de segurança, o que se reflete nos mapas por ela apresenta- dos. Esses mapas se baseavam num conceito demográfico de assentamen- tos que incorporava 80% dos colonos. A parte israelense traçou um mapa que representava a anexação de 6% dos territórios palestinos. [...] O mapa palestino previa a anexação, por Israel, de 3,1% da Cisjordânia, e isso no qua- dro de uma troca de territórios”. Dife- rença de 2,9%, apenas... Com relação a Jerusalém, porém, a dificuldade não foi superada. As partes reconheciam ter concluído acordos parciais a propósito dos novos bairros israelenses da cidade oriental, com os palestinos se dizendo prontos a aceitar a soberania israelense sobre o distrito judaico da Cidade Velha, uma parte do subúrbio armênioe o muro ocidental (ou Muro das Lamentações), cujo com- primento devia ser delimitado. Mas foi impossível chegar a bom termo quanto à Esplanada das Mesquitas, ou Haram al-Sharif (“O Nobre Santuário”), lugar santo para os muçulmanos porque ali estão a Cúpula da Rocha e a Mesquita Al-Aqsa (de onde o profeta Maomé te- ria empreendido sua viagem noturna para o céu). Os judeus, porém, conside- ram aquele o sítio onde se erguia o Templo de Jerusalém, o local mais sa- grado do judaísmo. A LEI DA MAIORIA Num dia de março de 2002, tarde da noite, após uma longa conversa com Yasser Arafat, um assessor do pre- sidente palestino nos confiou, discre- tamente e pedindo-nos segredo: “Você sabe... O sonho de Abu Amar [nome de guerra de Arafat] é proclamar a inde- pendência da Palestina no Haram al- -Sharif. Ele dirá: ‘Não há motivo algum para que um palestino decida voltar a Israel e se torne israelense. Os palesti- nos virão conosco a fim de construir [nosso] Estado!’”. Em suma, Jerusalém Oriental como capital em troca da re- núncia ao direito de retorno dos refu- giados à sua região de origem. Já em 10 de dezembro de 2000, após uma rodada de negociações secretas no hotel David Intercontinental, em Tel Aviv, Yasser Abed Rabbo, o negociador palestino, nos revelava diante da câ- mera: “Agora, acho que eles querem mesmo chegar a um acordo, talvez por medo de uma vitória da direita nas próximas eleições. Devemos concluí-lo daqui a duas ou três semanas. Pela pri- meira vez, os israelenses aceitaram o princípio da soberania palestina sobre o Haram al-Sharif”. À tarde, Gilead Sher, principal negociador do primei- ro-ministro trabalhista Ehud Barak, punha as coisas em seu devido lugar: “Não sei como os palestinos puderam crer que estivéssemos prontos a renun- ciar à soberania sobre o Monte do Tem- plo”. Shlomo Ben-Ami, ministro das Relações Exteriores israelense, não es- tava autorizado a fazer essa concessão fundamental e, ao longo de todas as negociações seguintes, os palestinos esperaram – em vão – que ela fosse re- petida pela delegação israelense.5 A reunião de Camp David, em ju- lho de 2000, destinada a promover um acordo de paz definitivo entre is- raelenses e palestinos, havia fracassa- do na questão do lugar santo. Para o governo israelense, estava fora de questão aceitar a soberania palestina sobre a Esplanada das Mesquitas. Ehud Barak fora categórico: “Não co- nheço um chefe de governo que aceite assinar a transferência da soberania sobre o Primeiro e o Segundo Templo [a Esplanada das Mesquitas], que é a base do sionismo. [...] A soberania pa- lestina sobre a Cidade Velha seria tão dura [de suportar] quanto um luto, mas, se não nos separarmos dos pales- tinos, se não pusermos fim ao conflito, mergulharemos na tragédia”.6 Em agosto de 2003, Yasser Arafat autorizou vários de seus principais consultores, liderados por Yasser Abed Rabbo, a negociar com uma de- legação da oposição de esquerda is- raelense presidida por Yossi Beilin e Amnon Lipkin Shahak, ex-chefe do Estado-Maior. Chegaram a um acor- do em dezembro do mesmo ano. Chamado “Iniciativa de Genebra”, esse acordo baseou-se no princípio do trade off (permuta), recusado por Israel. Os palestinos renunciariam ao direito de voltar e receberiam em tro- ca a soberania sobre o Haram al-Sha- rif/Monte do Templo. Ariel Sharon, o primeiro-ministro, chamou de “trai- dores” os signatários israelenses, en- quanto Arafat, de seu lado, felicitou os negociadores de um texto sem ne- nhum alcance prático. Eleito chefe da autoridade autôno- ma da OLP após o desaparecimento de Arafat, em novembro de 2004, Mahmoud Abbas só pôde dar conta, bem ou mal, do status quo. Recuperou sua polícia e seus serviços de seguran- ça, destruídos pelo esmagamento da Segunda Intifada, restabeleceu a coordenação securitária com o Exér- cito e o Shin Beth (serviço de seguran- ça interna israelense) e obteve alguns êxitos diplomáticos, entre os quais a admissão na Unesco como Estado (em 2011). No ano seguinte, a Assem- bleia Geral da ONU concedia à Pales- tina o estatuto de Estado observador, não membro. No entanto, Israel mudou muito no curso dos anos. Mahmoud Abbas en- frenta um dos governos mais direitistas da história do país, no qual os elemen- tos religiosos e messiânicos dão o tom. No plano interno, o governo israelense, chefiado por Benjamin Netanyahu, considera a democracia a lei da maio- ria, com proteções mínimas às mino- rias. Pretende definir Israel como um Estado judaico e democrático – nessa ordem –, onde só os judeus teriam ple- nos direitos. Em março de 2016, 79% dos judeus israelenses interrogados nu- ma pesquisa eram favoráveis a “um tra- tamento preferencial para os judeus”. Ou seja, uma forma de discriminação contra os não judeus.7 Portanto, a pers- pectiva da solução dos dois Estados não passa de uma miragem. A ocupação da Cisjordânia vai se eternizando, com os quase 400 mil is- raelenses que habitam hoje as colô- nias situadas em 60% do território, anexadas de fato – sem contar os 200 mil residentes nos novos bairros ju- daicos de Jerusalém. Compare-se es- se número com os 151.200 israelenses que moravam nas colônias da Cisjor- dânia e Gaza em 1996. A esquerda e as ONGs israelenses que ousam criti- car e combater a ocupação são o tem- po todo qualificadas, pelo poder, de antipatrióticas ou mesmo de traido- ras. Leis são votadas para restringir suas atividades.8 Tudo isso leva Matti Steinberg, ex- -analista principal do Shin Beth,9 a afirmar: “O status quo não é estável, mas evolui na direção que leva inexo- Em 4 de julho de 1967, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma resolução (n. 2.253) que invalidava “as medidas tomadas por Israel a fim de modificar o estatuto da cidade de Jeru- salém”. Reiterou essa posição em 14 de julho, com a Resolução n. 2.254. De seu lado, o Conselho de Segurança das Na- ções Unidas se pronunciou várias vezes sobre esse tema. Em 21 de maio de 1968, a Resolução n. 252 considerou que “todas as medidas e disposições legislativas ou administrativas tomadas por Israel, inclusive a desapropriação de terras e bens imobiliários, que ten- dem a modificar o estatuto jurídico de Jerusalém são inválidas, não podendo alterar esse estatuto”. Essa posição foi repetida pelas resoluções n. 267 (3 jul. 1969), 271 (15 set. 1969) e 298 (25 set. 1971). Em 1º de março de 1989, a Resolução n. 465 considerou que “to- das as medidas tomadas por Israel a fim de modificar o caráter físico, a com- posição demográfica, a estrutura insti- tucional ou o estatuto dos territórios palestinos e de outros territórios ára- bes ocupados desde 1967, inclusive Jerusalém, ou partes destes, não têm nenhuma validade jurídica. A política e as práticas de Israel que consistem em instalar elementos de sua população e novos imigrantes nesses territórios constituem violação flagrante da Con- venção de Genebra [12 ago. 1949], re- lativa à proteção das pessoas civis em tempos de guerra”. Em 30 de junho de 1980, o Conselho de Segurança reafirmou, na Resolução n. 476, “a necessidade imperiosa de pôr fim à ocupação prolongada dos territó- rios árabes ocupados por Israel desde 1967, inclusive Jerusalém”, e concluiu: “Todas as medidas que modificaram o caráter geográfico, demográfico e his- tórico do estatuto da Cidade Santa de Jerusalém são nulas e sem efeito”. Em 20 de agosto de 1980, a Resolução n. 478 decidiu “não reconhecer a ‘lei fun- damental’ e as outras ações de Israel que, em virtude dessa lei, procuram mo- dificar o caráter e o estatuto de Jerusa- lém; e pede [...] aos Estados que instala- ram missões diplomáticas em Jerusalém que as retirem da Cidade Santa”. Enfim, em 23 de dezembro de 2016, o Conselho de Segurança reafirmouque “a criação, por Israel, de colônias de povoamento nos territórios palestinos ocupados desde 1967, inclusive Jeru- salém Oriental, não tem nenhuma base jurídica, constituindo uma violação fla- grante do direito e um grande obstáculo à solução dos dois Estados, bem como à instauração de uma paz global, justa e duradoura”. *Akram Belkaïd é jornalista. 1 Por catorze votos a favor e abstenção dos Estados Unidos. 2 Segundo uma pesquisa publicada em 14 de de- zembro de 2017 pelo Jerusalem Post, 77% dos judeus israelenses interrogados consideravam a administração Trump pró-israelense. No primeiro ano da administração Obama, eram apenas 4%. 3 Charles Enderlin, Paix ou guerres [Paz ou guer- ras], Fayard, Paris, 2004. 4 Charles Enderlin, Le Rêve brisé [O sonho destruí- do], Fayard, Paris, 2002. Esse texto, redigido por Yossi Beilin, ministro israelense da Justiça, e Abu Alla, principal negociador palestino, foi rejeitado por Gilead Sher, representante pessoal do primei- ro-ministro Ehud Barak, do qual era também chefe de gabinete. 5 Ibidem. 6 Ibidem. 7 Aluf Benn, “The End of the Old Israel” [O fim da velha Israel], Foreign Affairs, jul. 2016. 8 Charles Enderlin, “Em Israel, a hora da inquisição”, Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2016. 9 Matti Steinberg lecionou nas universidades de Princeton, Heidelberg e Hebraica de Jerusalém. 10 Entrevista ao autor, Jerusalém, 12 dez. 2017. SOB A ÓTICA DO DIREITO INTERNACIONAL Por Akram Belkaïd* ravelmente as partes para as areias movediças de uma realidade binacio- nal onde Israel, dominador, tentará impor sua vontade aos palestinos api- nhados em enclaves territoriais”.10 *Charles Enderlin é jornalista e autor, entre outras obras, de Au nom du temple. Israël et l’irrésistible ascension du messianisme juif (1967-2013) [Em nome do Templo. Israel e a irresistível ascensão do messianismo judaico (1967-2013)], Seuil, Paris, 2013. 12 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2018 O FIM DO SEGUNDO CONSENSO DIPLOMÁTICO NORTE-AMERICANO Qual é a inspiração da política externa de Trump? Há um ano a ascensão de Donald Trump ao poder modificava a posição dos Estados Unidos em variados assuntos: acordos comerciais, clima, confronto com a Coreia do Norte e com o Irã, alinhamento incondicional a Israel. Porém, a ruptura comporta diversos elementos de continuidade em relação às escolas históricas da diplomacia norte-americana POR OLIVIER ZAJEK* N o dia 6 de novembro de 2017, em uma nota virulenta do New York Times intitulada “Aniver- sário do apocalipse”, a edito- rialista Michelle Goldberg evocou com intensidade o primeiro ano de admi- nistração de Donald Trump. Um “pe- sadelo”, ataca ela, durante o qual “o impensável se tornou cotidiano”.1 A julgar pela quantidade de reprovações expressas por especialistas e formado- res de opinião do eixo BosNyWash (Boston, Nova York, Washington), Gol- dberg não parece ser a única a experi- mentar um sentimento de expropria- ção quanto à evolução pela qual passa os Estados Unidos depois das investi- das do 45º presidente. O descompasso entre a adminis- tração atual e as elites tradicionais norte-americanas explode. A cena po- lítica, eletrizada pelas declarações e caprichos de Trump, assim como pe- las condenações de adversários cada vez mais exasperados, parece uma permanente rixa cultural, na qual conservadores, populistas e progres- sistas, alimentados pelo ódio, não poupam golpes baixos, sob o olhar dos parceiros internacionais de Washing- ton, assim como de seus concorrentes. Esse pandemônio se deve inteiramen- te ao novo presidente? Talvez não. A deriva maniqueísta do debate norte-a- mericano é na verdade anterior ao pre- sidente Trump. Longe de ser a causa da extrema polarização atual, o inquilino da Casa Branca, contudo, encarna sua expressão mais visível. UM AGLUTINADOR... CONTRA SI MESMO Assim, não é na cena política inter- na que se deve procurar a verdadeira ruptura trazida por essa abordagem ao mesmo tempo ardilosa, hesitante, brutal, obstinada, confusa e narcisista do “trumpismo”: as consequências se dão, antes, no campo das relações in- ternacionais. Até agora, a prática ex- terna norte-americana estava marca- da por um relativo consenso em termos de princípios, valores e gran- des orientações estratégicas. Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro da admi- nistração de Jimmy Carter e um dos arquitetos do esquema de dominação do mundo “livre” antes e depois da Guerra Fria, explicava esse consenso e posicionava os Estados Unidos como autoridade soberana e interessada no mundo, porém benevolente: “Dotada de extraordinária onipresença mun- dial, a América tem o direito de se be- neficiar de um nível de segurança su- perior a todos os outros países [...]. Esse papel terá mais chance de ser bem-sucedido e aceito se o resto do mundo admitir que a grande estraté- gia da América visa instaurar uma co- munidade mundial de interesses com- partilhados”,2 defendia. No entanto, Trump – para quem o mundo é um caos (a mess), e o homem, “o mais maldoso de todos os animais”3 – não parece longe de pensar que Brze- zinski, falecido no último 26 de maio, era, no fundo, o oráculo supervalori- zado de uma época datada. A “nova or- dem mundial” não seria a “ordem do novo mundo”? O presidente dos Esta- dos Unidos não lamentaria muito se assim fosse, desde que algumas pro- messas à sua base eleitoral fossem cumpridas, os Estados Unidos supe- rassem seus concorrentes no plano militar e saísse vitorioso dos acordos bilaterais que viesse a firmar no futu- ro. Trump não acredita, portanto, que o interesse norte-americano repouse em parcerias mutuamente benéficas na Ásia-Pacífico, Europa e Oriente Mé- dio. De fato, anulou o Acordo Transpa- cífico; desmantelou o Tratado Norte- -Americano de Livre Comércio (Nafta); questionou o acordo de livre-comércio com a Coreia; e interrogou-se – retori- camente – sobre a utilidade da Organi- zação do Tratado do Atlântico Norte (Otan), denunciando o comportamen- to de “passageiro clandestino” da maior parte de seus tributários euro- peus, em primeiro lugar a Alemanha. Abalados por esse incessante turbi- lhão de questionamentos sistemáticos, os pilares de apoio da “grande estraté- gia” gestada a partir das acomodações de forças pós-Segunda Guerra Mun- dial parecem – à primeira vista – vaci- lar. Os profissionais da diplomacia norte-americana assistem a essas per- turbações sem poder reagir. Dois ter- ços dos postos de trabalho do Depar- tamento de Estado não foram preenchidos pela administração, pois o presidente os julga “totalmente inú- teis”.4 A esse desdém, os especialistas em política internacional opõem seu cordial desprezo, declarando que o presidente não tem visão, projeto di- retor ou estratégia. Desse ponto de vista, Trump dá mostras de suas su- bestimadas capacidades aglutinado- ras... contra si mesmo: seus apoiado- res estão sendo recrutados tanto – algo chocante – pelos institucionalistas li- berais do Partido Democrata quanto pelos republicanos herdeiros do neo- conservadorismo da era Bush. “O ver- dadeiro problema com os planos de política internacional de Trump? É que ele não tem nenhum”, preocupa- -se o liberal David Ignatius no Washin- gton Post.5 Será que Trump pretende levar os Estados Unidos para certo egoísmo diplomático, indigno da mis- são moral do país? Ou está apenas na- vegando sem compasso ou bússola, confiando nos instintos? O primeiro problema dos comenta- ristas atuais da política externa norte- -americana é supor uma estabilidade que estaria em risco com a atual admi- nistração de Trump, como no caso de Robert Zoellick, ex-presidente do Ban- co Mundial, secretário de Estado ad- junto e diretor-geral da Goldman Sa- chs. “A política externa de Trump
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