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Marx - Adriano Codato - Economia Politica

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Marx: a política, o poder e o Estado capitalista
Adriano Codato
"A atual sociedade não e um cristal sólido, mas um organismo capaz de mudar e que está em constante processo de mudança." Karl Marx, do Prefácio à 1a ed. de O capital (1867).
É sintomático: o mês de dezembro de 1989 não tem o poder de encantamento que tem outra data importante do século 20: o maio de 1968.
A rebelião dos estudantes franceses contra a ordem escolar francesa permanece no imaginário social justamente por ter se convertido em símbolo de uma utopia. "Sejamos realistas, desejemos o impossível": um poder jovem, uma sociedade sem autoridade, um mundo sem classes.
Já a destruição, em 1989, do muro que dividia Berlim entre uma banda capitalista e outra "comunista" foi, para muitos, a prova definitiva de que nosso modo de vida é universal, as disparidades sociais são naturais, as hierarquias são necessárias, as diferenças não são bem-vindas e o poder é legítimo porque é o poder estabelecido. Enfim: o capitalismo é eterno.
Nessa onda, um cientista político norte-americano — Francis Fukuyama — chegou mesmo a afirmar que, naquele inverno de 1989, estávamos diante do fim da História. Não haveria, a partir de então, qualquer alternativa satisfatória à democracia liberal. Ela seria a última forma do governo humano.
O realismo delirante dessa sentença e seu espírito cínico, aliados à vitória teórica, ideológica e política da doutrina econômica neoliberal na década de 1990, aposentaram por um bom tempo o marxismo, o socialismo e os ideais revolucionários. Entramos então numa época em que a teoria social de Marx perdeu todo o seu prestígio e a hegemonia nos círculos universitários. O comunismo, enfim comprovada sua inviabilidade, deu lugar ao consumismo; e da idéia de Revolução só restou a imagem estilizada — e despolitizada — de Che Guevara. O inconformismo migrou então para outras regiões para se expressar ora através do terrorismo (sua versão dramática), ora através da adesão a incontáveis modismos.
Nesse contexto anti-utópico, em que o individualismo suplantou o coletivismo e a alienação excedeu a emancipação, pode-se ainda ler Marx?
Na verdade, o nome de Karl Marx (1818-1883) está associado a pelo menos três coisas muito diferentes entre si: a um programa revolucionário, a uma ideologia de Estado e a uma teoria social.
Marx foi um dos inspiradores do mais importante movimento político do século 19: o socialismo. Ele escreveu, com seu principal colaborador, Friedrich Engels (1820-1895), um panfleto político que pode ser tomado como o resumo acabado do espírito revolucionário europeu: O manifesto do Partido Comunista (de 1848). Esse panfleto termina com o famoso apelo: "Proletários de todos os países, uni-vos!". Como ativista político, Marx engajou-se em duas grandes guerras teóricas, uma contra o hegelianismo, outra contra a economia política burguesa. Combateu politicamente o anarquismo e sua influência no movimento operário europeu. Com igual disposição, reprovou as fabulações do socialismo utópico. Liderou, como publicista, a crítica democrática radical à revolução burguesa alemã. Conspirou em Londres contra o regime prussiano. E organizou a I Associação Internacional dos Trabalhadores. Em meio a tudo isso escreveu O capital.[1: Socialismo: um regime social que prevê a abolição das classes sociais e a supressão da propriedade privada. Os meios de produção seriam controlados pela sociedade (e não pelos indivíduos particulares), condição básica para um mundo mais justo. Em algumas formulações, "socialismo" é a etapa intermediária entre o capitalismo (ver) e o comunismo. Em qualquer caso, ele implica um novo modo de produção; portanto, uma reorganização completa da sociedade atual. No Prefácio à edição inglesa de 1888 do Manifesto comunista, Friedrich Engels esclarece que o "comunista" que acompanha o título do livro devia- se a uma questão político-ideológica e não a uma preferência semântica. Em termos bem resumidos: "em 1847, o socialismo significava um movimento burguês, o comunismo, um movimento operário". Àquela altura "entendia-se por socialistas, de um lado, os adeptos dos vários sistemas utópicos" que circulavam pela Europa e que não passavam de "seitas" cm vias de desaparecer. Por outro lado, socialistas eram também "os vários curandeiros sociais que, por todo tipo de remendos, pretendiam atenuar, sem qualquer risco para o capital e u lucro, toda sorte de males sociais". Raymond Williams anota que o sentido de socialista/comunista variou bastante ao longo do século 19. Na Inglaterra, por exemplo, "socialista" possuía uma conotação mais forte do que comunista, exatamente o oposto da França e Alemanha. Apesar disso, o termo predominante para designar os movimentos políticos anticapitalistas seguiu sendo "socialismo" até pelo menos a Revolução Russa (1917). Entre fins do século 19 e inícios do século 20 um novo termo agregou-se a essa família, com o mesmo significado: social-democrata. "Em 1918", escreve Williams, "o Partido Trabalhista Social-Democrata russo teve seu nome alterado para Partido Comunista Pan-Russo". Este nome recuperava agora a diferença entre socialismo e comunismo demarcada por Engels em 1888 e inspirava-se no feito heróico dos communards franceses que tomaram Paris e organizaram um governo operário durante 72 dias (Raymond Williams, Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007, pp. 105-106). O movimento político que ofereceu a Marx a oportunidade de observar como poderiam ser organizadas as instituições políticas no socialismo foi, justamente, a Comuna de Paris (1871). Marx analisou essa experiência no livro A guerra civil na França (1870-1871).]
No século 20, várias revoluções sociais, inspiradas pelo socialismo (como doutrina política), reclamaram uma ligação direta com o pensamento de Marx (como teoria social): a Revolução Russa, de 1917, e a Revolução Chinesa, de 1951, por exemplo. Nesses países, contudo, as idéias de Marx e de Engels converteram-se em um conjunto de preceitos e princípios que serviram muito mais para justificar a dominação burocrática e a ditadura de um partido único sobre a sociedade do que para fazer avançar duas bandeiras do socialismo: o fim da exploração econômica e o fim da dominação política.
Mas o que mais nos importa neste momento é a terceira face do pensamento de Marx. É como crítico da sociedade que Marx vai ser apresentado aqui. Ele foi um economista, um filósofo e um teórico social fundamental (a palavra "sociólogo" e a disciplina Sociologia ainda não existiam na sua época). Seu pensamento está na base da Teoria Social contemporânea e sua crítica ao capitalismo — "crítica" significando ao mesmo tempo exame, caracterização e julgamento, desaprovação — é uma das mais poderosas e penetrantes análises da sociedade industrial.[2: Capitalismo: na linguagem marxiana, um modo de produção. Marx caracteriza com isso mais uma sociedade (a sociedade burguesa) do que um sistema econômico específico. Isto é, mais uma forma de organização social (e os seus correlatos: uma política burguesa, uma ideologia burguesa) do que um regime definido por certos indicadores econômicos: taxa de investimento, produção per capita, renda global etc. O início do capitalismo pode ser situado no século 16, na Europa ocidental. Sua etapa "clássica" foi a etapa industrial (séculos 18 e 19) que sucedeu a mercantil (ou comercial). Ela correspondeu a uma revolução na forma de produzir a partir da introdução da máquina a vapor nas fábricas de tecidos na Inglaterra (primeira Revolução Industrial). No livro mais conhecido de Marx e Engels, O manifesto do partido comunista (1848), onde a expressão "capitalismo" todavia não consta, pode-se ler uma das mais fascinantes — e desassombradas — descrições desse sistema social. Através da ação da burguesia (ver), essa classe cujo papel histórico foi revolucionário, ficamos sabendo que o que distingue "a época da burguesia", ou a época capitalista, "de todas as outras épocas anteriores" é uma disposição particularpara "revolucionar constantemente a produção, abalar sem cessar todas as condições sociais" e promover "a incerteza eterna e o movimento eterno". Nesse regime social, em que todas as antigas instituições feudais foram afogadas "nas águas geladas do cálculo egoísta", nada dura para sempre. Nesse movimento de transformação contínua, "tudo que é sólido desmancha no ar". A inovação — tecnológica, científica — sucessiva é, para Marx, um imperativo do próprio sistema, que se orienta pela acumulação infinita do capital, não o resultado da livre-iniciativa. A característica básica desse modo de produção é, conforme o Dicionário do pensamento marxista (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988), a propriedade privada do capital (capital esse que pode assumir a forma de terras, dinheiro, máquinas, fábricas) nas mãos de uma classe, a classe dos capitalistas. Hoje, um elemento importante dessa definição, ao lado da propriedade do capital, é o controle sobre o capital (isto é, o poder de decisão sobre os investimentos, por exemplo). Outras características a serem agregadas a essa definição e que caracterizam o capitalismo são: produção de mercadorias; universalização das trocas e, portanto, estabelecimento das relações sociais através da mediação do dinheiro; força de trabalho ("mão-de-obra") assalariada; ausência de controle dos trabalhadores sobre o processo de trabalho. Veja que "lucro" não é um traço definidor desse sistema. A definição mais sucinta é possivelmente esta: o capitalismo é um regime onde a produção é coletiva e a apropriação (do que é produzido), privada. Há duas descrições bem ilustrativas do capitalismo industrial no século 19 na tradição marxista. A etnografia de Friedrich Engels sobre a vida dos operários ingleses: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra em 1844 (1845) e o capítulo XIII de O capital (1867), de Karl Marx, intitulado “Maquinaria e grande indústria”.]
Dentre os muitos temas sobre os quais Marx escreveu, este capítulo dedica-se em especial à sua Política. Quais são as concepções de política, poder e Estado em Marx?
Antes de responder a essas questões é preciso lembrar duas dificuldades que esses temas (e seu tratamento) implicam. Falar de Marx mais como um pensador político do que um ativista político, ou um grande polemista, exige dois procedimentos delicados e um tanto arbitrários.
O primeiro consiste em separar o pensamento "marxiano" (isto é, do próprio Marx) dos "marxismos" posteriores, ou das análises que foram feitas em seu nome,
a fim de restituir a verdade do texto. Se há um pensador que teve suas idéias esmiuçadas ao logo do século 20 foi o próprio Marx. Assim, mesmo atendo-se à letra dos seus escritos, qualquer comentário das concepções de Marx sobre o problema do poder ou a questão do Estado é também uma interpretação. Não há (mais) como destacar a obra marxiana da leitura que se fez dela.[3: Em termos muito simplificados, existem très procedimentos básicos de leitura: i) a análise de texto, ii) o comentário de texto e iii) a interpretação de texto. A análise procura provar que um texto preciso, ou um fragmento desse texto, diz determinada coisa (sustenta uma déia, por exemplo). Isso se faz mostrando as razões no próprio texto em questão, e apenas nele (e não em outro lugar, num argumento de autoridade, por exemplo: "fulano diz que sicrano disse aquilo"). Porém há um limite: alguns textos/trechos não permitem uma explicação fechada em si mesma. É preciso recorrer então a um comentário. Um comentário de texto "é uma tentativa de solução de um ou mais problemas de análise", problemas esses determinados por aquele que lê. Isso se faz "trazendo outros textos, outros fatos, contextos e razões que superam aquilo que já estava presente no texto comentado". Trata-se de resolver (ou não...) um problema de leitura imposto pelo próprio analista. Contudo, alguns textos suscitam vários comentários e análises que podem ser, no limite, discordantes ou diferentes, quando não opostos entre si. Daí que seja preciso interpretar um texto. Interpretar é então eleger, "escolher um quadro geral de razões que melhor se encaixa com o todo do pensamento de um autor, ou com um conjunto de sua obra". Paulo Vieira Neto, "O que é análise de texto?" in: Vinicius de Figueiredo, (org.). Seis filósofos na sala de aula (vol. 1). São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006, pp. 17-18.]
O segundo procedimento, também delicado e arbitrário, consiste em afastar a obra da sua finalidade política prática. Marx não era um filósofo ou um economista convencional (aliás, tinha uma implicância danada com os filósofos alemães e com os economistas ingleses). Daí que, ao contrário dos grandes pensadores, não tenha propriamente desenvolvido um sistema filosófico ou uma Teoria Econômica, com "t" maiúsculo. E isso por dois motivos. Nosso autor era inimigo de toda teoria pura e de qualquer utopia, isto é, qualquer imaginação fantasiosa sobre um mundo desejável ou uma sociedade ideal. Bateu-se a vida toda em favor de uma interpretação materialista da História. Não produziu assim nem uma doutrina, nem uma fantasia. O segundo motivo é mais direto. Como o próprio escreveu em sua décima-primeira tese contra Ludwig Feuerbach (1804-1872), um filósofo alemão discípulo de Hegel (1770-1831): "os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de maneira diferente; é preciso, ao contrário, transformá-lo". Desse modo, toda obra marxiana foi escrita com esse objetivo político explícito.
Neste ensaio vou procurar restringir minha abordagem ao "marxismo como ciência social", para usar a fórmula de Goran Therborn, e reconstituir a formulação da "teoria marxiana do Estado" com base na crítica de Marx e Engels à concepção burguesa de Estado. Penso que a dimensão científica da sua filosofia política é ela mesma revolucionária.[4: Goran Therbom, "A análise de classe no mundo atual: o marxismo como ciência social" in: Eric Hobsbawm (org.). História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Coleção História do marxismo, v. 11.]
A teoria social de Marx
Nós conhecemos as simplificações por que passam as idéias dos grandes pensadores. Todos já ouvimos dizer que a lição política de Nicolau Maquiavel está contida numa única sentença: "os fins justificam os meios". Ou que para Thomas Hobbes, o filósofo político inglês do século 17, "o Homem é o lobo do Homem". Ou que Jean-Jaques Rousseau acreditava que "o Homem nasce bom; a sociedade o corrompe". Tudo isso não está errado. Mas também não está certo. Por quê?
Fora do seu "contexto", isto é, fora do conjunto de idéias de um pensador, essas expressões, muitas vezes literais, perdem seu sentido efetivo. Daí que, soltas assim, não são capazes de resumir a radicalidade essencial desses autores. As frases acima na verdade só encobrem a intuição original e as idéias incomuns que suas filosofias políticas inauguraram. Às vezes, e isso é o mais grave, o pensamento de um grande autor é deturpado para fins retóricos ou ideológicos. Tome-se o caso de Charles Darwin, o naturalista que possivelmente escreveu o livro mais importante do século 19: A origem das espécies. Toda uma complicada teoria sobre a seleção natural foi reduzida a uma frase falsa e banal: "o Homem veio do macaco".
Desse modo, diante de qualquer autor a tarefa fundamental não é apenas ler o que está escrito. É preciso também saber como ler o que está escrito. Há "chaves de leitura" que abrem algumas portas e deixam ver o que está por trás de frases que só aparentemente cortam caminho, mas que na verdade nos levam a alguns becos sem saída e apagam a força revolucionária de um pensamento.
Marx escreveu muito e sobre muitos assuntos (economia, filosofia, política etc.). As obras completas de Marx & Engels ocupam dezenas e dezenas de volumes (a referência oficial é a Marx-Engels, HistorischKritische Gesamtausgabe — MEGA). Suas idéias — pouco sistemáticas, nem sempre muito claras, expressas de forma polêmica e segundo um estilo mais literário que científico — foram vítimas de leituras equivocadas, parciais, interessadas,simplificadoras, assim como as idéias dos autores acima referidos.
As principais acusações contra seu pensamento — aquilo que nós chamamos um tanto impropriamente de "teoria marxista" — são três. Elas vêm sob a forma de -ismos: economicismo, mecanicismo e instrumentalismo. E esses três defeitos podem ser postos juntos numa palavra só: reducionismo.
Para boa parte dos autores não marxistas (eu arriscaria dizer: para todos), o raciocínio implícito no "esquema" de pensamento de Marx consistiria em explicar o que acontece nas várias esferas da vida social (política, direito, arte, religião, cultura, filosofia etc.) através do que acontece na economia. É como se devêssemos reduzir as motivações, as ações e as instituições que o Homem criou às motivações, às ações e às instituições econômicas, explicando as primeiras pelas segundas.
Esse entendimento do marxismo como um tipo extremo de reducionismo econômico pretende apoiar-se em comentários estritos das próprias obras de Marx. Tomemos um exemplo famoso.
No "Prefácio" que escreveu a um importante livro, Para a crítica da Economia Política, publicado em 1859, nosso autor não economizou palavras. Ele diz, textualmente, o seguinte: "O modo de produção da vida material", ou o que ele próprio chamará, nesse mesmo texto, de "a estrutura econômica da sociedade", "condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral". Traduzindo essa proposição para a linguagem mais abstrata dos filósofos: "não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência". Essa fórmula sintética consta de um livro que Marx e Engels escreveram juntos quase quinze anos antes, A ideologia alemã.
Sendo assim, a relação entre a economia e as demais instâncias da vida social é uma relação completamente desequilibrada, desproporcional.
Pense numa balança. Num dos pratos está quase todo o peso. Essa prioridade da explicação pelo fator econômico chama-se, justamente, cconomicismo. Às vezes as coisas podem ser condicionadas em maior grau ou em menor grau pelo "modo de produção da vida material". Mas o fundamental dessa tese é que sempre serão condicionadas pela "economia".
Nesse registro, segundo o qual tudo o mais está amarrado ao que se passa num só nível da realidade, as demais "partes" da sociedade não possuem vida própria ou "autonomia". E isso em dois sentidos: i) elas não existem por si mesmas; e ii) elas não são nem podem ser independentes da "base material".
Sobre o primeiro sentido, Marx e Engels irão escrever em A ideologia alemã: "A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia (...) não têm história" própria, "nem desenvolvimento" de acordo com suas leis internas ou exigências específicas. E aqui encontramos o segundo sentido da heteronomia (isto é, o contrário de autonomia) das instâncias da vida social: elas dependem de alguma coisa que está fora delas. Dependem, afinal, da economia.
Vamos tomar o próprio texto do "Prefácio de 1859" para refutar esse ponto de vista. Vejamos o que podemos extrair do que está dito aí por Marx. Mais adiante notaremos que essas citações (e, em especial, o problema da Política, para ser entendido integralmente) devem ser lidas junto com mais algumas outras, presentes em outros livros. Isso ocorre porque nem Marx nem Engels impuseram-se a tarefa de pensar seu próprio pensamento. Isto é: elaborar um sistema filosófico e expor suas idéias de forma organizada, concatenadas a partir de uma série de questões previamente formuladas e expressas por respostas que não dão margem a interpretações contraditórias. O próprio autor, aliás, incumbiu-se de dizer, explicitamente, que as concepções abaixo e sua articulação, através de proposições bastante sintéticas e polêmicas, constituem o "fio condutor" do seu pensamento. Não é, portanto, uma "filosofia", se entendermos esse termo na sua acepção mais simplória: um sistema articulado de idéias e conceitos. É algo para lembrar o caminho.
Consideremos então a seguinte passagem. Trata-se de um fragmento do "Prefácio" de 1859 ao seu livro Para a crítica da economia política. Como a citação é um pouco comprida, vou analisá-la por partes. Depois gostaria de fazer um comentário e propor uma interpretação para ressaltar o que não está evidente aí.
Antes de entrar no assunto propriamente dito, Marx informa o leitor como e por que foi estudar economia. Marx percebeu que para entender questões práticas, sua formação de jurista e filósofo e sua atividade como jornalista militante das grandes causas do socialismo (democracia, igualdade etc.) não eram suficientes.
Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de `sociedade civil', seguindo os [filósofos] ingleses e franceses do século 18; mas que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política. Comecei o estudo dessa matéria [a Economia Política] em Paris [em 1844], mas tive que continuá-lo em Bruxelas, para onde me transferi em conseqüência de uma ordem de expulsão do se Guizot [o chefe de polícia francês]. O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor aos meus estudos pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais.[5: Karl Marx, "Prefácio [1859]" in: Para a crítica da Economia Política. Trad. Edgard Malagodi. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 23 (Coleção Os Economistas). Todas as demais citações são dessa edição.]
 
Retomemos agora a apresentação do seu esquema geral de pensamento.
O ponto fundamental aqui é, parece-me, a expressão "independentes da sua vontade". A vida social não é um produto voluntário de uma adesão individual, ou um "contrato".
A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.[6: Idem]
A citação, apesar de longa, não é à primeira leitura tão difícil e parece que não há muito a acrescentar, nem o que interpretar.
"O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual." Dito de outra forma: a economia determina o que acontece nas outras "partes" da vida social. Ou por outra: tudo tem de ser explicado pela economia.
Assim lida, a frase deveria condensar e expor as linhas gerais da teoria geral de Marx. Feitas todas as contas, nós poderíamos chamar sua concepção de reducionista: tudo se reduz a um princípio explicativo. Isso tem conseqüência inclusive sobre a forma como Marx encara a atividade política ou a ideologia (em sentido lato: as idéias, as concepções de mundo, as filosofias, as formas de expressão artística etc.). Nesse último caso, pode-se dizer que seu reducionismo converte-se efetivamente em um "mecanicismo". O marxismo, conforme se acredita, "deduz" mecanicamente a configuração e a função das superestruturas culturais dos movimentos da economia.[7: Cultura: do verbo latim colo, coldre (cultivar; mas também: habitar; proteger; venerar etc.), referindo-se primariamente ao cultivo do campo, à criação plantas e animais (como ainda hoje, quando falamos "agricultura" ou mesmo "cultura de bactérias"). A palavra será entendida de maneiras muito diferentes ao longo do tempo; seu significado também é bastante heterogêneo a depender do idioma em queé empregada (a respeito da história desse processo, ver Raymond Williams,Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007). Ainda na Antiguidade, Cicero (10643 a.C.) já usa o termo no sentido figurado, quando afirma que a filosofia é uma cultura animi, um modo de cultivar, de cuidar da alma para que produza os frutos desejados (Tusculanae disputationes II, 13). A partir do séc. 18, a palavra cultura será apropriada de maneiras muito distintas por diversas disciplinas, tais quais a filosofia, a antropologia, a história, a economia etc. De modo geral, no contexto dos autores aqui discutidos, podemos dizer que o termo é usado da seguinte maneira: a) tradicionalmente, refere-se ao refinamento intelectual c/uu aos resultados de uma educação esmerada, o "cultivo do espírito"; b) mais recentemente (especialmente a partir do sec. 19), adquiriu o sentido do conjunto dos padrões de comportamento, crenças, instituições e valores materiais e espirituais em geral, próprios de certa sociedade, grupo ou civilização e coletivamente transmitidos pelos mesmos. (Em particular, lembremos ainda o emprego usual da palavra como prática e produção artística: música, literatura etc.)A distinção entre os termos cultura e civilização é uma questão importante (como para Nietzsche, por exemplo; ver Nota 7 à pág. 170). A história dos usos deste par de conceitos, cuja evolução se dá em antítese, é analisada em detalhe por Norbert Elias em O processo civilizador (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990).Para Marx, a cultura estaria na parte correspondente à superestrutura do "todo social"; contudo, a questão é complexa. Ao longo do séc. 20, várias correntes interpretativas tentaram entender, de modos muito distintos, o papel da cultura a partir dos escritos de Marx e Engels. Assim, a chamada Escola de Frankfurt (Theodor W Adorno, Walter Benjamin e outros) privilegiou a análise da "cultura de massas" e seus mecanismos de reprodução em série; Antonio Gramsci debruça-se sobre o que chamou de "hegemonia cultural" enquanto instrumento de controle da sociedade capitalista. O filósofo francês Louis Althusser desenvolverá, em fins dos anos 1960, a concepção segundo a qual a cultura, ou mais exatamente, a ideologia, teria uma dimensão quase material: ela estaria incorporada no que ele chamou de "aparelhos ideológicos de Estado" (e que compreendiam instituições tão diferentes quanto a família, as igrejas ou os partidos). Esses aparelhos culturais seriam também responsáveis pela reprodução do todo social, uma vez que a coesão não se garantiria apenas por meio das instituições repressivas (polícia, tribunais, forças armadas etc.)]
Contudo, é aqui que começam as principais dificuldades. Há três aspectos nessa famosa passagem a serem ressaltados: os propósitos anunciados, a linguagem empregada e o significado possível das idéias cogitadas por nosso autor. Como interpretá-los?
Marx representa o todo social por meio de uma imagem ao mesmo tempo poderosa e muito polêmica: o conjunto das "relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência".
O que essa passagem, que é na realidade um enunciado teórico cifrado, significa? Para melhor compreendê-la, observemos um esquema simples do que está sendo dito.
	 ESTRUTURA IDEOLÓGICA
	 ESTRUTURA JURÍDICO-POLÍTICA
	
ESTRUTURA ECONÔMICA
Figura 1: A representação do "todo social"
Em primeiro lugar, atentemos aqui para duas coisas: a imagem projetada pelo autor e a linguagem empregada no texto. Delas podemos formular uma interpretação que será útil para pensar nossos três problemas: o poder, a política e o Estado.
A sociedade — isto é: sua organização e seu funcionamento — vem representada e descrita aqui por uma metáfora (e não definida por um conceito). É como se pudéssemos pensar que a sociedade ou, numa linguagem mais rigorosa, o "todo social" fosse análogo a um edifício. (Veja bem: esse é o sentido exato da analogia; e não que o mundo, como lembra Terry Eagleton, pudesse ser dividido em fatias, como uma torta.)[8: 3 Cf. Terry Eagleton, Ideologia. Uma introdução. São Paulo: Editora da UNESP/Editora Boitempo, 1997.]
Há, como em todo edifício, uma fundação, uma base que sustenta toda a estrutura. Essa base é o nível econômico (e não, note bem, "a economia"). Acima dela erguem-se os andares superiores dessa construção, os níveis jurídico-político e ideológico. Há assim uma ordem hierárquica nessa construção — ordem que não é nem "natural", nem "lógica" — e que convém não confundir (assimilar uma estrutura à outra), misturar (fundi-las numa só) ou inverter (pôr de cabeça para baixo, com o ideológico na base).
Esse par "base/superestrutura" substitui, conforme a nova terminologia empregada, as noções tradicionais da filosofia política "Estado/sociedade civil". Mas repare: essa mudança de nomes indica uma mudança de concepção sobre a vida social que não encontra, no entanto, um novo sistema de conceitos no plano teórico. É como se Marx pensasse de uma maneira nova, com novos conceitos, sem ter todavia elaborado teoricamente seu pensamento. Mas ele mesmo não afirmou que essas idéias eram apenas um "fio condutor"? Como o fio de Teseu no labirinto do Minotauro.
Mas a figura do "edifício social" a que ele recorre não é apenas a expressão de uma carência terminológica ou de um processo arbitrário de substituição de um termo ("Estado"; "sociedade civil") por outro ("superestrutura jurídico-política"; "estrutura econômica da sociedade"). O sentido figurado dessa formulação registra também uma revolução teórica. Há um novo princípio para explicar o funcionamento do todo social. Para ser bem compreendido ele exige alguns comentários adicionais.
Ao invés de denotar a oposição entre Estado e sociedade civil, trata-se agora de exprimir duas idéias complementares: i) a articulação entre as instâncias; e ii) a articulação entre três instâncias diferentes entre si (lembre-se: a econômica, a política e a ideológica). É nesse sentido que se pode dizer que a metáfora tem um valor cognitivo. Ela permitiria entender como funcionaria a sociedade.
Como num edifício real, no "edifício social" as partes estão todas conectadas entre si. Disso podemos deduzir que, assim como não há um terceiro ou um quarto andares planando no vazio, não há uma instância social independente uma das outras. Esse encaixe, perfeito no mundo físico, vem designado, em Marx, pela idéia menos exata de "correspondência": a uma estrutura econômica capitalista deve, idealmente, corresponder uma estrutura política capitalista.
Logo, duas conclusões e um preceito metodológico se impõem. As estruturas da sociedade são interdependentes e a "reprodução social" (isto é, o funcionamento da sociedade e a sua continuidade ao longo do tempo) exige, sempre, a intervenção das três. Dito numa linguagem teórica mais avançada: existe uma relação de implicação recíproca entre os níveis do "todo" social. Daí que seja sempre muito complicado produzir uma explicação marxista sobre um fenômeno histórico-social. Para compreendê-lo e interpretá-lo é preciso pensar quais são as influências do político em relação ao econômico, do econômico em relação ao ideológico, do ideológico em relação ao político etc. Igualmente, e essa é a segunda conclusão necessária, no processo de "transformação social", quando uma se transforma, as outras estruturas do todo social devem, mais cedo ou mais tarde, transformarem-se também.
Dessa forma, ainda que as instâncias tenham sua especificidade (o político não se confunde com o econômico, por exemplo), elas não são completamente autônomas: não constituem dimensões separadas da vida social. Daí decorre que, para Marx, a política — a prática política — não possa ser explicada pela própria política — pela lógica imanente a essa prática. A política deve ser explicada pelo (todo) social. Esse é o sentido contido na passagem já referida acima:(...) formas de Estado não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida.[9: Marx, op. Cit.]
Traduzindo: regimes políticos (o nome contemporâneo para "formas de Estado") não podem ser deduzidos, por exemplo, das fórmulas jurídicas — as Constituições. Eles só podem ser compreendidos e explicados a partir do econômico, do político e do ideológico. A dominação implica, sempre, as três dimensões da vida social (o que é diferente de dizer que os regimes — democráticos, ditatoriais etc. — são irrelevantes para explicar as modalidades de distribuição do poder numa dada sociedade).
O filósofo francês Louis Althusser (1918-1990), ao comentar esse mesmo texto, o "Prefácio de 1859", enfatizou que essa separação do mundo social em três níveis — o econômico, o político e o ideológico — não diz respeito a diferenças entre esferas de atividades, nem diz respeito a divergências entre tipos de práticas, classificáveis como práticas econômicas (comprar, vender), práticas políticas (votar, protestar), práticas ideológicas (orar, filosofar etc.). Não são ações que podem ser acomodadas em "gavetas" separadas. Essas distinções são distinções de eficácia. E isso em pelo menos dois sentidos.
Há três níveis diferentes porque cada um deles cumpre uma função específica para o todo social. Ou melhor: cada um cumpre, à sua maneira, sua função na reprodução social.
Essa funcionalidade se expressa, por exemplo, da seguinte maneira: são as instituições políticas, as instituições jurídicas e as instituições ideológicas que regulam, legalizam e legitimam as relações de exploração/ dominação. Daí que, é bom relembrar, o termo "superestrutura" empregado por Marx não se opõe à base material. Superestrutura é, como notou Terry Eagleton, um termo relacional. Ou mais precisamente, ele indica uma relação funcional entre um nível e outro.
Há três níveis diferentes e um desses níveis é, em último caso, mais importante para o todo social (por isso expressei, na Figura 1, o nível econômico com um tamanho diferente dos demais). Na frase de Marx: "O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral".
Assim, a sociedade, pensada como um todo social formado (simbolizado) por níveis específicos, em estreita correlação entre si (articulados), é um todo intrincado e diferenciado (desequilibrado). A desproporção entre seus termos vem justamente do fato de que o nível econômico — ou mais exatamente: a estrutura econômica de uma sociedade — é determinante no processo de reprodução social (e não "a economia", a atividade econômica). E o que comporta a estrutura econômica da sociedade? A tecnologia disponível, a estrutura da propriedade, as relações de produção, a divisão social do trabalho etc.
A importância do econômico não é, contudo, uma questão de prioridade histórica ("o que vem primeiro?"), ou mesmo uma questão de primazia lógica ("o que tem de ser pensado antes de tudo?"). Não se deduz nada daí, nem se trata de uma premissa "filosófica" que dispense sua demonstração científica.
Nessa concepção, e de acordo com essas idéias, qual é o lugar e a função da política?
A teoria do Estado de Marx
Marx nunca escreveu um livro dedicado ao problema do Estado. Na verdade, apesar de ter tratado do tema da alienação política, do Estado, da burocracia e da democracia em seus escritos de juventude, os textos elaborados a propósito de determinados acontecimen tos históricos (revoluções, contra-revoluções, golpes de Estado etc.) são a via de acesso mais útil e segura para compreender a teoria política marxiana.
Que acontecimentos são esses?
Em primeiro lugar, as revoluções de 1848 na França e na Alemanha. Sobre o assunto, há três escritos importantes de Marx: O manifesto do Partido Comunista, de 1848, redigido em parceria com Engels; do mesmo período, A burguesia e a contra-revolução. Este "livro" é, na verdade, uma coleção de artigos publicados por Marx num jornal dirigido por ele: a Nova Gazeta Renana. Órgão da Democracia. Seus textos, escritos entre 1848-1849, tratam do fracasso da revolução anti-feudal e da fundação, frustrada, do domínio político burguês na Alemanha; e As lutas de classe na França de 1848 a 1850 (uma série de quatro escritos publicados por Marx em 1850 e que só foram reunidos num único volume por Engels em 1895).
Em seguida, o golpe de Estado de Luís Bonaparte em 2 de dezembro de 1851. Sobre o episódio, Marx escreveu um importante livro: O 18 brumário de Luís Bonaparte, publicado em alemão, em Nova York, em meados de 1852. São sete ensaios sobre a política francesa desde fevereiro de 1848 até a crise política que encerra a Segunda República.
Por último, a Comuna de Paris. O levante operário francês deu origem a A guerra civil na França. O texto, escrito entre 1870 e 1871, é a compilação de três "manifestos" que Marx escreveu para a Associação Internacional dos Trabalhadores. A edição definitiva do livro foi estabelecida por Engels somente vinte anos depois.
Como se vê, o material é bastante heterogêneo. Redigidos para fins diversos e em momentos diferentes, foram destinados a pensar conjunturas políticas muito específicas. Não são portanto obras de Teoria Política, com "t" e "p" maiúsculos. Ou melhor: a teoria política de Marx está aí, mas "na prática".
A melhor sistematização do pensamento político de Marx foi feita por Engels num volume cujo título é A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Publicado em 1884, esse texto resume e condensa as notas que Marx tomou para fundamentar sua concepção materialista da História. Interessado nas descobertas da antropologia evolucionista, Marx leu, em 1880, o livro Ancient Society, de Lewis Morgan — que tratava da organização social dos iroqueses, nativos norte-americanos —, para entender a "pré-história" da Humanidade, suas diversas etapas e a gênese de duas instituições: a família e o Estado.
No capítulo IX, intitulado "Barbárie e civilização", depois de ter demonstrado como as sucessivas divisões sociais do trabalho (povos pastores, povos agricultores; artesãos, agricultores; o aparecimento dos comerciantes) dão origem a diferentes classes sociais (homens livres e escravos, ricos e pobres, explorados e exploradores); e corno, juntamente com as classes, aparece, com base em seus interesses contraditórios e inconciliáveis, a luta de classes, Engels explica como e por que (ou melhor: para que) surge o Estado.
A passagem a seguir reúne uma série de proposições teóricas:
O Estado não e portanto, de modo algum, um poder que se impôs ã sociedade de fora para dentro; tampouco é `a realidade da idéia moral', nem `a imagem e a realidade da razão', como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e esta dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ordem. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e se distanciando cada vez mais, é o Estado.[10: Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. 8'. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 191.]
O que esse fragmento nos diz? Vejamos antes um esquema geral do argumento:
Desenvolvimento econômico
Divisão do trabalho social
Processo de diferenciação social
Aparecimento das classes sociais
Luta de classes/contradição
ESTADO
Figura 2: A origem do Estado e o nascimento da civilização
Há aqui, ao mesmo tempo, uma crítica da concepção "burguesa" de Estado e a indicaçãode uma "teoria geral do Estado" não apenas diferente, mas oposta à primeira.
Engels desloca a discussão da origem do Estado da problemática contratualista (e da relação, necessária a essa concepção, entre indivíduo/poder político) para a problemática materialista de classe/Estado. Trata-se agora de demonstrar quatro idéias novas, com base na noção de "contradição" social, fundamental para essa filosofia:
i) o Estado não resulta de um pacto imaginário entre os indivíduos para superar o "estado de natureza" e instituir a vida em sociedade (como em Hobbes, Locke ou Rousseau);
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	Filósofos na sala de aula - vol. 2
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ii) o Estado, ao contrário, é o resultado necessário e objetivo do desenvolvimento histórico das sociedades humanas ("é um produto da sociedade", como escreveu Engels; ele é "independente da vontade" dos agentes sociais individuais, para retomar a fórmula do "Prefácio de 1859");
iii) esse desenvolvimento (que deu origem ao Estado), ou as diversas revoluções das relações econômicas, não precisa ser imaginado pelos filósofos da política; ele pode ser verificado, graças á Antropologia, pela concepção materialista da História a partir das transformações das relações reais de existência;
iv) o Estado, como um poder separado da sociedade, não existiu desde sempre, eternamente; ele correspondeu a uma necessidade histórica: regular a luta de classes. Como conseqüência dessa idéia: quando não existirem mais classes sociais, o Estado pode, enfim, desaparecer.
Essa última é mais uma conclusão lógica do argumento do que uma "necessidade histórica". Nada é dito sobre "como" ou "quando" isso ocorrerá. É um postulado que abusa da fórmula "se... então...": se a sociedade de classes for destruída, então o Estado irá se extinguir.
A citação de Engels nos diz ainda algo fundamental. O Estado, nas sociedades de classe, possui uma função social: é ele quem deve "amortecer o choque" ou o conflito entre as classes, e manter esse conflito "dentro dos limites da ordem". Com base nessa idéia — é o Estado clue impede a dissolução da sociedade, de qualquer sociedade — podemos tirar três conclusões, uma de alcance histórico, outra de alcance teórico e uma última
de alcance político:
i) o Estado é o responsável pela manutenção das
condições sociais de produção e reprodução de uma sociedade (isto é, é ele que garante efetividade das
relações de produção);
ii) ou, mais abstratamente, o Estado é o fator de coesão social: é ele que mantém a unidade do "todo social" (Essa é uma idéia central para o marxismo. Retomemos aquele modo de pensamento simbolizado pela Figura 1: o todo social pode ser dividido esquematicamente em três níveis diferentes, mas associados: o econômico, o político e o ideológico. É o nível político, ou mais propriamente o Estado, que mantém a unidade social);
iii) sendo assim, qualquer movimento político que pretenda destruir uma sociedade e instituir no seu lugar uma outra deve ter como objetivo principal o Estado.
Numa palavra: o que é o Estado? O Estado é a instituição responsável por manter a sociedade coesa (de maneira mais complicada: o Estado é o fator de coesão dos níveis de uma formação social). Essa é a função global do Estado. Mas, de acordo com a concepção marxista, esta é também uma função política, pois manter uma sociedade coesa significa, ao mesmo tempo, manter as relações de dominação de classe que a caracterizam. O Estado é, igualmente, o fator de dominação social.
A função geral do Estado é manter unida uma sociedade composta não de partes "diferentes", mas desiguais. As classes sociais, essas "partes", são desiguais em muitos sentidos, mas principalmente em um: o económico. Uma sociedade dividida entre proprietários e não-proprietários, ao ver garantida sua coesão, verá garantida também a reprodução das condições de produção dessa desigualdade. Verá garantida, em outros termos, a dominação dos segundos (os não-proprietários) pelos primeiros (os proprietários). Foi o que Engels procurou expressar na passagem seguinte:
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral [isto é, sempre], o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele [do Estado], se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo [isto é, o Estado capitalista] é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado.[11: Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, op. cit., pp. 193-94.]
Em termos resumidos estão firmados aí mais alguns elementos da concepção marxiana/marxista do Estado:
i) é o Estado que organiza a dominação política de classe; isto é:
i) é ele quem garante a dominação da classe economicamente mais poderosa sobre a sociedade corno um todo (ou sobre as demais classes sociais);
iii) essa é uma realidade trans-histórica, ou em termos mais simples, essa é urna regra geral.
Luciano Gruppi, ao comentar a mesma passagem, sublinhou que a formulação engelsiana estabelece uma conexão entre três conceitos: modo de produção, classe social e Estado.[12: 12 Luciano Gruppi, Tudo começou com Maquiavel. As concepções de Estado em Marx, Engels, Lenin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1983.]
	MODO DE PRODUÇÃO
	CLASSE DOMINANTE
	CLASSE DOMINADA
	ESTADO
	Antigo
	Senhores deEscravos
	Escravos
	Estado antigo
	Feudal
	Nobreza
	Servos
	Estado feudal
	Capitalista
	Burguesia
	Trabalhadores
	Estado capitalista
Figura 3: Os Estados na História
Mas qual a fonte do poder político da classe dominante? O poder social. Ou, em termos mais concretos, a propriedade: "em Atenas e em Roma (...) a classificação da população era estabelecida pelo montante de bens" que eles controlavam; "no Estado feudal da Idade Média (...) o poder político era distribuído conforme a importância da propriedade territorial"; nos "modernos Estados representativos", isto é, nos Estados capitalistas sob o regime democrático, "o reconhecimento político" decorre "das diferenças de fortuna" (p. 194). Conclusão (do próprio Engels): "o Estado é um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não possuem" (p. 194).
O arremate do argumento permite então enfatizar a lição central dos clássicos do marxismo: o Estado não tem como função representar toda a sociedade ou promover o interesse comum dos membros de uma comunidade. O Estado (qualquer Estado, em qualquer época considerada, como se viu) é um aparelho de dominação de classe. O poder de Estado está submetido ao poder de classe.
Mas como isso se realiza no capitalismo? Ou, o que é perguntar a mesma coisa com outros termos: qual a relação entre o aparelho do Estado e a classe burguesa?"[13: Burguesia: a classe social dos burgueses. Trata-se de uma das classes fundamentais da sociedade capitalista [ver capitalismo] . "Burguês", por sua vez, é um termo de definição difícil. Apesar do uso corrente, seu significado está ligado a diferentes situações históricas e varia conforme as diferentes línguas nacionais. O vocábulo pode ser empregado em sentido técnico (sociológico) ou simplesmente pejorativo. Raymond Williams, um crítico cultural marxista, registra que a palavra conservou um sentido, embora vago, de desprezo ou repulsa (Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 64). Esse desdém estava ligado inicialmente a uma visão aristocrática do mundo social, de acordo com a qual se reprovava a mediocridade e a sordidez do burguês, seu apego excessivo ao sucesso econômico, á segurança material, à "vida burguesa" enfim. Esse significado ampliou-se e se fundiu,no século 18, à visão extremamente crítica de intelectuais, artistas, filósofos, poetas diante da estreiteza de espírito, mau gosto e preconceito da burguesia diante de tudo aquilo que era incapaz de compreender ou assimilar. O dicionário Houaiss registra os mesmos usos depreciativos na língua portuguesa. Marx parece valer-se das duas acepções para caracterizar/ridicularizar a ação da burguesia francesa durante a Segunda República (1848-1852). Veja o livro O 18 brumário de Luís Bonaparte (1852). No século 19 o termo firmou-se em sua acepção marxista. "Burguês" não designa mais o habitante do burgo medieval, nem o comerciante ou artesão. Conforme Marx e Engels, a burguesia é a classe que controla, em regime de monopólio, os meios — técnicos e sociais — de produção. Quando um mesmo grupo social concentra a propriedade econômica, o comando político e a direção ideológica ou cultural de uma sociedade se pode designá-lo como classe dominante. É importante notar que a burguesia é uma classe fracionada internamente (há a fração industrial, comercial, bancária etc.), conflituosa e, portanto, não homogênea nem unitária. Burguesia, como classe, contrapõe-se, nessa tradição, a proletariado (ver). Um texto central para entender a origem da classe dos capitalistas e suas metamorfoses entre os séculos 16 e 19 na Europa é o capítulo XXIV de O capital (1867), "A assim chamada acumulação primitiva".]
Há duas respostas a essa questão. A primeira, menos complexa, vamos chamar instrumentalista; a segunda, mais complexa, anti-instrumentalista. São duas maneiras
Ver Glossário: burguesia. de conceber a execução da mesma finalidade: reproduzir o capitalismo.
No primeiro caso, o Estado é pensado por Marx/Engels como um instrumento da classe que o controla. Nesse caso, os agentes do Estado (a burocracia, por exemplo) não teriam qualquer autonomia, isto é, não agiriam segundo seus "interesses próprios". Essa visão pode ser conferida na seguinte passagem do Manifesto comunista: "O poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia".[14: Karl Marx e Friedrich Engels, O manifesto comunista. Trad. Maria Lucia Como. 4°. cd. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 12.]
No segundo caso, o Estado, ou mais exatamente, o aparelho do Estado, para melhor agir em nome da classe burguesa (exercer o poder de Estado), tem de ser às vezes mais, às vezes menos autônomo em relação a ela. Isto é, tem que se distanciar dos interesses imediatos dos capitalistas (os agentes sociais) para se dedicar a defender os fundamentos da sociedade capitalista (o sistema social). Mas, note bem: nos dois casos — nas duas formas de realização da dominação social — o Estado possui a mesma função: manter a ordem pública (a "paz social") e, por conseguinte, reproduzir a dominação de classe.
Adam Przeworskysalienta que numa teoria política como essa, os interesses dos ocupantes do Estado (os administradores públicos) ou as preferências daqueles que vencem eleições (os políticos) não importam. Sob o "governo do capital" as instituições estatais funcionam invariavelmente para reproduzir o capitalismo. Trata- se de um requisito objetivo do sistema e não de um resultado contingente das escolhas das forças sociais em presença.[15: Adam Przeworsky, Estado e economia no capitalismo. Rio de Janeiro: Retume-Dumará, 1995.]
A teoria do Estado capitalista
Tomemos um livro famoso de Marx para pensar a relação entre a classe dos capitalistas e o Estado capitalista: O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Ele desenvolve aí essa visão anti-instrumentalista a que nos referimos acima, e que é a mais adequada para entender o funcionamento concreto do Estado nas sociedades capitalistas.
O livro é uma análise de uma situação histórica singular (os conflitos da Segunda República francesa, de 1848 a 1852) e de um fenômeno histórico concreto (o golpe de Estado de Luís Bonaparte em 2 de dezembro de 1851). Porém, a narrativa não é somente descritiva. Sua finalidade não é expressar os acontecimentos (embora faça isso também), mas esclarecer os princípios do nascimento de um regime político — o bonapartismo — e os mecanismos sociopoliticos que explicam seu funcionamento efetivo.
 Pirâmide do sistema capitalista. Panfleto de 1911 da revista Industrial Worker, do sindicato radical IWW — industrial Workers of the World (Trabalhadores industriais do mundo). Na charge, criticam-se os diferentes níveis da hierarquia capitalista: acima de tudo, o capital; logo abaixo, os chefes de Governo, nas suas diferentes formas ("nos governamos vocês"); as principais lideranças religiosas (“nós enganamos voces"); a força de polícia na figura do exército ("nós atiramos em voces"); a burguesia (“nós comemos por vocês” ); e, sustentando toda a pirâmide, o proletariado ("nós trabalhamos por todos", "nós alimentamos todos").
Nesse livro Marx demonstrou que, em certos períodos históricos, a função do Estado capitalista (a reprodução do capitalismo) pode ser cumprida melhor quando os próprios capitalistas (as classes e frações dominantes) não controlam diretamente o poder executivo (isto é, quando eles não são também a classe governante).
A burguesia francesa aprendeu, no curso das muitas lutas políticas do período 1848-1851, que "para salvar sua bolsa", isto é, garantir os interesses econômicos da classe, "seria preciso perder a coroa", isto é, abrir mão do poder político. Assim, "(...) sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo" frente à classe dominante, "libertando completamente a sociedade civil do trabalho de governar a si mesma".[16: Karl Marx, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. In: Oeuvres. Trad. Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, 1994. Vol. IV, Tomo I: Politique, p. 482.]
A figura política que caracterizará esse domínio indireto da burguesia sobre o Estado é o "bonapartismo”. O que é o bonapartismo, portanto? É uma forma específica de regime político do Estado capitalista.
As instituições políticas e sociais do regime bonapartista são descritas por Marx sob o rótulo irônico de idées napoléniennes (idéias napoleônicas): a independência do Executivo; o predomínio dos interesses da burocracia; a "aniquilação do Parlamento"; a "preponderância do Exército". Trata-se, em resumo, de um governo "forte" e "absoluto"; trata-se do que Marx chamou de a "ditadura de Bonaparte".
Ralph Miliband sustenta que o bonapartismo é, nesse sentido, um regime político onde, diferentemente de outros regimes, o aparelho do Estado é autônomo diante da sociedade. O próprio Engels havia se referido ao mesmo problema em termos mais ou menos idênticos. Em A origem da família ele advertiu que há períodos históricos em que, excepcionalmente, "as lutas de classe se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente [da sociedade], adquire certa independência momentânea em face das classes" sociais (ed. cit., p. 194). Foi o caso da monarquia absoluta na Europa ocidental entre os séculos 17 e 18; foi também o caso do bonapartismo do Primeiro e do Segundo Impérios na França e do regime de Bismarck na Alemanha no século 19.[17: Ralph Miliband, Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.]
Maximilien Rubel, o tradutor das principais obras de Marx para o francês, observou, contudo, que essa idéia — a separação entre o aparelho do Estado e a classe burguesa — poderia ser pensada, na obra dos clássicos do marxismo, não como um regime excepcional ou como o traço característico do Estado francês num período determinado do seu desenvolvimento histórico. Melhor seria tomar esse caso particular como o preceito que descreve a relação entre o Estado e a classe dos capitalistas sob o capitalismo. Aliás, o próprio Engels afirmou, numa carta a Marx, que feitas todas as contas, o bonapartismo era "a verdadeira religião da burguesia moderna", ou sua forma de dominação normal. A partir dessa sugestão, Nicos Poulantzas propôs entender o "bonapartismo" como a realidadede todas as formas de Estado sob o capitalismo.[18: Nicos Poulantzas, Poder político e classes sociais. 2a ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 1986.]
A frase de Marx, segundo o qual "(...) sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo" frente à classe dominante, "libertando completamente a sociedade civil do trabalho de governar a si mesma", converteu-se então num postulado teórico. E o movimento onde "a burguesia [francesa] reconhece que seu próprio interesse lhe ordena subtrair-se aos perigos do self-government; (...) que a fim de preservar intacto o seu poder social, seu poder político deve ser destroçado" descrevia, na verdade, um aspecto constitutivo do Estado sob o modo de produção capitalista: sua autonomia (relativa) face às classes e frações dominantes. Essa seria, então, a regra geral da relação entre a classe e seu Estado.
Mais do que isso. Extrapolando essa idéia para aquele terreno das estruturas ou níveis do todo social, o capitalismo seria o regime social em que haveria uma maior separação entre o nível político e o nível econômico. É justamente essa separação que permite tentar compreender a especificidade do Estado capitalista diante dos demais Estados históricos (antigo, feudal, escravista colonial etc.), suas funções específicas e tomá-lo, por isso, como um objeto de conhecimento de direito próprio, ou realizar a teoria desse Estado.
A questão então a discutir não é se para cumprir sua função o Estado capitalista é ou não autônomo diante da classe dos capitalistas. A questão é o quanto ele é autônomo, ou seja, o grau — maior ou menor — dessa autonomia. A extensão dessa autonomia será variável em função de uma série de fatores combinados: as funções do Estado numa dada sociedade (há sociedades mais "dependentes" do Estado), as exigências concretas da defesa, manutenção ou expansão do capitalismo num período determinado (a política de industrialização, por exemplo), o tipo de regime político correspondente (ditadura, democracia), o estado da luta de classes (quão organizados e ativos são os "setores" sociais) etc. A medida da autonomia será portanto uma medida histórica.
O aparelho do Estado capitalista
Tomemos agora em consideração um último problema: o problema da estrutura do Estado.
As "obras históricas" de Marx referem-se ao Estado a partir de duas dimensões inseparáveis. De um lado, Marx entende-o sob uma perspectiva essencialmente funcional, vendo no Estado a instituição responsável pela reprodução das relações de dominação — políticas e econômicas — que caracterizam uma dada sociedade.
O exercício dessa função, e o seu caráter de classe, como bem demonstraram as análises de Marx sobre os resultados produzidos pela política patrocinada pelo "Estado bonapartista" no Segundo Império, não dependem do controle direto da classe burguesa sobre os recursos organizacionais do aparelho estatal. A concepção funcional não implica uma relação instrumental.
De outro lado, porém, é preciso notar que o Estado não é entendido por Marx exclusivamente a partir de sua função (isto é, a partir dos resultados produzidos pelas suas decisões), mas também como uma "organização" complexa, atravessada de cima a baixo por conflitos internos entre os seus aparelhos e ramos, conflitos esses capazes de alterar a dinâmica da luta política.
Mais do que isso: o Estado aparece, em Marx, como uma "organização" dotada de recursos próprios, cujos agentes, tanto no âmbito do "poder executivo" como no âmbito do "poder legislativo", desenvolvem "interesses próprios" com base nos quais orientam suas ações.
Aqui o Estado é entendido como uma instituição subdividida em um sem-número de "aparelhos", capaz de tomar decisões, de alocar recursos e que, inserido num contexto político instável, estabelece com as forças
sociais que se encontram dentro e fora dele uma colação conflituosa.
Vejamos urna citação onde essas idéias estão presentes.
Um operário, Marche, ditou o decreto pelo qual o recém- formado Governo provisório se comprometia a assegurar a sobrevivência dos operários por meio do trabalho e a proporcionar trabalho a todos os cidadãos etc. E quando, alguns dias mais tarde, o Governo, esquecendo-se de suas promessas, pareceu ter perdido de vista o proletariado, uma massa de vinte mil operários dirigiu-se ao Hotel de Ville [atualmente a sede da prefeitura de Paris] aos gritos de: Organização do trabalho! Criação de um ministério especial do trabalho! A contragosto e após longos debates, o Governo provisório designou uma comissão especial permanente encarregada de pesquisar os meios para melhorar [as condições de vida] das classes trabalhadoras! Essa comissão Joi constituída por delegados das corporações de ofícios de Paris e presidida por Louis Blanc e Albert. O Palácio do Luxemburgo [atualmente a sede do Senado francês] foi-lhes destinado como sala de reuniões. Assim, os representantes da classe operária foram banidos da sede do Governo provisório, tendo a fração burguesa deste conservado exclusivamente em suas mãos o poder real do Estado e as rédeas da administração; e, ao lado dos Ministérios das Finanças, do Comércio, das Obras Públicas, ao lado da Banca e da Bolsa ergueu-se uma sinagoga socialista, cujos sumo-sacerdotes, Louis Blanc e Albert, tinham por tarefa descobrir a terra prometida, pregar o novo evangelho e dar trabalho ao proletariado de Paris. Diferentemente de qualquer poder estatal profano, não dispunham nem de orçamento, nem de qualquer poder executivo. Era com a cabeça que tinham de derrubar os pilares da sociedade burguesa. Enquanto o Luxemburgo procurava a pedra filosofal, no Hôtel de Ville cunhava-se a moeda em circulação.[19: Karl Marx, Les luttes de classes en France. 1848 a. 1850. In: Oeuvres. op. cit., pp. 245-246. Os grifos são do próprio Marx. A versão para o português é minha.]
Há uma série de proposições teóricas aqui também. Com base na experiência francesa, e nas análises práticas de Marx sobre os conflitos políticos no interior do governo provisório saído da Revolução de Fevereiro de 1848, vou enumerar algumas idéias sugeridas nesse fragmento.
A primeira delas, e a mais geral, é que para Marx, como lembrou a propósito Nicos Poulantzas, o aparelho de Estado, isto é, sua dimensão organizacional, não se esgota no poder de Estado, isto é, na sua dimensão funcional. Uma coisa é o que o Estado faz (sua função, seu poder); outra coisa é aquilo que o Estado é (sua estrutura, sua organização). A pergunta "o que é o Estado?" exige então uma resposta em outro sentido.
Assim, conforme o próprio Marx, o Estado não pode ser concebido como um "sistema" organizado, coerente e racional (diferentemente de Max Weber, portanto). O Estado é uma rede complexa de instituições, organizações burocráticas e relações (sociais) de poder. Ele não pode ser tomado por uma entidade homogênea, ,altamente articulada.
Essa complexidade do aparelho do Estado indica que é preciso sempre diferenciar o poder real e o poder real e o poder nominal e que "o Estado" é, na verdade, integrado por diferentes centros de poder. A força desses centros de centros de poder. A força desses centros de poder, ou a capacidade de tomar decisões e implementá-las, não vem das próprias instituições políticas, do seu arranho ou desenho interno, mas das classes que os controlam e/ou ocupam. Lembre-se da diferença que Marx estabelece entre o Hôtel de Ville (que concentrava "as dicas da administração") e o Palácio do Luxemburgo (endereço sem "qualquer poder executivo").
Por último, as transformações do sistema institucional dos aparelhos do Estado só encontram explicação suficiente quando referidas à dinâmica social mais ampla, numa palavra, à luta política de classes.
A lição de Marx
Há algumas lições úteis que podemos aprender com a teoria de Marx. 
A primeira refere-se a certa atitude diante das idéias e das práticas estabelecidas: o inconformismo.
Para Marx o intelectual — ele próprio escreveria: o	"filósofo" — deve ser um indivíduo capaz de recusar o mundo social tal como ele seapresenta: acabado, definitivo e imutável. O bom senso quer fazer crer que as sociedades humanas são como são. Há em estoque toda sorte de filosofias, sociologias, economias que elaboraram justificações sobre a ordem das coisas como se fossem explicações científicas das próprias coisas.
Quem pensa deve ser capaz de superar as ideologias teóricas e assumir para si duas tarefas: dizer como mundo social é (o que é um compromisso científico) e como ele não deveria ser (o que é um compromisso político). Mas a teoria social não deve se converter numa terapia coletiva (que pretende curar a sociedade dos seus males), nem numa engenharia social (que deseja reorganizá-la de um modo mais "racional"). Parcialidade, no caso, não implica falta de objetividade.
Isso significa — segunda lição — buscar as causas, as conexões entre as causas e o significado dos processos sociais, tornando-os compreensíveis. Pensar é uma atividade, acima de tudo, crítica. Pensar então é, nesse registro, pensar contra. Marx, através da crítica às concepções "burguesas" de Estado, pôde demonstrar que o poder não é neutro, o Estado não vela pelo interesse de todos e a política, numa sociedade de classes, nunca pode ser o terreno da harmonia universal.
Por último, esse criticismo tem um endereço certo. Contra as filosofias políticas ou as teorias jurídicas que anexaram à natureza humana uma concepção da Política como um domínio autônomo e absoluto, Marx insistiu - e sua obra é o exemplo prático desse princípio — que preciso explicar antes de tudo o político pelo social.
(Do livro “Filósofos na sala de aula”, v. 2, Berlerndis & Vertecchia Editores, São Paulo, 2007, 
org. Vinicius de Figueiredo, p. 110-154)
Indicações de leitura:
Biografias
A biografia mais recente de Marx e que foge do tom oficial e hagiográfico das biografias oficiais é o excelente (e divertido) livro de Francis Wheen, Karl Marx. Rio de Janeiro: Record, 2001.
O livro de Edmund Wilson, Rumo à estação Finlândia: escritores e atores da história (São Paulo: Companhia das letras, 1986) traz vários capítulos sobre a tumultuada vida de Marx, as disputas no interior do movimento socialista, sua colaboração com Engels e um resumo (às vezes superficial) de suas idéias.
O livro de Maximilien Rubel, Crônica de Marx: vida e obra (São Paulo: Ensaio, 1991) entrega o que promete. É um texto curto e útil para referências rápidas.
Sobre a política, o poder e o Estado
Sobre esses temas, o ideal é ler o próprio autor. Quase todos os títulos importantes de Marx e Engels podem ser baixados no site http://marxists.org/
Uma boa visão sobre a política e o papel das classes pode ser encontrada no livro O 18 Brumário de Luís Bonaparte, hoje um clássico do pensamento político.
Há várias traduções desse livro para o português, mas todas insatisfatórias. As mais conhecidas são: Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos econômico filosóficos e outros textos escolhidos. 4a. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, Coleção "Os Pensadores"; e Karl Marx, O 18 Brumário e cartas a Kugelman. 7a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. Ambas cometem vários deslizes, trocam palavras, omitem sentenças etc.
Para quem lê em francês recomendo a edição da Bibliothèque de la Pléiade: Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. In: Karl Marx, Oeuvres. Trad. Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, 1994. Vol. IV, Tomo I: Politique.
Quando esse livro completou 150 anos, foi publicada uma nova e excelente tradução para o inglês (além de vários estudos críticos, de qualidade desigual): Marx's Eighteenth Brumaire: (Post)Modern Interpretations. James Martin & Mark Cowling (eds.), trad. Terrell Carver. London: Pluto Press, 2002, pp. 19-109.
Um bom livro que compara diferentes teorias do Estado entre si, e oferece um resumo bem informado e crítico das discussões mais recentes, é: Adam Przeworsky, Estado e economia no capitalismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumarâ, 1995. Quem quiser se aprofundar na tradição marxista, leia o livro de Clyde W Barrow, Critical theories of the State. Marxist, neo-marxist, post-marxist. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. O volume escrito por Bob Jessop também é muito útil para resumir o debate dos anos 19601970: The Capitalist State: Marxist Theories and Methods. Oxford: Blackwell, 1982.
Dois livros são fundamentais para toda essa discussão, embora sua leitura exija um pouco mais de familiaridade com a literatura especializada. O primeiro deles é o de Nicos Poulantzas, Poder político e classes sociais. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986; o segundo é o de Ralph Miliband, Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
O debate entre os dois autores nas páginas da revista marxista inglesa New Left Review (http://newleftreview. org/) é bastante instrutivo. Miliband e Poulantzas discutem vários aspectos da teoria marxista do Estado capitalista, divergindo desde a forma de pensar teoricamente a relação classe/Estado ao papel do político diante do econômico nos países capitalistas centrais. Os dois primeiros artigos (o comentário do livro de Miliband — O Estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar, 1972 — por Poulantzas e a réplica do primeiro) estão em português. Ver: Nicos Poulantzas, "O problema do Estado capitalista"; e Ralph Miliband, "Resposta a Nicos Poulantzas". In: Robin Blackburn (org.), Ideologia na ciência social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp. 219233 e 233-241, respectivamente.
Um livro que avança, amplia e trata de muitas questões não referidas aqui por mim e: Goran Therborn, Como domina la clase dominante? 4a ed. México: Siglo XXI, 1989. Para uma discussão mais contemporânea, leia: Paradigm Lost: State theory reconsidered. Stanley Aronowitz & Peter Bratsis (orgs.). Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002.
Um exemplo da vitalidade e do interesse da teoria marxista está no volume e na qualidade das novas traduções dos textos dos clássicos do marxismo para o português. A Crítica da filosofia do direito de Hegel, os Manuscritos econômico filosóficos e o Manifesto comunista foram publicados pela editora Boitempo em edições comentadas. 
Uma outra fonte importante para manter-se atualizado com os resultados contemporâneos das análises marxistas e os desenvolvimentos teóricos dessa tradição são as várias revistas da área. Algumas são mais acadêmicas, outras são mais políticas. 
Cito quatro delas: a brasileira Crítica marxista (http://wwwunicamp.br/cemarx/criticamarxista/), a argentina Herramíenta (http://www.herramienta.com.ar/), a francesa Actuel Marx (http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/) e a norte- americana Rethinking marxism (http://rethinkingmarxism. org/cros/).

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