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Capítulo III O psicodiagnóstico interventivo sob o enfoque da narrativa Giuliana Gnatos Lima Bilbao Neste artigo, tratarei o psicodiagnóstico a partir do enfoque do discurso, mais especificamente da narrativa. Segundo o dicionário (Ferreira, 1986), a palavra discurso está associada a expor com método, raciocinar, discorrer, dar largas explicações, discutir. O discurso seria, pois, o resultado de um processo de raciocínio, explicação, exposição. Essa definição sugere que o discurso é algo que revela um conteúdo por meio desse processo. Essa é a maneira mais usual de compreender o discurso e é a que prevalece no senso comum. O psicodiagnóstico, tomado como um processo de intervenção (Ancona- Lopez, 1995), evidencia que o discurso não é a mera explanação de algo já pronto ou o resultado de um simples raciocínio sobre o que já está devidamente delimitado, esperando o momento de exposição através da fala. Ao contrário, as palavras vão se juntando em histórias, que ora trazem momentos do passado e do futuro, ora levantam percepções e sentimentos que assumem formas não previstas pela própria pessoa, como no giro de um caleidoscópio. A construção e a descoberta do inesperado surgem no discurso. Criam-se significados, alguns nebulosos, outros sequer cogitados, outros ainda surpreendentes ou difíceis de admitir. Eles provêm da movimentação desencadeada no processo do discurso. Em suma, no discurso, a palavra revela o seu poder. Benjamin (1936) trata de uma das formas possíveis de discurso: a narrativa. Segundo ele, as narrativas são formas de comunicação florescentes no mundo artesão de outrora e que corriam as cidades, os campos e os mares. Nas narrativas não se pretendia transmitir a coisa narrada como mera informação; o que importava era o próprio relato das circunstâncias, da experiência vivida. O narrar se dava em um trabalho artesanal. Essas narrativas foram substituídas, gradualmente ao longo da história, por outro tipo de comunicação: a informação. Enquanto a narrativa traz, de maneira viva, o acontecimento vivido, a informação é destituída da experiência vivida. A informação precisa ser suficiente em si e para si e precisa ser plausível e passível de verificação. Já a narrativa é aberta, dá liberdade ao leitor para interpretar a história contada e não tem compromisso com a verdade tomada no sentido factual, objetivo. Por esse caráter livre e aberto, a narrativa não se submete à organização da vida na sociedade moderna e cai em desuso. Na visão de Benjamin (1936), a pobreza na comunicação que se evidencia na sociedade da informação aproxima-se do empobrecimento da própria experiência humana e, talvez, essa última seja efeito da primeira. Benjamin (1936) denuncia, assim, um modo de ser carente de histórias surpreendentes, ainda que repleto de notícias de todo o mundo. A situação específica do psicodiagnóstico interventivo, vista à luz das colocações de Benjamin, mostra que, ao falar de seus filhos e de suas vidas, os pais não estão apenas dando informações sobre o desenvolvimento, a dinâmica familiar, a escola etc. Eles estão, antes de tudo, narrando uma história cheia de experiências: “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (Benjamin, 1936, p. 201). Ao narrarem, os pais mostram mais do que os fatos acontecidos, mas as suas maneiras de significar esses fatos, seu olhar sobre eles, a maneira como se sentem impactados. Se o ouvinte estiver suficientemente disponível à escuta, sentirá que a narrativa toca a sua própria experiência. Por analogia, o processo se dá como o do artesão que modela sua escultura com determinada porção de argila: os pais, ao narrarem suas histórias, dando-lhes forma, impactam nossas experiências, e esse impacto nos ajuda a compreendê-los. Certamente o que dizemos aos pais também os afeta, continuando a modelagem do bloco de argila, em um processo de vai-e-vem. No mesmo ano em que Benjamin escreve O narrador, Husserl escreve A crise da humanidade europeia e a filosofia. Ainda que os textos sejam diferentes em seu conteúdo específico, ambos se aproximam em um ponto: são um convite ao resgate da experiência humana. Enquanto Husserl (1936) salienta a necessidade de a filosofia e a ciência voltarem à experiência, às coisas mesmas, Benjamin (1936) ressalta a importância da narração como uma maneira de significar a experiência humana. Husserl (1936) postula a inexistência de um conhecimento puramente subjetivo ou puramente objetivo e nega a dicotomia sujeito -objeto. Ele afirma que a consciência é intencional, puro movimento que se contitui a si mesmo, constituindo objetos intencionais. A consciência é, pois, sempre consciência de algo que é sempre algo para uma consciência, indissociavelmente. Nessa unicidade consciência-objeto, somos sujeitos em contínuo processo de criação de objetos, fatos, relações, significados e, ao constituí-los, constituímos a nós mesmos. Esses pressupostos refletem-se no modo de se aproximar das histórias contadas pelos pais no processo de psicodiagnóstico interventivo: o primeiro remete à noção de que aquilo que é contado não deve ser entendido como uma verdade no sentido objetivo, pois se dá em uma consciência atribuidora de significados; mas aquilo que é contado, o que é vivido pelos pais, é a sua verdade. Uma segunda aproximação diz respeito ao movimento: se, no campo intencional, criamos o mundo e a nós mesmos e criamos significados, esses são mutáveis, pois o processo intencional é contínuo movimento. Assim, a história contada é uma narrativa, ela é aberta aos novos significados que surgem no próprio processo de narrar e origina-se na experiência vivida. Ela é a modelagem contínua da argila e não o retrato de uma escultura acabada. Os pais, ao contarem as histórias de suas vidas e da vida de seus filhos, mergulham em sua própria experiência, e nós, psicólogos, procuramos acompanhá- los nesse mergulho. Nesse processo, alguns conteúdos aparecem, outros desaparecem, significados surgem e ressurgem, transformam-se, produzem novas formas de compreensão. O psicodiagnóstico interventivo não é, pois, um mero processo de investigação, mas é uma aventura dinâmica de construção artesanal, realizada a várias mãos: do psicólogo, das crianças, dos pais e das demais pessoas envolvidas no processo. Ao narrar a história, os pais mergulham e encontram fatos antigos, projetam expectativas, outras histórias… podem pegá-los nas mãos debruçar-se sobre eles, pensar, repensar, re-significar. No bojo dessa maneira de conduzir o psicodiagnóstico interventivo existe a concepção de que todo homem está em movimento, é capaz de re-viver suas experiências ao relatá-las e é capaz de modificá-las atribuindo-lhes novos significados e acres-centando outros. O homem não é um objeto a ser esmiuçado com lentes investigativas, mas é alguém que participa conosco de um processo dinâmico de descoberta e construção. Como dizem Granato e Aiello-Vaisberg (2004): frequentemente nos deparamos com trabalhos de investigação que exibem ora uma tendência à teorização excessiva, hermética e estéril, ora a catalogação obsessiva de “dados”, na esperança de desvendamento do enigma do sofrimento humano. Da primeira situação chegamos ao homem-abstrato e da segunda, ao homem-máquina, porém essas aproximações parecem nos distanciar ainda mais do homemem seu acontecer, aquele que na pesquisa clínica se nos apresenta diante dos olhos, em toda a sua humanidade, mas que, desolado, encontra apenas a recusa de nosso olhar. (p. 267) Uma tia,[1] certa vez, veio procurar atendimento psicológico, pois sua sobrinha estava com problemas na escola. Em seu discurso, não ficava muito claro que problemas eram esses. A tia sempre alegava que tinha medo de que a garota tivesse problemas, pois sua mãe tinha uma namorada do mesmo sexo, tinha saído de casa e deixado a garota com ela, a tia. Por volta da quarta sessão, ela parou de falar da sobrinha e começou a narrar a sua história e a de sua irmã. Desde a adolescência, a relação entre elas foi muito conflituosa, com dificuldades de comunicação e discussões. Disse que a amava, mas não podia entender “como ela podia gostar de outra mulher”, ou melhor, ela entendia, mas não podia aceitar. Nesse ponto do diálogo, a tia caiu em prantos, e o discurso que estava nebuloso e focado na sobrinha, ganhou uma nova consistência, uma vivacidade diferente. Ela havia conseguido arriscar e mergulhar em sua própria experiência. No final, concluiu que era ela quem precisava de ajuda, o sofrimento era dela. O problema emergiu de determinada forma — minha sobrinha está sofrendo —, mas ele ganhou um novo sentido no decorrer do processo — eu estou sofrendo. O espaço do psicodiagnóstico interventivo é esse espaço que possibilita mudanças; na medida em que algo pode ser experienciado e falado, uma transformação ocorre; uma transformação não meramente cognitiva, intelectual, mas existencial. Modifica-se o posicionamento, a forma de ser da pessoa. A tia não estava “escondendo” a situação, mas, ela própria não sabia aonde o mergulho iria levá-la. Ao estar ali, narrando, sentindo e refletindo, pensamento e fala se uniram e criaram novas configurações, entrelaçando-se, interpenetrando-se e transformando os interlocutores. Merleau-Ponty (1945) coloca: “Assim a fala não traduz, naquele que fala, um pensamento já feito, mas o consuma” (p. 242). Falar e pensar são indissociáveis na existência do sujeito. Esse autor ainda nos diz: Se a fala pressupusesse o pensamento, se falar fosse em primeiro lugar unir-se ao objeto por uma intenção de conhecimento ou por uma representação, não se compreenderia por que o pensamento tende para a expressão como para seu acabamento, por que o objeto mais familiar parece-nos indeterminado enquanto não encontramos seu nome, por que o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, como o mostra o exemplo de tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o que nele colocarão. Um pensamento que se contentasse em existir para si, fora dos incômodos da fala e da comunicação, logo que aparecesse cairia na inconsciência, o que significa dizer que ele nem mesmo existiria para si. (Merleau-Ponty, 1945, p. 241) É através da fala que o pensamento se cumpre e as significações se dão, pois falar é encontrar a experiência no momento, como surge perante o outro e perante o próprio ser falante. A fala é o próprio manifestar e desdobrar do ser. A narrativa dos pais é, pois, um movimento existencial. Assim, Não poderemos mais admitir, como comumente se faz, que a fala seja um simples meio de fixação, ou ainda o invólucro e a vestimenta do pensamento (…) É preciso que, de uma maneira ou de outra, a palavra e a fala deixem de ser uma maneira de designar o objeto ou o pensamento para se tornarem a presença desse pensamento no mundo sensível e não sua vestimenta, mas seu emblema ou seu corpo (p. 247). É inegável que as palavras estão disponíveis no mundo segundo o legado de determinada cultura, e cada pessoa faz uso delas para se fazer entender pelo outro. Este é o caráter não original da palavra. Usar palavras pode ser um ato quase automático, em que o ser falante procura, dentre as palavras existentes, aquela que melhor se ajusta àquilo que ele quer dizer. Mesmo assim, cada ser faz uso das palavras de maneira própria e segundo sua própria história, segundo seu estilo pessoal e, ainda que se sirva de um material consensual, oferecido pela cultura — as palavras existentes —, toda fala tem um caráter inaugural, pois novos sentidos são acrescentados às palavras existentes pelo próprio viver dos homens e pelo modo como as usa. Mesmo tendo um significado compartilhado em determinada cultura, as palavras mudam de significado ao longo do tempo. Colocar-se à disposição de um outro que vem buscar ajuda é estar diante da tarefa de compreender as significações que a narrativa tece, procurar um encontro com o outro através da fala, dos sentidos ali impregnados. Que sentidos tem a fala de uma mãe quando diz: “meu filho é nervoso” ou “meu filho é bagunceiro”? Quais os sentidos da fala de uma garotinha que diz: “minha mãe morreu”, quando a mãe está bem viva na sala de espera? Quais os sentidos de uma criança que diz: “eu comi só um pouquinho”, quando sua mãe conta que ela comeu o pote inteiro de doce? As narrativas nos ajudam a construir artesanalmente os diferentes sentidos. Para Amatuzzi (2001), “descobrir o sentimento e despertar a experiência primordial são também formas de romper o silêncio” (p. 26). Ao pronunciarem suas experiências, os pais também as escutam e podem vê-las e senti-las melhor, e os significados articulados começam a se transformar. Certa vez, uma mãe chegou aflita dizendo que suas filhas “não eram o que deviam ser”[2] e, para que elas fossem, a mãe tomava medidas de grande autoritarismo. Ela estava certa de que, se fizesse com que entendessem a importância dos estudos e das regras, teria filhas ótimas, preparadas para a vida. Percebíamos certa sisudez em seu modo de falar e, quando levada a refletir sobre suas atitudes, era evasiva e exigente. Dizia: “mas elas têm que aprender, eu quero as melhores filhas do mundo, toda mãe quer que os filhos sejam perfeitos”. Ela acreditava que suas filhas não a obedeciam porque ainda não haviam compreendido “como devia ser”, “eram folgadas”, e ela ficava, obstinadamente, ao lado delas, explicando regras, a necessi-dade de fazer lições de casa para ser “alguém na vida”. As filhas, por sua vez, durante o psicodiagnóstico interventivo, demostravam muito medo de represálias e mostravam-se travadas em sua liberdade de experimentar as coisas. Nada podia “dar errado”, essa era a mensagem que traziam de casa. A exigência de perfeição e a constante vigilância da mãe tornava difícil conseguir alguma liberdade para brincar, para falar, e, menos ainda, liberdade para errar. Ao longo do processo, a mãe pôde refletir sobre suas atitudes e começou a suspeitar quais eram, talvez, as razões dos comportamentos irritáveis e temerosos de suas filhas. E, então, ela começou a mudar suas atitudes rigorosas, temperando- as com uma pitada de flexibilidade aqui e acolá, e verificou que as garotas também mudavam. Surpreendeu-se com as novidades que as filhas traziam quando modificou sua postura e contava: “eu resolvi perguntar calmamente por que ela não tinha feito a lição antes de dar o castigo e ela disse que não tinha feito a lição porque tinha medo de errar! Acho que eu estou pegando muito no pé delas, vou tentar ser mais tolerante”. Surpreendentemente, na última sessão do psicodiagnóstico interventivo, a mãe sintetizou: “Eu vim até aqui pensando que minhas filhas é que tinham problemas, hoje eu vejo que minhas atitudes não ajudavam e que quem tinhaproblemas era eu, eu tive muitos problemas com estudo… não queria pra elas o que aconteceu comigo e por isso não conseguia separar as coisas e ficava tão aflita, vocês me ajudaram a ver isso”. Ela disse isso como uma confissão e contente com o fato de poder dizer para si mesma que também tinha dificuldades. Foi possível compreender esse estado de coisas no decorrer dos encontros e a mãe pôde assumir suas imperfeições e entender melhor as de suas filhas. O processo de psicodiagnóstico interventivo ajudou-a a construir novos significados para o que acontecia, e foi necessário percorrer um caminho para que isso ocorresse. O processo do psicodiagnóstico interventivo, portanto, não consistiu em “mostrar à mãe o que ela tinha que saber” sobre ela mesma e as filhas, na atitude profissional de quem sabe mais e diz o que é correto ao outro. Ser psicólogo não é saber mais sobre o outro do que ele mesmo sabe. Nós, psicólogos, devemos saber esperar que o processo se desenvolva e não explicar as situações a partir de referências teóricas externas e classificar os clientes em categorias pré-estabelecidas. O psicodiagnóstico interventivo é um processo artesanal que parte da experiência vivida pelas pessoas, narrada e compartilhada nas várias histórias. A experiência vivida ganha espaço através dessas narrativas, e elas, por sua vez, transformam os significados da experiência vivida. É comum receber pais ou outros responsáveis com dificuldades para colocar limites ao educar crianças. Recentemente, um avô e uma avó obesos, responsáveis legalmente por seu neto, levaram-no ao Serviço de Psicologia porque ele não parava de comer. A avó do menino apresentou-se de forma distante e não se mostrava empática ao lidar com as aflições da criança. Perdia a paciência e se isolava, deixando o menino fazer o que bem entendesse. O garoto, bastante carente de afeto, apegava-se ao avô, homem mais afetuoso que a avó, cujos programas divertidos com o neto, porém, envolviam sempre comida. O menino, aos oito anos, estava acima do peso, e o ortopedista já havia sugerido uma cirurgia em seus calcanhares. Era muito doce e esperto e mostrava sempre, na hora lúdica, como necessitava de atenção. Os avós sempre diziam que era preciso: “dizer para ele que ele não pode comer assim… quando foi na nutricionista, a nutricionista conversou com ele e ele entendeu”. Eles imaginavam que tínhamos o poder de mudar as coisas por meio do simples processo de explicar ao neto o que “deveria ser feito”. Os avós, por sua vez, não davam limites para o neto, o sobrecarregavam com todas as angústias do mundo adulto e achavam bonito que ele entendesse tanto de tantas coisas. Diziam com frequência que o menino era muito adulto. Ser adulto, para eles, significava decidir sobre suas roupas e horários, dormir quando queria, escolher o que a avó faria de almoço, não ser contrariado em suas opiniões. O que aparecia como tirania para nós, psicólogos, significava, para os avós, ser “muito adulto”. Os avós não viam que o menino se deparava com problemas fora do seu alcance, angustiando-se e comendo em demasia. No início do processo do psicodiagnóstico interventivo, eles não se viam implicados no problema de comer do neto, embora ambos tivessem dificuldades com a alimentação e fossem bastante ansiosos. Em sua fala, a responsabilidade da mudança recaía sobre nós: “vocês têm que falar com ele”. Quando o menino se punha a comer, nada era dito, e nenhuma atitude era tomada para impor regras e limites. Nos momentos finais do psicodiagnóstico interventivo, a narrativa era outra: “percebi que nós também não temos regras e não gostamos de segui -las, como vamos então fazer com que ele siga e entenda que existem regras?”. Algo já estava em movimento, novas percepções e significados surgiam. Esse exemplo mostra que os significados das palavras não podem ser pressupostos, mas é necessário um esforço de compreensão para não correr o risco de achar que sabemos o que ainda não sabemos. As palavras, em sua acepção mais corriqueira e ordinária, veiculam significados comuns, mas os seus sentidos singulares, na maioria das vezes, encontram-se ocultos. As palavras são polissêmicas, elas carregam significados culturais compartilhados e, simultaneamente, inauguram significados originais próprios de cada falante. As devolutivas para as crianças em forma de narrativas O procedimento de elaborar pequenas histórias para o encontro no qual devolvemos às crianças o que fomos compreendendo é prática proposta para o psicodiagnóstico interventivo. Criamos personagens, imagens, recortes ou imagens digitais e montamos uma história que reflete a compreensão que tivemos da criança durante nossos encontros e que possa ser compartilhada com ela. Esse modo de devolver o que percebemos e encontramos é, também, uma narrativa: contamos uma história, não afirmamos que a criança é este ou aquele personagem, é desta ou daquela maneira, comporta-se dessa ou daquela forma por isso ou por aquilo. Ao ouvir nossa história, a criança é livre para aceitar ou não o enredo, mudá-lo ou não, atribuir a ele os seus próprios significados, apropriar-se dele ou não. A narrativa é aberta. A linguagem utilizada é a da narrativa e não a da informação. Não estamos ali para informar “o que a criança tem”, “como ela é”, mas para mostrar a compreensão que pudemos desenvolver em nossos encontros, as impressões que causou com sua presença, com suas histórias, com seus gestos, por meio de outra história. Mergulhamos no processo e criamos a história a partir das experiências no contato com os pais e a criança. Evitamos, assim, dar explicações, estabelecer causas e efeitos forjados teoricamente, mas sim mostrar o que se compreendeu por meio da história. A história é narrativa e, portanto, aberta ao outro que encontrará nela significados próprios, certamente diferentes dos nossos em muitos aspectos. Uma criança, certa vez, disse: “essa história não me lembra ninguém”. Estaria ela negando a identificação com o personagem? Pode ser, mas temos que permitir-lhe essa liberdade. E é possível, então, modificar com ela a história ou criar outra.A partir do que pudemos compreender no processo do psicodiagnóstico interventivo, construímos livrinhos artesanais com nossas histórias e, na maior parte das vezes, as crianças identificam-se com elas: “O golfinho sou eu!”, “A mamãe e o papai tigre parecem o papai e a mamãe”, “A formiguinha come muito como eu!” etc. Ouvir a história, concordar com ela, discordar ou mudá-la, possibilita um jogo simbólico entre os psicólogos e a criança, aproximando-a de si mesma de forma lúdica e estimulante. A meu ver, as narrativas, durante todo o processo de psicodiagnóstico interventivo, culminando com as histórias narradas para as crianças, possibilitam um resgate da própria experiência vivida, retomam o passado e o futuro no tempo presente. O ali e agora do psicodiagnóstico interventivo recria outras possibilidades de ser. Mais do que um mero processo investigativo, o psicodiagnóstico interventivo quebra o silêncio e põe em movimento a pessoa que busca o psicólogo. Ao narrar sua vida, a pessoa tem a possibilidade de colocar-se como sujeito de seu próprio caminho. Referências bibliográficas AMATUZZI, M. M. Silêncio e palavra. In: ______. Por uma psicologia humana. Campinas: Alínea, 2001. ANCONA-LOPEZ, M. (Org.). Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo: Cortez, 1995. BENJAMIN, W. [1936]. O narrador: Consideraçõessobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. GRANATO, T. M. M.; AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Tecendo a pesquisa clínica em narrativas psicanalíticas, Mudanças — Psicologia da Saúde, v. 12, n. 2, p. 253-71, jul./dez. 2004. MERLEAU-PONTY, M. [1945]. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 1. Informações sobre os casos foram alteradas ou omitidas a fim de preservar a identidade dos clientes. 2. Ressalto que as frases entre aspas no texto são meramente ilustrativas do sentido essencial da fala, não são frases literais dos clientes. III. O psicodiagnóstico interventivo sob o enfoque da narrativa
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