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golpes e Constituintes, Constituições Os caminhos e descaminhos da formação constitucional do Brasil desde o período colonial adrianO pilatti Mu se u Hi st ór ic O na ci On al 28 29 A saga constituinte e constitucional brasileira recobre formalmente os dois últimos dos cinco séculos de tormentosa formação do próprio país, de sua gente, de seu Estado. Ao todo, foram oito codificações supre- mas: quatro Cartas impostas pelas forças minoritárias dominantes; qua- tro Constituições formalmente legítimas, nascidas de Constituintes com legitimidade variável. Ao todo, foram cinco Constituintes legíti- mas, a primeira das quais foi a única monárquica, e também a única dissolvida à força antes de terminar sua obra. Seguiram-se quatro Cons- tituintes republicanas, sendo três congressuais e uma exclusiva, de le- gitimidade crescente no tempo – ao menos do ponto de vista quantita- tivo, por força do progressivo alargamento do corpo eleitoral. Duas Car- tas foram impostas pelo chefe de Governo do momento. Uma Carta foi outorgada sob o disfarce da homologação, por um Congresso submisso e ilegítimo, do projeto imposto pelo chefe de Governo. Uma controver- sa sétima Carta foi imposta por uma junta militar no curso de um gol- pe dentro de outro. Em 191 anos de vida independente, o bom povo bra- sileiro teve menos de cinquenta anos de vida democrática efetiva. Nesse quadro, a Constituição Cidadã de 5 de outubro de 1988 é a ben- fazeja “anomalia”. Nasceu de uma Constituinte razoavelmente legíti- ma, que mais legítima se tornou ao sofrer o influxo de (e ao se abrir para) um processo amplo e inédito de participação e pressão populares. Ela “rege” há 25 anos um sistema democrático que não sofreu nenhuma ameaça de interrupção, ao contrário de todos os anteriores (e mais breves). Ao contrá- rio, a Constituição de 1988 estrutura juridicamente um regime político em que tem sido constante o alargamento dos direitos e das formas de ação de- mocrática, como o recente ciclo de “levantes” demonstra. Sua existência é, ao mesmo tempo, o sinal de ingresso da participação popular organizada nos processos decisórios formais e o ponto de partida no processo de afirmação de um poder constituinte efetiva e finalmente popular entre nós. Ela rompeu uma triste tradição, abriu horizontes e forneceu novos instrumentos formais para as lutas por direitos no Brasil. Mas conserva, em seus conteúdos e na sua forma, as marcas do passado de que proveio. Também aqui o passado ajuda a A fuga da família real para o Brasil: oportunidade para o início da formação constitucional Fu nd aç ãO B iB li Ot ec a na ci On al 30 31 compreender o presente e, por isso, o “voo panorâmico” que se segue pode ser de alguma utilidade para a ade- quada intelecção das virtudes e dos limites do sistema constitucional que hoje temos, e que nossa tormento- sa formação constitucional nos legou. A breve síntese aqui apresentada se estrutura a partir de uma perspectiva constituinte ex parte populi, do pon- to de vista da cidadania. Procura enfocar nossos diversos processos constituintes e sistemas constitucionais com um olhar da “planície” para a “montanha”, mesmo na- queles contextos em que um poder constituinte verda- deiramente popular não encontrou forças nem formas de expressão. Confron- ta, portanto, a inercial tendência autoritária e autocentrada das elites dirigen- tes que, ao longo dos séculos, têm procurado controlar “pelo alto” os aconteci- mentos políticos e institucionais do país. E tenta identificar, em meio aos di- ques e às barreiras postos pelo persistente conservadorismo das elites dirigen- tes nacionais, as brechas pelas quais os movimentos constituintes progressistas, originados “de baixo”, têm buscado afirmar sua capacidade de resistência e ex- pansão, em busca da constituição de “um outro Brasil possível”. A estruturação das instituições políticas e administra- tivas do Reino de Portugal na colônia brasileira obedeceu ao sentido alienante de tal projeto. Tais instituições fo- ram as bases do que depois se tornou o Estado brasileiro. Na verdade e ao contrário do que se deu em geral na Eu- ropa, os braços coloniais do Estado português foram es- truturados aqui antes que tivéssemos propriamente uma “sociedade”. A máquina colonial é que foi, aos trancos e barrancos, transformando as gentes aqui viventes em um “povo”, um povo que tem por nome uma ocupação: brasi- leiro era quem trabalhava na extração e exportação do pau-brasil. Com isso, o domínio colonial impôs à nossa gente as formas deformantes da sujeição e da exploração selvagem do trabalho servil. Aí está o primeiro dado relevante: o escravismo. A sub- jugação violentíssima dos povos negros e indígenas deixou marcas indeléveis que até hoje não foram superadas, como se pode perceber no padrão secular de violência – “comum”, política e sexual – contra os “de baixo” que, a muito custo, ainda tentamos superar. Entre nós, a escravidão fez do tra- balho produtivo pouco mais do que a originária tortura (a palavra trabalho vem do termo latino trepalium, instrumen- to de suplício). Privou o trabalho de qualquer resquício de oportunidade para satisfação de necessidades dos traba- lhadores, construção de autonomia, redenção, etc. Ao con- trário, sobretudo o trabalho braçal foi, ao longo dos sécu- los, sinônimo cru de danação, humilhação, cativeiro, me- noridade. O quadro dantesco se agrava quando consideramos a dupla sujeição das mulheres escravizadas: além da exploração do trabalho, foram reduzidas à condição de “pasto” para saciar as pulsões lúbricas e perversamente violentas de seus amos. Daí, talvez, a enorme e recorrente dificuldade dos setores patro- nais em compreender os trabalhadores como sujeitos de direito – como as rea- ções hostis à proteção dos trabalhadores domésticos recentemente demonstra- ram. Daí, talvez, o padrão selvagem de violência contra as mulheres, sobretudo as pobres e marginalizadas, que até hoje testemunhamos. Dado que, em sistemas escravistas, os trabalhadores servis são classifica- dos como “coisas” e não como cidadãos portadores de direitos, inclusive polí- ticos, o escravismo restringiu fortemente o universo do demos reconhecido como partícipe nas decisões da polis. Tal exclusão produziu, para dizer o mí- nimo, um “déficit de legitimidade” que contaminou toda a fase monárquica A ordem colonial e seu legado problemático Brasileiro: aquele que explora o pau-brasil Os mais de três séculos de experiência colonial condicionaram intensamente nossa formação constitucional. Sobretudo se tomarmos em boa conta o que Caio Prado Jr. chamou de “o sentido da colonização” portuguesa neste vasto territó- rio que, aos poucos, foi se chamando e se tornando o Brasil que hoje conhece- mos. Um projeto colonial pensado desde a metrópole portuguesa e para ela, no qual a terra brasileira e sua gente eram compreendidas tão somente como ob- jeto de domínio e exploração, como parte subalterna, ainda que preciosa, de um empreendimento transcontinental de predação. O Correio Braziliense, primeiro jornal brasileiro, editado em Londres por José Hipólito da Costa As Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga: poemas satíricos contra a ordem colonial e marco do exercício da liberdade de expressão Fu nd aç ãO B iB li Ot ec a na ci On al Fu nd aç ãO B iB li Ot ec a na ci On al Bi Bl iO te ca G ui ta e J Os é Mi nd li n 32 33 de nossa vida independente e, prosseguindo por outros meios, prolongou-se até pelo menos o fim da República Velha. O início efetivo do ingresso das mas- sas trabalhadoras na arena política, impulsionado pelas lutas constituintes dos despossuídos e marginalizados em geral, somente veio a ocorrera partir da Revolução de 1930. E ainda assim aos poucos, com grandes “intervalos” de retrocesso, até chegar ao promissor patamar de 1988. À subjugação das gentes correspondeu a construção do domínio patriarcal, articulado com as linhas de força – políticas, administrativas e clericais – da estrutura de dominação colonial. As concessões e as conquistas de terras trans- formaram os senhores agrários em verdadeiros potentados locais, cujos pri- vilégios abrangiam, sem nítida distinção, prerrogativas que hoje costumamos definir como direitos privados, de um lado, e atribuições públicas, de outro. Tudo somado, afirmaram-se ao longo dos séculos como “senhores da vida e da morte” nos territórios recortados por suas cercas e porteiras. Controlavam a produção, as armas e as gentes nos seus domínios, espalhados pela vastidão do território da Colônia. Mas seu poder econômico era contrastado e em gran- de medida subordinado pelo poder da classe comercial, exclusivamente por- tuguesa, senhora dos fluxos financeiros e de mercadorias, aí incluídos os es- cravos. As contradições entre um bloco oligárquico e outro cresceriam de mo- do a formar o caldo nativista que nutriu a Independência. A completar o pa- norama, os trabalhadores “livres” e os eventuais, toda uma população urba- na comprimida no estreito espaço entre a base servil e a cúpula oligárquica, constrangida a variadas formas de clientelismo em um horizonte em que o trabalho, desva- lorizado pelo regime escravo, não oferecia perspectivas de construção e de autonomia e prosperidade, e pouco se distinguia da degradação. Não é trivial entender a organização “estatal” da Colô- nia em um horizonte espaço-temporal em que “público” e “privado” não encontravam nítida separação, em que a Igre- ja era departamento do Estado e a condição de “súdito” se confundia com a de “crente”, em que as noções modernas e contemporâneas de “distinção de funções” e “separação de poderes” ainda estavam apenas começando a se deline- ar em todo o mundo ocidental, tanto na teoria como na prá- tica. Grosso modo, simplesmente transplantou-se para o novo território, com rara preocupação de adaptação ao novo contexto, a Babel de estruturas burocráticas concebi- das – e implantadas – na metrópole portuguesa, na forma do célebre Almanaque de Lisboa. E tudo isso sem as preo- cupações de racionalização, simetria, uni- dade e coerência que caracterizariam, sé- culos adiante, os sistemas jurídicos e as administrações públicas modernas e con- temporâneas. Apenas um ponto sobressaía com insofismável nitidez: o status políti- co-econômico soberano do rei de Portugal, “supremo dispensador e regulador”. E, abai- xo dele, o todo-poderoso Conselho Ultra- marino, que superintendia o “negócio do Brasil” e em tudo interferia. Com efeito, a “legislação” administrati- va colonial era um verdadeiro “cipoal de casuísmos”, em que se amontoavam com frequência, contraditoriamente, Ordena- ções codificadas, leis extravagantes, Car- tas régias, alvarás, contratos de concessão, etc. O ideal de um “direito certo”, a segu- rança jurídica que nasce de saber qual a norma efetivamente aplicável ao caso, a lei como instrumento de contenção de po- der e garantia de direitos – tudo isto era ainda desconhecido, e a parafernália normativa servia apenas para garantir o domínio reinol. Vem desses tempos a crônica distância entre o “legal” e o “real”, a norma e a prática, a vigência formal e a efetividade concreta, o des- prezo à lei, que ainda hoje se prolonga. Na Colônia, as capitanias eram as maiores unidades territoriais “adminis- trativas” (administração, legislação e jurisdição se confundiam; o Direito era, sobretudo, Direito Administrativo). Elas se dividiam em comarcas, que, à sua vez, se dividiam em termos (correspondentes às cidades e vilas), estes, em fre- guesias (correspondentes às paróquias católicas), estas, em bairros. Em cada capitania a autoridade “maior” – subordinada ao Reino e concorrendo com outros órgãos reinóis – cabia ao governador (“capitão-general” nas mais im- portantes), chefe militar e administrativo, que presidia também as Relações, órgãos jurisdicionais e administrativos. Dadas a distância e a morosidade das instituições metropolitanas, o poder efetivo do governador era muito amplo, mas sempre subordinado à Metrópole, e limitado pela existência de órgãos especiais diretamente ligados a ela, como as Intendências do Ouro e dos Dia- mantes. O governador era o comandante supremo das forças militares: as “tro- pas de linha”, que eram as forças regulares; as “milícias”, forças auxiliares Acima, a imagem de Debret do Rio de Janeiro à época da aceitação provisória da Constituição de Lisboa; e o Largo do Rocio em 1925, por Jacques Arago, ao lado ac er vO i cO nO Gr ap Hi a ac er vO i cO nO Gr ap Hi a 34 35 organizadas em cada freguesia e comandadas por oficiais escolhidos pelo “po- vo”; e as “ordenanças”, organizadas em cada termo, integradas por todos os homens entre 18 e 60 anos e comandadas por um capitão-mor, em geral, o se- nhor patriarcal mais poderoso do local. Isto somava, ao poderio econômico, o poder militar-disciplinar, o que reforçava a hierarquização e a estratificação sociais, estendendo o domínio e o controle do poder colonial sobre virtual- mente toda a população. Em cada comarca, havia um ouvidor, misto de juiz superior com fiscal da administração. Nomeados pelo rei, os ouvidores integravam as Relações. Na instância inferior, havia juízes “de fora” ou ordinários. O juiz de fora era tam- bém nomeado pelo rei e o juiz ordinário era eleito, cabendo-lhes presidir o Se- nado da Câmara de cada termo, vila ou cidade. Também um órgão de atribui- ções híbridas, o Senado da Câmara, era composto pelo juiz de fora ou ordiná- rio, vereadores e procurador eleitos. Com amplas atribuições de caráter local, mas sob o controle do governador e do respectivo ouvidor, ao Senado da Câ- mara cabia a nomeação dos oficiais da administração e dos juízes vintená- rios, com jurisdição de “pequenas causas” nas freguesias. Nos assuntos mais importantes, o Senado da Câmara convocava o “povo” – os “homens bons” da elite econômica – para discutir e deliberar em conjunto com os representantes. Além dessas estruturas, havia toda uma série de juntas, juízos e tribunais espe- ciais que partilhavam a gestão da Colônia. A arrecadação de tributos era privatizada. Um importante braço da administração colonial era a Igreja Católica. A instituição do “Padroado” subordinava ao rei de Portugal as atividades eclesiásticas nas colônias, con- ferindo-lhe até mesmo os po- deres de criar bispados, no- mear os bispos e decidir sobre a construção de igrejas, con- ventos e mosteiros, com a contrapartida de subvencionar o clero. As autorida- des ecle siásticas tinham jurisdição sobre questões de casamento, família e tes- tamentos; o nascimento das pessoas se atestava pela certidão de batismo, e o anátema religioso equivalia ao banimento social. Sua jurisdição nesses assun- tos e sobre “pecado” estendia o alcance do poder colonial à vida privada das pessoas. Todos os assuntos religiosos estavam sujeitos ao controle da Mesa de Cons ciência e Ordens da Metrópole. Não faltaram, na era colonial, manifestações de resistência dos oprimidos e excluídos, ensaios de afirmação de um poder constituinte “popular”, ainda que sempre frustrados. Os mais relevantes exemplos foram a resistência indígena, que tem como marco a Confederação dos Tamoios; as fugas dos escravos negros e a construção de autonomia por meio dos quilombos, de que a formidável ex- periência de Palmares foi o ponto alto; os projetos revolucionários gestados por elites locais, como na Conjuração Mineira de 1789 e na Revolução Pernambu- cana de 1817. Nestas últimas, vale notar, o proselitismo e o ideário liberaldos in- surgentes já punham em causa a luta pela liberdade de expressão – e por meio dela. Precedendo a conspiração de Vila Rica, circularam clandestinamente sob o pseudônimo de Critilo as Cartas Chilenas, poemas satíricos escritos pelo incon- fidente Tomás Antonio Gonzaga, que criticavam a ordem colonial e constituí- ram um marco do exercício de liberdade da expressão como forma de resistên- cia em contextos de opressão. O esgotamento do ciclo do ouro e a crise na exportação do açúcar, a desor- dem e a burocratização administrativas, os conflitos econômicos entre os pro- prietários rurais brasileiros e os comerciantes portugueses, a insatisfação dos homens “livres” diante da falta de oportunidades, tudo isto criou o caldo de cultura da luta pela Independência. Os conflitos europeus, ao forçar a fuga da família real portuguesa para o Brasil, forneceriam a oportunidade para a rup- tura e o início da experiência constitucional formal brasileira. Cena da Corte de Dom João VI instalada no Brasil: a cerimônia do beija-mão Esgotamento do ouro, crise na exportação de açúcar, desordem administrativa, conflitos entre proprietários rurais e comerciantes: o caldo de cultura para a luta pela Independência No alto, a apresentação da Carta Constitucional aos brasileiros; e, embaixo, o lançamento do manifesto republicano por Quintino Bocaiuva Bi Bl iO te ca G ui ta e J Os é Mi nd li n ac er vO i cO nO Gr ap Hi a ar qu iv O pú Bl ic O dO e st ad O de s ãO p au lO 36 37 A transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808 precipitou os fatos. Estruturou-se aqui a burocracia estatal própria de um poder central, inflada pe- la necessidade de garantir postos aos “amigos do rei” com ele emigrados (em torno de 15 mil). Com a “abertura dos portos às nações amigas” – leia-se Ingla- terra –, as relações comerciais com o Império Britânico e a presença de comer- ciantes ingleses tornaram-se diretas, suprimindo a anterior mediação da bur- guesia comercial da Metrópole. Isto gerou por lá descontentamentos que se afir- mariam com a Revolução do Porto em 1820. Para além das insatisfações gera- das entre os cariocas pela “invasão” do gigantesco séquito dos Bragança e as ex- propriações residenciais decorrentes de sua instalação, acirraram-se as antigas contradições entre senhores rurais e contingentes urbanos nativos, de um la- do, e a elite comercial, militar e burocrática portuguesa, de outro. Após a Revo- lução do Porto, deu-se a convocação das Cortes Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, às quais o Brasil enviou representantes. Sem capacidade efetiva de influenciar as deliberações da Constituinte metropolitana, a repre- sentação brasileira viu afirmarem-se ali os interesses da burguesia comercial lusitana em restabelecer o sistema colonial, contra as pretensões autonomis- tas das elites econômicas de cá. Em 16 de fevereiro de 1822, atendendo a uma reinvindicação dos paulistas ar- ticulados por José Bonifácio de Andrada e Silva, o Príncipe Regente editou de- creto criando o Conselho de Procuradores Gerais das Províncias, de caráter ba- sicamente consultivo, primeiro passo para a estruturação de um governo repre- sentativo. Em 23 de maio, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro enviou repre- sentação a D. Pedro, na qual denunciava o domínio colonial e a tentativa de seu restabelecimento pelas Cortes de Lisboa e solicitava, afinal, a convocação de uma Assembleia Geral das Províncias do Reino. Em 3 de junho, antes mesmo da formalização da Independência a 7 de setembro, o Regente editou decreto con- vocando uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa de Deputados das Províncias do Brasil. A Carta de 1824 e a ordem imperial O Regente convoca a primeira Assembleia Constituinte A aclamação de D. Pedro Imperador do Brasil, no Campo de Santana, ao lado; e a alegoria do juramento do monarca à Constituição de 1824, acima ac er vO i cO nO Gr ap Hi a Mu se u Hi st ór ic O na ci On al 38 39 Em 19 de junho, as Instruções firmadas pelo ministro do Império (a quem cabia a gestão da política interna), José Bonifácio, estabeleceram as regras para a eleição dos membros da primeira Constituinte brasileira. O sistema adotado era indireto: coube aos reconhecidos como “ci- dadãos” escolher em cada freguesia os “eleitores” e, a es- tes, eleger os deputados de cada província. Foram consi- derados cidadãos os homens solteiros maiores de 20 anos e os casados, desde que residentes na freguesia há pelo menos um ano. Foram excluídos do voto os trabalhado- res assalariados, com exceção dos “guarda-livros e pri- meiros caixeiros das casas de comércio”, dos criados su- periores da Casa Real, dos administradores de fazendas e fábricas – ou seja, os agentes de confiança dos potentados políticos e econômicos. Para ser eleito “eleitor” ou depu- tado, além dos requisitos exigidos aos cidadãos, o candi- dato precisava ter 25 anos, quatro de domicílio na provín- cia. As cem vagas de deputados foram distribuídas pelas províncias em número variável de um a vinte. Oitenta constituintes foram efetivamente empossados: a maior bancada era a mineira (20 deputados) e seguiam a per- nambucana (13), a baiana (11) e a paulista (9). Antes mesmo de a Constituinte ser instalada em 3 de maio de 1823 sob a Presidência do Bispo Capelão-Mor do Rio de Janeiro, D. Jo- sé da Silva Coutinho, o Regente tornado Imperador já pusera sob condição a sua aceitação da obra constitucional. Em 1º de dezembro de 1822, no discurso de coroação, afirmara: “Juro defender a Constituição que está para ser feita, se for digna do Brasil e de mim”. Durante a Fala do Trono perante a Consti- tuinte no dia de sua instalação, Pedro I, após criticar o constitucionalismo re- volucionário francês e sua influência sobre os constitucionalismos ibéricos, renovou a advertência: “Espero que a Constituição que façais mereça minha imperial aceitação”. Ao mesmo tempo órgão constituinte e legislativo, a Assembleia organizou- -se em comissões permanentes e a elaboração do projeto de Constituição foi atribuída a uma Comissão de Constituição integrada por sete membros, incluí- dos os irmãos Andrada, que então acumulavam postos ministeriais, o que era permitido. José Bonifácio era virtualmente um “primeiro-ministro”; coube a Antônio Carlos, revolucionário em 1817 e constituinte no Porto, a redação do an- teprojeto de que resultou o Projeto da Comissão. O contraste entre os consti- tuintes liberais, que desejavam uma monarquia com separação de poderes, e os conservadores articulados com o “partido português”, que apoiavam as preten- sões autocráticas do Imperador, bem como a tensão entre este e a Assembleia cedo começaram a se avolumar. Com a queda do Ministério dos Andrada em ju- lho e a permanência dos irmãos na Constituinte, a ala liberal fortaleceu-se. Em agosto, uma portaria ministerial que determinava a incorporação ao Exército brasileiro de oficiais e soldados portugueses que haviam lutado contra a Inde- pendência na Bahia produziu novo desgaste nas relações entre Constituinte e Trono. Um pretexto prosaico – em que se refletia, porém, um conflito entre li- berdade de expressão e autoritarismo – forneceu o atalho para o desenlace. Na sessão de 6 de novembro de 1823, foi lido um requerimento do boticá- rio David Pamplona Corte Real. Comunicava ele à Constituinte que fora agre- dido por oficiais portugueses que suspeitavam ser ele, o boticário da Rua da Carioca, o “Brasileiro Resoluto”, pseudônimo com que eram “assinados” pan- fletos contra os lusitanos. Requeria então à Constituinte que adotasse provi- dências em defesa dos cidadãos brasileiros. Em 10 de novembro, foram discu- tidos um projeto relativo à liberdade de imprensa e orequerimento de Pam- plona, com a ala liberal a defender que os agressores do boticário fossem ex- pulsos do país. Naquela noite, as tropas imperiais começaram a se movimen- tar pela cidade. Na sessão de 11 de novembro de 1823, quando se discutia, com a presença de muitos populares exaltados no recinto, um requerimento de explicações ao Imperador sobre as movimentações de tropas, chegou à Constituinte um ofício ministerial que as confirmava e dava conta das queixas que o Impera- dor recebera de oficiais portugueses. Estes responsabilizavam “certos redato- res de periódicos” pelas ofensas dirigidas a eles e ao próprio Imperador. A Cons- tituinte enviou então expediente ao Imperador solicitando que identificasse ofensores e ofendidos e sugerisse medidas legislativas pertinentes, declaran- do-se em sessão permanente até receber a resposta. Já era noite quando a res- posta chegou. Ela identificava os jornais Sentinela da Praia Grande e Tamoio co- mo veiculadores das ofensas e acusava os irmãos constituintes Andrada de influenciar o primeiro e de redigir o segundo. Já na madrugada de 12 de no- vembro de 1823, a Constituinte convocou o novo ministro do Império, Villela Barbosa, a prestar esclarecimentos sobre os fatos em curso. No final da ma- nhã, este compareceu, recusou-se a entrar no Plenário sem a espada e suas respostas aos constituintes insinuaram o desfecho: do lado de fora, as tropas imperiais cercavam a Constituinte para consumar o cumprimento do decre- to imperial de dissolução da Assembleia. Na Proclamação de 13 de novembro de 1823, em que justificava a dissolução, Pedro I afirmara que uma nova Constituinte seria convocada, mas não o fez. Em decreto do mesmo dia, criou um Conselho de Estado, formado por oito ex-cons- Acima, em tela de Georgina Albuquerque, sessão do conselho de Estado presidido pela princesa Leopoldina; e, ao lado, o juramento de D. Pedro à Constituição, com a princesa Maria Mu se u Hi st ór ic O na ci On al Mu se u Hi st ór ic O na ci On al 40 41 tituintes e mais dois ex-mi- nistros, a quem coube de fa- to redigir o projeto de que resultaria a Carta imperial. O Conselho trabalhou a par- tir de dois textos: um ante- projeto encaminhado pelo Imperador e o Projeto An- tônio Carlos da Constituin- te. O principal redator foi o ex-constituinte e ex-minis- tro José Joaquim Carneiro de Campos, futuro Marquês de Caravelas. No texto-base de Antônio Carlos, o Conse- lho de Estado enxertou o Po- der Moderador, inspirado no modelo concebido por Benjamin Constant, deslo- cando o texto da órbita do constitucionalismo liberal para o absolutismo da Restauração Francesa. Outorgada em 25 de março de 1824, a Constituição Política do Império do Bra- sil foi a mais longeva lei fundamental brasileira: sua vigência estendeu-se até 15 de novembro 1889. Foi a única a adotar a forma unitária de Estado, o Estado confessional, a forma monárquica de governo, a tetrapartição de poderes com Poder Moderador e Senado vitalício. Foi também a única de caráter semirrígi- do no que se refere à reforma do próprio texto: os conteúdos relativos aos pode- res políticos e aos direitos políticos e individuais eram dotados de rigidez for- mal e somente podiam ser alterados mediante procedimento mais complexo e difícil; já os demais conteúdos poderiam ser alterados na forma do processo le- gislativo ordinário, sendo portanto flexíveis. O Império era territorialmente dividido em províncias, sob o firme controle do poder central. Cada província era governada por um presidente, de livre no- meação e demissão pelo Imperador. Contava ainda com um Conselho Geral, ór- gão representativo e consultivo eleito indiretamente, cujas resoluções deviam ser submetidas, como projetos, ao Imperador e à Assembleia Geral do Império para aprovação. Foi constitucionalizada a existência das Câmaras Municipais, de longa tradição. A religião Católica Apostólica Romana foi mantida como “Religião do Impé- rio” e permitido apenas o culto doméstico das demais, que eram proibidas de erigir templos. Professar a “Religião do Estado” era condição de elegibilidade para os cargos de membros dos conselhos provinciais, deputados e senadores. Com a preservação do Padroado, a Igreja manteve suas atribuições e jurisdições públicas e o Imperador conservou o poder de nomear bispos e homologar os atos da Santa Sé, para que tivessem vigência no país. A Carta de 1824 adotava uma forma de governo que definia como “Monárqui- co, Hereditário, Constitucional e Representativo”. Declarava imperante a dinas- tia de Pedro I, dispunha sobre a ordem e a linha de sucessão, regulava a regên- cia durante a menoridade e o impedimento do Imperador por impossibilidade “física ou moral” de governar. Atribuía ao Estado os ônus de: adquirir imóveis e construir palácios “para a decência e recreio do Imperador e sua família”; ga- rantir uma dotação financeira reajustável ao casal imperial, “correspondente ao decoro de sua alta dignidade”; prover os alimentos dos príncipes desde o nas- cimento, remunerar seus professores e fornecer os dotes das princesas. O Te- souro Público devia entregar os respectivos recursos ao “mordomo” do Paço, no- meado pelo Imperador para a gestão dos mesmos. Constitucionalizava-se a “mordomia” no Brasil. Formalmente, a Carta de 1824 homenageava a “divisão e harmonia dos Po- deres Políticos” como “princípio conservador dos Direitos dos Cidadãos”. Todos os quatro poderes – Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial – eram decla- rados “delegações da nação”, e o Imperador e a Assembleia Geral eram defini- dos como os representantes desta. Porém, sendo o Imperador titular de dois des- ses quatro poderes – o Moderador e o Executivo –, encontrava, nas atribuições destes, meios suficientes para interferir no exercício das funções dos outros dois e tornar-se hegemônico. A “tetrapartição” imperial mostra que, às vezes, o que formalmente parece mais, na verdade é menos: quadro poderes, um só sobera- no – absolutismo constitucionalizado. Ao dispor sobre o Poder Moderador, a Carta de 1824 utilizava as palavras do teó- rico da Restauração Francesa, Benjamin Constant, para defini-lo como “a chave de toda a organização política” e atribuí-lo ao Imperador na condição de “Chefe Supremo da Nação e seu Primeiro Representante”. Como seu titular, o Imperador era considerado inviolável e insuscetível de responsabilização. Eram suas prerro- gativas: nomear os senadores a partir das listas tríplices resultantes das respec- tivas eleições; convocar extraordinariamente, prorrogar, adiar e dissolver a Câ- mara dos Deputados e antecipar as respectivas eleições; sancionar e vetar os pro- jetos de lei aprovados pela Assembleia Geral, aprovar e suspender as resoluções dos conselhos provinciais; nomear e demitir livremente os ministros de Estado; suspender os juízes, reduzir penas impostas a condenados, conceder anistia e in- dulto. Já como titular do Poder Executivo, cabia-lhe a direção da política externa e da administração interna, a homologação dos atos eclesiásticos e a nomeação de bispos, magistrados, comandantes militares, embaixadores e servidores civis. Eram poderes suficientes para manter os demais sob controle. Junta em Pernambuco, em 1824, durante o movimento absolutista da Confederação do Equador: a liberdade não podia ser restringida Frei Caneca, autor das Bases para a Formação do Pacto Social da Confederação do Equador na carta de 1824, o poder Moderador era “a chave de toda a organização política” e o imperador, inviolável e insuscetível de responsabilização ac er vO i cO nO Gr ap Hi a ac er vO i cO nO Gr ap Hi a 42 43 Além do Ministério de livre nomeação, cujos ministros podiam ser respon- sabilizados por seus atos, o Imperadorconservou o Conselho de Estado como órgão consultivo, composto por até dez membros de sua escolha, desde que reu- nissem os mesmos requisitos exigidos para tornar-se senador. Já a força mili- tar era definida como “essencialmente obediente” ao Imperador e destinada a garantir a segurança e a defesa do Império. O Poder Legislativo era exercido por uma Assembleia Geral, composta de Câ- mara de Deputados e Senado. Suas principais atribuições eram de caráter legis- lativo e orçamentário e de controle sobre o patrimônio e o endividamento pú- blicos. Exercia funções de legitimação da Monarquia, como o reconhecimento do sucessor, a tomada do juramento do príncipe-herdeiro e do monarca, a esco- lha dos regentes e da nova dinastia em caso de extinção da imperante, além do exercício do controle sobre a administração do Imperador morto ou impedido. A Carta de 1824 regulava detalhadamente o processo legislativo e as eleições dos representantes. Membros dos conselhos gerais das províncias, deputados e in- tegrantes das listas senatoriais eram eleitos indiretamente: cidadãos escolhiam eleitores que elegiam os representantes provinciais e nacionais. O sufrágio era exclusivamente masculino, censitário e limitado por idade: para ser conside- rado cidadão, era preciso ter renda anual igual ou superior a 100 mil réis e no mínimo 20 anos; para ser escolhido como eleitor, renda anual igual ou superior a 200 mil réis e no mínimo 25 anos. Exigências censitárias e confessionais eram também condições de elegibilidade: além de professar a religião católica, o can- didato, para ser eleito deputado ou membro de conselho provincial, precisava ter renda anual igual ou superior a 400 mil réis; para ser eleito para a lista se- natorial, renda anual igual ou superior a 800 mil réis. O mandato dos deputa- dos era de quatro anos, o dos senadores era vitalício e os príncipes da Casa Real eram considerados senadores natos. O Poder Judicial era integrado por juízes de Direito, reconhecida a institui- ção do júri popular. Os primeiros, nomeados pelo Imperador, tinham a garan- tia da vitaliciedade, mas não a da inamovibilidade; podiam ainda ser suspen- sos pelo Imperador, se contra eles houvesse queixa, e perder o cargo por sen- tença judicial. Em casos de corrupção, qualquer cidadão podia propor contra eles ação popular. As Relações foram mantidas em cada província como tri- bunais de segundo grau e na Capital foi instituído um Supremo Tribunal de Justiça. Aos juízes de paz, eleitos, eram reconhecidas atribuições de concilia- ção entre litigantes. O texto constitucional findava com uma declaração de direitos aos moldes do liberalismo oligárquico da época, garantindo as liberdades individuais e a pro- priedade, inclusive intelectual, ressalvada a desapropriação por interesse públi- co, mediante prévia indenização. Continha algumas prescrições de conteúdo social, como a garantia dos “socorros públicos” (assistência social) e gratuida- de da instrução primária. Consagrava os princípios da legalidade, da irretroati- vidade das leis, do juiz natural, da igualdade perante a lei e da proporcionalidade tributária, a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, as liberdades de ação, locomoção, trabalho e crença e o direito de petição aos poderes públicos, além das garantias penais fundamentais relativas à prisão e ao processo. A liber- dade de expressão era garantida nos seguintes termos: “todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem de- pendência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste direito nos casos e pela forma que a lei determi- nar” (artigo 179, IV). Em caso de rebelião ou agressão externa, as garantias in- dividuais podiam ser suspensas por medidas de exceção determinadas pela Assembleia Geral, ou pelo Imperador com aprovação daquela. Tendo o Imperador determinado o encaminhamento da Carta às Câmaras para que lhe jurassem obediência, levantaram-se, aqui e ali, as reações. A Câma- ra de Itu, com a participação do Padre Feijó, respondeu com a sugestão de uma série de modificações liberalizantes. Em Recife, a dissolução da Constituinte e a outorga reacenderam a chama revolucionária. O libelo mais veemente foi fei- to por Frei Caneca, grande conhecedor do constitucionalismo, encarcerado por quatro anos por sua participação da Revolução de 1817, autor das Bases para a Formação do Pacto Social da Confederação do Equador, movimento antiabsolu- tista que integrou e por cuja participação foi condena- do à morte. Verdadeira declaração de direitos radical- mente liberal, as Bases incorporam vários direitos e enunciados das declarações francesas de 1789 e 1793, consagrando inclusive o direito de resistência à opres- são e os conteúdos sociais e emancipatórios da decla- ração jacobina. A liberdade de expressão foi assim de- finida ali: “A todo homem é livre manifestar os seus sentimentos e a sua opinião sobre qualquer objeto. A liberdade da imprensa, ou outro qualquer meio de pu- blicar estes sentimentos não pode ser proibido, sus- penso nem limitado” (artigos 4º e 5º). Inobstante o golpe, a outorga e a repressão aos re- sistentes, a inquietação liberal persistiu, sempre ali- mentada pelas contradições entre proprietários rurais e camadas populares, de um lado, e elite comercial, bu- rocrática e cortesã, de outro – o “partido português” ao qual o Imperador permanecia aferrado. Para a propa- gação do ideário liberal, muito contribuíram dois pe- O julgamento de Frei Caneca, em quadro de Antonio Parreiras: a execução não conteria a inquietação liberal Líberdo Badaró, o editor do Observador Constitucional: o assassinato do jornalista de São Paulo agravou a corrosão da legitimidade do Primeiro Reinado ac er vO i cO nO Gr ap Hi a Mu se u an tO ni O pa rr ei ra s 44 45 riódicos: o carioca Aurora Fluminense, capitaneado por Evaristo da Veiga, desta- cado líder liberal, e o paulistano O Observador Constitucional, de Líbero Badaró. O assassinato deste em novembro de 1830 agravou ainda mais a corrosão da legi- timidade do Primeiro Reinado. Em 13 de março de 1831, quando os portugueses organizaram uma manifestação para desagravar o Imperador pela fria hostili- dade com que fora recebido em Minas Gerais, de onde acabara de retornar, a ple- be carioca reagiu violentamente. A Noite das Garrafadas foi o ensaio geral do le- vante popular que, em 7 de abril de 1831, com o apoio da tropa militar, tomou o Campo de Santana para questionar a legitimidade do governo e viabilizou a vi- tória liberal da Abdicação. Com o exílio do Imperador e a inauguração do ciclo das Regências, consumou-se politicamente a Independência, quase dez anos depois de sua proclamação formal. A abertura moderadamente liberal representada pelos governos regenciais favoreceu as demandas descentralizadoras. Em 29 de novembro de 1832, o Códi- go de Processo Criminal descentralizou a administração policial e da justiça, forta- lecendo os chefes patriarcais locais. Em 12 de agosto de 1834, o Ato Adicional alterou a Carta de 1824 para suprimir o Conselho de Estado e criar as Assembleias Legisla- tivas Provinciais, em substituição aos Con- selhos Gerais, concedendo-lhes competên- cia legislativa autônoma. Porém, em 12 de maio de 1840, a Lei nº 105 restringiu as atri- buições das mesmas. Depois do Golpe da Maioridade, a força policial foi subordina- da ao Ministério da Justiça e a Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841, recriou o Con- selho de Estado. Nesse período, ocorreram intensas manifestações localizadas de di- reito de resistência e potência constituin- te, como a Balaiada, a Cabanagem, a Sabi- nada, a Revolta dos Malês e a Revolução Farroupilha. Durante esta última, a Cons- tituinte do Alegrete chegou a examinar um Projeto de Constituiçãoda República Rio-Grandense, primeiro ensaio de cons- titucionalização republicana entre nós. Estabilizado o Segundo Reinado, a Lei nº 523, de 20 de julho de 1847, criou o cargo de presidente do Conselho de Ministros, conferindo aparência parlamentaris- ta aos governos que o Imperador fazia e desfazia com desenvoltura. Sob Pedro II, 36 gabinetes se sucederam em 49 anos, com duração média de 15 meses ca- da um. No sistema político ultraoligarquizado pelo sufrágio censitário, o Impe- rador era o ponto de apoio que reinava, governava e administrava, articulado com a enorme e poderosa burocracia estatal-clerical, os grandes proprietários rurais e potentados locais, os senhores do comércio exterior e negreiro. Enquan- to a infraestrutura econômica da monocultura de exportação movida a traba- lho escravo persistiu, persistiu a estabilidade do regime, do “pacto social” cujas “bases” essenciais haviam sido inadvertidamente antecipadas pelo conserva- dor mineiro Maciel da Costa na sessão da Constituinte de 30 de setembro de 1824: “Recebemos os escravos que pagamos, tiramos deles o trabalho que dos homens livres também tiramos, damos-lhes o sustento e a proteção compatí- vel com o seu estado; está fechado o contrato.” Sob Pedro II, sucederam-se 36 gabinetes, com duração média de 15 meses cada. O Imperador administrava em articulação com a poderosa burocracia estatal-clerical, os grandes proprietários e os senhores do comércio exterior e negreiro A Proclamação da República dos Farrapos: primeiro ensaio de Constituição republicana na história do Brasil Mu se u an tO ni O pa rr ei ra s 46 47 O desabamento do sistema imperial resultou de um processo multicausal que atravessou as duas últimas décadas do Segundo Reinado. Na esfera econômi- ca, o lento processo de abolição do escravismo (lentidão, aliás, recomendada pelo antiescravagista José Bonifácio já no Primeiro Reinado) opôs crescente- mente o Imperador – premido pelos interesses britânicos – ao patronato ru- ral e aos traficantes de humanos. O ressentimento pela expropriação do “pa- trimônio” escravo e as dificuldades de liquidez resultantes da passagem das fazendas ao trabalho assalariado reavivaram no patronato rural os anseios autonomistas contrários à centralização monárquica. Apesar do seu conser- vadorismo, os senhores agrários aproximaram-se dos liberais e republicanos pela via da aspiração federativa. Nas casernas, a progressiva abertura da carreira militar, sobretudo no Exér- cito, às camadas médias – com o deslocamento das camadas aristocráticas pa- ra a Guarda Nacional, órgão de cooptação e controle sucedâneo das Ordenan- ças coloniais – foi aos poucos marginalizando as instituições militares dos cir- cuitos efetivos de poder. A autonomização política da oficialidade pequeno bur- guesa, seu ressentimento contra a camada privilegiada e dirigente dos “casa- cas”, que condenava os militares a um papel subalterno no sistema efetivo de poder, a disseminação do ideário positivista de uma “ditadura constitucional” a serviço de uma “política científica”, a recusa em perseguir os 12 mil escravos fugidos das fazendas paulistas em 1887, a questão militar finalmente escanca- rada – tudo isso levaria o Exército a abraçar a solução republicana em 1889. O início da propaganda republicana, que teve na imprensa um meio funda- mental, acompanhou a retomada das mobilizações liberais no fim da década de 1860. Os liberais radicais se articulam em torno de propostas como a descentra- lização político-administrativa, a liberdade de ensino, o fim do Poder Modera- dor, do Conselho de Estado e da Guarda Nacional, o sufrágio universal e direto, a eletividade dos presidentes de províncias e dos senadores. Em 1866 surgiu no Rio de Janeiro o jornal Opinião Liberal; em 1869 apareceram o Correio Nacional, no Rio, e o Radical Paulistano em São Paulo; em 3 de dezembro de 1870 foi por meio do novo jornal A República que veio à luz o Manifesto Republicano. Era a expressão de um movimento inicialmente nutrido por setores médios urbanos e pela “mocidade acadêmica” que teria papel decisivo na Campanha da Aboli- ção, um movimento que se ampliou a partir dos compromissos federativos com que angariou o apoio das elites rurais. Com a quebra do pacto oligárquico senhorial em 13 de maio de 1888 e o re- crudescimento da questão militar ao longo de 1889, o campo republicano foi ampliado pela aproximação de importantes frações no patronato rural, inte- ressadas, sobretudo, na descentralização; do Exército, a partir da “mocidade militar” positivista e republicana; Pedro II, cada vez mais isolado, enfrenta- va também problemas crescentes com a hierarquia católica por causa do in- tervencionismo governamental nos assuntos eclesiásticos, exercitado atra- vés do Padroado. A questão clerical tornou-se assim outro fator de desestabi- lização. Mas foi o Exército a de- cretar o fim da Monarquia com a deposição do Gabinete Ouro Pre- to em 15 de novembro de 1889. O mesmo Campo de Santana que vira a primeira insurreição ple- beia na Capital do Império em 7 de abril serviu de palco a uma “pa- rada militar” a que, no 15 de no- vembro, o povo do Rio se limitou a assistir, “bestializado” – para usar as palavras de Aristides Lo- bo, líder republicano e signatário do Manifesto de 1870. Proclamada a República pelo lí- A Constituição de 1891 e a República Velha A economia e a caserna na mudança institucional D. Pedro II recebe a mensagem do Governo Provisório comunicando a queda do Gabinete Ouro Preto e sua deposição A Proclamação da República, no Campo de Santana, no alto: o povo assiste “bestializado” à parada militar que celebra a mudança institucional i ns ti tu tO H is tó ri cO e G eO Gr áF ic O Br as il ei rO in st it ut O Hi st ór ic O e Ge OG rá Fi cO B ra si le ir O 48 49 der do Exército, Marechal Deodoro da Fonseca, formou-se um Governo Provisó- rio chefiado por ele e composto pelo oráculo da mocidade militar, Benjamin Cons- tant Botelho de Magalhães, pelos republicanos históricos Aristides Lobo e Quin- tino Bocayuva, pelo monarquista liberal recém-converso Ruy Barbosa, e pelo co- mandante da Marinha, almirante Wandenkolk Correa. Ainda em 15 de novem- bro foi editado o Decreto nº 1, que proclamou “provisoriamente” a República Fe- derativa, transformou as províncias imperiais em “Estados Unidos do Brasil”, reconhecendo-lhes soberania e poder constituinte próprios, e anunciou a con- vocação de um Congresso Constituinte. Novos decretos com força constitucio- nal foram a seguir editados pelo Governo Provisório. O Decreto nº 6, de 19 de no- vembro de 1889, extinguiu o sufrágio censitário, considerando eleitores os “ci- dadãos brasileiros” (do sexo masculino) alfabetizados e no gozo de seus direitos civis e políticos. O Decreto nº 29, de 3 de dezembro de 1889, aniversário do Mani- festo Republicano, criou uma comissão para redigir um Projeto de Constituição a ser apresentado à Assembleia Constituinte, a “Comissão dos Cinco”. O Decreto nº 78-B, de 21 de dezembro de 1889, convocou as eleições para a Assembleia Cons- tituinte, marcando-as para 15 de setembro de 1890; a posse dos eleitos e a insta- lação da Constituinte foram marcadas para 15 de novembro de 1890. Outros decretos relevantes foram editados em 1890: em 7 de janeiro, estabelecendo a separação entre Igreja e Estado; em 24 de janeiro, instituindo o casamento ci- vil. Em 11 de outubro, três decretos ins- tituíram a Justiça Federal, a legislação de falências e o novo Código Penal, que aboliu a pena de morte. Trabalhando a partir de três proje- tos iniciais, a Comissão dos Cinco apre- sentou seu Projeto ao Governo Provi- sório em 24 de maio de 1890. Revisado por Ruy Barbosa, ele foipublicado pe- lo Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890, que estabeleceu a vigência ime- diata dos conteúdos relativos à orga- nização e às atividades do Poder Le- gislativo federal. Em 15 de setembro de 1890, foram eleitos os 205 deputa- dos e 63 senadores constituintes. Ins- talada em 15 de novembro de 1890, a Constituinte elegeu Prudente de Moraes como seu presidente e criou a “Comis- são dos 21” – integrada por um representante de cada Estado, em homenagem ao compromisso federativo – para elaborar parecer sobre o Projeto do Governo Pro- visório. Júlio de Castilhos, líder positivista gaúcho, foi o relator do parecer que poucas e irrelevantes modificações propôs a 16 dos 90 artigos do texto original. No plenário da Constituinte, os maiores debates se deram em torno da ques- tão federativa, mais especificamente a divisão de competências de governo e tributação entre União e Estados. Os “unionistas”, liderados por Ruy Barbosa, defendiam maior centralização, enquanto os “federalistas”, capitaneados por Júlio de Castilhos, defendiam maior descentralização. O resultado pendeu mais para o primeiro grupo. Ausente o impulso verdadeiramente popular com as ex- clusões do sufrágio (numa população de cerca de 10 milhões, os alfabetizados não passavam de 1,5 milhão, e desse total eram ainda subtraídos as mulheres e os menores), a polarização das deliberações foi intraoligárquica: o objeto era a partilha de poder entre as elites dirigentes capazes de controlar o poder central, de um lado, e as oligarquias regionais, de outro. Em 24 de fevereiro de 1891, pou- co mais de três meses após sua instalação, o Congresso Constituinte promul- gou a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. A Constituição de 1891 tornou “perpétua e indissolúvel” a República Federati- va “provisoriamente” proclamada 15 meses antes. Aos Estados, garantiu autono- mia, governo, legislação e tributação próprios e isonomia federativa e especificou as hipóteses de intervenção federal. Os Estados deveriam assegurar a autonomia dos seus Municípios “em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.” O anti- go Município Neutro, Capital do Império, foi transformado em Distrito Federal, mas ao mesmo tempo a Constituição previu sua futura transformação em Esta- do e reservou à União uma área no Planalto Central para sediar “a futura Capital Federal”. Brasília e o Estado da Guanabara viriam a existir 69 anos depois. O princípio republicano traduziu-se em seus atributos de igualdade formal, com extinção dos privilégios nobiliárquicos e hereditários, de eletividade e res- Ao lado, o jornal A Platea diz que o governo brinca de cabra-cega com a jovem Constituição; e, acima, Rui Barbosa e Deodoro entregam a Carta à República Charge da Revista Ilustrada sobre a Constituição de 1891: “Enquanto papai lê várias notícias, descuida- se da meninada, que dilacera um precioso livro da biblioteca nacional” ac er vO i cO nO Gr ap Hi a ar qu iv O pú Bl ic O dO e st ad O de s ãO p au lO Fu nd aç ãO c as a de r ui B ar BO sa 50 51 ponsabilidade dos governantes, temporariedade de seus mandatos e periodici- dade das eleições. O caráter laico do Estado foi assegurado pela proibição de qualquer relação de dependência, aliança ou financiamento entre governo e igrejas, pela garantia da liberdade de culto público a todas as confissões religio- sas, pela instituição do casamento civil, pela secularização dos cemitérios e pe- la laicidade do ensino público. Na organização dos poderes republicanos, o texto de 1891 seguiu o padrão da Constituição dos Estados Unidos de 1787, tal como se dera com a estruturação federativa. Adotou a tripartição, com independência e harmonia, entre Legisla- tivo, Executivo e Judiciário, e o sistema de governo presidencialista. O Poder Le- gislativo foi delegado ao Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Depu- tados, Casa da representação popular, e pelo Senado Federal, Casa da represen- tação federativa. Deputados e senadores eram eleitos pelo voto direto, com man- datos de três e nove anos, respectivamente. A duração dos mandatos espelha a tendência oligarquizante, sobretudo se comparada com a do modelo norte-ame- ricano, em que os deputados têm mandato de dois anos e os senadores, de seis anos. Garantiu-se um mínimo de quatro deputados por Estado e o idêntico nú- mero de três senadores para cada Estado e o Distrito Federal. As imunidades e incompatibilidades parlamentares foram constitucionalizadas e as prerrogati- vas clássicas de caráter legislativo, orçamentário, de controle e fiscalização fo- ram garantidas ao Congresso. O Poder Executivo foi delegado ao presidente da República, eleito para man- dato de quatro anos pelo voto direto, exigida a maioria absoluta e proibida a re- eleição. Não alcançado tal número, o segundo turno teria o Congresso Nacional como colégio eleitoral indireto. Junto com o presidente – mas não necessaria- mente pela mesma chapa, pois os votos eram separados – era eleito um vice, competente para substituí-lo, sucedê-lo e presidir o Senado. Caso ocorresse va- cância da Presidência ou da Vice nos dois primeiros anos de mandato, nova elei- ção deveria ser realizada para completar o período. Presidente e vice estavam sujeitos a impeachment se condenados por crime de responsabilidade pelo Sena- do, após autorização de instauração de processo pela Câmara. O presidente era chefe de Estado, de Governo e da administração federal, cabendo-lhe nomear e demitir livremente os ministros de Estado. Tinha poder de veto, mas não a prer- rogativa de propor emendas à Constituição. O Poder Judiciário foi organizado de acordo com o modelo federativo nor- te-americano de dualidade da Justiça já adotado pelo Governo Provisório, com existência de órgãos judiciários organizados e mantidos tanto pela União co- mo pelos Estados. A Justiça Federal reunia competências especializadas para julgar causas que envolvessem questões constitucionais, em que a União fos- se parte, e crimes políticos, entre outras. Aos judiciários estaduais competia processar e julgar as causas de “direito comum”, cíveis e penais. O órgão de cúpula de todo o sistema judiciário passou a ser o Supremo Tribunal Federal, com funções de Corte constitucional federativa e de mais alta Corte de justi- ça do país. Era composto por quinze juízes indicados pelo presidente da Re- pública à aprovação do Senado, cabendo àquele escolher, entre os membros da Corte, o procurador geral da República. Aos juízes eram asseguradas a vi- taliciedade e a irredutibilidade de vencimentos. Para o julgamento de crimes militares foi criada a justiça militar, composta por conselhos de primeiro grau e um tribunal superior. Refletindo a forte influência do Exército naquele momento, a Constituição de 1891 foi a primeira a definir as Forças Armadas como instituições “perma- nentes” e ampliar sua atuação, ao atribuir-lhes a missão de “manutenção das leis no interior” das fronteiras e condicionar aos “limites da lei” a obediência das mesmas ao poder civil. Com isso, constitucionalizou sua capacidade de in- terferir em questões de política e ordem internas e assim arvorar-se em “intér- prete da lei” para poder decidir se e quando obedecer ou intervir. A pretensão tutelar alimentada pelos militares a partir de sua autoimagem de fundadores da República foi reforçada e legitimada constitucionalmente, concedendo-lhes fundamento jurídico para ocupar o vácuo deixado pela extinção do Poder Mo- derador. Tal pretensão tem-se estendido por toda a vida republicana, sendo o re- gime pós-1988 – e até aqui – a notável exceção. Acima, o projeto de Constituição de 1891 com anotações de Rui Barbosa; e, ao lado, a eleição do Marechal Deodoro e Floriano Peixoto A Constituição de 1891 foi a primeiraa definir as forças armadas como “instituições permanentes”, ampliando sua atuação para contemplar a “manutenção das leis no interior” das fronteiras Fu nd aç ãO c as a de r ui B ar BO sa ac er vO i cO nO Gr ap Hi a 52 53 Formalmente e do ponto de vista da estabilidade de seu texto, a Constituição de 1891 foi nossa primeira Constituição “rígida”: exigia um procedimento mais complexo do que o da elaboração das leis comuns para a alteração de suas nor- mas e maioria qualificada de dois terços para a aprovação. Foi a primeira a ado- tar as chamadas “cláusulas pétreas”: conferiu super-rigidez à forma republica- na federativa e à igualdade da representação dos Estados no Senado, tal como o fizera a Constituição dos Estados Unidos, proibindo a deliberação sobre quais- quer propostas tendentes a aboli-las. Além da preservação dos direitos e garantias já reconhecidos em 1824, a Cons- tituição de 1891 incorporou as garantias de liberdade e igualdade próprias do Estado laico que já foram mencionadas acima, consagrou expressamente a li- berdade de reunião e a legalidade tributária, constitucionalizou o habeas corpus e abolição das penas de morte, banimento e galés. A liberdade de expressão foi garantida nos seguintes termos: “Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa, ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato.” (art. 72, § 12). As liberdades públi- cas podiam ser suspensas pela decretação de Estado de Sítio. Ao dispor sobre o direito de nacionalidade, a Constituição de 1891 promoveu a chamada “grande naturalização”: determinou que seriam considerados bra- sileiros todos os estrangeiros que, achando-se no Brasil em 15 de novembro de 1889, não declarassem intenção de conservar a nacionalidade de origem em até seis meses após sua promulgação. Os direitos políticos foram reconhecidos a todos os “cidadãos maiores de 21 anos” (até 1930 entendeu-se que eram somen- te os do sexo masculino), excluídos os mendigos, os analfabetos, os recrutas, su- balternos inferiores das Forças Armadas e os religiosos sujeitos a voto de obe- diência. O povo, em sua grande maioria analfabeto, e as mulheres foram excluí- dos da polis, estreitando-se o contingente do demos autorizado a participar das decisões públicas – os “cidadãos ativos” não alcançavam 2% dos “nacionais”. Não obstante a mudança na forma de governo, o regime político manteve, desde a base, seu caráter oligárquico. Nas suas disposições gerais e transitórias, a Constituição de 1891 impôs à União o dever de garantir o pagamento da dívida pública interna e externa. De- terminou ainda que a primeira eleição para presidente da República e vice (vo- tações separadas, como vimos) seria realizada indiretamente, pelo Congresso Nacional, e para ela não haveria incompatibilidades. Isso assegurou a possibi- lidade de concorrer a Deodoro, mesmo sendo chefe do Governo Provisório, a Flo- riano Peixoto, já vice-presidente, e ao almirante Wandenkolk, ainda ministro da Marinha. Estavam postas as condições normativas para a primeira crise re- publicana. O Congresso elegeu Deodoro para a Presidência, mas o candidato a vice de sua chapa, Wandenkolk, foi derrotado por Floriano, candidato a vice pe- la chapa do derrotado Prudente de Moraes, presidente da Constituinte. Os con- flitos entre a personalidade hierática de Deodoro e o Congresso em ebulição não tardaram e, em 3 de novembro de 1891, Deodoro dissolveu o Congresso, convo- cando novas eleições. A Marinha, com orientação regressiva, insurgiu-se: foi a primeira Revolta da Armada. Deodoro renunciou vinte dias depois e Floriano assumiu com a disposição de cumprir todo o mandato restante, violando assim a norma constitucional que previa nova eleição em caso de vacância da Presi- dência antes de decorridos dois anos da posse do eleito. Enfrentou por isso, e de- belou, uma segunda Revolta da Armada. O mesmo se deu com Revolução Fede- ralista, reação oligárquica sulista ao novo regime e seu representante gaúcho, Júlio de Castilhos, no curso da qual a degola de prisioneiros tornou-se hábito macabro de ambas as partes. A República se “consolidou” ao longo de quatro dé- cadas marcadas pela violência política e social. Para além dos conflitos intraoligárquicos, na República Velha não falta- ram manifestações vigorosas e violentas de resistência popular à opressão e à exploração, expressões de um desejo constituinte vindo “de baixo” e sem- pre frustrado, na cidade e no campo. Entre 1886-1897 na Bahia, a Guerra de Canudos encerrou, com um massacre executado pelo Exército a epopeia au- tonomista sertaneja das gentes do Conselheiro. Entre 1912-1916, a Guerra do Euclides da Cunha e o livro Os Sertões, que narra a epopeia autonomista no interior da Bahia encerrada pelo Exército com um banho de sangue Em 3 de novembro de 1891, Deodoro dissolveu o Congresso. A Marinha promoveu a primeira Revolta da Armada. Deodoro renunciou vinte dias depois. Floriano assumiu com a disposição de cumprir todo o mandato restante, violando a norma que previa nova eleição ac er vO i cO nO Gr ap Hi a Bi Bl iO te ca G ui ta e J Os é Mi nd li n 54 55 Contestado representou outro embate feroz entre Exército e camponeses, desta vez entre Santa Catarina e Paraná. Em ambos os casos, os populares foram mobilizados por meio do misticismo e, em ambos os casos, o núme- ro de mortos passou de 20 mil. Na Capital da República, o século XX começou sob o signo das insurreições populares. Em 1904, a resistência da população pobre e negra à truculência das políticas higienistas e racistas promovidas pelo presidente Rodrigues Alves e pelo prefeito Pereira Passos se traduziu na chamada Revolta da Vacina. Expul- sas de suas moradias no centro da cidade pela onda de demolições conhecida como “Bota Abaixo” e desrespeitadas em seus corpos e casas pela brutal execu- ção da lei de vacinação obrigatória, as gentes que formavam a plebe carioca to- maram as ruas da cidade durante uma semana, num conflito que produziu de- zenas de mortos e centenas de feridos. Em 1910, foi a vez dos marinheiros se le- vantarem contra os crueis castigos corporais na Revolta da Chibata, liderada por João Cândido, o Almirante Negro. A repressão feroz que se seguiu à rendi- ção dos revoltosos deixou um saldo de centenas de mortos e mais de dois mil marinheiros expulsos da corporação. Nas cidades fabris, desde o início do novo século, a resistência popular se expressou em ciclos de greves operárias cada vez mais amplas por direitos sociais e políticos. E, a partir de 1922, a mocidade militar pequeno-burguesa iniciou o ciclo de levantes contra o regime oligár- quico e a farsa da representação, que culminaria em 1924 com a ocupação de São Paulo pelos tenentes de Miguel Costa e, em seguida, com a epopeia da Co- luna Prestes. Ao longo da República Velha foram se multiplicando, entre Rio e São Paulo, jornais e revistas por meio dos quais o debate político e social se di- fundia entre as camadas letradas. No mundo operário surgiram, já no início do século, os jornais anarquistas e socialistas, alguns impressos em língua italia- na, pois boa parte dos trabalhadores alfabetizados tinha essa origem – eram os “carcamanos” recrutados inicialmente para substituir os escravos nas fazen- das, mas que acorreram depois às cidades e às fábricas em busca de condições menos brutais de opressão e exploração laborais. O sistema político da República Velha foi consolidado em seu caráter oli- gárquico pelo presidente Campos Sales e sua “política de governadores”. A se- leção do corpo eleitoral foi delegada aos grandes chefes rurais estaduais que controlavam as seçõeseleitorais, tornando-se de fato “grandes eleitores” em seus “currais eleitorais”, graças à inexistência da garantia do voto secreto que facilitava o chamado “voto de cabresto”. Já a seleção dos eleitos era feita pe- las elites dirigentes, capitaneadas pelo presidente e pelos governadores, por meio das comissões de “verificação de poderes” dos legislativos, cabendo aos próprios parlamentares reconhecer ou não a validade dos eleitos. Controla- dos o eleitorado e a representação por meio desses expedientes oligárquicos, a “farsa eleitoral” garantia ao presidente a possibilidade de tratar dos “altos” A Revolta da Vacina: na capa da revista O Malho, o enforcamento do regulamento sanitário; e a manchete da Revista da Semana Rebeldes do movimento tenentista na cidade de São Paulo e os tenentes Eduardo Gomes, Siqueira Campos e Newton Prado, na Revolta dos 18 do Forte, com Otávio Correia re pr Od uç ãO Fu nd aç ãO c as a de r ui B ar BO sa ac er vO i cO nO Gr ap Hi a ac er vO i cO nO Gr ap Hi a 56 57 assuntos da Administração – o que, como regra, significou a manutenção do modelo econômico agrário-exportador e a satisfação dos interesses do patro- nato rural e fabril, dos rentistas e do capital externo. Era uma espécie de “alian- ça com a vanguarda do atraso para modernizar o país” avant la lettre, pois a meiga formulação atribuí da a Fernando Henrique Cardoso – leitor de Cam- pos Sales – só viria à luz no final do século. No Rio Grande do Sul, um singular experimento político-constitucional pre- nunciava o contraditório influxo reformista burguês que levaria à Revolução de 1930, ao Estado Novo, às leis sociais e à democracia de massas no Brasil. Pre- sidente do Estado e líder do Partido Republicano Histórico do Rio Grande do Sul (cujo programa já defendia o voto do analfabeto, o sistema eleitoral proporcio- nal, os direitos de resistência e de greve, a jornada de trabalho de oito horas e o direito a férias), o positivista Júlio de Castilhos, constituinte e relator da Comis- são dos 21 na Constituinte, redigiu e fez aprovar pela Assembleia Constituinte gaúcha a Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul, promulgada na data simbólica de 14 de julho de 1891. A Constituição positivista gaúcha estabelecia um desenho institucional que prenunciava aquela espécie de ascético autoritarismo republicano de caráter social que seria a marca da chamada Era Vargas. Ao mesmo tempo, continha formas inovadoras de participação direta da cidadania e dos conselhos muni- cipais nas decisões públicas, especialmente legislativas. Com a morte de Casti- lhos, muitos desses mecanismos deixaram de ser efetivamente utilizados, mas o modelo, afeiçoado à cultura cívica participativa dos gaúchos, ficou como ins- tigante referência até hoje. O “presidencialismo gaúcho” muito se aproximava da ideia comtiana de “ditadura republicana”. O presidente concentrava prati- camente toda a autoridade administrativa e normativa, reduzida a competên- cia legislativa da Assembleia dos Representantes às matérias de caráter finan- ceiro, orçamentário e tributário. O presidente do Estado era eleito diretamente por maioria absoluta (segun- do turno indireto, pela Assembleia), podendo ser reeleito se alcançasse três quartos dos votos – o que as “eleições a bico de pena” garantiram continua- mente a Borges de Medeiros, sucessor de Castilhos e mentor do ingresso de Getúlio Vargas na política. Cabia ao próprio presidente a escolha do respecti- vo vice, sujeita a veto pela maioria dos Conselhos Municipais. Ressalvadas as matérias de competência da Assembleia, era prerrogativa do presidente do Estado a elaboração das demais leis, devendo ele mesmo enviar o projeto às autoridades municipais para que recebesse emendas e observações formula- das por qualquer cidadão, ficando a lei resultante sujeita a revogação se con- tra ela se manifestasse a maioria dos Conselhos Municipais. Ao Conselho Mu- nicipal cabia também a elaboração da Lei Orgânica do respectivo Município, que podia ser reformada por proposta de dois terços dos eleitores municipais. Os Conselhos também podiam, por maioria, promover a reforma da Consti- tuição, e aprovar a reforma definida pelo presidente do Estado. Já os cidadãos – além dos direitos de propor individualmente emendas e observações aos projetos de lei estaduais e, coletivamente, reformas das leis orgânicas muni- cipais –, tinham o direito de revogar, por maioria, as leis decretadas pelos in- tendentes, que eram os chefes eleitos dos Executivos municipais. Podiam tam- bém, por maioria, cassar os mandatos dos representantes na Assembleia e pro- por a remoção dos juízes das comarcas. A Constituição gaúcha de 1891 tinha um claro apego às chamadas “virtu- des republicanas”, traduzido em princípios e normas que objetivavam asse- gurar a publicidade, a moralidade e a impessoalidade dos atos da Administra- ção Pública, incluindo a consagração do concurso público para ingresso no funcionalismo e das licitações para contratações públicas. Aboliu as loterias, “não sendo lícito ao Estado transformar o vício em fonte de renda”. Consagra- va a mais absoluta liberdade de trabalho e declarava livre o exercício das “pro- fissões de ordem moral, intelectual e industrial”, proibindo a exigência de di- plomas, inclusive nos concursos públicos. Garantia a laicidade, a liberdade e a gratuidade do ensino público primário. Ficou preservada como um “ponto fora da curva” na mesmice do colonizado constitucionalismo liberal-oligár- quico brasileiro, que naquele momento substituía a influência da Restaura- ção Francesa pelas prescrições do liberalismo conservador dos Federalistas norte-americanos. Vazada nos elegantes termos da Constituição de Filadélfia, a Constituição de 1891 permaneceu descolada da realidade política e social brasileira ao lon- go dos seus quase 40 anos de vigência. Tornou-se o traje de gala de um pacto oligárquico restabelecido em nova forma, o disfarce normativo do coronelis- mo e do sufocamento das mobilizações populares. Para salvá-la, tentou-se uma reforma em 1926, que produziu resultados pífios: novas hipóteses de de- cretação de intervenção federal, melhor explicitação dos requisitos necessá- rios para decretá-la e adoção do veto parcial. A adoção do veto parcial decor- reu de uma necessidade revelada pela prática legislativa: a necessidade de eli- minar, dos projetos que o governo tinha interesse em sancionar, os “penduri- calhos” que os parlamentares enxertavam em causa própria, o que obrigava o Executivo a aceitar os embustes ou vetar totalmente um projeto que, no seu conteúdo original, desejava transformar em lei. A Reforma de 1926 pouco con- tribuiu para deter a crise política, social e econômica que se tornou incontor- nável após a quebra da Bolsa de Nova York em 1929. Manchetes do jornal A Voz do Trabalhador (da Confederação Operária Brasileira), do anarquista A Plebe e do satírico A Manha, criado pelo Barão de Itararé ce de M/ un es p ce de M/ un es p ce de M/ un es p 58 59 A Revolução de 1930 e a Constituição de 1934 Os trabalhadores e a classe média entram em cena Ao longo da República Velha, o Brasil viveu um processo de urbanização e in- dustrialização crescentes, com a ampliação dos contingentes pequeno-burgue- ses e operários. Àquela altura, boa parte do operariado era de origem estrangei- ra, especialmente italiana, com forte presença anarquista ou socialista. Quan- do a tormentosa e efervescente década de 1920 começou, os imigrantes repre- sentavam mais de um terço dos operários fabris no Rio de Janeiro e mais da me- tade em São Paulo. Não demorou para que isso se traduzisse em inquietação e mobilização política, social e cultural das classes médias e dos trabalhadores ur- banos. Entre1917-1920 e 1926-1929, principalmente em São Paulo e no Rio, gran- des ciclos de greves mobilizam milhares de trabalhadores em luta por salários melhores, férias de 30 dias, jornada de oito horas, repouso semanal, igualdade salarial entre homens e mulheres (as operárias representavam quase um terço do trabalho fabril e chegavam perto da metade no setor têxtil). Entre 1922 e 1927, foram os tenentes a agitar as classes médias, com seu ideário de verdade eleito- ral e moralidade pública, contra a corrupção e a oligarquização da representa- ção política. Em 1922, enquanto a Semana de Arte Moderna expressava a ten- dência intelectual crescente de buscar a “redescoberta” e a “interpretação” do Brasil, deu-se a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB) que, antes da dé- cada findar, já disputava com os anarquistas e reformistas a liderança do movi- mento sindical nas grandes cidades fabris do país. O sindicalismo reformista encontrou especial oportunidade de florescimen- to no Rio Grande do Sul, onde líderes trabalhistas e patronato hegemônico co- mungavam o mesmo ideário positivista de conciliação entre capital e trabalho, com incorporação das massas trabalhadoras à vida política e ao mercado con- sumidor. Em um cenário de estratificação em que a maioria das elites patronais padecia de uma espécie de “autismo” de classe que as impedia até de perceber a “alteridade” representada pela existência política e social dos trabalhadores, a abertura da burguesia urbana e da aristocracia rural gaúchas em relação à con- ciliação de classes podia ser considerada, em termos comparativos, progressis- ta. Em 1923, o “Pacto de Pedras Altas”, em que teve participação Getúlio Vargas, Comício do 1º de Maio, em 1927: os operários de origem estrangeira impulsionam o movimento sindical Os Estatutos do Partido Comunista, de 1922 ac er vO i cO nO Gr ap Hi a Ac er vo I co no gr Ap hI A 60 61 então líder da maioria na Assembleia gaúcha, pôs fim a uma longa era de recor- rentes conflitos entre as oligarquias gaúchas, ao firmar a paz entre os “ximan- gos” castilhistas de Borges de Medeiros e os “maragatos” ou “libertadores” de Assis Brasil. Pacificado, o patriciado político gaúcho começou a buscar maior participação nas decisões nacionais. O ano de 1930 começou sob o impacto da crise econômica internacional, que atingiu em cheio, em um ano de superprodução nos cafezais, a economia ca- feeira brasileira, eixo do modelo agrário-exportador e mola propulsora de am- plos setores da economia interna. Quando o preço da saca de café caiu de qua- tro libras para uma, as falências, moratórias, demissões e quedas de salários se avolumaram, elevando a insatisfação com o status quo. Com a indicação do pau- lista Júlio Prestes para concorrer à sua sucessão, o presidente Washington Luiz rompeu a “política do café com leite”, que assegurava a alternância de nomes indicados por Minas Gerais e por São Paulo na Presidência. Preterido em sua candidatura, o presidente do Estado de Minas Gerais, Antonio Carlos, articula- ra uma chapa de oposição com os aliados gaúchos e paraibanos, lançando a Aliança Liberal e as candidaturas de Getúlio Vargas, já deputado federal e ex- -ministro, para a Presidência, e de João Pessoa, então presidente da Paraíba, pa- ra a Vice. Estava desfeito o arranjo oligárquico até então dominante. Sintonizado com as angústias produzidas pela crise econômica e pela “ques- tão social” (um “caso de polícia”, segundo o presidente Washington Luiz), o pro- grama da Aliança Liberal propunha: adoção de um código do trabalho que ga- rantisse seguro social, salário mínimo e férias a todos os trabalhadores; refor- mas eleitoral, judiciária e do ensino; anistia aos “tenentes” revoltosos; liberda- de de pensamento; defesa do café e da pecuária. O apelo feito por Antonio Car- los já no ano anterior – “Façamos a revolução antes que o povo a faça” – foi aten- dido quando o modelo eleitoral desacreditado assegurou a vitória do candidato oficial. O assassinato de João Pessoa forneceu o elemento de comoção necessá- rio para que, a partir de 3 de outubro de 1930, tropas do Exército sediadas no Sul e no Nordeste marchassem em direção à Capital da República, comandadas res- pectivamente por Góis Monteiro, antes adversário “legalista” dos tenentes, e por Juarez Távora, tenente de muitas revoltas. O movimento contou com a partici- pação da maioria dos antigos tenentes revolucionários – com exceção de Luiz Carlos Prestes, que, professando já o marxismo, recusou-se a participar de mais uma “revolução pelo alto”, a qual, a seu ver, nada revolucionaria. Um mês depois, Getúlio Vargas assumia o poder como chefe do Governo Provisório. Em 11 de novembro de 1930, Getúlio editou o Decreto nº 19.398, que se tornou a verdadeira lei fundamental do país até a promulgação da Constituição de 1934. O ato manteve em vigor, com as alterações que promoveu, as Constituições fe- deral e estaduais, bem como as leis então vigentes. Transferiu ao Governo Pro- Com a indicação do paulista Júlio Prestes à sua sucessão, Washington Luís rompeu a “política do café com leite”. O mineiro Antônio Carlos cumpre a promessa de fazer a revolução antes que o povo a fizesse A Revolução de 1930: a comemoração popular pelo golpe, acima; e Washington Luís a caminho da prisão no Forte de Copacabana, ao lado ac er vO i cO nO Gr ap Hi a Mu se u dO e xé rc it O 62 63 visório o exercício das competências conferidas pela Constituição de 1891 ao Legislativo e ao Executivo. Dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Es- taduais e as Câmaras Municipais, mas manteve em funcionamento o Judiciário, com as limitações que lhe impôs. Concedeu ao Governo Provisório o poder de nomear interventores para governar os Estados e, a estes, o poder de nomear os prefeitos dos respectivos municípios. Suspendeu as garantias constitucionais, com exceção do habeas corpus nos crimes comuns, excluiu da apreciação judi- cial os atos do Governo Provisório e dos interventores e criou um tribunal espe- cial para o julgamento de crimes políticos. Garantiu a manutenção dos contra- tos públicos e privados, o pagamento da dívida pública e a preservação dos prin- cípios da publicidade e da motivação dos atos administrativos. Nos casos de ofensa à moralidade administrativa, permitiu, porém, a revisão dos contratos e das concessões firmados pelo Poder Público, bem como dos benefícios pecuniá- rios concedidos aos agentes públicos. Proibiu que qualquer interventor ou pre- feito nomeasse parente seu, “consanguíneo ou afim, até o sexto grau”, para car- go público, “a não ser um para cargo de confiança pessoal”. Prescreveu que a no- va Constituição deveria manter a forma republicana federativa, as prerrogati- vas dos municípios, os direitos dos cidadãos e as garantias individuais já con- sagradas pela Constituição de 1891. A percorrer o texto, havia o eco do republi- canismo austero e autoritário de Júlio de Castilhos, assimilado pelo novo herdeiro da liderança castilhista, agora chefe do Governo Provisório. Com as ferramentas jurídicas do Decreto nº 19.398, o apoio do Exército e dos tenentes, Getúlio Vargas iniciou a substituição das velhas elites agrárias pelos novos quadros oriundos do campo do tenentismo e dos clubes 3 de Outubro, que mobilizavam os setores mais “radicais” do movimento. Aos poucos, contudo, em um exercício de equilibrismo entre as diversas camadas no novo condomínio de poder em formação, Getúlio foi se reaproximando dos setores mais tradicio- nais e começou a alijar os tenentes e outros quadros mais exaltados. Caso em- blemático foi o de São Paulo, em que o “tenente-interventor” João Alberto foi substituído em 1933 pelo oligarca Armando Sales de Oliveira. Ao mesmo tempo, a Revolução de 1930 levava à frente a reorganização
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