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® Le Monde Diplomatique Brasil ed 169 [Riva] Agosto 2021

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00169
7520047719819
diplomatique
®® https://t.me/PDFs_Brasil
2 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021
É ISSO QUE QUEREMOS?
Ditadura digital
POR SERGE HALIMI*
B
em-vindo à China Ocidental! A 
Organização Mundial da Saúde 
(OMS) recomenda que os Estados 
trabalhem para convencer a todos 
da utilidade indiscutível da vacina con-
tra a Covid-19, em vez de apelar para a 
violência. Emmanuel Macron decidiu 
de outro modo. O presidente, que nunca 
deixa de atacar o “iliberalismo”, vê as li-
berdades públicas apenas como uma 
variável negligenciável que logo desapa-
recerá por trás das outras urgências do 
momento: médicas, de segurança e 
guerreiras. Proibir milhões de pessoas 
de pegar o trem, pedir uma refeição no 
restaurante ou ver um filme no cinema 
sem terem de provar que não foram in-
fectadas nem fornecerem, se necessá-
rio, dez vezes ao dia, um documento de 
identidade que o comerciante terá de ve-
rificar nos leva a outro mundo. Ele já 
existe. Na China, precisamente. Os poli-
ciais dispõem de óculos de realidade au-
mentada que, ligados a câmeras térmi-
cas instaladas nos capacetes, permitem 
descobrir uma pessoa febril no meio da 
multidão.1 É isso que queremos?
Seja como for, endossamos com 
muita benevolência a invasão digital 
galopante e o rastreamento de nossa 
vida íntima e profissional, nossas mu-
danças, nossas escolhas políticas. 
Questionado sobre como evitar que 
nossos dados, depois de nossos celula-
res serem hackeados, se tornem armas 
apontadas para nós, Edward Snowden 
disse: “O que podem fazer as pessoas 
para se proteger das armas nucleares? 
Das armas químicas ou biológicas? Há 
indústrias e setores contra os quais 
não existe proteção, por isso tentamos 
impedir que proliferem”. 
É exatamente o oposto que Macron 
incentiva, precipitando a substituição 
das interações humanas por um ema-
ranhado de sites administrativos, ro-
bôs, mensagens de voz, QR Codes, apli-
cativos para downloads. A partir de 
agora, reservar uma passagem ou com-
prar on-line requer tanto um cartão de 
crédito quanto a comunicação do nú-
mero do celular ou mesmo do estado 
civil. Tempo houve, e não foi a Idade 
Média, em que a pessoa podia pegar o 
trem no anonimato, cruzar uma cida-
de sem ser filmada, sentir-se livre por 
não deixar vestígios de sua passagem. 
No entanto, já havia sequestros de 
crianças, ataques terroristas, epide-
mias – e até guerras...
O princípio da precaução não co-
nhecerá limites. É seguro, por exem-
plo, encontrar em um restaurante uma 
pessoa que já viajou para o Oriente Mé-
dio, usou drogas, participou de mani-
festações proibidas e frequentou livra-
rias anarquistas? O risco de não 
terminar a refeição por causa de uma 
bomba, uma rajada de Kalachnikov ou 
um soco no rosto não é grande, mas 
também não pode ser descartado. En-
tão, todos os transeuntes logo terão de 
apresentar um “passe cívico” que ga-
ranta sua ficha limpa e o aval da polí-
cia? Eles poderiam depois perambular 
tranquilamente por um museu das li-
berdades públicas, transformados em 
“territórios perdidos da República”. 
*Serge Halimi é diretor do Le Monde 
Diplomatique.
1 Ver Félix Tréguer, “Urgence sanitaire, réponse 
sécuritaire” [Urgência de saúde, resposta de se-
gurança], Le Monde Diplomatique, maio 2020.
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3AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
EDITORIAL
© Claudius
POR SILVIO CACCIA BAVA
A 
extrema direita no Brasil não sur-
giu ontem, ela tem uma longa his-
tória que remonta aos anos 1930 e 
se atualiza nos dias de hoje, com 
novas tecnologias, mas as mesmas 
ideias. Seu ideário defende as classes 
dominantes e seus privilégios e entende 
as desigualdades sociais como justas e 
amparadas pelas tradições, pelo sobre-
natural. Influenciado pela ascensão do 
fascismo na Europa nos anos 1920, pelo 
tradicionalismo e conservadorismo da 
Igreja Católica e pela cultura escravo-
crata das elites locais, ele encontrou na 
conjuntura política do período as con-
dições para sua expansão no país.
Já nos anos 1920 foi criada a Legião 
do Cruzeiro do Sul (1922); na década de 
1930 formaram-se vários movimentos, 
como a Ação Integralista Brasileira 
(1932), a Ação Social Brasileira (Partido 
Nacional Fascista), a Legião Cearense 
do Trabalho e o Partido Nacional Sindi-
calista. A Ação Integralista Brasileira, a 
maior, converteu-se em partido e conta-
va, em 1936, com um importante con-
tingente de militantes – entre 600 mil e 
1 milhão, num país cuja população total 
à época rondava os 40 milhões de pes-
soas.1 Esses grupos opunham-se ao 
comunismo, à perda da ordem moral, à 
separação da Igreja e do Estado, à demo-
cracia, aos direitos humanos. Eram 
nacionalistas e defendiam um Estado 
totalitário, controlador dos indivíduos e 
de suas organizações coletivas. 
Em 1960 foi criada a Tradição, Famí-
lia e Propriedade (TFP), movimento que 
se alia à ala conservadora da Igreja 
Católica. Dois bispos brasileiros – Dom 
Geraldo Sigaud e Dom Antonio de Cas-
tro Mayer – lançaram naquele ano o 
livro Reforma agrária: questão de cons-
ciência, no qual expressam seu antico-
munismo e sua oposição a processos de 
distribuição de renda.2 
Durante a ditadura de 1964-1985, os 
militares buscaram nos evangélicos 
conservadores seus novos aliados, 
afastando-se da Igreja Católica pro-
gressista e de sua Teologia da Liberta-
ção. Essa aliança defendia a agenda an-
ticomunista, contra os cristãos de 
esquerda, de reafirmação das desigual-
dades sociais e de defesa de uma moral 
conservadora.
Com o fim da ditadura e a promul-
gação da Constituição de 1988, esses 
grupos não deixaram de existir, mas se 
recolheram. Novos atores entraram em 
cena, buscando aliciar adesões aos seus 
valores, à sua agenda. É o caso das emis-
soras de TV que sustentam programas 
de apologia da violência policial contra 
os pobres e promovem a identificação 
do favelado com bandido e o genocídio 
dos jovens negros. É o caso também das 
igrejas evangélicas neopentecostais, 
com sua agenda conservadora nos valo-
res e sua oposição ao aborto e aos casa-
mentos homossexuais. 
Chegando aos dias de hoje, a agen-
da da extrema direita se mantém. E é 
preciso dizer que ela e o governo Bolso-
naro têm o suporte das principais enti-
dades de representação patronal – Fe-
braban, CNI, Fiesp –, do agronegócio, 
de setores do comércio, assim como 
dos principais jornais e emissoras de 
TV. Na interpretação do cientista políti-
co alemão Jean Werner Mueller, “as eli-
tes se retiraram do mundo social e polí-
tico comum”; não lhes interessa saber 
ou participar da vida em sociedade e da 
convivência com os diferentes.3 
A extrema direita é “antissocial, au-
toritária, ultraliberal, promotora do ar-
mamento de civis, negacionista da 
ciência e da educação pública, contro-
ladora do pensamento científico, con-
frontadora das instituições democráti-
cas, dos poderes da República, do voto, 
das eleições”.4 O principal é a intolerân-
cia com os diferentes, com as reivindi-
cações das minorias; a tendência é ex-
cluir ou mesmo eliminar os outros. 
Essa extrema direita é uma minoria 
– alguns analistas falam em 12% do elei-
torado; outros até menos hoje em dia. Se-
gundo pesquisas, existe no Brasil (agosto 
de 2020) 15% de eleitores fascistas e 15% 
de conservadores não fascistas simpati-
zantes que apoiam o governo Bolsona-
ro.5 Desde então esse número vem cain-
do e os simpatizantesreduziram. 
Essa minoria que compõe o núcleo 
duro do bolsonarismo é radical. Ela 
trabalha com desinformação, aliena 
seu público da realidade, retira a possi-
bilidade do pensamento crítico, se ba-
seia na política do medo. “Na guerra, 
vale tudo”, argumentam os coordena-
dores desses processos de produção de 
fake news. Sua presença nas redes so-
ciais veio se tornando forte graças a po-
líticas do Facebook e do WhatsApp, 
principalmente; com seus novos algo-
ritmos, que buscam radicalizar o que 
cada um vê, vão puxando para o centro 
das atenções sites de extrema direita 
que antes eram marginais. 
As tecnologias de inteligência artifi-
cial modificaram profundamente o te-
cido social. Manipulam o comporta-
mento humano, as escolhas, a formação 
da opinião. Mas isso não basta. O que 
vemos agora é o governo procurando 
monitorar o comportamento e a visão 
política dos opositores, perseguir quem 
é contra, reduzir a participação da so-
ciedade em questões políticas. A nego-
ciação do governo federal com Israel 
para comprar tecnologia de vigilância, 
o Pegasus, é para esse fim.6 
Com recursos públicos, o governo 
federal criou o “gabinete do ódio”, para 
produzir as fake news, destruir reputa-
ções, criar a narrativa que identifica os 
inimigos e defender o governo. A partir 
daí, cerca de 100 hubs reproduzem e 
distribuem esse conteúdo; são influen-
ciadores digitais (65%), políticos e par-
tidos de direita (20%) e o público geral 
de direita (5%) que propagam essas 
mensagens.7 A agenda é criada para 
desviar a atenção das questões cen-
trais, como a destruição das políticas 
sociais, o aumento da desigualdade ou 
a deliberada omissão no tratamento da 
pandemia, para propor uma guerra 
cultural. As milícias digitais comple-
tam o serviço, ameaçam os opositores e 
destroem reputações. 
Essa extrema direita se fortalece 
com a guerra híbrida promovida pelos 
Estados Unidos no Brasil desde a pri-
meira eleição de Lula, recrudescendo a 
partir de 2016. É o estímulo de conflitos 
identitários que exploram diferenças 
históricas, étnicas, religiosas, socioe-
conômicas e geográficas e promovem a 
polarização na sociedade. O objetivo é 
impedir o PT de chegar ao governo. A 
Lava Jato, orientada pela Agência de 
Segurança Nacional (NSA) norte-ame-
ricana, foi um de seus principais ins-
trumentos.8 
1 Hélgio Trindade, “Integralismo”. Disponível 
em: www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/
verbete-tematico/integralismo.
2 Benjamin Cowan, “Maiorias morais nas Améri-
cas: Brasil, Estados Unidos e a criação da di-
reita religiosa”. In: André Pagliarini, “Religiosos 
e reacionários”, Folha de S.Paulo, 25 jul. 2021.
3 Entrevista com Jean Werner Mueller, O Esta-
do de S. Paulo, 25 jul. 2021. 
4 Eliezer Rizzo, “Protagonismo militar está em 
pleno ato”, O Estado de S. Paulo, 25 jul. 2021. 
5 Mauricio Mogilka, “Ascensão da extrema direi-
ta e reconstrução do campo progressista no 
Brasil”. Disponível em: https://periodicos.uni-
fap.br/index.php/pracs/article/view/6389.
6 Francisco Gaetani e Virgílio de Almeida, “In-
teligência artificial e democracia”, Valor, 22 
jul. 2021.
7 MAP – agência de análise de dados da mí-
dia, resultados analisando a polêmica do 
voto impresso. “Renda e saúde: a ‘vida real’ 
nas redes sociais”, O Estado de S. Paulo, 
25 jul. 2021.
8 Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, “Agentes 
externos provocaram uma ‘guerra híbrida’ no 
Brasil, diz escritor”, Brasil de Fato, 19 out. 2018.
A extrema direita
tem história
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4 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021
IMPEACHMENT, REELEIÇÃO, GOLPE...
Cenários sobre o futuro 
do governo Bolsonaro
O 
presente texto discute o futuro do 
governo Bolsonaro com base em 
quatro cenários que consideram a 
correlação de forças da atual con-
juntura, os erros acumulados nesses 
dois anos e meio de mandato e as recen-
tes denúncias de corrupção envolvendo 
o governo. O primeiro cenário, que de-
pende de condições políticas e jurídicas, 
é de impeachment do presidente; o se-
gundo é de virada ou de volta por cima 
do governo, no qual o chefe do Poder 
Executivo cria as condições para viabili-
zar sua reeleição; o terceiro é de ruptura, 
em que o governo, pressentindo a derro-
ta eleitoral, retoma o discurso da cam-
panha de 2018 e rompe com o Centrão; e 
o quarto é de derrota e recusa em aceitar 
o resultado das urnas, tal como ocorreu 
com o ex-presidente Donald Trump, nos 
Estados Unidos. A efetivação de qual-
quer um dos cenários dependerá de cin-
co condições: 1) da popularidade do 
presidente; 2) do desempenho da eco-
nomia e do emprego; 3) das manifesta-
ções de rua; 4) do posicionamento das 
Forças Armadas; e 5) do apoio político 
no Congresso Nacional, especialmente 
na Câmara dos Deputados.
Os referidos cenários têm como pa-
no de fundo as cinco principais acusa-
ções da oposição (partidária, midiáti-
ca, jurídica e dos movimentos sociais e 
sindicais) à postura do governo e ao 
estilo pessoal do presidente da Repú-
blica quanto: 1) ao desrespeito à demo-
cracia, com reiteradas manifestações 
antidemocráticas dele, de seu entorno 
e de seus seguidores; 2) ao desprezo do 
presidente pela vida expresso em atos e 
declarações negacionistas, como a 
omissão na aquisição de vacinas e a re-
jeição aos protocolos de saúde durante 
a pandemia (como a recusa ao uso de 
máscara, ao distanciamento e ao isola-
mento social); 3) à destruição e perse-
guição das instituições e colegiados de 
defesa dos direitos humanos e do meio 
ambiente; 4) ao despreparo e disfun-
cionalidade do governo, com a priori-
zação da luta política em detrimento 
da gestão e da formulação de políticas 
públicas; e, mais recentemente, 5) ao 
alheamento ou à indiferença às de-
núncias de corrupção no governo, es-
pecialmente nos ministérios do Meio 
Ambiente e da Saúde.
Cenário 1 IMPEACHMENT
O primeiro cenário teria motivações 
variadas, difusas e até contraditórias, 
sob a liderança de sete grupos políticos. 
O grupo mais expressivo e estratégico 
seria constituído por formadores de 
opinião no campo democrático, que 
pretendem retirar Bolsonaro das urnas 
em 2022, temerosos de uma tentativa de 
golpe tanto na hipótese de derrota – e o 
presidente tem avisado que só Deus o 
retira da cadeira de chefia do Poder 
Executivo e que não aceita resultado di-
ferente de sua reeleição – quanto na hi-
pótese de vitória, quando se sentiria 
“confortável” para governar de forma 
autoritária. O segundo grupo seria for-
mado por partidos de oposição e movi-
mentos sociais e sindicais, que denun-
ciam um suposto caráter autoritário e 
perseguidor do governo à diversidade e 
às minorias sociais. O terceiro grupo 
seria de parentes e amigos de vítimas 
da Covid-19, que atribuem ao presiden-
te a reponsabilidade por mais de meio 
milhão de mortes. O quarto grupo, for-
mado por liberais democratas e lidera-
do pelos movimentos Brasil Livre 
(MBL) e Vem Pra Rua, teria como fun-
damento o temor de que o ex-presiden-
te Lula derrote Bolsonaro na disputa fi-
nal. Por isso, pretendem retirar 
Bolsonaro da disputa de 2022, para que 
surja uma terceira via capaz de derrotar 
o petista, considerado por eles o mal 
maior. O quinto grupo, liderado pelo 
portal O Antagonista e pela Revista 
Crusoé, seria formado pelos lavajatistas 
e defensores do ex-juiz Sérgio Moro, in-
conformados com a postura do governo 
no combate à corrupção. Já o sexto gru-
po seria composto por parcela da popu-
lação que se sente prejudicada pela su-
posta indiferença e falta de empatia do 
presidente em relação às aspirações, 
desejos e necessidades, especialmente 
na área social, como emprego e renda. E 
o sétimo grupo, formado por pessoas 
que, tendo votado em Bolsonaro, se 
sentiram traídas pela inépcia governa-
mental em colocar em prática sua agen-
da e veem na posse do vice-presidente 
um caminho para a recuperação do go-
verno e de suas pautas conservadoras.
Para se viabilizar, entretanto, o mo-
vimento pró-impeachment precisaria 
superar cinco obstáculospolíticos, 
além de apresentar um bom funda-
mento jurídico. São eles: 1) o apoio do 
Centrão, que dá suporte político ao go-
verno; 2) a pandemia, que limita as ma-
nifestações de rua; 3) a persistência de 
apoio de parcela do empresariado; 4) o 
suporte militar a Bolsonaro; e 5) a falta 
de empenho do vice-presidente em su-
ceder a Bolsonaro. As dificuldades não 
são insuperáveis: o Centrão está sob 
forte pressão e parte dele pode migrar 
para uma terceira via; a pandemia está 
dando sinais de arrefecimento, com a 
massificação das vacinas; setores em-
presariais estão incomodados com o 
isolamento internacional do presiden-
te; as Forças Armadas estão desconfor-
táveis com sua associação aos erros go-
vernamentais; e surgem os primeiros 
sinais de que o vice-presidente demar-
ca terreno e se afasta de Bolsonaro, es-
pecialmente quando assegura que ha-
verá eleições em 2022.
As perspectivas de abertura de pro-
cesso de impeachment aumentam 
muito caso o vice-presidente, general 
Hamilton Mourão, assuma alguns 
compromissos, como defender a demo-
cracia, não disputar a reeleição e não 
mexer com os temas de interesse do 
Centrão, como emendas impositivas e 
fundo eleitoral e partidário. Esse cená-
rio tem 15% de chances de êxito.
Uma alternativa ao cenário de im-
peachment seria a renúncia negociada, 
na qual o presidente e seus filhos parla-
mentares ficariam blindados de pro-
cessos futuros decorrentes de supostos 
crimes praticados durante o mandato 
presidencial. O estilo confrontador de 
Bolsonaro e família, entretanto, não 
combina com esse tipo de “rendição”, 
daí o que justifica apenas 10% de chan-
ce de sucesso.
Uma última hipótese, que poderia 
se configurar num cenário de abertura 
de processo de impeachment, seria a 
renúncia não negociada de Bolsonaro 
– como fez Collor –, visando preservar 
seus direitos políticos, e o lançamento 
de um de seus filhos para suceder a ele. 
O senador Flávio Bolsonaro, embora 
também acusado de envolvimento em 
situações polêmicas, poderia ser a al-
ternativa mais provável para a conti-
nuidade do projeto de poder familiar. 
As chances são de 5%.
Cenário 2 O GOVERNO 
DÁ A VOLTA POR CIMA
O segundo cenário é o inverso do pri-
meiro, ou seja, o presidente consegui-
ria acalmar parte dessas forças políti-
cas, por meio do uso do orçamento 
público em 2022 em quatro frentes. O 
governo buscaria atender: 1) ao Cen-
trão, com a realização de obras; 2) aos 
mais pobres, turbinando o Bolsa Famí-
lia; 3) aos servidores, com revisão sala-
rial geral em 2022; e 4) à classe média 
baixa, mediante a correção da tabela 
Quatro cenários para o próximo período: impeachment do presidente; virada ou volta 
por cima do governo, criando as condições para viabilizar a reeleição; ruptura, em que 
o governo, pressentindo a derrota eleitoral, retoma o discurso da campanha e rompe com 
o Centrão; e derrota nas eleições e recusa de Bolsonaro em aceitar o resultado das urnas 
POR ANTÔNIO AUGUSTO DE QUEIROZ*
®® https://t.me/PDFs_Brasil
5AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
do imposto de renda. Além disso, a eco-
nomia nacional voltaria a crescer em 
ritmo intenso, criando condições para 
a geração de empregos, e a população 
atribuiria ao governo o retorno à nor-
malidade, com a vacinação e a imuni-
zação de todos os brasileiros.
As principais dificuldades desse se-
gundo cenário são de três ordens: legal, 
econômica e social. A primeira dificul-
dade, de ordem legal, decorre das res-
trições constitucionais, como as emen-
das constitucionais 95, do Teto de 
Gastos, e 109, da PEC Emergencial, que 
impedem a expansão do gasto na di-
mensão necessária para viabilizar esse 
cenário. Quanto à dimensão econômi-
ca, o crescimento tende a se manter em 
setores concentradores de renda, como 
os de commodities, do agronegócio e da 
mineração. Já a perspectiva social no 
pós-pandemia não favorece o governo, 
uma vez que a automação, a precariza-
ção das relações de trabalho e o cresci-
mento em setores pouco intensivos em 
mão de obra não contribuem para re-
duzir a pobreza e a miséria. A elevação 
nário 4 ele não acredita que possa per-
der a eleição, tal como Trump, e, após 
ser surpreendido com a derrota, se ne-
ga a aceitar o resultado. O fato é que, 
com ou sem abertura de processo de 
impeachment, caso não haja uma mu-
dança de postura do governo, os cená-
rios centrais são de derrota eleitoral. A 
tendência da eleição presidencial no 
momento não parece ser de continui-
dade, mas de renovação.
MUDANÇAS NO SISTEMA 
DE GOVERNO E DIFICULDADES 
DO PRÓXIMO PRESIDENTE
A perspectiva de eleição do ex-presi-
dente Lula, tanto quanto a própria ree-
leição de Bolsonaro, recolocará em 
pauta a ideia de mudança no sistema de 
governo, mediante a adoção de um se-
mipresidencialismo, semelhante ao 
modelo português, como forma de re-
duzir ou esvaziar os poderes do futuro 
presidente da República, o que vem 
sendo defendido por atores como o ex-
-presidente Temer e o presidente do Tri-
bunal Superior Eleitoral (TSE), Roberto 
Barroso. O argumento, todavia, é facili-
tar a solução nos casos de crise de go-
vernabilidade, quando se aprovaria um 
voto de censura ao primeiro-ministro 
ou então se dissolveria o Congresso Na-
cional, convocando novas eleições para 
a formação de um novo gabinete. Essa 
proposta, porém, tem sérios vícios de 
inconstitucionalidade, e sua adoção se-
ria um “golpe branco”, como já ocorreu 
em 1961, com a adoção do parlamenta-
rismo, que se seguiu à renúncia de Jânio 
Quadros, para reduzir os poderes do 
então vice-presidente, João Goulart.
Seja qual for o desfecho do processo 
sucessório em 2022, o próximo presi-
dente terá enormes dificuldades, seja 
pela desorganização da máquina pú-
blica, pela divisão do país entre esquer-
da e direita ou pela precariedade das 
condições econômicas e sociais no 
pós-pandemia. Além disso, o futuro 
presidente corre o risco de continuar 
sendo tutelado pelo Centrão e pelas 
Forças Armadas, mesmo que o eleito 
seja o ex-presidente Lula. 
Com a provável alternância de go-
verno em 2022, quem quer que seja 
eleito enfrentará um cenário de gran-
des dificuldades para reorganizar a 
máquina e governar, pois a política do 
atual governo tem sido de terra arrasa-
da: gerar fatos consumados pela via da 
privatização, promover o desmonte de 
instituições e a fragilização do serviço 
público, instrumentalizar ressenti-
mentos e deteriorar a democracia. Re-
ver tudo isso, na lógica das oposições, 
consumirá grandes energias do futuro 
presidente. 
*Antônio Augusto de Queiroz é jorna-
lista, analista e consultor político. É mes-
trando em Políticas Públicas e Governo 
pela FGV-DF.
da inflação, em um cenário de desem-
prego e forte perda de renda, é também 
um complicador, e, mesmo no caso de 
concessão de revisão geral para os ser-
vidores públicos, as limitações orça-
mentárias impediriam um reajuste su-
ficiente para recompor as perdas 
acumuladas desde 2019, que ultrapas-
sarão 15% até o fim de 2021. As chances 
desse cenário são de 10%.
Cenário 3 RUPTURA 
O terceiro cenário, diante do desgaste 
do governo por sua associação a desvio 
de conduta e práticas fisiológicas, seria 
de ruptura, no qual o presidente, numa 
atitude de desespero para evitar a der-
rota eleitoral, retomaria o discurso ra-
dical da campanha de 2018 de negação 
do sistema político. Nesse cenário, 
Bolsonaro romperia com o Centrão, 
sob o fundamento de que seu ministro 
do Gabinete de Segurança Institucio-
nal, general Augusto Heleno, tinha ra-
zão quando se referiu a esse “agrupa-
mento” fisiológico e corrupto. Seria a 
forma de fugir do estigma de um go-
verno corrupto e denunciar as “chan-
tagens” e os “desvios” do Centrão, além 
de acionar os órgãos de fiscalização e 
controle para constranger os deputa-
dos desse grupamento, especialmente 
o presidente da Câmara dos Deputa-
dos, de tal modo que uma eventual 
abertura de processo de impeachment 
fosse vista como retaliação.
Nessa perspectiva, a campanha elei-
toral de Bolsonaro teria comoretórica e 
narrativa centrais a necessidade de ele-
ger deputados e senadores para não 
continuar refém dos políticos fisiológi-
cos e corruptos. A lógica é de que, com 
uma base consistente – alinhada ideo-
logicamente –, o presidente poderia 
“enquadrar” o Judiciário, limitar o po-
der dos governadores e do Congresso 
Nacional, criando as condições para co-
locar em prática sua agenda “em defesa” 
da pátria, da família e da propriedade, e 
pôr fim à corrupção e à hegemonia “co-
munista”. Nesse cenário, apesar de ele-
ger uma grande bancada, o presidente 
não consegue se reeleger. As chances do 
cenário de ruptura são de 15%.
Cenário 4 DERROTA ELEITORAL E 
RECUSA EM ACEITAR O RESULTADO 
DAS URNAS: TRUMPISMO TROPICAL
O cenário mais provável, entretanto, é 
de continuidade de um governo fraco e 
refém do Congresso Nacional, hipótese 
na qual o presidente se arrastaria com 
algum apoio do Centrão, perderia parte 
do apoio empresarial, não se reelegeria 
e, a exemplo de Donald Trump, ex-pre-
sidente norte-americano, rejeitaria o 
resultado da eleição, porém não teria 
força para dar um golpe, concluindo o 
mandato completamente deslegitima-
do. Nesse cenário, além do apoio par-
cial do Centrão e da sustentação dos 
militares, o governo contaria com al-
gum crescimento econômico, mas in-
suficiente para recuperar o apoio po-
pular. A sustentação de segmentos das 
Forças Armadas e das polícias militar e 
civil, e de setores da sociedade engaja-
dos via redes sociais e alimentados por 
fake news poderia acarretar desestabi-
lização social, com conflitos e violên-
cia, causando turbulência no período 
pós-eleitoral e deixando em aberto um 
“retorno” de Bolsonaro, como preten-
deu Trump ao mobilizar grupos de 
apoio que culminaram com a invasão 
do Capitólio e sua recusa em reconhe-
cer a derrota. Chances de 35%.
Como se pode depreender da leitu-
ra, o ambiente político brasileiro é cla-
ramente de renovação, como foi nas 
eleições de 2002. Dos quatro cenários, 
apenas um – o de número 2 – é de ree-
leição. O de número 1 é de não conclu-
são do mandato, seja por impeachment 
ou por renúncia. Os cenários de núme-
ros 3 e 4 são de derrota eleitoral, com a 
diferença de que no cenário 3 o presi-
dente antevê o risco de derrota e busca 
dar um cavalo de pau, enquanto no ce-
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6 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021
Até agora se havia evitado ganhar as ruas para protestar e pedir o impeachment de Bolsonaro em função 
da severidade da pandemia, mas também de cálculos eleitorais velados. Os jovens puxaram, enfim, a luta. 
Já vacinados, os mais velhos se juntam a eles. Não há tarefa neste momento mais importante do que 
ampliar esses protestos e exigir a saída do presidente 
POR JOSÉ MAURÍCIO DOMINGUES*
A TAREFA NESTE MOMENTO
O 
impeachment como solução para 
as crises políticas passou a ser, 
desde a primeira eleição direta 
da Nova República, um fantasma 
que assombra os presidentes do Brasil, 
como forma de exercer a oposição e co-
mo resultado da insatisfação da popu-
lação. Corre-se o risco de banalizá-lo e, 
assim, ferir a democracia, como foi o 
caso em particular com o golpe parla-
mentar de 2016. Até agora, contudo, ne-
nhum mereceu ser afastado de maneira 
tão evidente e radical como o atual pre-
sidente da República, Jair Messias Bol-
sonaro. Sua atuação diante da pande-
mia do coronavírus e as ameaças contra 
a democracia que profere e tenta arti-
cular, com ausência total do decoro que 
o cargo exige, já deveriam tê-lo retirado 
do Palácio do Planalto. Que isso não te-
nha ainda ocorrido é prova de como 
caímos baixo, de como a República vem 
se degradando, com o sistema político 
estatal cada vez mais voltado para si 
mesmo. Na verdade, que Jair Bolsonaro 
tenha sido eleito presidente é já prova 
de que as virtudes republicanas andam 
em falta no país, talvez entre a popula-
ção, embora os votos que recebeu te-
nham sido antes de tudo de protesto, 
mas sobretudo no sistema político que 
deveria representar condignamente 
brasileiras e brasileiros.
Em documento entregue à CPI da 
Covid-19 do Senado Federal, listamos 
os inúmeros momentos em que o presi-
dente tratou de forma irresponsável e 
criminosa a saúde e a vida da popula-
ção desde o surgimento do coronaví-
rus, desrespeitando seus direitos mais 
básicos. Documentamos também co-
mo se lançou contra a democracia. Ini-
cio retomando essa análise.1
O presidente lutou contra os gover-
nadores para evitar o fechamento – ape-
nas parcial e de duração reduzida – das 
atividades econômicas ditas não essen-
ciais. Desafiou o conhecimento científi-
co e médico pronunciando-se contra o 
distanciamento social e o uso de más-
caras – na verdade, praticando pessoal-
mente o oposto do que aquele recomen-
dava, provocando aglomerações e 
estimulando seguidores e cidadãos de 
modo geral a não observar cuidados sa-
nitários mínimos para evitar a conta-
minação e a propagação do vírus. Pro-
moveu – inclusive financeiramente e 
envolvendo as Forças Armadas – trata-
mentos e remédios ineficazes e perigo-
sos, entre os quais cloroquina e vermí-
fugos. Chocou-se com o governo chinês 
por fazer provocações e deboches, no 
momento em que o país dependia de in-
sumos básicos para a produção de tes-
tes e vacinas. Desprezou os próprios 
testes e quis fazer da vacinação em 
massa uma impossibilidade para a po-
pulação. Atrasou a compra de vacinas 
de alta qualidade, desprezou a funda-
mental CoronaVac, a vacina do estado 
de São Paulo, pediu o mínimo possível 
de vacinas à iniciativa Covax da OMS e 
se recusa a vacinar-se. Isso ocorre por-
que Bolsonaro seguiu a inconfessa e in-
confessável estratégia de buscar a qui-
mérica, malsã e impossível “imunidade 
de rebanho”. Desrespeitou os direitos 
humanos e os direitos de cidadania de 
brasileiros e brasileiras, a começar pelo 
direito à vida e à saúde. Somente temos 
vacinas em massa porque a Fiocruz des-
de o início da pandemia autonomamen-
te buscou um acordo com a Universida-
de de Oxford e a AstraZeneca para 
fabricar sua vacina e, finalmente, gra-
ças à pressão da opinião pública. Trata-
-se claramente de uma sequência ab-
surda de crimes de responsabilidade, 
que não podem ficar impunes.
Além disso, estamos desde o início 
do governo Bolsonaro sob uma chanta-
gem permanente quanto à possibilida-
de de um autogolpe, com o que direitos 
políticos e inevitavelmente civis tam-
bém seriam lacerados. Como se isso 
não bastasse, como é de seu feitio, o 
presidente faz apologia sistemática do 
autoritarismo e do regime militar, 
apoiou protestos descabidos e golpistas 
contra as instituições do Estado de Di-
reito e da democracia, ofende as vítimas 
do coronavírus com piadas e comentá-
rios grosseiros, e lança dúvidas infun-
dadas e levianas sobre a segurança do 
sistema eleitoral brasileiro. Chocou-se 
com o Supremo Tribunal Federal (STF), 
que felizmente teve brios e convicção 
para fazer-lhe frente quando necessá-
rio. O presidente interferiu escancara-
damente na Polícia Federal e tem no 
mínimo permitido que instituições do 
Estado sejam usadas para atacar oposi-
tores. Mais uma vez, trata-se de crimes 
de responsabilidade continuamente 
cometidos. É espantoso que ainda se 
possa discutir se o impeachment desse 
presidente deve ou não ocorrer. É sobre-
tudo inaceitável que nenhum dos dois 
presidentes da Câmara dos Deputados 
tenha posto o tema do impeachment 
em discussão no Parlamento.
Direitos e cálculos, 
a democracia e o impeachment
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7AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
A CPI da Covid-19 vai, após nosso 
documento, aprofundando aspectos 
desse desatino e da tragédia em parte 
intencionalmente ou por descaso am-
plificada pelo Poder Executivo federal, 
além de trazer à baila, ainda que de 
maneira por vezes confusa e com mui-
tos elementos obscuros, certos esque-
mas de corrupção no Ministério da 
Saúde, relativos ao combate à pande-
mia e em particular à compra de vaci-
nas, se bem que esse tipode esquema 
viceje há tempos nessa área no Brasil. É 
importante expor esses malfeitos, mas 
deve estar claro que, se não houvesse 
um pingo de corrupção e se não se con-
seguir mostrar – porque não há ou por-
que os elos não são evidentes – o envol-
vimento do presidente com eles, em 
nada estaria a questão do impeach-
ment prejudicada, embora o tema da 
corrupção, tão arraigada, facilmente 
capture a atenção de cidadãos e cida-
dãs. Os crimes de responsabilidade do 
presidente Bolsonaro são muito mais 
graves do que supostas propinas ou 
prevaricações em denunciá-las: os di-
reitos à saúde e à vida dos brasileiros 
foram atropelados – com um número 
de mortes para além de 550 mil, muitas 
das quais, concordam todos os espe-
cialistas, poderiam ter sido evitadas se 
medidas adequadas tivessem sido to-
madas, com muitos mais enfermos que 
sofreram e sofrerão sequelas da Co-
vid-19 e outros ainda em razão da perda 
de seus entes queridos. 
O presidente no mínimo falhou em 
seu dever de, como primeiro mandatá-
rio do país, fazer respeitar esses direi-
tos, humanos e constitucionais, inten-
cionalmente ou por descaso. Desde o 
início está claro que essas perdas e esse 
sofrimento não lhe importavam, de 
modo doloso ou culposo. Bolsonaro 
preocupou-se e segue se preocupando 
tão somente com sua reeleição, bus-
cando a todo custo evitar uma recessão 
supostamente prejudicial a seus desíg-
nios, que afeta o mundo todo por causa 
da crise da pandemia, inclusive os paí-
ses que mais responsavelmente se 
comportaram ante ela, garantindo a 
saúde e poupando vidas.
Não, o impeachment não deve ser 
banalizado. Na verdade, deveríamos 
ter um referendo revogatório que fi-
zesse do povo o agente soberano de 
uma decisão tão grave como a retirada 
do cargo de um presidente eleito. Mas 
não temos esse mecanismo – que de-
vemos assim que possível introduzir 
na Constituição, em vez de buscar um 
parlamentarismo que não pode ser in-
troduzido de chofre, com objetivos 
obscuros e na verdade visando muito 
provavelmente bloquear ainda mais o 
funcionamento da democracia. O Bra-
sil tem um sistema político extrema-
mente problemático e altamente oli-
garquizado e (neo)patrimonialista, em 
que o chamado “Centrão” cumpre pa-
pel decisivo e deletério, no que acaba 
mimetizado pelos outros elementos do 
sistema partidário. Se todas as demo-
cracias liberais possuem um núcleo 
oligárquico, no Brasil ele é claramente 
dilatado e perverso, não obstante os 
elementos democráticos do sistema 
político que a Constituição de 1988 
consagrou. É de todo modo o que te-
mos no momento. Defendê-lo e adian-
te democratizá-lo é fundamental, e 
não vê-lo perecer ou ter a segunda pos-
sibilidade bloqueada.
Neste momento em especial, trata-
-se de responsabilizar um presidente 
que não respeita a Constituição e pro-
teger a democracia que temos, ainda 
que precise ser desoligarquizada e de-
mocratizada quando saiamos deste pe-
sadelo. Essa saída, deve-se enfatizar, 
também dependerá, em sua intensida-
de reconstrutiva no futuro, de nossa 
capacidade de mobilização hoje contra 
as tentativas de aleijá-la.
Pode-se olhar a questão de dois ân-
gulos: um estratégico ou tático, o ou-
tro das convicções. A política se move 
em larga medida em função do primei-
ro, uma vez que alcançar o poder de 
Estado é parte crucial de seu objetivo e 
funcionamento, mas não pode pres-
cindir dos valores, das convicções que 
devem sustentá-la, sob pena de con-
verter-se em uma atividade mesqui-
nha e espúria. Desde 2020, a questão 
do impeachment, com tantos crimes 
de responsabilidade se acumulando, 
não podia senão ter centralidade. Bol-
sonaro não podia ter sido eleito, e há 
responsabilidades várias em sua che-
gada à Presidência da República que 
terão de ser observadas mais adiante, 
mas permitir, sem luta, que lá se man-
tenha tampouco é aceitável. O cálculo 
político tático ou estratégico não é ra-
zoável em vista da situação do país. 
Deixar Bolsonaro simplesmente san-
grar é incorreto e imprudente tam-
bém, pois, se sua situação eleitoral é 
bastante difícil agora, pode perfeita-
mente se reverter nos próximos meses. 
A coalizão entre extrema direita, mili-
tares, Centrão e evangélicos pode até 
vir a se dissolver. Hoje, porém, segue 
vigente, e será somente com o aumen-
to da temperatura política e uma mais 
profunda perda de popularidade que 
Bolsonaro talvez desmorone.
Até agora se havia evitado ganhar 
as ruas para protestar e pedir o impea-
chment de Bolsonaro em função da se-
veridade da pandemia, mas também 
de cálculos eleitorais velados. Como 
sempre, os jovens puxaram, enfim, a 
luta, com desprendimento. Já vacina-
dos, os mais velhos se juntam a eles. 
Não há tarefa neste momento mais im-
portante do que ampliar esses protes-
tos e exigir a saída do presidente. Não é 
certo, talvez nem provável, que se con-
siga fazer com que a presidência da Câ-
mara finalmente abra um processo e o 
submeta ao Plenário, mas trata-se de 
uma obrigação moral inarredável e, 
caso não cheguemos a nosso objetivo, 
de uma maneira de expor ao país o 
desgoverno a que vem sendo submeti-
do. Parece que ao menos quanto ao se-
gundo ponto já há consenso, seja na 
esquerda, entre diversas correntes po-
líticas no Congresso ou em amplas ca-
madas da população.
Além disso, forja-se na luta pelo 
impeachment uma unidade democrá-
tica que certamente nos será necessá-
ria daqui até ao menos fins de 2022 – e, 
provável e infelizmente, para além 
disso. Não se configura ainda uma real 
frente democrática, uma vez que mui-
tas forças rejeitam, erroneamente, em 
nome de projetos meramente identitá-
rios e de poder, tal estratégia, mas ao 
menos nos unimos na luta pela defesa 
dos direitos de brasileiros e brasilei-
ras, assim como na defesa da demo-
cracia. Sem isso não vamos a lugar ne-
nhum. E, sabemos, são nossos direitos 
e a democracia que o presidente pre-
tende destruir, seja lá como for. Desta 
vez não pode haver dúvidas do que de-
vemos fazer: 
Fora, Bolsonaro!
*José Maurício Domingues é sociólogo 
e professor do Iesp-Uerj.
1 Ver Ligia Bahia, Jamil Chade, Claudio S. De-
decca, José Maurício Domingues, Guilherme 
Leite Gonçalves, Mônica Herz, Lena Lavinas, 
Carlos Ocké-Reis, María Elena Rodríguez e 
Fabiano Santos, “A tragédia brasileira do co-
ronavírus/Covid-19: uma análise do desgover-
no do governo federal, 2020-2021”, docu-
mento entregue à CPI da Covid-19 do Senado 
Federal em 28 de abril de 2021. Disponível 
originalmente nos sites da ABI e do Clacso 
(neste caso em inglês e espanhol também), 
foi agora publicado na revista Insight Inteli-
gência, n.93, sob o título “A tragédia brasileira 
do coronavírus” (https://inteligencia.insight-
net.com.br/documento-especial-a-tragedia-
-do-coronavirus/).
Deixar Bolsonaro 
simplesmente sangrar 
é incorreto e impruden-
te, pois sua situação 
eleitoral pode perfeita-
mente se reverter nos 
próximos meses
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8 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021
SUS na pandemia: 
um herói trágico
Em nome da “saúde da economia”, o governo federal se tornou cúmplice de mortes que 
poderiam ter sido evitadas e não logrou reverter a recessão econômica. Essa escolha 
política nos conduziu a uma situação na qual não tivemos políticas efetivas contra a 
Covid-19 nem melhorias nas taxas de emprego e renda 
POR LIGIA BAHIA*
SAÚDE
V
ivas ao SUS, que atende pacientes 
graves e vacina a população gra-
tuitamente, substituíram as notí-
cias sobre as deficiências assis-
tenciais da rede pública. O sinal de 
mais na frente da palavra SUS, acres-
centado no contexto das respostas 
equivocadas e omissões do governo fe-
deral para o enfrentamento da pande-
mia do novo coronavírus, é, em princí-
pio, contraditório. O SUS tornou-se 
herói, embora o país tenha perdido 
mais de meio milhão de habitantes – 
um reconhecimento pelos méritos de 
uma política pública universal e suas 
ações e especialmente pelo trabalho de 
profissionais de saúde. O aparente pa-
radoxo pode ser compreendido tanto 
no âmbitointernacional como no con-
texto singular do país.
Manifestações de apreço aos servi-
ços públicos e a quem neles atua, mais 
ou menos efusivas, ocorreram em di-
versos países. Em tese, bons sistemas de 
saúde seriam capazes de interpor bar-
reiras efetivas para proteger vidas da 
população. Segundo esse critério, evitar 
mortes, tradicionais sistemas univer-
sais de saúde e os orientados pelo mer-
cado teriam sido reprovados. Experiên-
cias bem-sucedidas de supressão de 
casos de Covid-19 ocorreram em países 
asiáticos e na Austrália e Nova Zelândia, 
evidenciando a importância das estra-
tégias populacionais. Reino Unido, Itá-
lia, França e mesmo Alemanha, apesar 
da adoção de políticas distintas, apre-
sentam altas taxas de mortalidade, e o 
país que mais gasta com saúde no mun-
do acumula o maior número de mortes. 
Sob o fogo cruzado dos debates so-
bre lockdown e testagem versus políti-
cas menos radicais de fechamento de 
atividades econômicas, o atendimento 
aos pacientes, exigente de organização 
de serviços e dedicação de médicos e 
enfermeiros, que foram, junto com pa-
cientes idosos, os primeiros a morrer, 
causou enorme comoção. Foi estabele-
cida uma linha divisória entre os gover-
nos e as instituições públicas de saúde. 
Em países com governos bem avaliados 
ou não, os sistemas de saúde receberam 
elogios. Um reconhecimento amplo, in-
clusive, da declaração de profissionais 
de saúde em diversas línguas “não que-
remos só aplausos”, expressando a ne-
cessidade de condições adequadas de 
trabalho, desde equipamentos de pro-
teção individual, remuneração ajusta-
da à sobrecarga laboral, equipes com-
pletas e oferta adequada de leitos, 
equipamentos e medicamentos. 
No Brasil, a admiração pelo SUS 
contou, desde o início, com a adesão de 
lideranças de todos os matizes políticos. 
As polêmicas se concentraram em torno 
da magnitude da pandemia, do funcio-
namento das atividades econômicas, 
dos medicamentos e das vacinas. O que 
mudou foi a extensão do consenso sobre 
o SUS para a mídia tradicional. A expe-
riência com a Covid-19 transformou o 
SUS em talismã nacional. A expressão 
“se não fosse o SUS, seria muito pior” 
passou a ser pronunciada como agrade-
cimento e respeito. A saúde pública, de 
mazela, se tornou solução. A apreciação 
do SUS tal como ocorreu em países com 
sistemas públicos universais veio acom-
panhada da conscientização sobre a re-
levância da ciência e da fragilidade da 
base tecnológica setorial. 
A falta de testes, oxímetros, cilin-
dros de oxigênio, aventais, máscaras 
cirúrgicas, leitos de CTI e profissionais 
de saúde evidenciou não apenas a forte 
dependência de importações de itens 
estratégicos, mas também incompe-
tências administrativas que trouxeram 
à tona desafios antigos que se somaram 
à competição nos processos de aquisi-
ção favoráveis aos compradores priva-
dos. O SUS exibiu mais insuficiências 
do que os sistemas de saúde de países 
ricos. A rede capilarizada e potencial-
mente capaz de realizar ações de vigi-
lância epidemiológica nos territórios 
permaneceu desmobilizada, e o aten-
dimento a casos graves foi perpassado 
por atos nobres e por angústia e deses-
pero de pacientes, familiares e respon-
sáveis pelo atendimento.
Portanto, o SUS tornou-se um herói 
pela tentativa de proteção. Suas imen-
sas e extensas falhas assistenciais, 
antes objeto de críticas impacientes 
com a cronicidade dos problemas de 
acesso e qualidade das ações da rede 
pública, cederam vez a crônicas emo-
tivas das batalhas pela vida. As conde-
corações nacionais, no entanto, não 
tiveram as mesmas consequências 
daquelas outorgadas a outros sistemas 
locais. Experiências da pandemia esti-
mularam mudanças nas políticas de 
saúde em diversos países. Mais recur-
sos orçamentários destinados à área, 
valorização dos profissionais de saúde 
e intensificação das conexões entre 
instituições de pesquisa e desenvolvi-
mento de tecnologias constituem pon-
tos de uma agenda básica e quase con-
sensual. No Brasil, a marca “Mais SUS” 
ficou no ar e tem sido aspergida por 
movimentos sociais, mídia comercial 
e alternativa, mas sem contrapartidas 
objetivas em fóruns político-partidá-
rios e governamentais. 
No início de 2021, com sinais claros 
de repique dos casos e óbitos por Co-
vid-19, Ricardo Barros e Arthur Lira, 
respectivamente líder do governo e 
presidente na Câmara dos Deputados, 
afirmaram que “a saúde não precisa 
de mais dinheiro” e que “a saúde tem 
recursos demais, o problema é a ges-
tão”. Pouco tempo depois, o ministro 
da Economia, Paulo Guedes, declarou: 
“Não tem gestão na saúde pública, o 
setor público não vai conseguir acom-
panhar a questão da saúde. O setor 
privado é a solução [...] nós vamos ter 
que fazer na saúde igual se fez no auxí-
lio emergencial. Pobre tá doente? Dá 
um voucher para ele. Quer ir no Eins-
tein? Vai no Einstein. Quer ir ao SUS, 
pode usar seu voucher onde quiser”. 
Nas esferas estaduais e municipais, há 
tentativas de preservar e expandir as 
ações de saúde pública. Contudo, as 
eleições para governadores e prefeitos, 
embora tenham dado margem a ava-
liações díspares sobre as coalizões po-
líticas vitoriosas e derrotadas, não re-
verteram a tendência iniciada em 2016 
de encolhimento das representações 
parlamentares favoráveis às políticas 
públicas universais. 
ERROS E OMISSÕES
Desde quando foram iniciados os pri-
meiros esforços para conhecer o pro-
cesso de transmissão do coronavírus, 
estudiosos brasileiros de diferentes 
áreas de conhecimento alertaram as 
autoridades públicas sobre a necessi-
dade de mobilizar vigorosamente polí-
ticas, programas e ações para o enfren-
tamento da pandemia. Contudo, as 
políticas públicas, permeadas por erros 
e omissões e seus trágicos desdobra-
mentos sanitários, políticos e econômi-
cos, tragaram o país para o epicentro 
da pandemia em função de respostas 
tardias e insuficientes à prevenção de 
casos e óbitos. A indisposição, hesita-
ção e recusa em conter e monitorar a 
infecção rompeu com boas tradições 
de vigilância epidemiológica, medidas 
preventivas e preparação de cuidados 
aos pacientes graves desenvolvidas na-
cionalmente ao longo de décadas. 
Decisões atravessadas pelo descaso 
com o controle de portos, aeroportos e 
fronteiras, o funcionamento de ativida-
des econômicas e o apoio financeiro a 
indivíduos e empresas foram incorretas 
e ambíguas. Faltaram insumos estraté-
gicos para a saúde, e as lacunas na oferta 
de recursos assistenciais não foram su-
pridas; atualmente, há escassez de vaci-
nas. Medidas de proteção populacional 
e individual foram substituídas por ata-
ques à ciência e às experiências históri-
cas. A legislação promulgada em feve-
reiro do ano passado autorizou o 
governo a mobilizar recursos existentes 
e ampliou o orçamento público. No en-
tanto, leitos privados e a readequação da 
capacidade instalada para a produção 
de insumos, tais como testes e máscaras 
de maior qualidade e menor custo, não 
foram devidamente mobilizados.
Estratégias de bloqueio da dissemi-
nação do vírus se tornaram indisponí-
veis pela conjugação de quatro ordens 
de fatores: a minimização da magnitu-
de da pandemia e o descrédito nas 
orientações científicas; a adoção de 
programa oficial para “tratamento pre-
coce” enganoso; políticas insuficientes 
e intermitentes de auxílio emergencial 
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9AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
e expansão do sistema de saúde; e des-
continuidades administrativas, péssi-
ma gestão financeira no Ministério da 
Saúde e inação de comitês de crise. A 
banalização das mortes e das sequelas 
causadas pela doença e a difusão da 
ideia de que faleceriam apenas pessoas 
idosas ou com comorbidades, ou pes-
soas que não tivessem acesso ao “trata-
mento precoce”, sintetizam a recusa ao 
enfrentamento da Covid-19 (Cepedisa, 
2021). Em nome da “saúde da econo-
mia”, o governo federal se tornou cúm-
plice de mortes que poderiam ter sido 
evitadas e não logrou reverter a reces-
são econômica. Essa escolha políticanos conduziu a uma situação na qual 
não tivemos políticas efetivas contra a 
Covid-19 nem melhorias nas taxas de 
emprego e renda. 
MORTES EVITÁVEIS, 
RESPONSABILIDADES ATRIBUÍVEIS
Em situações de crise sanitária, a res-
ponsabilidade de evitar mortes na pan-
demia compete aos governos nacio-
nais. No Brasil, a recusa às orientações 
para mitigar casos e mortes impediu o 
país de poupar vidas. Profissionais da 
saúde, trabalhadores expostos a am-
bientes com ar rarefeito e aglomera-
ções, pessoas vivendo em instituições 
asilares e prisionais, povos indígenas, 
quilombolas e ribeirinhos, habitantes 
de favelas e periferias e morbidades 
prévias deveriam ter sido prioritaria-
mente protegidos. 
O país atravessa uma pandemia há 
um ano e seis meses sem adotar ações 
necessárias para enfrentar a dissemi-
nação do novo coronavírus. O desprezo 
do governo pelas vidas impediu a reali-
zação de campanhas sanitárias infor-
mativas, a mobilização da solidarieda-
de social (convocação de movimentos 
sociais, igrejas, empresas, mídias e ins-
tituições de ensino e pesquisa), a dis-
tribuição de máscaras de boa qualida-
de, testes para rastreamento e a 
aquisição tempestiva de vacinas. Esti-
mativas fundamentadas em cálculos 
sobre excesso de óbitos e impactos de 
medidas populacionais sugerem que 
pelo menos 120 mil mortes, até o fim de 
março de 2021, poderiam ter sido evita-
das se uma política efetiva de controle 
baseada em ações não farmacológicas 
tivesse sido adotada.
Outro contingente significativo de 
mortes evitáveis, embora também de 
difícil dimensionamento, são aquelas 
que poderiam não ter ocorrido pela efe-
tiva atuação da rede básica de serviços 
de saúde, ou seja, incluindo testes, mo-
nitoramento de casos, providências pa-
ra autoisolamento e referenciamento 
ágil para hospitais de qualidade. O 
acesso a testes para detecção de casos e 
contatos, que deveriam permanecer 
isolados para buscar reduzir o poten-
cial de transmissão, foi extremamente 
rarefeito e desigual em termos de raça/
cor e renda, uma inversão entre neces-
sidades e obtenção de cuidados inad-
missível, especialmente durante uma 
pandemia. Haveria ainda a possiblida-
de de poupar vidas de pacientes hospi-
talizados, mas mais de 20 mil pessoas 
morreram em unidades de atendimen-
to pré-hospitalar ou emergências, es-
pecialmente na rede pública. Seria im-
prudente ter um cálculo preciso de 
quantas vidas seriam salvas se essas 
pessoas tivessem acesso a hospitais e 
unidades de terapia intensiva. Mas é 
importante afirmar que as informa-
ções sugerem retenção do acesso e que 
as mortes em instalações de urgência e 
emergência não foram igualmente dis-
tribuídas. Ocorreram óbitos especial-
mente na população que buscou a rede 
pública, integrada por uma maior pro-
porção de negros e pessoas com menor 
status de renda e possivelmente mais 
vulneráveis (Alerta Covid, 2021). 
SALVAR VIDAS
A chamada urgente é para salvar vidas 
mediante uma dupla estratégia de va-
cinação e adesão a medidas de saúde 
pública de proteção da infecção. Nin-
guém está seguro até que todos este-
jam seguros. O presidente da Repúbli-
ca, que continua estimulando 
aglomerações, não se vacinou e reti-
rou a máscara de uma criança, encar-
na o estado de coisas inconstitucional 
na política pública de saúde brasilei-
ra. Diversas iniciativas, entre as quais 
a da Associação Nacional do Ministé-
rio Público de Contas, solicitam “ga-
rantir a alocação do maior volume 
possível de recursos para o SUS; a im-
posição de realização de testes na po-
pulação em condições de suspeita de 
infecção por Covid-19; a distribuição 
gratuita de máscaras PFF2; o levanta-
mento e divulgação de dados estatísti-
cos sobre os casos confirmados, sus-
peitos e em investigação; e a criação 
de uma central nacional de regulação 
unificada de leitos públicos e privados 
em unidades de tratamento intensi-
vo” (Ampcon, 2021).
Afirmações como “temos de apren-
der a viver com o vírus” são slogans co-
nectados com o afã da abertura indis-
criminada de atividades econômicas e 
se referem uma vasta gama de cenários 
possíveis, alguns dos quais potencial-
mente muito prejudiciais, sobretudo 
para os mais vulneráveis. Vacinas e 
medidas de saúde pública altamente 
eficazes viabilizam a possibilidade de 
não conviver com a Covid-19, uma in-
fecção de múltiplos órgãos com conse-
quências de longo prazo (longo Covid) 
para muitos, incluindo crianças. Opta-
mos por não conviver com infecções vi-
rais graves, como poliomielite e saram-
po, e temos estratégias nacionais e 
regionais para eliminá-las. 
Limitar a disseminação da Covid-19 
o mais rápido possível é a melhor defe-
sa contra o surgimento contínuo de va-
riantes mais infecciosas e que podem 
não ser controladas pelas atuais vaci-
nas. O potencial do país para debater, 
formular e assumir estratégias efetivas 
de saúde pública foi boicotado e encon-
tra-se objetivamente ameaçado. Não 
levar a ciência em consideração, agre-
dir cientistas e mesmo ridicularizar as 
possibilidades de realizar ações de cui-
dados à saúde é diferente da situação 
de destruição objetiva das bases para o 
enfrentamento de ameaças à saúde pú-
blica. A certeza de que o Brasil teria evi-
tado milhares de morte se baseia em 
uma capacidade científica e assisten-
cial anterior ao racionamento radical 
de recursos para seu financiamento. A 
maioria dos países está transformando 
seus sistemas de saúde, dotando-os de 
recursos humanos, materiais e finan-
ceiros para proteger suas populações 
de riscos à saúde. A CPI da Covid afir-
mará um futuro menos sombrio se 
identificar os responsáveis por mortes 
evitáveis e contribuir para viabilizar 
um SUS potente e qualificado. 
*Ligia Bahia é professora da Faculdade de 
Medicina da Universidade Federal do Rio de 
Janeiro (UFRJ) e integrante da Associação 
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
• ALERTA COVID. Mortes evitáveis por Co-
vid-19 no Brasil. Estudo apresentado à 
CPI da Covid em 23 de junho de 2021.
• AMPCON. Arguição de Descumprimento 
de Preceito Fundamental (ADPF 866). 
Protocolada em 8 de julho de 2021. 
• CEPEDISA (Centro de Estudos e Pesqui-
sas de Direito Sanitário), Faculdade de 
Saúde Pública da USP. A linha do tempo 
da estratégia federal da disseminação 
da Covid-19. Atualizado mediante soli-
citação da Comissão Parlamentar de In-
quérito, por meio do Ofício 57/2021-CPI-
PANDEMIA, 28 maio 2021.
Aproximadamente 120 
mil mortes, entre as que 
ocorreram até o fim de 
março de 2021, pode-
riam ter sido evitadas 
por medidas de controle
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10 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021
Impeachment, 
bolsonarismo e militarização
A depender de como o cenário do impeachment se desenrole, não é difícil imaginar que haja situação parecida com o 
que ocorreu nos ataques do Capitólio em janeiro. Setores milicianos e policiais, sobretudo, poderiam produzir algo no 
mesmo sentido. No entanto, a tendência de qualquer atentado similar ser mais violento ainda no Brasil é gigantesca 
POR JULIA ALMEIDA VASCONCELOS DA SILVA*
ENTRE O PASSADO E O FUTURO
O 
Brasil vive um momento único 
de sua história. A crise da Nova 
República se aprofunda e nos 
aproxima de uma grande encru-
zilhada. Mas não se trata do simples 
imbricamento de dois caminhos futu-
ros; nossa encruzilhada é de passado, 
do fim de um verniz que não comporta 
nova pintura. Diante do abismo do sub-
terrâneo que se revela, a possibilidade 
de pavimentação de um novo destino 
dependerá da movimentação de engre-
nagens contraditórias, que precisarão 
subverter e reinventar o próprio tempo 
– passado, presente e futuro –, num 
único, novo e ousado enredo.
A possibilidade de impeachment 
do presidente Jair Bolsonaro cresceu 
significativamente a partir dos desdo-
bramentos da CPI da Pandemia, em 
especial após as revelações de super-
faturamento da Covaxin, envolvendo 
possível corrupção de militares do go-
verno, políticos do Centrão e até do 
próprio presidente. O crescimento das 
mobilizações nas ruas, com ampliaçãopara mais setores sociais e políticos, 
assim como a pesquisa acerca da opi-
nião da população e dos setores eco-
nômicos sobre o impeachment (pes-
quisa nacional DataFolha de 6 e 7 de 
julho de 2021) também contribuem 
para esse cenário. No entanto, temos 
vivenciado um jogo contraditório, no 
qual quanto mais o governo se enfra-
quece e menos força social lhe resta, 
maior é o discurso autoritário de Bol-
sonaro e dos militares a ele atrelados.
A base de sustentação do governo 
se constituiu por setores do agronegó-
cio, do capital financeiro, industriais 
interessados nas reformas que reduzi-
ram o custo do trabalho, do funda-
mentalismo religioso, das classes mé-
dias conservadoras e do campo social 
das Forças Armadas na sociedade (mi-
litares, polícias e milícias). Do ponto 
de vista político, novos representantes 
da extrema direita se elegeram, sobre-
tudo pelo “efeito Bolsonaro” de 2018, 
mesmo que depois tenham se desloca-
do do governo. O aparecimento de no-
vos quadros políticos e a perda de es-
paço de políticos mais tradicionais 
nunca houve grandes impedimentos 
ou ressalvas das principais elites eco-
nômicas a saídas autoritárias para pre-
servar seus interesses. Foi o caso do 
golpe do Estado Novo em 1937, das in-
vestidas militares em 1945 e 1954 e, fi-
nalmente, do golpe civil-militar de 
1964. Essas intervenções das Forças Ar-
madas na política institucional são 
acompanhadas de uma intensa politi-
zação dos quartéis e de uma estrutura-
ção da estratégia de poder (às vezes 
também de país)2 no núcleo dos diri-
gentes militares. Não é circunstancial 
que o golpe de 2016 também marque o 
retorno dos militares na política insti-
tucional de forma direta. Foi com Te-
mer que, pela primeira vez desde sua 
criação, em 1999, o Ministério da Defe-
sa teve um militar como titular.
também mexeram no tabuleiro. Entre-
tanto, longe de jogar fora da política 
tradicional, a capacidade de desloca-
mento do Centrão pelo governo, com a 
vitória de Arthur Lira para a presidên-
cia da Câmara, tem sido fundamental 
para a sustentação de Bolsonaro. 
Dentro desse panorama, um possí-
vel impeachment precisa ser capaz de 
deslocar parte desses setores sociais, 
políticos e econômicos. Para iniciar-
mos esse quadro, é fundamental enten-
dermos que o avanço autoritário na ins-
titucionalidade brasileira, desde o golpe 
de 2016, foi organizado como uma saída 
para a manutenção da acumulação e da 
concentração de capital em meio à crise 
econômica.1 Ou seja, a eleição de Bolso-
naro e a constituição de uma base pro-
tofascista, motivada por discursos de 
ódio, não são mero acidente na conjun-
tura brasileira. Elas representam uma 
saída para a manutenção de determina-
dos interesses econômicos, que se ma-
terializaram sobretudo nas reformas 
ultraneoliberais (previdenciária, traba-
lhista, Teto de Gastos, privatizações, 
entre outras). Mas não só. Elas também 
passam pelos afetos mais conservado-
res de setores sociais que perderam pri-
vilégios nos anos anteriores e sentiram 
seus valores ameaçados.
Por esse pano de fundo, fica eviden-
te que os segmentos econômicos bene-
ficiados pelo governo Bolsonaro não 
apoiarão qualquer alternativa sem a 
preservação dessa agenda econômica e 
de seus interesses. Desse modo, e tendo 
em vista o histórico de funcionamento 
do pendão democrático brasileiro, 
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Militares fazem montagem de equipamentos para ensaio da posse presidencial de Jair Bolsonaro
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11AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
Por sua vez, a militarização do go-
verno Bolsonaro é inequívoca. Além 
da Vice-Presidência, são mais de 6 mil 
postos de cargos comissionados na ad-
ministração pública direta e indireta, 
segundo levantamento do TCU de ju-
lho de 2020, ministérios e funções-
-chave no governo. O caso da militari-
zação do Ministério da Saúde, em meio 
à maior pandemia que o país já enfren-
tou e que levou a óbito mais de 500 mil 
brasileiros, foi emblemático. Isso tor-
na indissociável o balanço do governo 
Bolsonaro das instituições militares. 
Só que estas não estão acostumadas 
com o jogo democrático de cobranças 
e uma cadeia de controle institucional, 
pelo contrário. 
Por essa razão, não pode nos causar 
estranhamento a nota de 7 de julho, 
assinada pelo ministro da Defesa, ge-
neral Braga Netto, e os três comandan-
tes das Forças Armadas ameaçando o 
Senado por conta de pronunciamento 
sobre militares na CPI da Pandemia. 
Foi uma ameaça à democracia e um 
contraponto, uma chamada para a ten-
tativa de acordo de uma opção que 
passe pelos militares.
Esse aumento do tom dos militares 
também tem causado certa tensão de 
que haja autonomização do projeto mi-
litar em relação às elites civis e mudan-
ça do formato de aliança atual. A dinâ-
mica de 1964, cuja parcela da elite que 
apoiou o golpe se sentiu traída quando 
os militares optaram por assumir a 
Presidência diretamente, ainda ecoa 
nessas relações. A atual proposta de se-
mipresidencialismo, encabeçada por 
Lira, parece ser uma tentativa de man-
ter avançando a perspectiva autoritá-
ria, com maior controle desse Centrão 
associado a Bolsonaro. Lira tem nas 
mãos a barganha sobre a abertura ou 
não do impeachment – portanto, força 
para aumentar sua influência no gover-
no quanto mais frágil Bolsonaro fica. É 
fundamental destacarmos essa dinâ-
mica de disputa interna desse bloco de 
poder, pois, apesar das alianças, os in-
teresses não são homogêneos, mas hoje 
confluem e coexistem.
Há muitas movimentações em cur-
so para a permanência desses setores 
no Planalto. O horizonte que tem in-
tensificado essa tensão são as eleições 
de 2022, com projeções da eleição de 
Lula e a impossibilidade, até o momen-
to, de outra candidatura capaz de dis-
putar base popular. Permanecendo até 
as eleições de 2022, Bolsonaro pode 
não aceitar seu resultado eleitoral. O 
debate sobre voto impresso tem sido o 
pretexto para isso, e ele começa a ser 
repercutido também por comandantes 
militares. De igual modo, a possibili-
dade de alguma saída mais radical de 
Bolsonaro, caso tentem votar o impea-
chment ou o cenário eleitoral não me-
lhore, pode levar à antecipação de ou-
tras saídas, como o autogolpe. Por fim, 
é possível existir alternativas que não 
passem por Bolsonaro: é o caso da con-
solidação do impeachment, que pode-
ria manter o equilíbrio entre parcela 
desses setores econômicos, militares e 
parte do Centrão, e ainda viabilizar a 
construção de uma terceira via. 
Portanto, nessa hipótese pós-im-
peachment, assumiria o general Mou-
rão, que tem perfil intervencionista e 
posições autoritárias, as quais ganha-
ram visibilidade na mídia antes mesmo 
de assumir como vice da chapa presi-
dencial em 2018.3 Mourão protagoni-
zou alguns dos episódios de ameaça do 
governo à democracia, com destaque 
para seu artigo de opinião no Estadão,4 
após as convocações de militares para 
depor no STF, em que faz ameaças às 
demais instituições.
Nos núcleos militares do governo 
Bolsonaro, não parece haver diferenças 
significativas em termos de estratégia, 
pois há unidade no núcleo central em 
relação ao projeto ultraneoliberal e ali-
nhamento automático com os Estados 
Unidos. Evidentemente, como qual-
quer grupo político que disputa o po-
der, há nuances, sobretudo de disputas 
internas nas posições-chave de poder, 
cuja assunção de Mourão poderia pro-
duzir alterações no quadro interno mi-
litar, mas não na dinâmica geral da mi-
litarização. Portanto, os militares têm 
um plano B para se manterem no jogo e 
não há nenhuma disposição ou possi-
bilidade de recuo drástico de sua parti-
cipação na política sem que haja reação 
desses setores.
Sendo assim, o maior risco envolvi-
do no processo de impeachment, ou 
na perda das eleições de 2022 por Bol-
sonaro, é haver uma reação de grupos 
extremistas de extrema direita e/ou 
militares. Há a consolidação de grupos 
de ódio no país, de setores radicais de 
extrema direita, alimentadospela má-
quina do ódio do bolsonarismo, mas 
que sobretudo encontram força num 
braço armado de setores das Forças 
Armadas e da segurança pública. É o 
caso do crescimento das milícias du-
rante o governo Bolsonaro, que am-
pliaram significativamente seu poder 
territorial, econômico e político.5 Mas 
não apenas, pois setores das polícias 
militares, mesmo que não ligados às 
milícias, são uma importante base de 
apoio do governo.
As polícias militares já foram fonte 
alternativa de poder político das oli-
garquias locais em relação à formação 
do Exército nacional e à centralização 
da Polícia Federal. Seu poderio mili-
tar, no começo da República, chegou a 
fazer frente ao do Exército. Eram con-
troladas pelos governadores dos esta-
dos e submetidas aos seus interesses. 
Após um longo processo, as polícias 
militares foram submetidas às Forças 
Armadas, tendo seu auge durante a di-
tadura, como braço importante da re-
pressão política e do controle social. 
Com esse processo, houve uma divi-
são no seio da militarização, com as 
polícias no centro do controle social 
(que colocaria em prática a necropolí-
tica6 nos territórios periféricos em no-
me da guerra às drogas).
Todavia, essas alterações institu-
cionais produziram um efeito impor-
tante, pois os governadores têm pouco 
ou quase nenhum controle sobre suas 
polícias, sendo o bolsonarismo quem 
tem a principal influência nesse setor. 
Essa não é uma circunstância qual-
quer, pois os setores militares sempre 
foram disputados por inúmeros proje-
tos ao longo da República. O que acon-
tece agora é que o desenho inicial das 
polícias nas mãos das oligarquias lo-
cais não é mais majoritário (a exemplo 
do que aconteceu na greve do Ceará em 
2019, quando Cid Gomes foi alvejado 
em motim da PM). De igual modo, seto-
res da esquerda que sempre disputa-
ram parcelas dessas polícias não pos-
suem mais nenhuma inserção. O fato 
de praticamente a única força política 
que disputa esse setor armado ser o 
bolsonarismo (e os próprios militares) 
é preocupante na correlação de forças 
geral e suas perspectivas. A única hipó-
tese de tensão entre as Forças Armadas 
e subsidiárias é se, efetivamente, Bol-
sonaro e os militares cindirem seu ca-
minho de forma não pactuada – hoje a 
hipótese menos provável. 
Portanto, a depender de como o ce-
nário de impeachment se desenrole, 
não é difícil imaginar que haja situação 
parecida com o que ocorreu nos ata-
ques do Capitólio em janeiro deste ano 
nos Estados Unidos. Setores milicianos 
e policiais, sobretudo, poderiam pro-
duzir algo no mesmo sentido. No en-
tanto, a tendência de qualquer atenta-
do similar ser mais violento ainda no 
Brasil é gigantesca, porque envolveria 
setores militares orgânicos. 
Todos esses cenários de maior en-
durecimento encontram uma tensão 
importante, que é o apoio internacio-
nal. É evidente que a derrota de Trump 
foi fundamental para o enfraqueci-
mento do avanço da extrema direita 
no mundo, sobretudo pelo poder sim-
bólico desse revés. No entanto, parece 
um equívoco associar a política exter-
na de Washington às disputas inter-
nas durante suas eleições. Assumindo 
a Presidência, Biden passou a ter de 
considerar os interesses da disputa de 
potência mundial dos Estados Unidos. 
E, no momento geopolítico atual, é 
notório o acirramento da disputa de 
hegemonia entre Estados Unidos e 
China, com necessidade de consolida-
ção de aliados no mundo. O alinha-
mento automático aos norte-america-
nos é algo que o governo Bolsonaro ou 
até mesmo um eventual governo Mou-
rão pode oferecer. A relação tumultua-
da do Brasil com a China ajuda essa 
dinâmica. Além disso, o Brasil sempre 
foi baliza central na disputa da Améri-
ca Latina pelos Estados Unidos. A vin-
da do chefe-geral da CIA ao Brasil, sem 
que haja transparência de qual foi a 
agenda tratada, com participação dos 
generais Heleno, Braga Neto e Luís Ra-
mos e de Bolsonaro, pode indicar seja 
possível a Casa Branca fazer essa 
aposta no Brasil. A cooperação militar 
anunciada após essa reunião também 
aumenta essa conjectura.
Por todo o exposto, é evidente que 
não vivemos uma normalidade demo-
crática há algum tempo, sendo o im-
peachment uma etapa importante para 
a derrota de Bolsonaro e o enfraqueci-
mento do bolsonarismo, que poderá se 
pulverizar, mas sobretudo perderá sua 
figura “popular”. No entanto, é eviden-
te que suas bases de sustentação não 
serão destruídas e já tentam achar no-
vas composições. A derrota do bolsona-
rismo permanecerá como pauta, pois 
esse fenômeno representa o escancara-
mento das raízes autoritárias de nossa 
formação social e econômica: a heran-
ça escravocrata e o racismo institucio-
nal, a posição patrimonialista de um 
Estado rifado por interesses econômi-
cos para fins privados, a violência de 
gênero proveniente da herança patriar-
cal e a militarização da sociedade e da 
política. Em suma, toda herança colo-
nial brasileira, que permanece pun-
gente e precisa de mudanças estrutu-
rais. Não há atalho nesse sentido para 
enfrentar esse novo marco de desnudez 
reacionária; precisaremos encarar as 
bases que a engendram. 
*Julia Almeida Vasconcelos da Silva é 
advogada, mestre em Direito pela UFRJ e 
integrante do NEV-USP.
1 Eduardo Costa Pinto, “O Brasil no rede-
moinho: o governo Bolsonaro e o butim da 
burguesia”, Le Monde Diplomatique Brasil, 
jul. 2021. 
2 A criação do Instituto General Villas Bôas 
(IGVB) é um exemplo dessa tentativa mais re-
cente. Durante muito tempo, a Escola Supe-
rior de Guerra (ESG) cumpriu essa função. 
3 “Veja o que mudou na conduta de Mourão an-
tes e depois da posse como vice”, Folha de 
S.Paulo (online), 25 abr. 2019.
4 Antonio Hamilton Martins Mourão, “Limites e 
responsabilidades”, O Estado de S. Paulo, 
14 maio 2020.
5 “A expansão das milícias no Rio de Janeiro: 
uso da força estatal, mercado imobiliário e 
grupos armados – Relatório final”, Geni-UFF e 
Ippur-UFRJ, jan. 2021. 
6 “Necropolítica: política da morte”. In: Silvio 
Almeida, Racismo estrutural, São Paulo, Pó-
len, 2019.
Há a consolidação de 
grupos de ódio no país, 
de setores radicais de 
extrema direita, alimen-
tados pela máquina do 
ódio do bolsonarismo
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12 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021
Raças e classes: 
o caldeirão latino-americano
Com as independências do século XIX, a América Latina abandonou oficialmente 
as hierarquias raciais que prevaleceram durante a colonização: não se devia 
mais distinguir os descendentes de indígenas, escravos e colonos europeus. 
Mas a divisão étnica do período imperial foi substituída por uma 
“pigmentocracia”, que faz da cor da pele um marcador social 
POR EZEQUIEL ADAMOVSKY*
UMA QUESTÃO DE QUATRO SÉCULOS
N
a América Latina, como em qual-
quer outra parte, o capitalismo 
alicerçou suas hierarquias de 
classes apoiando-as nas distin-
ções étnicas e raciais preexistentes. Às 
duas categorias surgidas na conquista 
(século XVI) – de um lado, os autócto-
nes; do outro, os colonizadores espa-
nhóis e portugueses –, o desenvolvi-
mento da escravidão acrescentou uma 
terceira, com estatuto jurídico, étnico e 
social diferente. Contudo, a integrida-
de desses três grupos não resistiu ao 
lento processo de mestiçagem pelo 
qual a região passou. O século XVII as-
sistiu, assim, ao surgimento de um sis-
tema de castas que subdividiu os não 
totalmente brancos em diversas cate-
gorias jurídicas baseadas em seu grau 
de mestiçagem ou na proporção de ca-
da um de seus componentes raciais.
Reivindicando os valores iluminis-
tas, as independências aboliram ofi-
cialmente toda e qualquer forma de 
discriminação da sociedade. O espaço 
latino-americano viu, no entanto, per-
durar uma “pigmentocracia” que atri-
bui à cor da pele, à textura dos cabelos 
e a alguns outros traços físicos mais 
sutis a função de indicador na ordem 
social. Essa hierarquia entre cidadãos 
se organiza segundo uma escala de ca-
tegorias difusas, uma sequência de to-
nalidades de cor no seio da qual ocri-
tério de brancura não se fundamenta 
na “pureza” do sangue, mas resulta 
das circunstâncias: a pessoa é consi-
derada branca conforme o lugar e o 
contexto, podendo-se eventualmente 
ignorar uma linhagem de cores “duvi-
dosas” caso haja sólidas garantias em 
termos de educação e, sobretudo, ri-
queza. Dos que parecem indubitavel-
mente brancos aos que manifestamen-
te não o são, tem-se toda uma gama de 
adjetivos ambíguos abertos muitas ve-
zes a subdivisões: índio, mestiço (cho-
lo), pardo, moreno, escuro (morocho), 
“chinês”, mulato, café com leite etc. A 
lógica é implacável, mas flexível. Am-
biguidade e porosidade garantem a 
persistência do sistema e sua adapta-
ção às contingências.
No mundo anglo-saxão, onde a 
mestiçagem é menos pronunciada e a 
presença de colonos brancos é mais 
importante, as hierarquias raciais se 
organizam de forma mais nítida: de 
um lado, os brancos; do outro, os ne-
gros. Conforme a regra da gota única 
de sangue (one-drop rule), o branco au-
têntico tem de ser 100% branco. Uma 
só gota de sangue de outra origem con-
verte-o, por isso mesmo, em não bran-
co, ou seja, em negro. À diferença de 
seu equivalente latino-americano, o 
modelo anglo-saxão execra as mistu-
ras: último estado norte-americano a 
abolir as leis que interditavam os casa-
mentos inter-raciais, o Alabama só 
adotou essa medida em 2000. Na Amé-
rica Latina, as legislações racistas des-
se tipo desapareceram, quase todas, 
dois séculos antes. Às vezes, mais.
A diferença entre os dois sistemas se 
reflete nas narrativas nacionais distin-
tas. Nos Estados Unidos, pensa-se que 
a nação surgiu de um grupo étnico es-
pecial, parecido aos “pais fundadores”, 
irredutivelmente brancos e anglo-sa-
xões. Aqui, o ethnos é anterior à funda-
ção do país; depois disso, supõe-se que 
ele acolha em seu regaço outros grupos 
qualificados de “minorias”, em um pro-
cesso que pode, por fim, engendrar 
uma sociedade multirracial. Esse mul-
ticulturalismo propõe uma narrativa 
na qual as minorias se integram a seu 
ambiente, mas ainda assim continuam 
vistas como diferentes, cada uma com 
suas cores e costumes próprios. O pa-
pel fundamental atribuído aos brancos 
não é de modo algum afetado.
DISCRIMINAÇÃO 
POSITIVA NO BRASIL
A América Latina nunca se deu ao tra-
balho de definir a qual grupo étnico 
seus “pais fundadores” pertenciam. 
Uma vez arrancada das coroas espa-
nhola e (de maneira diferente) portu-
guesa, a soberania foi confiada, confor-
me se convencionou, às mãos do povo. 
Em vez de recorrerem a um ethnos pree-
xistente, os processos de formação na-
cional se basearam sobretudo em uma 
etnogênese. A palavra “crioulo” traduz 
essa indeterminação: cunhada para 
qualificar os negros nascidos na Améri-
ca, foi aos poucos se impondo como ter-
mo genérico que podia designar tanto 
uma população miscigenada quanto 
qualquer pessoa nascida no continente, 
pouco importando sua origem. As elites 
dirigentes da maior parte da América 
Latina incentivam narrativas fundadas 
no princípio da hibridização: nação 
“mestiça” no México, “democracia ra-
cial” no Brasil ou nação “café com leite” 
na Venezuela. Ao contrário, outros paí-
ses – como a Argentina – se imaginam 
historicamente brancos e europeus.
Em tal contexto, os movimentos po-
pulares que surgiram na região durante 
o século XX deram prioridade, natural-
mente, às identidades de classe. Do Par-
tido Revolucionário Institucional (PRI) 
no México ao Partido dos Trabalhado-
res (PT) no Brasil, passando pela Alian-
ça Popular Revolucionária Americana 
(Apra) no Peru ou pelo peronismo na 
Argentina, a maior parte das formações 
políticas ligadas à esquerda se dirige – 
quase sempre falando, inclusive, em seu 
nome – a cidadãos definidos sobretudo 
pela condição de trabalhadores ou cam-
poneses. O peronismo argentino, em es-
pecial, se mostra particularmente hábil 
nessa área. O “trabalhador” ao qual ele 
se dirige também é chamado de cabeci-
ta negra: uma pessoa de pele escura, 
mas sempre definida em termos de clas-
se. Semelhante ambivalência põe em 
xeque a visão de uma nação “branca” 
sem, todavia, promover uma organiza-
ção social sobre bases raciais, o que não 
deixa de ser perigoso em um país onde 
as classes sociais se compõem de seg-
mentos múltiplos e mesclados, dos 
quais muitos são de origem europeia.
Três mecanismos alteram progres-
sivamente esse quadro. O primeiro diz 
respeito à tenacidade militante dos 
grupos indígenas ou afrodescendentes 
perante o racismo. O segundo fator se 
prende à expansão do neoliberalismo, 
que enfraquece a ação pública e reduz 
a capacidade do Estado de “construir 
uma nação” concedendo direitos a seus 
cidadãos. Enfim, o multiculturalismo e 
as “políticas de identidade” importadas 
do Norte vão impregnando aos poucos 
os discursos, veiculados muitas vezes 
por ONGs, universitários e militantes. 
Entretanto, a defesa das identidades 
alimenta também os discursos da es-
querda, que se esforçam por banir as 
humilhações impostas a cidadãos con-
siderados de “segunda classe”. Na Bolí-
via, e depois no Equador, a chegada ao 
poder de Evo Morales (2006-2019) e Ra-
fael Correa (2007-2017) abalou a ordem 
constitucional e estabeleceu Estados 
“plurinacionais”. No Brasil, o PT ins-
taurou um sistema de discriminação 
positiva em 2008, com cotas de vagas 
nas universidades reservadas a negros 
e índios, primeira medida desse tipo no 
contexto regional.
Acrescida a políticas sociais que 
privilegiam os mais necessitados – e, 
portanto, quase sempre os menos bran-
cos –, essa afirmação de um direito à 
diferença fomenta, em contrapartida, a 
expressão de um racismo tanto mais 
violento quanto implica a perda de pri-
© Renato Caetano
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13AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
vilégios. Por ocasião do golpe de Estado 
de 2019, a direita conservadora bolivia-
na deu livre curso ao ódio aos “índios” 
e sua cultura, queimando bandeiras e 
pisoteando símbolos culturais. Hugo 
Chávez, eleito presidente da Venezuela 
em 1998, e Pedro Castillo, que acaba de 
vencer as eleições presidenciais perua-
nas, também tiveram de suportar as 
zombarias racistas das camadas rea-
cionárias de seus países.
Mas os novos objetivos proclama-
dos pelos governos progressistas susci-
tam também debates legítimos sobre a 
melhor maneira de articular as refor-
mas sociais e a luta contra as discrimi-
nações. No Brasil, por exemplo, o siste-
ma de discriminação positiva provoca 
intensas discussões, e alguns progres-
sistas se dizem preocupados com o que 
percebem como a introdução de um 
modo de classificação racial, típico dos 
anglo-saxões, desconectado das reali-
dades locais. Controvérsia teórica? Tal-
vez: no debate público, logo se julgou 
necessário nomear comissões de espe-
cialistas das universidades para com-
bater a “fraude racial” e determinar, 
com bases pretensamente objetivas, 
quem era negro e quem não era.
Toda estratégia tem seu custo: uma 
política centrada nas questões raciais 
pode contribuir para enfraquecer as 
identidades de classe, e vice-versa. Dos 
tzotzil do México aos mapuche do Chi-
le e da Argentina, a América Latina 
conta com centenas de povos autócto-
nes que vivem como minorias em so-
ciedades que os excluem ou discrimi-
nam de várias maneiras. Isso se aplica 
também a dezenas de grupos afrodes-
cendentes que se reúnem em comuni-
dades, como os raizal na Colômbia ou 
os quilombolas no Brasil; eles também 
reclamam seus direitos à terra e à igual-
dade. Essas reivindicações, sobretudo 
quando se chocam contra fortes resis-
tências, levam inevitavelmente os que 
as defendem a reforçar sua identidade 
coletiva e a traçar uma linha de demar-
cação entre “nós” e os outros.
Existem ainda grupos de vítimas do 
racismo que não vivem em comunida-
des e não se identificam necessaria-
mente com um grupo étnico particu-
lar. São milhões de pessoas de pele 
mais ou menos escura que compõem o 
grosso das classes populares. Minoria? 
Ao contrário: trata-se do grupo demo-
gráfico mais importante

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