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00169 7520047719819 diplomatique ®® https://t.me/PDFs_Brasil 2 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021 É ISSO QUE QUEREMOS? Ditadura digital POR SERGE HALIMI* B em-vindo à China Ocidental! A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os Estados trabalhem para convencer a todos da utilidade indiscutível da vacina con- tra a Covid-19, em vez de apelar para a violência. Emmanuel Macron decidiu de outro modo. O presidente, que nunca deixa de atacar o “iliberalismo”, vê as li- berdades públicas apenas como uma variável negligenciável que logo desapa- recerá por trás das outras urgências do momento: médicas, de segurança e guerreiras. Proibir milhões de pessoas de pegar o trem, pedir uma refeição no restaurante ou ver um filme no cinema sem terem de provar que não foram in- fectadas nem fornecerem, se necessá- rio, dez vezes ao dia, um documento de identidade que o comerciante terá de ve- rificar nos leva a outro mundo. Ele já existe. Na China, precisamente. Os poli- ciais dispõem de óculos de realidade au- mentada que, ligados a câmeras térmi- cas instaladas nos capacetes, permitem descobrir uma pessoa febril no meio da multidão.1 É isso que queremos? Seja como for, endossamos com muita benevolência a invasão digital galopante e o rastreamento de nossa vida íntima e profissional, nossas mu- danças, nossas escolhas políticas. Questionado sobre como evitar que nossos dados, depois de nossos celula- res serem hackeados, se tornem armas apontadas para nós, Edward Snowden disse: “O que podem fazer as pessoas para se proteger das armas nucleares? Das armas químicas ou biológicas? Há indústrias e setores contra os quais não existe proteção, por isso tentamos impedir que proliferem”. É exatamente o oposto que Macron incentiva, precipitando a substituição das interações humanas por um ema- ranhado de sites administrativos, ro- bôs, mensagens de voz, QR Codes, apli- cativos para downloads. A partir de agora, reservar uma passagem ou com- prar on-line requer tanto um cartão de crédito quanto a comunicação do nú- mero do celular ou mesmo do estado civil. Tempo houve, e não foi a Idade Média, em que a pessoa podia pegar o trem no anonimato, cruzar uma cida- de sem ser filmada, sentir-se livre por não deixar vestígios de sua passagem. No entanto, já havia sequestros de crianças, ataques terroristas, epide- mias – e até guerras... O princípio da precaução não co- nhecerá limites. É seguro, por exem- plo, encontrar em um restaurante uma pessoa que já viajou para o Oriente Mé- dio, usou drogas, participou de mani- festações proibidas e frequentou livra- rias anarquistas? O risco de não terminar a refeição por causa de uma bomba, uma rajada de Kalachnikov ou um soco no rosto não é grande, mas também não pode ser descartado. En- tão, todos os transeuntes logo terão de apresentar um “passe cívico” que ga- ranta sua ficha limpa e o aval da polí- cia? Eles poderiam depois perambular tranquilamente por um museu das li- berdades públicas, transformados em “territórios perdidos da República”. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 Ver Félix Tréguer, “Urgence sanitaire, réponse sécuritaire” [Urgência de saúde, resposta de se- gurança], Le Monde Diplomatique, maio 2020. FAZER ALIANÇA FRANCESA É... aprender francês na prática e no seu ritmo FAZER ALIANÇA FRANCESA É... aprender francês na prática e no seu ritmo • Aprenda com professores especialistas • Aulas on-line e ao vivo pela plataforma Zoom + Plataformas on-line para imersão no idioma • Aprenda com professores especialistas • Aulas on-line e ao vivo pela plataforma Zoom + Plataformas on-line para imersão no idioma Matrículas abertas Condições promocionais e isenção de taxa de matrícula Matrículas abertas Condições promocionais e isenção de taxa de matrícula 11. 3017-5699 aliancafrancesa.com.br 11. 3017-5699 aliancafrancesa.com.br ®® https://t.me/PDFs_Brasil 3AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil EDITORIAL © Claudius POR SILVIO CACCIA BAVA A extrema direita no Brasil não sur- giu ontem, ela tem uma longa his- tória que remonta aos anos 1930 e se atualiza nos dias de hoje, com novas tecnologias, mas as mesmas ideias. Seu ideário defende as classes dominantes e seus privilégios e entende as desigualdades sociais como justas e amparadas pelas tradições, pelo sobre- natural. Influenciado pela ascensão do fascismo na Europa nos anos 1920, pelo tradicionalismo e conservadorismo da Igreja Católica e pela cultura escravo- crata das elites locais, ele encontrou na conjuntura política do período as con- dições para sua expansão no país. Já nos anos 1920 foi criada a Legião do Cruzeiro do Sul (1922); na década de 1930 formaram-se vários movimentos, como a Ação Integralista Brasileira (1932), a Ação Social Brasileira (Partido Nacional Fascista), a Legião Cearense do Trabalho e o Partido Nacional Sindi- calista. A Ação Integralista Brasileira, a maior, converteu-se em partido e conta- va, em 1936, com um importante con- tingente de militantes – entre 600 mil e 1 milhão, num país cuja população total à época rondava os 40 milhões de pes- soas.1 Esses grupos opunham-se ao comunismo, à perda da ordem moral, à separação da Igreja e do Estado, à demo- cracia, aos direitos humanos. Eram nacionalistas e defendiam um Estado totalitário, controlador dos indivíduos e de suas organizações coletivas. Em 1960 foi criada a Tradição, Famí- lia e Propriedade (TFP), movimento que se alia à ala conservadora da Igreja Católica. Dois bispos brasileiros – Dom Geraldo Sigaud e Dom Antonio de Cas- tro Mayer – lançaram naquele ano o livro Reforma agrária: questão de cons- ciência, no qual expressam seu antico- munismo e sua oposição a processos de distribuição de renda.2 Durante a ditadura de 1964-1985, os militares buscaram nos evangélicos conservadores seus novos aliados, afastando-se da Igreja Católica pro- gressista e de sua Teologia da Liberta- ção. Essa aliança defendia a agenda an- ticomunista, contra os cristãos de esquerda, de reafirmação das desigual- dades sociais e de defesa de uma moral conservadora. Com o fim da ditadura e a promul- gação da Constituição de 1988, esses grupos não deixaram de existir, mas se recolheram. Novos atores entraram em cena, buscando aliciar adesões aos seus valores, à sua agenda. É o caso das emis- soras de TV que sustentam programas de apologia da violência policial contra os pobres e promovem a identificação do favelado com bandido e o genocídio dos jovens negros. É o caso também das igrejas evangélicas neopentecostais, com sua agenda conservadora nos valo- res e sua oposição ao aborto e aos casa- mentos homossexuais. Chegando aos dias de hoje, a agen- da da extrema direita se mantém. E é preciso dizer que ela e o governo Bolso- naro têm o suporte das principais enti- dades de representação patronal – Fe- braban, CNI, Fiesp –, do agronegócio, de setores do comércio, assim como dos principais jornais e emissoras de TV. Na interpretação do cientista políti- co alemão Jean Werner Mueller, “as eli- tes se retiraram do mundo social e polí- tico comum”; não lhes interessa saber ou participar da vida em sociedade e da convivência com os diferentes.3 A extrema direita é “antissocial, au- toritária, ultraliberal, promotora do ar- mamento de civis, negacionista da ciência e da educação pública, contro- ladora do pensamento científico, con- frontadora das instituições democráti- cas, dos poderes da República, do voto, das eleições”.4 O principal é a intolerân- cia com os diferentes, com as reivindi- cações das minorias; a tendência é ex- cluir ou mesmo eliminar os outros. Essa extrema direita é uma minoria – alguns analistas falam em 12% do elei- torado; outros até menos hoje em dia. Se- gundo pesquisas, existe no Brasil (agosto de 2020) 15% de eleitores fascistas e 15% de conservadores não fascistas simpati- zantes que apoiam o governo Bolsona- ro.5 Desde então esse número vem cain- do e os simpatizantesreduziram. Essa minoria que compõe o núcleo duro do bolsonarismo é radical. Ela trabalha com desinformação, aliena seu público da realidade, retira a possi- bilidade do pensamento crítico, se ba- seia na política do medo. “Na guerra, vale tudo”, argumentam os coordena- dores desses processos de produção de fake news. Sua presença nas redes so- ciais veio se tornando forte graças a po- líticas do Facebook e do WhatsApp, principalmente; com seus novos algo- ritmos, que buscam radicalizar o que cada um vê, vão puxando para o centro das atenções sites de extrema direita que antes eram marginais. As tecnologias de inteligência artifi- cial modificaram profundamente o te- cido social. Manipulam o comporta- mento humano, as escolhas, a formação da opinião. Mas isso não basta. O que vemos agora é o governo procurando monitorar o comportamento e a visão política dos opositores, perseguir quem é contra, reduzir a participação da so- ciedade em questões políticas. A nego- ciação do governo federal com Israel para comprar tecnologia de vigilância, o Pegasus, é para esse fim.6 Com recursos públicos, o governo federal criou o “gabinete do ódio”, para produzir as fake news, destruir reputa- ções, criar a narrativa que identifica os inimigos e defender o governo. A partir daí, cerca de 100 hubs reproduzem e distribuem esse conteúdo; são influen- ciadores digitais (65%), políticos e par- tidos de direita (20%) e o público geral de direita (5%) que propagam essas mensagens.7 A agenda é criada para desviar a atenção das questões cen- trais, como a destruição das políticas sociais, o aumento da desigualdade ou a deliberada omissão no tratamento da pandemia, para propor uma guerra cultural. As milícias digitais comple- tam o serviço, ameaçam os opositores e destroem reputações. Essa extrema direita se fortalece com a guerra híbrida promovida pelos Estados Unidos no Brasil desde a pri- meira eleição de Lula, recrudescendo a partir de 2016. É o estímulo de conflitos identitários que exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioe- conômicas e geográficas e promovem a polarização na sociedade. O objetivo é impedir o PT de chegar ao governo. A Lava Jato, orientada pela Agência de Segurança Nacional (NSA) norte-ame- ricana, foi um de seus principais ins- trumentos.8 1 Hélgio Trindade, “Integralismo”. Disponível em: www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/ verbete-tematico/integralismo. 2 Benjamin Cowan, “Maiorias morais nas Améri- cas: Brasil, Estados Unidos e a criação da di- reita religiosa”. In: André Pagliarini, “Religiosos e reacionários”, Folha de S.Paulo, 25 jul. 2021. 3 Entrevista com Jean Werner Mueller, O Esta- do de S. Paulo, 25 jul. 2021. 4 Eliezer Rizzo, “Protagonismo militar está em pleno ato”, O Estado de S. Paulo, 25 jul. 2021. 5 Mauricio Mogilka, “Ascensão da extrema direi- ta e reconstrução do campo progressista no Brasil”. Disponível em: https://periodicos.uni- fap.br/index.php/pracs/article/view/6389. 6 Francisco Gaetani e Virgílio de Almeida, “In- teligência artificial e democracia”, Valor, 22 jul. 2021. 7 MAP – agência de análise de dados da mí- dia, resultados analisando a polêmica do voto impresso. “Renda e saúde: a ‘vida real’ nas redes sociais”, O Estado de S. Paulo, 25 jul. 2021. 8 Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, “Agentes externos provocaram uma ‘guerra híbrida’ no Brasil, diz escritor”, Brasil de Fato, 19 out. 2018. A extrema direita tem história ®® https://t.me/PDFs_Brasil 4 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021 IMPEACHMENT, REELEIÇÃO, GOLPE... Cenários sobre o futuro do governo Bolsonaro O presente texto discute o futuro do governo Bolsonaro com base em quatro cenários que consideram a correlação de forças da atual con- juntura, os erros acumulados nesses dois anos e meio de mandato e as recen- tes denúncias de corrupção envolvendo o governo. O primeiro cenário, que de- pende de condições políticas e jurídicas, é de impeachment do presidente; o se- gundo é de virada ou de volta por cima do governo, no qual o chefe do Poder Executivo cria as condições para viabili- zar sua reeleição; o terceiro é de ruptura, em que o governo, pressentindo a derro- ta eleitoral, retoma o discurso da cam- panha de 2018 e rompe com o Centrão; e o quarto é de derrota e recusa em aceitar o resultado das urnas, tal como ocorreu com o ex-presidente Donald Trump, nos Estados Unidos. A efetivação de qual- quer um dos cenários dependerá de cin- co condições: 1) da popularidade do presidente; 2) do desempenho da eco- nomia e do emprego; 3) das manifesta- ções de rua; 4) do posicionamento das Forças Armadas; e 5) do apoio político no Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados. Os referidos cenários têm como pa- no de fundo as cinco principais acusa- ções da oposição (partidária, midiáti- ca, jurídica e dos movimentos sociais e sindicais) à postura do governo e ao estilo pessoal do presidente da Repú- blica quanto: 1) ao desrespeito à demo- cracia, com reiteradas manifestações antidemocráticas dele, de seu entorno e de seus seguidores; 2) ao desprezo do presidente pela vida expresso em atos e declarações negacionistas, como a omissão na aquisição de vacinas e a re- jeição aos protocolos de saúde durante a pandemia (como a recusa ao uso de máscara, ao distanciamento e ao isola- mento social); 3) à destruição e perse- guição das instituições e colegiados de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente; 4) ao despreparo e disfun- cionalidade do governo, com a priori- zação da luta política em detrimento da gestão e da formulação de políticas públicas; e, mais recentemente, 5) ao alheamento ou à indiferença às de- núncias de corrupção no governo, es- pecialmente nos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde. Cenário 1 IMPEACHMENT O primeiro cenário teria motivações variadas, difusas e até contraditórias, sob a liderança de sete grupos políticos. O grupo mais expressivo e estratégico seria constituído por formadores de opinião no campo democrático, que pretendem retirar Bolsonaro das urnas em 2022, temerosos de uma tentativa de golpe tanto na hipótese de derrota – e o presidente tem avisado que só Deus o retira da cadeira de chefia do Poder Executivo e que não aceita resultado di- ferente de sua reeleição – quanto na hi- pótese de vitória, quando se sentiria “confortável” para governar de forma autoritária. O segundo grupo seria for- mado por partidos de oposição e movi- mentos sociais e sindicais, que denun- ciam um suposto caráter autoritário e perseguidor do governo à diversidade e às minorias sociais. O terceiro grupo seria de parentes e amigos de vítimas da Covid-19, que atribuem ao presiden- te a reponsabilidade por mais de meio milhão de mortes. O quarto grupo, for- mado por liberais democratas e lidera- do pelos movimentos Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua, teria como fun- damento o temor de que o ex-presiden- te Lula derrote Bolsonaro na disputa fi- nal. Por isso, pretendem retirar Bolsonaro da disputa de 2022, para que surja uma terceira via capaz de derrotar o petista, considerado por eles o mal maior. O quinto grupo, liderado pelo portal O Antagonista e pela Revista Crusoé, seria formado pelos lavajatistas e defensores do ex-juiz Sérgio Moro, in- conformados com a postura do governo no combate à corrupção. Já o sexto gru- po seria composto por parcela da popu- lação que se sente prejudicada pela su- posta indiferença e falta de empatia do presidente em relação às aspirações, desejos e necessidades, especialmente na área social, como emprego e renda. E o sétimo grupo, formado por pessoas que, tendo votado em Bolsonaro, se sentiram traídas pela inépcia governa- mental em colocar em prática sua agen- da e veem na posse do vice-presidente um caminho para a recuperação do go- verno e de suas pautas conservadoras. Para se viabilizar, entretanto, o mo- vimento pró-impeachment precisaria superar cinco obstáculospolíticos, além de apresentar um bom funda- mento jurídico. São eles: 1) o apoio do Centrão, que dá suporte político ao go- verno; 2) a pandemia, que limita as ma- nifestações de rua; 3) a persistência de apoio de parcela do empresariado; 4) o suporte militar a Bolsonaro; e 5) a falta de empenho do vice-presidente em su- ceder a Bolsonaro. As dificuldades não são insuperáveis: o Centrão está sob forte pressão e parte dele pode migrar para uma terceira via; a pandemia está dando sinais de arrefecimento, com a massificação das vacinas; setores em- presariais estão incomodados com o isolamento internacional do presiden- te; as Forças Armadas estão desconfor- táveis com sua associação aos erros go- vernamentais; e surgem os primeiros sinais de que o vice-presidente demar- ca terreno e se afasta de Bolsonaro, es- pecialmente quando assegura que ha- verá eleições em 2022. As perspectivas de abertura de pro- cesso de impeachment aumentam muito caso o vice-presidente, general Hamilton Mourão, assuma alguns compromissos, como defender a demo- cracia, não disputar a reeleição e não mexer com os temas de interesse do Centrão, como emendas impositivas e fundo eleitoral e partidário. Esse cená- rio tem 15% de chances de êxito. Uma alternativa ao cenário de im- peachment seria a renúncia negociada, na qual o presidente e seus filhos parla- mentares ficariam blindados de pro- cessos futuros decorrentes de supostos crimes praticados durante o mandato presidencial. O estilo confrontador de Bolsonaro e família, entretanto, não combina com esse tipo de “rendição”, daí o que justifica apenas 10% de chan- ce de sucesso. Uma última hipótese, que poderia se configurar num cenário de abertura de processo de impeachment, seria a renúncia não negociada de Bolsonaro – como fez Collor –, visando preservar seus direitos políticos, e o lançamento de um de seus filhos para suceder a ele. O senador Flávio Bolsonaro, embora também acusado de envolvimento em situações polêmicas, poderia ser a al- ternativa mais provável para a conti- nuidade do projeto de poder familiar. As chances são de 5%. Cenário 2 O GOVERNO DÁ A VOLTA POR CIMA O segundo cenário é o inverso do pri- meiro, ou seja, o presidente consegui- ria acalmar parte dessas forças políti- cas, por meio do uso do orçamento público em 2022 em quatro frentes. O governo buscaria atender: 1) ao Cen- trão, com a realização de obras; 2) aos mais pobres, turbinando o Bolsa Famí- lia; 3) aos servidores, com revisão sala- rial geral em 2022; e 4) à classe média baixa, mediante a correção da tabela Quatro cenários para o próximo período: impeachment do presidente; virada ou volta por cima do governo, criando as condições para viabilizar a reeleição; ruptura, em que o governo, pressentindo a derrota eleitoral, retoma o discurso da campanha e rompe com o Centrão; e derrota nas eleições e recusa de Bolsonaro em aceitar o resultado das urnas POR ANTÔNIO AUGUSTO DE QUEIROZ* ®® https://t.me/PDFs_Brasil 5AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil do imposto de renda. Além disso, a eco- nomia nacional voltaria a crescer em ritmo intenso, criando condições para a geração de empregos, e a população atribuiria ao governo o retorno à nor- malidade, com a vacinação e a imuni- zação de todos os brasileiros. As principais dificuldades desse se- gundo cenário são de três ordens: legal, econômica e social. A primeira dificul- dade, de ordem legal, decorre das res- trições constitucionais, como as emen- das constitucionais 95, do Teto de Gastos, e 109, da PEC Emergencial, que impedem a expansão do gasto na di- mensão necessária para viabilizar esse cenário. Quanto à dimensão econômi- ca, o crescimento tende a se manter em setores concentradores de renda, como os de commodities, do agronegócio e da mineração. Já a perspectiva social no pós-pandemia não favorece o governo, uma vez que a automação, a precariza- ção das relações de trabalho e o cresci- mento em setores pouco intensivos em mão de obra não contribuem para re- duzir a pobreza e a miséria. A elevação nário 4 ele não acredita que possa per- der a eleição, tal como Trump, e, após ser surpreendido com a derrota, se ne- ga a aceitar o resultado. O fato é que, com ou sem abertura de processo de impeachment, caso não haja uma mu- dança de postura do governo, os cená- rios centrais são de derrota eleitoral. A tendência da eleição presidencial no momento não parece ser de continui- dade, mas de renovação. MUDANÇAS NO SISTEMA DE GOVERNO E DIFICULDADES DO PRÓXIMO PRESIDENTE A perspectiva de eleição do ex-presi- dente Lula, tanto quanto a própria ree- leição de Bolsonaro, recolocará em pauta a ideia de mudança no sistema de governo, mediante a adoção de um se- mipresidencialismo, semelhante ao modelo português, como forma de re- duzir ou esvaziar os poderes do futuro presidente da República, o que vem sendo defendido por atores como o ex- -presidente Temer e o presidente do Tri- bunal Superior Eleitoral (TSE), Roberto Barroso. O argumento, todavia, é facili- tar a solução nos casos de crise de go- vernabilidade, quando se aprovaria um voto de censura ao primeiro-ministro ou então se dissolveria o Congresso Na- cional, convocando novas eleições para a formação de um novo gabinete. Essa proposta, porém, tem sérios vícios de inconstitucionalidade, e sua adoção se- ria um “golpe branco”, como já ocorreu em 1961, com a adoção do parlamenta- rismo, que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros, para reduzir os poderes do então vice-presidente, João Goulart. Seja qual for o desfecho do processo sucessório em 2022, o próximo presi- dente terá enormes dificuldades, seja pela desorganização da máquina pú- blica, pela divisão do país entre esquer- da e direita ou pela precariedade das condições econômicas e sociais no pós-pandemia. Além disso, o futuro presidente corre o risco de continuar sendo tutelado pelo Centrão e pelas Forças Armadas, mesmo que o eleito seja o ex-presidente Lula. Com a provável alternância de go- verno em 2022, quem quer que seja eleito enfrentará um cenário de gran- des dificuldades para reorganizar a máquina e governar, pois a política do atual governo tem sido de terra arrasa- da: gerar fatos consumados pela via da privatização, promover o desmonte de instituições e a fragilização do serviço público, instrumentalizar ressenti- mentos e deteriorar a democracia. Re- ver tudo isso, na lógica das oposições, consumirá grandes energias do futuro presidente. *Antônio Augusto de Queiroz é jorna- lista, analista e consultor político. É mes- trando em Políticas Públicas e Governo pela FGV-DF. da inflação, em um cenário de desem- prego e forte perda de renda, é também um complicador, e, mesmo no caso de concessão de revisão geral para os ser- vidores públicos, as limitações orça- mentárias impediriam um reajuste su- ficiente para recompor as perdas acumuladas desde 2019, que ultrapas- sarão 15% até o fim de 2021. As chances desse cenário são de 10%. Cenário 3 RUPTURA O terceiro cenário, diante do desgaste do governo por sua associação a desvio de conduta e práticas fisiológicas, seria de ruptura, no qual o presidente, numa atitude de desespero para evitar a der- rota eleitoral, retomaria o discurso ra- dical da campanha de 2018 de negação do sistema político. Nesse cenário, Bolsonaro romperia com o Centrão, sob o fundamento de que seu ministro do Gabinete de Segurança Institucio- nal, general Augusto Heleno, tinha ra- zão quando se referiu a esse “agrupa- mento” fisiológico e corrupto. Seria a forma de fugir do estigma de um go- verno corrupto e denunciar as “chan- tagens” e os “desvios” do Centrão, além de acionar os órgãos de fiscalização e controle para constranger os deputa- dos desse grupamento, especialmente o presidente da Câmara dos Deputa- dos, de tal modo que uma eventual abertura de processo de impeachment fosse vista como retaliação. Nessa perspectiva, a campanha elei- toral de Bolsonaro teria comoretórica e narrativa centrais a necessidade de ele- ger deputados e senadores para não continuar refém dos políticos fisiológi- cos e corruptos. A lógica é de que, com uma base consistente – alinhada ideo- logicamente –, o presidente poderia “enquadrar” o Judiciário, limitar o po- der dos governadores e do Congresso Nacional, criando as condições para co- locar em prática sua agenda “em defesa” da pátria, da família e da propriedade, e pôr fim à corrupção e à hegemonia “co- munista”. Nesse cenário, apesar de ele- ger uma grande bancada, o presidente não consegue se reeleger. As chances do cenário de ruptura são de 15%. Cenário 4 DERROTA ELEITORAL E RECUSA EM ACEITAR O RESULTADO DAS URNAS: TRUMPISMO TROPICAL O cenário mais provável, entretanto, é de continuidade de um governo fraco e refém do Congresso Nacional, hipótese na qual o presidente se arrastaria com algum apoio do Centrão, perderia parte do apoio empresarial, não se reelegeria e, a exemplo de Donald Trump, ex-pre- sidente norte-americano, rejeitaria o resultado da eleição, porém não teria força para dar um golpe, concluindo o mandato completamente deslegitima- do. Nesse cenário, além do apoio par- cial do Centrão e da sustentação dos militares, o governo contaria com al- gum crescimento econômico, mas in- suficiente para recuperar o apoio po- pular. A sustentação de segmentos das Forças Armadas e das polícias militar e civil, e de setores da sociedade engaja- dos via redes sociais e alimentados por fake news poderia acarretar desestabi- lização social, com conflitos e violên- cia, causando turbulência no período pós-eleitoral e deixando em aberto um “retorno” de Bolsonaro, como preten- deu Trump ao mobilizar grupos de apoio que culminaram com a invasão do Capitólio e sua recusa em reconhe- cer a derrota. Chances de 35%. Como se pode depreender da leitu- ra, o ambiente político brasileiro é cla- ramente de renovação, como foi nas eleições de 2002. Dos quatro cenários, apenas um – o de número 2 – é de ree- leição. O de número 1 é de não conclu- são do mandato, seja por impeachment ou por renúncia. Os cenários de núme- ros 3 e 4 são de derrota eleitoral, com a diferença de que no cenário 3 o presi- dente antevê o risco de derrota e busca dar um cavalo de pau, enquanto no ce- © Cris Vector ®® https://t.me/PDFs_Brasil 6 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021 Até agora se havia evitado ganhar as ruas para protestar e pedir o impeachment de Bolsonaro em função da severidade da pandemia, mas também de cálculos eleitorais velados. Os jovens puxaram, enfim, a luta. Já vacinados, os mais velhos se juntam a eles. Não há tarefa neste momento mais importante do que ampliar esses protestos e exigir a saída do presidente POR JOSÉ MAURÍCIO DOMINGUES* A TAREFA NESTE MOMENTO O impeachment como solução para as crises políticas passou a ser, desde a primeira eleição direta da Nova República, um fantasma que assombra os presidentes do Brasil, como forma de exercer a oposição e co- mo resultado da insatisfação da popu- lação. Corre-se o risco de banalizá-lo e, assim, ferir a democracia, como foi o caso em particular com o golpe parla- mentar de 2016. Até agora, contudo, ne- nhum mereceu ser afastado de maneira tão evidente e radical como o atual pre- sidente da República, Jair Messias Bol- sonaro. Sua atuação diante da pande- mia do coronavírus e as ameaças contra a democracia que profere e tenta arti- cular, com ausência total do decoro que o cargo exige, já deveriam tê-lo retirado do Palácio do Planalto. Que isso não te- nha ainda ocorrido é prova de como caímos baixo, de como a República vem se degradando, com o sistema político estatal cada vez mais voltado para si mesmo. Na verdade, que Jair Bolsonaro tenha sido eleito presidente é já prova de que as virtudes republicanas andam em falta no país, talvez entre a popula- ção, embora os votos que recebeu te- nham sido antes de tudo de protesto, mas sobretudo no sistema político que deveria representar condignamente brasileiras e brasileiros. Em documento entregue à CPI da Covid-19 do Senado Federal, listamos os inúmeros momentos em que o presi- dente tratou de forma irresponsável e criminosa a saúde e a vida da popula- ção desde o surgimento do coronaví- rus, desrespeitando seus direitos mais básicos. Documentamos também co- mo se lançou contra a democracia. Ini- cio retomando essa análise.1 O presidente lutou contra os gover- nadores para evitar o fechamento – ape- nas parcial e de duração reduzida – das atividades econômicas ditas não essen- ciais. Desafiou o conhecimento científi- co e médico pronunciando-se contra o distanciamento social e o uso de más- caras – na verdade, praticando pessoal- mente o oposto do que aquele recomen- dava, provocando aglomerações e estimulando seguidores e cidadãos de modo geral a não observar cuidados sa- nitários mínimos para evitar a conta- minação e a propagação do vírus. Pro- moveu – inclusive financeiramente e envolvendo as Forças Armadas – trata- mentos e remédios ineficazes e perigo- sos, entre os quais cloroquina e vermí- fugos. Chocou-se com o governo chinês por fazer provocações e deboches, no momento em que o país dependia de in- sumos básicos para a produção de tes- tes e vacinas. Desprezou os próprios testes e quis fazer da vacinação em massa uma impossibilidade para a po- pulação. Atrasou a compra de vacinas de alta qualidade, desprezou a funda- mental CoronaVac, a vacina do estado de São Paulo, pediu o mínimo possível de vacinas à iniciativa Covax da OMS e se recusa a vacinar-se. Isso ocorre por- que Bolsonaro seguiu a inconfessa e in- confessável estratégia de buscar a qui- mérica, malsã e impossível “imunidade de rebanho”. Desrespeitou os direitos humanos e os direitos de cidadania de brasileiros e brasileiras, a começar pelo direito à vida e à saúde. Somente temos vacinas em massa porque a Fiocruz des- de o início da pandemia autonomamen- te buscou um acordo com a Universida- de de Oxford e a AstraZeneca para fabricar sua vacina e, finalmente, gra- ças à pressão da opinião pública. Trata- -se claramente de uma sequência ab- surda de crimes de responsabilidade, que não podem ficar impunes. Além disso, estamos desde o início do governo Bolsonaro sob uma chanta- gem permanente quanto à possibilida- de de um autogolpe, com o que direitos políticos e inevitavelmente civis tam- bém seriam lacerados. Como se isso não bastasse, como é de seu feitio, o presidente faz apologia sistemática do autoritarismo e do regime militar, apoiou protestos descabidos e golpistas contra as instituições do Estado de Di- reito e da democracia, ofende as vítimas do coronavírus com piadas e comentá- rios grosseiros, e lança dúvidas infun- dadas e levianas sobre a segurança do sistema eleitoral brasileiro. Chocou-se com o Supremo Tribunal Federal (STF), que felizmente teve brios e convicção para fazer-lhe frente quando necessá- rio. O presidente interferiu escancara- damente na Polícia Federal e tem no mínimo permitido que instituições do Estado sejam usadas para atacar oposi- tores. Mais uma vez, trata-se de crimes de responsabilidade continuamente cometidos. É espantoso que ainda se possa discutir se o impeachment desse presidente deve ou não ocorrer. É sobre- tudo inaceitável que nenhum dos dois presidentes da Câmara dos Deputados tenha posto o tema do impeachment em discussão no Parlamento. Direitos e cálculos, a democracia e o impeachment © Cris Vector ®® https://t.me/PDFs_Brasil 7AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil A CPI da Covid-19 vai, após nosso documento, aprofundando aspectos desse desatino e da tragédia em parte intencionalmente ou por descaso am- plificada pelo Poder Executivo federal, além de trazer à baila, ainda que de maneira por vezes confusa e com mui- tos elementos obscuros, certos esque- mas de corrupção no Ministério da Saúde, relativos ao combate à pande- mia e em particular à compra de vaci- nas, se bem que esse tipode esquema viceje há tempos nessa área no Brasil. É importante expor esses malfeitos, mas deve estar claro que, se não houvesse um pingo de corrupção e se não se con- seguir mostrar – porque não há ou por- que os elos não são evidentes – o envol- vimento do presidente com eles, em nada estaria a questão do impeach- ment prejudicada, embora o tema da corrupção, tão arraigada, facilmente capture a atenção de cidadãos e cida- dãs. Os crimes de responsabilidade do presidente Bolsonaro são muito mais graves do que supostas propinas ou prevaricações em denunciá-las: os di- reitos à saúde e à vida dos brasileiros foram atropelados – com um número de mortes para além de 550 mil, muitas das quais, concordam todos os espe- cialistas, poderiam ter sido evitadas se medidas adequadas tivessem sido to- madas, com muitos mais enfermos que sofreram e sofrerão sequelas da Co- vid-19 e outros ainda em razão da perda de seus entes queridos. O presidente no mínimo falhou em seu dever de, como primeiro mandatá- rio do país, fazer respeitar esses direi- tos, humanos e constitucionais, inten- cionalmente ou por descaso. Desde o início está claro que essas perdas e esse sofrimento não lhe importavam, de modo doloso ou culposo. Bolsonaro preocupou-se e segue se preocupando tão somente com sua reeleição, bus- cando a todo custo evitar uma recessão supostamente prejudicial a seus desíg- nios, que afeta o mundo todo por causa da crise da pandemia, inclusive os paí- ses que mais responsavelmente se comportaram ante ela, garantindo a saúde e poupando vidas. Não, o impeachment não deve ser banalizado. Na verdade, deveríamos ter um referendo revogatório que fi- zesse do povo o agente soberano de uma decisão tão grave como a retirada do cargo de um presidente eleito. Mas não temos esse mecanismo – que de- vemos assim que possível introduzir na Constituição, em vez de buscar um parlamentarismo que não pode ser in- troduzido de chofre, com objetivos obscuros e na verdade visando muito provavelmente bloquear ainda mais o funcionamento da democracia. O Bra- sil tem um sistema político extrema- mente problemático e altamente oli- garquizado e (neo)patrimonialista, em que o chamado “Centrão” cumpre pa- pel decisivo e deletério, no que acaba mimetizado pelos outros elementos do sistema partidário. Se todas as demo- cracias liberais possuem um núcleo oligárquico, no Brasil ele é claramente dilatado e perverso, não obstante os elementos democráticos do sistema político que a Constituição de 1988 consagrou. É de todo modo o que te- mos no momento. Defendê-lo e adian- te democratizá-lo é fundamental, e não vê-lo perecer ou ter a segunda pos- sibilidade bloqueada. Neste momento em especial, trata- -se de responsabilizar um presidente que não respeita a Constituição e pro- teger a democracia que temos, ainda que precise ser desoligarquizada e de- mocratizada quando saiamos deste pe- sadelo. Essa saída, deve-se enfatizar, também dependerá, em sua intensida- de reconstrutiva no futuro, de nossa capacidade de mobilização hoje contra as tentativas de aleijá-la. Pode-se olhar a questão de dois ân- gulos: um estratégico ou tático, o ou- tro das convicções. A política se move em larga medida em função do primei- ro, uma vez que alcançar o poder de Estado é parte crucial de seu objetivo e funcionamento, mas não pode pres- cindir dos valores, das convicções que devem sustentá-la, sob pena de con- verter-se em uma atividade mesqui- nha e espúria. Desde 2020, a questão do impeachment, com tantos crimes de responsabilidade se acumulando, não podia senão ter centralidade. Bol- sonaro não podia ter sido eleito, e há responsabilidades várias em sua che- gada à Presidência da República que terão de ser observadas mais adiante, mas permitir, sem luta, que lá se man- tenha tampouco é aceitável. O cálculo político tático ou estratégico não é ra- zoável em vista da situação do país. Deixar Bolsonaro simplesmente san- grar é incorreto e imprudente tam- bém, pois, se sua situação eleitoral é bastante difícil agora, pode perfeita- mente se reverter nos próximos meses. A coalizão entre extrema direita, mili- tares, Centrão e evangélicos pode até vir a se dissolver. Hoje, porém, segue vigente, e será somente com o aumen- to da temperatura política e uma mais profunda perda de popularidade que Bolsonaro talvez desmorone. Até agora se havia evitado ganhar as ruas para protestar e pedir o impea- chment de Bolsonaro em função da se- veridade da pandemia, mas também de cálculos eleitorais velados. Como sempre, os jovens puxaram, enfim, a luta, com desprendimento. Já vacina- dos, os mais velhos se juntam a eles. Não há tarefa neste momento mais im- portante do que ampliar esses protes- tos e exigir a saída do presidente. Não é certo, talvez nem provável, que se con- siga fazer com que a presidência da Câ- mara finalmente abra um processo e o submeta ao Plenário, mas trata-se de uma obrigação moral inarredável e, caso não cheguemos a nosso objetivo, de uma maneira de expor ao país o desgoverno a que vem sendo submeti- do. Parece que ao menos quanto ao se- gundo ponto já há consenso, seja na esquerda, entre diversas correntes po- líticas no Congresso ou em amplas ca- madas da população. Além disso, forja-se na luta pelo impeachment uma unidade democrá- tica que certamente nos será necessá- ria daqui até ao menos fins de 2022 – e, provável e infelizmente, para além disso. Não se configura ainda uma real frente democrática, uma vez que mui- tas forças rejeitam, erroneamente, em nome de projetos meramente identitá- rios e de poder, tal estratégia, mas ao menos nos unimos na luta pela defesa dos direitos de brasileiros e brasilei- ras, assim como na defesa da demo- cracia. Sem isso não vamos a lugar ne- nhum. E, sabemos, são nossos direitos e a democracia que o presidente pre- tende destruir, seja lá como for. Desta vez não pode haver dúvidas do que de- vemos fazer: Fora, Bolsonaro! *José Maurício Domingues é sociólogo e professor do Iesp-Uerj. 1 Ver Ligia Bahia, Jamil Chade, Claudio S. De- decca, José Maurício Domingues, Guilherme Leite Gonçalves, Mônica Herz, Lena Lavinas, Carlos Ocké-Reis, María Elena Rodríguez e Fabiano Santos, “A tragédia brasileira do co- ronavírus/Covid-19: uma análise do desgover- no do governo federal, 2020-2021”, docu- mento entregue à CPI da Covid-19 do Senado Federal em 28 de abril de 2021. Disponível originalmente nos sites da ABI e do Clacso (neste caso em inglês e espanhol também), foi agora publicado na revista Insight Inteli- gência, n.93, sob o título “A tragédia brasileira do coronavírus” (https://inteligencia.insight- net.com.br/documento-especial-a-tragedia- -do-coronavirus/). Deixar Bolsonaro simplesmente sangrar é incorreto e impruden- te, pois sua situação eleitoral pode perfeita- mente se reverter nos próximos meses ®® https://t.me/PDFs_Brasil 8 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021 SUS na pandemia: um herói trágico Em nome da “saúde da economia”, o governo federal se tornou cúmplice de mortes que poderiam ter sido evitadas e não logrou reverter a recessão econômica. Essa escolha política nos conduziu a uma situação na qual não tivemos políticas efetivas contra a Covid-19 nem melhorias nas taxas de emprego e renda POR LIGIA BAHIA* SAÚDE V ivas ao SUS, que atende pacientes graves e vacina a população gra- tuitamente, substituíram as notí- cias sobre as deficiências assis- tenciais da rede pública. O sinal de mais na frente da palavra SUS, acres- centado no contexto das respostas equivocadas e omissões do governo fe- deral para o enfrentamento da pande- mia do novo coronavírus, é, em princí- pio, contraditório. O SUS tornou-se herói, embora o país tenha perdido mais de meio milhão de habitantes – um reconhecimento pelos méritos de uma política pública universal e suas ações e especialmente pelo trabalho de profissionais de saúde. O aparente pa- radoxo pode ser compreendido tanto no âmbitointernacional como no con- texto singular do país. Manifestações de apreço aos servi- ços públicos e a quem neles atua, mais ou menos efusivas, ocorreram em di- versos países. Em tese, bons sistemas de saúde seriam capazes de interpor bar- reiras efetivas para proteger vidas da população. Segundo esse critério, evitar mortes, tradicionais sistemas univer- sais de saúde e os orientados pelo mer- cado teriam sido reprovados. Experiên- cias bem-sucedidas de supressão de casos de Covid-19 ocorreram em países asiáticos e na Austrália e Nova Zelândia, evidenciando a importância das estra- tégias populacionais. Reino Unido, Itá- lia, França e mesmo Alemanha, apesar da adoção de políticas distintas, apre- sentam altas taxas de mortalidade, e o país que mais gasta com saúde no mun- do acumula o maior número de mortes. Sob o fogo cruzado dos debates so- bre lockdown e testagem versus políti- cas menos radicais de fechamento de atividades econômicas, o atendimento aos pacientes, exigente de organização de serviços e dedicação de médicos e enfermeiros, que foram, junto com pa- cientes idosos, os primeiros a morrer, causou enorme comoção. Foi estabele- cida uma linha divisória entre os gover- nos e as instituições públicas de saúde. Em países com governos bem avaliados ou não, os sistemas de saúde receberam elogios. Um reconhecimento amplo, in- clusive, da declaração de profissionais de saúde em diversas línguas “não que- remos só aplausos”, expressando a ne- cessidade de condições adequadas de trabalho, desde equipamentos de pro- teção individual, remuneração ajusta- da à sobrecarga laboral, equipes com- pletas e oferta adequada de leitos, equipamentos e medicamentos. No Brasil, a admiração pelo SUS contou, desde o início, com a adesão de lideranças de todos os matizes políticos. As polêmicas se concentraram em torno da magnitude da pandemia, do funcio- namento das atividades econômicas, dos medicamentos e das vacinas. O que mudou foi a extensão do consenso sobre o SUS para a mídia tradicional. A expe- riência com a Covid-19 transformou o SUS em talismã nacional. A expressão “se não fosse o SUS, seria muito pior” passou a ser pronunciada como agrade- cimento e respeito. A saúde pública, de mazela, se tornou solução. A apreciação do SUS tal como ocorreu em países com sistemas públicos universais veio acom- panhada da conscientização sobre a re- levância da ciência e da fragilidade da base tecnológica setorial. A falta de testes, oxímetros, cilin- dros de oxigênio, aventais, máscaras cirúrgicas, leitos de CTI e profissionais de saúde evidenciou não apenas a forte dependência de importações de itens estratégicos, mas também incompe- tências administrativas que trouxeram à tona desafios antigos que se somaram à competição nos processos de aquisi- ção favoráveis aos compradores priva- dos. O SUS exibiu mais insuficiências do que os sistemas de saúde de países ricos. A rede capilarizada e potencial- mente capaz de realizar ações de vigi- lância epidemiológica nos territórios permaneceu desmobilizada, e o aten- dimento a casos graves foi perpassado por atos nobres e por angústia e deses- pero de pacientes, familiares e respon- sáveis pelo atendimento. Portanto, o SUS tornou-se um herói pela tentativa de proteção. Suas imen- sas e extensas falhas assistenciais, antes objeto de críticas impacientes com a cronicidade dos problemas de acesso e qualidade das ações da rede pública, cederam vez a crônicas emo- tivas das batalhas pela vida. As conde- corações nacionais, no entanto, não tiveram as mesmas consequências daquelas outorgadas a outros sistemas locais. Experiências da pandemia esti- mularam mudanças nas políticas de saúde em diversos países. Mais recur- sos orçamentários destinados à área, valorização dos profissionais de saúde e intensificação das conexões entre instituições de pesquisa e desenvolvi- mento de tecnologias constituem pon- tos de uma agenda básica e quase con- sensual. No Brasil, a marca “Mais SUS” ficou no ar e tem sido aspergida por movimentos sociais, mídia comercial e alternativa, mas sem contrapartidas objetivas em fóruns político-partidá- rios e governamentais. No início de 2021, com sinais claros de repique dos casos e óbitos por Co- vid-19, Ricardo Barros e Arthur Lira, respectivamente líder do governo e presidente na Câmara dos Deputados, afirmaram que “a saúde não precisa de mais dinheiro” e que “a saúde tem recursos demais, o problema é a ges- tão”. Pouco tempo depois, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou: “Não tem gestão na saúde pública, o setor público não vai conseguir acom- panhar a questão da saúde. O setor privado é a solução [...] nós vamos ter que fazer na saúde igual se fez no auxí- lio emergencial. Pobre tá doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Eins- tein? Vai no Einstein. Quer ir ao SUS, pode usar seu voucher onde quiser”. Nas esferas estaduais e municipais, há tentativas de preservar e expandir as ações de saúde pública. Contudo, as eleições para governadores e prefeitos, embora tenham dado margem a ava- liações díspares sobre as coalizões po- líticas vitoriosas e derrotadas, não re- verteram a tendência iniciada em 2016 de encolhimento das representações parlamentares favoráveis às políticas públicas universais. ERROS E OMISSÕES Desde quando foram iniciados os pri- meiros esforços para conhecer o pro- cesso de transmissão do coronavírus, estudiosos brasileiros de diferentes áreas de conhecimento alertaram as autoridades públicas sobre a necessi- dade de mobilizar vigorosamente polí- ticas, programas e ações para o enfren- tamento da pandemia. Contudo, as políticas públicas, permeadas por erros e omissões e seus trágicos desdobra- mentos sanitários, políticos e econômi- cos, tragaram o país para o epicentro da pandemia em função de respostas tardias e insuficientes à prevenção de casos e óbitos. A indisposição, hesita- ção e recusa em conter e monitorar a infecção rompeu com boas tradições de vigilância epidemiológica, medidas preventivas e preparação de cuidados aos pacientes graves desenvolvidas na- cionalmente ao longo de décadas. Decisões atravessadas pelo descaso com o controle de portos, aeroportos e fronteiras, o funcionamento de ativida- des econômicas e o apoio financeiro a indivíduos e empresas foram incorretas e ambíguas. Faltaram insumos estraté- gicos para a saúde, e as lacunas na oferta de recursos assistenciais não foram su- pridas; atualmente, há escassez de vaci- nas. Medidas de proteção populacional e individual foram substituídas por ata- ques à ciência e às experiências históri- cas. A legislação promulgada em feve- reiro do ano passado autorizou o governo a mobilizar recursos existentes e ampliou o orçamento público. No en- tanto, leitos privados e a readequação da capacidade instalada para a produção de insumos, tais como testes e máscaras de maior qualidade e menor custo, não foram devidamente mobilizados. Estratégias de bloqueio da dissemi- nação do vírus se tornaram indisponí- veis pela conjugação de quatro ordens de fatores: a minimização da magnitu- de da pandemia e o descrédito nas orientações científicas; a adoção de programa oficial para “tratamento pre- coce” enganoso; políticas insuficientes e intermitentes de auxílio emergencial ®® https://t.me/PDFs_Brasil 9AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil e expansão do sistema de saúde; e des- continuidades administrativas, péssi- ma gestão financeira no Ministério da Saúde e inação de comitês de crise. A banalização das mortes e das sequelas causadas pela doença e a difusão da ideia de que faleceriam apenas pessoas idosas ou com comorbidades, ou pes- soas que não tivessem acesso ao “trata- mento precoce”, sintetizam a recusa ao enfrentamento da Covid-19 (Cepedisa, 2021). Em nome da “saúde da econo- mia”, o governo federal se tornou cúm- plice de mortes que poderiam ter sido evitadas e não logrou reverter a reces- são econômica. Essa escolha políticanos conduziu a uma situação na qual não tivemos políticas efetivas contra a Covid-19 nem melhorias nas taxas de emprego e renda. MORTES EVITÁVEIS, RESPONSABILIDADES ATRIBUÍVEIS Em situações de crise sanitária, a res- ponsabilidade de evitar mortes na pan- demia compete aos governos nacio- nais. No Brasil, a recusa às orientações para mitigar casos e mortes impediu o país de poupar vidas. Profissionais da saúde, trabalhadores expostos a am- bientes com ar rarefeito e aglomera- ções, pessoas vivendo em instituições asilares e prisionais, povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, habitantes de favelas e periferias e morbidades prévias deveriam ter sido prioritaria- mente protegidos. O país atravessa uma pandemia há um ano e seis meses sem adotar ações necessárias para enfrentar a dissemi- nação do novo coronavírus. O desprezo do governo pelas vidas impediu a reali- zação de campanhas sanitárias infor- mativas, a mobilização da solidarieda- de social (convocação de movimentos sociais, igrejas, empresas, mídias e ins- tituições de ensino e pesquisa), a dis- tribuição de máscaras de boa qualida- de, testes para rastreamento e a aquisição tempestiva de vacinas. Esti- mativas fundamentadas em cálculos sobre excesso de óbitos e impactos de medidas populacionais sugerem que pelo menos 120 mil mortes, até o fim de março de 2021, poderiam ter sido evita- das se uma política efetiva de controle baseada em ações não farmacológicas tivesse sido adotada. Outro contingente significativo de mortes evitáveis, embora também de difícil dimensionamento, são aquelas que poderiam não ter ocorrido pela efe- tiva atuação da rede básica de serviços de saúde, ou seja, incluindo testes, mo- nitoramento de casos, providências pa- ra autoisolamento e referenciamento ágil para hospitais de qualidade. O acesso a testes para detecção de casos e contatos, que deveriam permanecer isolados para buscar reduzir o poten- cial de transmissão, foi extremamente rarefeito e desigual em termos de raça/ cor e renda, uma inversão entre neces- sidades e obtenção de cuidados inad- missível, especialmente durante uma pandemia. Haveria ainda a possiblida- de de poupar vidas de pacientes hospi- talizados, mas mais de 20 mil pessoas morreram em unidades de atendimen- to pré-hospitalar ou emergências, es- pecialmente na rede pública. Seria im- prudente ter um cálculo preciso de quantas vidas seriam salvas se essas pessoas tivessem acesso a hospitais e unidades de terapia intensiva. Mas é importante afirmar que as informa- ções sugerem retenção do acesso e que as mortes em instalações de urgência e emergência não foram igualmente dis- tribuídas. Ocorreram óbitos especial- mente na população que buscou a rede pública, integrada por uma maior pro- porção de negros e pessoas com menor status de renda e possivelmente mais vulneráveis (Alerta Covid, 2021). SALVAR VIDAS A chamada urgente é para salvar vidas mediante uma dupla estratégia de va- cinação e adesão a medidas de saúde pública de proteção da infecção. Nin- guém está seguro até que todos este- jam seguros. O presidente da Repúbli- ca, que continua estimulando aglomerações, não se vacinou e reti- rou a máscara de uma criança, encar- na o estado de coisas inconstitucional na política pública de saúde brasilei- ra. Diversas iniciativas, entre as quais a da Associação Nacional do Ministé- rio Público de Contas, solicitam “ga- rantir a alocação do maior volume possível de recursos para o SUS; a im- posição de realização de testes na po- pulação em condições de suspeita de infecção por Covid-19; a distribuição gratuita de máscaras PFF2; o levanta- mento e divulgação de dados estatísti- cos sobre os casos confirmados, sus- peitos e em investigação; e a criação de uma central nacional de regulação unificada de leitos públicos e privados em unidades de tratamento intensi- vo” (Ampcon, 2021). Afirmações como “temos de apren- der a viver com o vírus” são slogans co- nectados com o afã da abertura indis- criminada de atividades econômicas e se referem uma vasta gama de cenários possíveis, alguns dos quais potencial- mente muito prejudiciais, sobretudo para os mais vulneráveis. Vacinas e medidas de saúde pública altamente eficazes viabilizam a possibilidade de não conviver com a Covid-19, uma in- fecção de múltiplos órgãos com conse- quências de longo prazo (longo Covid) para muitos, incluindo crianças. Opta- mos por não conviver com infecções vi- rais graves, como poliomielite e saram- po, e temos estratégias nacionais e regionais para eliminá-las. Limitar a disseminação da Covid-19 o mais rápido possível é a melhor defe- sa contra o surgimento contínuo de va- riantes mais infecciosas e que podem não ser controladas pelas atuais vaci- nas. O potencial do país para debater, formular e assumir estratégias efetivas de saúde pública foi boicotado e encon- tra-se objetivamente ameaçado. Não levar a ciência em consideração, agre- dir cientistas e mesmo ridicularizar as possibilidades de realizar ações de cui- dados à saúde é diferente da situação de destruição objetiva das bases para o enfrentamento de ameaças à saúde pú- blica. A certeza de que o Brasil teria evi- tado milhares de morte se baseia em uma capacidade científica e assisten- cial anterior ao racionamento radical de recursos para seu financiamento. A maioria dos países está transformando seus sistemas de saúde, dotando-os de recursos humanos, materiais e finan- ceiros para proteger suas populações de riscos à saúde. A CPI da Covid afir- mará um futuro menos sombrio se identificar os responsáveis por mortes evitáveis e contribuir para viabilizar um SUS potente e qualificado. *Ligia Bahia é professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). • ALERTA COVID. Mortes evitáveis por Co- vid-19 no Brasil. Estudo apresentado à CPI da Covid em 23 de junho de 2021. • AMPCON. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 866). Protocolada em 8 de julho de 2021. • CEPEDISA (Centro de Estudos e Pesqui- sas de Direito Sanitário), Faculdade de Saúde Pública da USP. A linha do tempo da estratégia federal da disseminação da Covid-19. Atualizado mediante soli- citação da Comissão Parlamentar de In- quérito, por meio do Ofício 57/2021-CPI- PANDEMIA, 28 maio 2021. Aproximadamente 120 mil mortes, entre as que ocorreram até o fim de março de 2021, pode- riam ter sido evitadas por medidas de controle ®® https://t.me/PDFs_Brasil 10 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021 Impeachment, bolsonarismo e militarização A depender de como o cenário do impeachment se desenrole, não é difícil imaginar que haja situação parecida com o que ocorreu nos ataques do Capitólio em janeiro. Setores milicianos e policiais, sobretudo, poderiam produzir algo no mesmo sentido. No entanto, a tendência de qualquer atentado similar ser mais violento ainda no Brasil é gigantesca POR JULIA ALMEIDA VASCONCELOS DA SILVA* ENTRE O PASSADO E O FUTURO O Brasil vive um momento único de sua história. A crise da Nova República se aprofunda e nos aproxima de uma grande encru- zilhada. Mas não se trata do simples imbricamento de dois caminhos futu- ros; nossa encruzilhada é de passado, do fim de um verniz que não comporta nova pintura. Diante do abismo do sub- terrâneo que se revela, a possibilidade de pavimentação de um novo destino dependerá da movimentação de engre- nagens contraditórias, que precisarão subverter e reinventar o próprio tempo – passado, presente e futuro –, num único, novo e ousado enredo. A possibilidade de impeachment do presidente Jair Bolsonaro cresceu significativamente a partir dos desdo- bramentos da CPI da Pandemia, em especial após as revelações de super- faturamento da Covaxin, envolvendo possível corrupção de militares do go- verno, políticos do Centrão e até do próprio presidente. O crescimento das mobilizações nas ruas, com ampliaçãopara mais setores sociais e políticos, assim como a pesquisa acerca da opi- nião da população e dos setores eco- nômicos sobre o impeachment (pes- quisa nacional DataFolha de 6 e 7 de julho de 2021) também contribuem para esse cenário. No entanto, temos vivenciado um jogo contraditório, no qual quanto mais o governo se enfra- quece e menos força social lhe resta, maior é o discurso autoritário de Bol- sonaro e dos militares a ele atrelados. A base de sustentação do governo se constituiu por setores do agronegó- cio, do capital financeiro, industriais interessados nas reformas que reduzi- ram o custo do trabalho, do funda- mentalismo religioso, das classes mé- dias conservadoras e do campo social das Forças Armadas na sociedade (mi- litares, polícias e milícias). Do ponto de vista político, novos representantes da extrema direita se elegeram, sobre- tudo pelo “efeito Bolsonaro” de 2018, mesmo que depois tenham se desloca- do do governo. O aparecimento de no- vos quadros políticos e a perda de es- paço de políticos mais tradicionais nunca houve grandes impedimentos ou ressalvas das principais elites eco- nômicas a saídas autoritárias para pre- servar seus interesses. Foi o caso do golpe do Estado Novo em 1937, das in- vestidas militares em 1945 e 1954 e, fi- nalmente, do golpe civil-militar de 1964. Essas intervenções das Forças Ar- madas na política institucional são acompanhadas de uma intensa politi- zação dos quartéis e de uma estrutura- ção da estratégia de poder (às vezes também de país)2 no núcleo dos diri- gentes militares. Não é circunstancial que o golpe de 2016 também marque o retorno dos militares na política insti- tucional de forma direta. Foi com Te- mer que, pela primeira vez desde sua criação, em 1999, o Ministério da Defe- sa teve um militar como titular. também mexeram no tabuleiro. Entre- tanto, longe de jogar fora da política tradicional, a capacidade de desloca- mento do Centrão pelo governo, com a vitória de Arthur Lira para a presidên- cia da Câmara, tem sido fundamental para a sustentação de Bolsonaro. Dentro desse panorama, um possí- vel impeachment precisa ser capaz de deslocar parte desses setores sociais, políticos e econômicos. Para iniciar- mos esse quadro, é fundamental enten- dermos que o avanço autoritário na ins- titucionalidade brasileira, desde o golpe de 2016, foi organizado como uma saída para a manutenção da acumulação e da concentração de capital em meio à crise econômica.1 Ou seja, a eleição de Bolso- naro e a constituição de uma base pro- tofascista, motivada por discursos de ódio, não são mero acidente na conjun- tura brasileira. Elas representam uma saída para a manutenção de determina- dos interesses econômicos, que se ma- terializaram sobretudo nas reformas ultraneoliberais (previdenciária, traba- lhista, Teto de Gastos, privatizações, entre outras). Mas não só. Elas também passam pelos afetos mais conservado- res de setores sociais que perderam pri- vilégios nos anos anteriores e sentiram seus valores ameaçados. Por esse pano de fundo, fica eviden- te que os segmentos econômicos bene- ficiados pelo governo Bolsonaro não apoiarão qualquer alternativa sem a preservação dessa agenda econômica e de seus interesses. Desse modo, e tendo em vista o histórico de funcionamento do pendão democrático brasileiro, © F ab io R od rig ue s P oz ze bo m /A gê nc ia B ra si l Militares fazem montagem de equipamentos para ensaio da posse presidencial de Jair Bolsonaro ®® https://t.me/PDFs_Brasil 11AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil Por sua vez, a militarização do go- verno Bolsonaro é inequívoca. Além da Vice-Presidência, são mais de 6 mil postos de cargos comissionados na ad- ministração pública direta e indireta, segundo levantamento do TCU de ju- lho de 2020, ministérios e funções- -chave no governo. O caso da militari- zação do Ministério da Saúde, em meio à maior pandemia que o país já enfren- tou e que levou a óbito mais de 500 mil brasileiros, foi emblemático. Isso tor- na indissociável o balanço do governo Bolsonaro das instituições militares. Só que estas não estão acostumadas com o jogo democrático de cobranças e uma cadeia de controle institucional, pelo contrário. Por essa razão, não pode nos causar estranhamento a nota de 7 de julho, assinada pelo ministro da Defesa, ge- neral Braga Netto, e os três comandan- tes das Forças Armadas ameaçando o Senado por conta de pronunciamento sobre militares na CPI da Pandemia. Foi uma ameaça à democracia e um contraponto, uma chamada para a ten- tativa de acordo de uma opção que passe pelos militares. Esse aumento do tom dos militares também tem causado certa tensão de que haja autonomização do projeto mi- litar em relação às elites civis e mudan- ça do formato de aliança atual. A dinâ- mica de 1964, cuja parcela da elite que apoiou o golpe se sentiu traída quando os militares optaram por assumir a Presidência diretamente, ainda ecoa nessas relações. A atual proposta de se- mipresidencialismo, encabeçada por Lira, parece ser uma tentativa de man- ter avançando a perspectiva autoritá- ria, com maior controle desse Centrão associado a Bolsonaro. Lira tem nas mãos a barganha sobre a abertura ou não do impeachment – portanto, força para aumentar sua influência no gover- no quanto mais frágil Bolsonaro fica. É fundamental destacarmos essa dinâ- mica de disputa interna desse bloco de poder, pois, apesar das alianças, os in- teresses não são homogêneos, mas hoje confluem e coexistem. Há muitas movimentações em cur- so para a permanência desses setores no Planalto. O horizonte que tem in- tensificado essa tensão são as eleições de 2022, com projeções da eleição de Lula e a impossibilidade, até o momen- to, de outra candidatura capaz de dis- putar base popular. Permanecendo até as eleições de 2022, Bolsonaro pode não aceitar seu resultado eleitoral. O debate sobre voto impresso tem sido o pretexto para isso, e ele começa a ser repercutido também por comandantes militares. De igual modo, a possibili- dade de alguma saída mais radical de Bolsonaro, caso tentem votar o impea- chment ou o cenário eleitoral não me- lhore, pode levar à antecipação de ou- tras saídas, como o autogolpe. Por fim, é possível existir alternativas que não passem por Bolsonaro: é o caso da con- solidação do impeachment, que pode- ria manter o equilíbrio entre parcela desses setores econômicos, militares e parte do Centrão, e ainda viabilizar a construção de uma terceira via. Portanto, nessa hipótese pós-im- peachment, assumiria o general Mou- rão, que tem perfil intervencionista e posições autoritárias, as quais ganha- ram visibilidade na mídia antes mesmo de assumir como vice da chapa presi- dencial em 2018.3 Mourão protagoni- zou alguns dos episódios de ameaça do governo à democracia, com destaque para seu artigo de opinião no Estadão,4 após as convocações de militares para depor no STF, em que faz ameaças às demais instituições. Nos núcleos militares do governo Bolsonaro, não parece haver diferenças significativas em termos de estratégia, pois há unidade no núcleo central em relação ao projeto ultraneoliberal e ali- nhamento automático com os Estados Unidos. Evidentemente, como qual- quer grupo político que disputa o po- der, há nuances, sobretudo de disputas internas nas posições-chave de poder, cuja assunção de Mourão poderia pro- duzir alterações no quadro interno mi- litar, mas não na dinâmica geral da mi- litarização. Portanto, os militares têm um plano B para se manterem no jogo e não há nenhuma disposição ou possi- bilidade de recuo drástico de sua parti- cipação na política sem que haja reação desses setores. Sendo assim, o maior risco envolvi- do no processo de impeachment, ou na perda das eleições de 2022 por Bol- sonaro, é haver uma reação de grupos extremistas de extrema direita e/ou militares. Há a consolidação de grupos de ódio no país, de setores radicais de extrema direita, alimentadospela má- quina do ódio do bolsonarismo, mas que sobretudo encontram força num braço armado de setores das Forças Armadas e da segurança pública. É o caso do crescimento das milícias du- rante o governo Bolsonaro, que am- pliaram significativamente seu poder territorial, econômico e político.5 Mas não apenas, pois setores das polícias militares, mesmo que não ligados às milícias, são uma importante base de apoio do governo. As polícias militares já foram fonte alternativa de poder político das oli- garquias locais em relação à formação do Exército nacional e à centralização da Polícia Federal. Seu poderio mili- tar, no começo da República, chegou a fazer frente ao do Exército. Eram con- troladas pelos governadores dos esta- dos e submetidas aos seus interesses. Após um longo processo, as polícias militares foram submetidas às Forças Armadas, tendo seu auge durante a di- tadura, como braço importante da re- pressão política e do controle social. Com esse processo, houve uma divi- são no seio da militarização, com as polícias no centro do controle social (que colocaria em prática a necropolí- tica6 nos territórios periféricos em no- me da guerra às drogas). Todavia, essas alterações institu- cionais produziram um efeito impor- tante, pois os governadores têm pouco ou quase nenhum controle sobre suas polícias, sendo o bolsonarismo quem tem a principal influência nesse setor. Essa não é uma circunstância qual- quer, pois os setores militares sempre foram disputados por inúmeros proje- tos ao longo da República. O que acon- tece agora é que o desenho inicial das polícias nas mãos das oligarquias lo- cais não é mais majoritário (a exemplo do que aconteceu na greve do Ceará em 2019, quando Cid Gomes foi alvejado em motim da PM). De igual modo, seto- res da esquerda que sempre disputa- ram parcelas dessas polícias não pos- suem mais nenhuma inserção. O fato de praticamente a única força política que disputa esse setor armado ser o bolsonarismo (e os próprios militares) é preocupante na correlação de forças geral e suas perspectivas. A única hipó- tese de tensão entre as Forças Armadas e subsidiárias é se, efetivamente, Bol- sonaro e os militares cindirem seu ca- minho de forma não pactuada – hoje a hipótese menos provável. Portanto, a depender de como o ce- nário de impeachment se desenrole, não é difícil imaginar que haja situação parecida com o que ocorreu nos ata- ques do Capitólio em janeiro deste ano nos Estados Unidos. Setores milicianos e policiais, sobretudo, poderiam pro- duzir algo no mesmo sentido. No en- tanto, a tendência de qualquer atenta- do similar ser mais violento ainda no Brasil é gigantesca, porque envolveria setores militares orgânicos. Todos esses cenários de maior en- durecimento encontram uma tensão importante, que é o apoio internacio- nal. É evidente que a derrota de Trump foi fundamental para o enfraqueci- mento do avanço da extrema direita no mundo, sobretudo pelo poder sim- bólico desse revés. No entanto, parece um equívoco associar a política exter- na de Washington às disputas inter- nas durante suas eleições. Assumindo a Presidência, Biden passou a ter de considerar os interesses da disputa de potência mundial dos Estados Unidos. E, no momento geopolítico atual, é notório o acirramento da disputa de hegemonia entre Estados Unidos e China, com necessidade de consolida- ção de aliados no mundo. O alinha- mento automático aos norte-america- nos é algo que o governo Bolsonaro ou até mesmo um eventual governo Mou- rão pode oferecer. A relação tumultua- da do Brasil com a China ajuda essa dinâmica. Além disso, o Brasil sempre foi baliza central na disputa da Améri- ca Latina pelos Estados Unidos. A vin- da do chefe-geral da CIA ao Brasil, sem que haja transparência de qual foi a agenda tratada, com participação dos generais Heleno, Braga Neto e Luís Ra- mos e de Bolsonaro, pode indicar seja possível a Casa Branca fazer essa aposta no Brasil. A cooperação militar anunciada após essa reunião também aumenta essa conjectura. Por todo o exposto, é evidente que não vivemos uma normalidade demo- crática há algum tempo, sendo o im- peachment uma etapa importante para a derrota de Bolsonaro e o enfraqueci- mento do bolsonarismo, que poderá se pulverizar, mas sobretudo perderá sua figura “popular”. No entanto, é eviden- te que suas bases de sustentação não serão destruídas e já tentam achar no- vas composições. A derrota do bolsona- rismo permanecerá como pauta, pois esse fenômeno representa o escancara- mento das raízes autoritárias de nossa formação social e econômica: a heran- ça escravocrata e o racismo institucio- nal, a posição patrimonialista de um Estado rifado por interesses econômi- cos para fins privados, a violência de gênero proveniente da herança patriar- cal e a militarização da sociedade e da política. Em suma, toda herança colo- nial brasileira, que permanece pun- gente e precisa de mudanças estrutu- rais. Não há atalho nesse sentido para enfrentar esse novo marco de desnudez reacionária; precisaremos encarar as bases que a engendram. *Julia Almeida Vasconcelos da Silva é advogada, mestre em Direito pela UFRJ e integrante do NEV-USP. 1 Eduardo Costa Pinto, “O Brasil no rede- moinho: o governo Bolsonaro e o butim da burguesia”, Le Monde Diplomatique Brasil, jul. 2021. 2 A criação do Instituto General Villas Bôas (IGVB) é um exemplo dessa tentativa mais re- cente. Durante muito tempo, a Escola Supe- rior de Guerra (ESG) cumpriu essa função. 3 “Veja o que mudou na conduta de Mourão an- tes e depois da posse como vice”, Folha de S.Paulo (online), 25 abr. 2019. 4 Antonio Hamilton Martins Mourão, “Limites e responsabilidades”, O Estado de S. Paulo, 14 maio 2020. 5 “A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados – Relatório final”, Geni-UFF e Ippur-UFRJ, jan. 2021. 6 “Necropolítica: política da morte”. In: Silvio Almeida, Racismo estrutural, São Paulo, Pó- len, 2019. Há a consolidação de grupos de ódio no país, de setores radicais de extrema direita, alimen- tados pela máquina do ódio do bolsonarismo ®® https://t.me/PDFs_Brasil 12 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2021 Raças e classes: o caldeirão latino-americano Com as independências do século XIX, a América Latina abandonou oficialmente as hierarquias raciais que prevaleceram durante a colonização: não se devia mais distinguir os descendentes de indígenas, escravos e colonos europeus. Mas a divisão étnica do período imperial foi substituída por uma “pigmentocracia”, que faz da cor da pele um marcador social POR EZEQUIEL ADAMOVSKY* UMA QUESTÃO DE QUATRO SÉCULOS N a América Latina, como em qual- quer outra parte, o capitalismo alicerçou suas hierarquias de classes apoiando-as nas distin- ções étnicas e raciais preexistentes. Às duas categorias surgidas na conquista (século XVI) – de um lado, os autócto- nes; do outro, os colonizadores espa- nhóis e portugueses –, o desenvolvi- mento da escravidão acrescentou uma terceira, com estatuto jurídico, étnico e social diferente. Contudo, a integrida- de desses três grupos não resistiu ao lento processo de mestiçagem pelo qual a região passou. O século XVII as- sistiu, assim, ao surgimento de um sis- tema de castas que subdividiu os não totalmente brancos em diversas cate- gorias jurídicas baseadas em seu grau de mestiçagem ou na proporção de ca- da um de seus componentes raciais. Reivindicando os valores iluminis- tas, as independências aboliram ofi- cialmente toda e qualquer forma de discriminação da sociedade. O espaço latino-americano viu, no entanto, per- durar uma “pigmentocracia” que atri- bui à cor da pele, à textura dos cabelos e a alguns outros traços físicos mais sutis a função de indicador na ordem social. Essa hierarquia entre cidadãos se organiza segundo uma escala de ca- tegorias difusas, uma sequência de to- nalidades de cor no seio da qual ocri- tério de brancura não se fundamenta na “pureza” do sangue, mas resulta das circunstâncias: a pessoa é consi- derada branca conforme o lugar e o contexto, podendo-se eventualmente ignorar uma linhagem de cores “duvi- dosas” caso haja sólidas garantias em termos de educação e, sobretudo, ri- queza. Dos que parecem indubitavel- mente brancos aos que manifestamen- te não o são, tem-se toda uma gama de adjetivos ambíguos abertos muitas ve- zes a subdivisões: índio, mestiço (cho- lo), pardo, moreno, escuro (morocho), “chinês”, mulato, café com leite etc. A lógica é implacável, mas flexível. Am- biguidade e porosidade garantem a persistência do sistema e sua adapta- ção às contingências. No mundo anglo-saxão, onde a mestiçagem é menos pronunciada e a presença de colonos brancos é mais importante, as hierarquias raciais se organizam de forma mais nítida: de um lado, os brancos; do outro, os ne- gros. Conforme a regra da gota única de sangue (one-drop rule), o branco au- têntico tem de ser 100% branco. Uma só gota de sangue de outra origem con- verte-o, por isso mesmo, em não bran- co, ou seja, em negro. À diferença de seu equivalente latino-americano, o modelo anglo-saxão execra as mistu- ras: último estado norte-americano a abolir as leis que interditavam os casa- mentos inter-raciais, o Alabama só adotou essa medida em 2000. Na Amé- rica Latina, as legislações racistas des- se tipo desapareceram, quase todas, dois séculos antes. Às vezes, mais. A diferença entre os dois sistemas se reflete nas narrativas nacionais distin- tas. Nos Estados Unidos, pensa-se que a nação surgiu de um grupo étnico es- pecial, parecido aos “pais fundadores”, irredutivelmente brancos e anglo-sa- xões. Aqui, o ethnos é anterior à funda- ção do país; depois disso, supõe-se que ele acolha em seu regaço outros grupos qualificados de “minorias”, em um pro- cesso que pode, por fim, engendrar uma sociedade multirracial. Esse mul- ticulturalismo propõe uma narrativa na qual as minorias se integram a seu ambiente, mas ainda assim continuam vistas como diferentes, cada uma com suas cores e costumes próprios. O pa- pel fundamental atribuído aos brancos não é de modo algum afetado. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA NO BRASIL A América Latina nunca se deu ao tra- balho de definir a qual grupo étnico seus “pais fundadores” pertenciam. Uma vez arrancada das coroas espa- nhola e (de maneira diferente) portu- guesa, a soberania foi confiada, confor- me se convencionou, às mãos do povo. Em vez de recorrerem a um ethnos pree- xistente, os processos de formação na- cional se basearam sobretudo em uma etnogênese. A palavra “crioulo” traduz essa indeterminação: cunhada para qualificar os negros nascidos na Améri- ca, foi aos poucos se impondo como ter- mo genérico que podia designar tanto uma população miscigenada quanto qualquer pessoa nascida no continente, pouco importando sua origem. As elites dirigentes da maior parte da América Latina incentivam narrativas fundadas no princípio da hibridização: nação “mestiça” no México, “democracia ra- cial” no Brasil ou nação “café com leite” na Venezuela. Ao contrário, outros paí- ses – como a Argentina – se imaginam historicamente brancos e europeus. Em tal contexto, os movimentos po- pulares que surgiram na região durante o século XX deram prioridade, natural- mente, às identidades de classe. Do Par- tido Revolucionário Institucional (PRI) no México ao Partido dos Trabalhado- res (PT) no Brasil, passando pela Alian- ça Popular Revolucionária Americana (Apra) no Peru ou pelo peronismo na Argentina, a maior parte das formações políticas ligadas à esquerda se dirige – quase sempre falando, inclusive, em seu nome – a cidadãos definidos sobretudo pela condição de trabalhadores ou cam- poneses. O peronismo argentino, em es- pecial, se mostra particularmente hábil nessa área. O “trabalhador” ao qual ele se dirige também é chamado de cabeci- ta negra: uma pessoa de pele escura, mas sempre definida em termos de clas- se. Semelhante ambivalência põe em xeque a visão de uma nação “branca” sem, todavia, promover uma organiza- ção social sobre bases raciais, o que não deixa de ser perigoso em um país onde as classes sociais se compõem de seg- mentos múltiplos e mesclados, dos quais muitos são de origem europeia. Três mecanismos alteram progres- sivamente esse quadro. O primeiro diz respeito à tenacidade militante dos grupos indígenas ou afrodescendentes perante o racismo. O segundo fator se prende à expansão do neoliberalismo, que enfraquece a ação pública e reduz a capacidade do Estado de “construir uma nação” concedendo direitos a seus cidadãos. Enfim, o multiculturalismo e as “políticas de identidade” importadas do Norte vão impregnando aos poucos os discursos, veiculados muitas vezes por ONGs, universitários e militantes. Entretanto, a defesa das identidades alimenta também os discursos da es- querda, que se esforçam por banir as humilhações impostas a cidadãos con- siderados de “segunda classe”. Na Bolí- via, e depois no Equador, a chegada ao poder de Evo Morales (2006-2019) e Ra- fael Correa (2007-2017) abalou a ordem constitucional e estabeleceu Estados “plurinacionais”. No Brasil, o PT ins- taurou um sistema de discriminação positiva em 2008, com cotas de vagas nas universidades reservadas a negros e índios, primeira medida desse tipo no contexto regional. Acrescida a políticas sociais que privilegiam os mais necessitados – e, portanto, quase sempre os menos bran- cos –, essa afirmação de um direito à diferença fomenta, em contrapartida, a expressão de um racismo tanto mais violento quanto implica a perda de pri- © Renato Caetano ®® https://t.me/PDFs_Brasil 13AGOSTO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil vilégios. Por ocasião do golpe de Estado de 2019, a direita conservadora bolivia- na deu livre curso ao ódio aos “índios” e sua cultura, queimando bandeiras e pisoteando símbolos culturais. Hugo Chávez, eleito presidente da Venezuela em 1998, e Pedro Castillo, que acaba de vencer as eleições presidenciais perua- nas, também tiveram de suportar as zombarias racistas das camadas rea- cionárias de seus países. Mas os novos objetivos proclama- dos pelos governos progressistas susci- tam também debates legítimos sobre a melhor maneira de articular as refor- mas sociais e a luta contra as discrimi- nações. No Brasil, por exemplo, o siste- ma de discriminação positiva provoca intensas discussões, e alguns progres- sistas se dizem preocupados com o que percebem como a introdução de um modo de classificação racial, típico dos anglo-saxões, desconectado das reali- dades locais. Controvérsia teórica? Tal- vez: no debate público, logo se julgou necessário nomear comissões de espe- cialistas das universidades para com- bater a “fraude racial” e determinar, com bases pretensamente objetivas, quem era negro e quem não era. Toda estratégia tem seu custo: uma política centrada nas questões raciais pode contribuir para enfraquecer as identidades de classe, e vice-versa. Dos tzotzil do México aos mapuche do Chi- le e da Argentina, a América Latina conta com centenas de povos autócto- nes que vivem como minorias em so- ciedades que os excluem ou discrimi- nam de várias maneiras. Isso se aplica também a dezenas de grupos afrodes- cendentes que se reúnem em comuni- dades, como os raizal na Colômbia ou os quilombolas no Brasil; eles também reclamam seus direitos à terra e à igual- dade. Essas reivindicações, sobretudo quando se chocam contra fortes resis- tências, levam inevitavelmente os que as defendem a reforçar sua identidade coletiva e a traçar uma linha de demar- cação entre “nós” e os outros. Existem ainda grupos de vítimas do racismo que não vivem em comunida- des e não se identificam necessaria- mente com um grupo étnico particu- lar. São milhões de pessoas de pele mais ou menos escura que compõem o grosso das classes populares. Minoria? Ao contrário: trata-se do grupo demo- gráfico mais importante
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