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A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E O PROBLEMA DA INOVAÇÃO EM EDUCAÇÃO DERMEVAL SAVIANI Em primeiro lugar, deve-se observar que a questão da inovação não tem sido objeto de preocupação explícita nos estudos de Filo sofia da Educação. Não obstante isso, as diferentes correntes têm fornecido elementos a partir dos quais é possível abordar o problema em pauta. Há mesmo determinadas orientações que parecem em prestar uma importância fundamental à idéia de inovação. Basta lembrar aqui os casos do Progressivismo e do Reconstrucionismo, cujos nomes já evocam, de si, a problemática envolvida no conceito de inovação. É necessário, porém, compor um quadro sistemático das dife rentes concepções de Filosofia da Educação, a fim de que se possa aquilatar o seu potencial no que diz respeito ao equacionamento do problema colocado. Entretanto, o que se deve entender por “filosofia da educação”? Em que medida ela poderá nos oferecer um referencial seguro para a análise que pretendemos desenvolver? Por trás das muitas acep ções que pode assumir a expressão “filosofia da educação”, podemos identificar dois sentidos fundamentais: a) a Filosofia da Educação como processo; b) a Filosofia da Educação como produto. Em outro trabalho, procurando enfatizar o caráter de processo, concei tuamos a filosofia da educação como uma “reflexão (radical, rigo rosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional apresenta”.1 E evitamos utilizar o termo “filosofia” para designar o produto, empregando, neste caso, o termo “ideologia”, entendido, porém, no sentido mais amplo de “orientação da ação” e não com 1. Cf. Saviani D., Educação Brasileira: Estrutura e Sistema, pp. 65-71 e 81-82. Tal perspectiva foi mais amplamente desenvolvida no artigo “A filo sofia na formação do educador”, Revista Didata, n.° 1, jan/mar, 1975. 15 o significado de “falsa consciência”.2 Entretanto, chamávamos atenção para o fato de que esses dois significados estão intimamente relacionados, só sendo distinguíveis por um ato de abstração. Neste texto, sem perder de vista a íntima relação entre os dois aspectos, a ênfase será posta no produto, isto é, a filosofia da educação será encarada enquanto concepção razoavelmente articulada à luz da qual se interpreta e/ou se busca imprimir determinado rumo ao processo educativo. Existem, pois, diferentes concepções de Filosofia da Educação. Como identificá-las e classificá-las? Aqui corre-se o risco de se perder num emaranhado de concepções, identificando-se tantas quantos são os filósofos e pedagogos que se conseguir enume rar. Tal risco está particularmente presente dada a tendência a se considerar a filosofia da educação à margem do desenvolvimento do processo educativo no contexto histórico-concreto.3 Para evitar esse risco, vamos esboçar um quadro sistemático que, no entanto, mantenha articulação com o processo concreto, isto é, com a ativi dade educacional tal como ela vem se manifestando no seio da orga nização social em que vivemos. Dado o teor esquemático deste texto, apresentaremos, primeiramente, a classificação a que chegamos das diferentes concepções de filosofia da educação, destacando apenas os seus traços distintivos. Em. seguida será indicado o modo como elas se articulam com o processo concreto da educação. 2. A literatura sobre o conceito de ideologia é abundante. Sobre ideologia como conceito mais amplo ver, por exemplo, Schaff, A., História e Verdade e Dumont, F., Les Idéologies. Sobre o conceito de “falsa cons ciência”, ver Gabel, J., La fausse conscience. Consulte-se, também, do mesmo autor, Idéologies e Sociologie de l’aliénation. 3. À guisa de exemplo mencionamos alguns autores que, a nosso ver, incidiram no risco acima referido. Brubacher, no capítulo intitulado “Fi losofias Sistemáticas de Educação”, analisa as seguintes correntes: “natura lismo pragmático”, “reconstrucionismo”, “naturalismo romântico”, “existen cialismo”, “análise lingüística”, “idealismo”, “realismo”, “humanismo racio nal”, “realismo escolástico”, “fascismo”, “comunismo” e “democracia”. Ver, Brubacher, J. S., Modem Philosophies of Education, pp. 311-347. Cunni- ngham, por sua vez, identifica as seguintes correntes: “idealismo”, “materia lismo”, “humanismo” e “supernaturalismo”, in Cunningham, W. F., Intro dução à Educação, cap. II, “As quatro correntes filosóficas de educação”, pp. 23-48. Já Kneller, G. F., Introdução à Filosofia da Educação, pp. 49-164, distingue entre o pensamento dos filósofos sobre educação, indicando cinco correntes: “idealismo”, “realismo*’, “pragmatismo”, “existencialismo” e “análise”; e o pensamento dos educadores, identificando agora quatro correntes: “progressisme’, “perenalismo”, “essencialismo” e “reconstrutivismo”. Veja-se também Ozmon, H., Filosofia da Educação: um diálogo onde indica cinco correntes de Filosofia: “idealismo”, “realismo”, “pragmatismo”, “exis tencialismo” e “behaviorismo” às quais correspondem respectivamente as se guintes “filosofias educacionais”: “perenalismo”, “essencialismo”, “progressis- mo” e “reconstrucionismo”, “existencialismo” e “planejamento de comporta mento”. 16 Após o estudo das diversas correntes e o exame, a largos traços, da evolução da organização escolar desde meados do século passado quando a sociedade atual adquire contornos definidos com a conso lidação do poder burguês, chegamos às conclusões que, resumida mente, passamos a expor. Em grandes linhas, seriam as seguintes as concepções funda mentais de Filosofia da Educação: 1. Concepção “humanista” 4 tradicional; 2. Concepção “humanista” moderna; 3. Concepção analítica; 4. Concepção dialética. 1. A concepção “humanista”, seja na versão tradicional, seja na versão moderna, engloba um conjunto bastante grande de corren tes que têm em comum o fato de derivarem a compreensão da Educação de uma determinada visão de homem. Segundo essas duas tendências, a Filosofia da Educação é algo sempre tributário de determinado “sistema filosófico” geral. A concepção “humanista” tradicional está marcada pela visão essencialista de homem.5 O homem é encarado como constituído por uma essência imutável, cabendo à educação conformar-se à essência humana. As mudanças são, pois, consideradas acidentais. Como se pode perceber, não há lugar nesta concepção para o tema da inovação. Esta simplesmente não é considerada; e, se o é, ocupa, obviamente, um lugar secundário, periférico, acidental. Com preende-se então, que não é daí que devemos esperar uma contribuição positiva para a compreensão do tema da inovação. Compreende-se também que é esta concepção “humanista” tradicional que está na base dos métodos tradicionais de ensino. Não se pode, pois, falar — dado que resulta contraditório — numa concepção “humanista” tradicional de inovação. Ao contrário, o tema da inovação será 4. Colocamos o termo “humanista” entre aspas tendo em vista sua elasticidade de sentido. Esperamos que o significado que lhe emprestamos emerja do próprio texto. 5. O exemplo mais característico desta tendência consubstancia-se no to mismo e no neo-tomismo. Há diversos manuais de Filosofia da Educação que seguem essa orientação. Ver, por exemplo MARTAIN, J., Rumos da Edu cação e Redden e Ryan, Filosofia da Educação. Entretanto, outras corren tes poderiam ser mencionadas, entre as quais se destaca o intelectualismo de Herbart que sistematizou o modo como se desenvolve o ensino nas escolas convencionais. 17 posto contra os métodos tradicionais de ensino e — já que estes se baseiam na concepção “humanista” tradicional — as propostas de inovação educacional se insurgirão contra a referida concepção. Notamos, pois, que se não podemos esperar dessa concepção uma contribuição positiva, indiretamentee por via negativa, ela já nos oferece uma contribuição significativa. Com efeito, ela nos permite colocar com maior precisão o problema da inovação, uma vez que nos esclarece a respeito da seguinte questão: em relação a que algo pode ser considerado inovador? Emerge daí já um primeiro crité rio para se caracterizar a inovação, a saber: inovador é o que se opõe a tradicional.6 2. A concepção “humanista” moderna abrange correntes tais como o Pragmatismo, Vitalismo, Historicismo, Existencialismo e Fe nomenologia. Diferentemente da concepção tradicional, esboça-se uma visão de homem centrada na existência, na vida, na atividade. Não se trata mais de se encarar a existência como mera atualização das potencialidades contidas “a priori” e definitivamente na essência. Ao contrário; aqui a existência precede a essência. Já não há uma natureza humana ou, dito de outra forma, a natureza humana é mu tável, determinada pela existência.7 Na visão tradicional dá-se um privilégio do adulto, considerado o homem acabado, completo, por oposição à criança, ser imaturo, incompleto. Daí que a educação se centra no educador, no intelecto, no conhecimento. Na visão moderna, sendo o homem considerado completo desde o nascimento e inacabado até morrer, o adulto não pode se constituir em modelo. Daí que a educação passa a centrar-se na criança (no educando), na vida, na atividade. Admite-se a existência de formas descon tínuas na educação. E isto, em dois sentidos: num primeiro sen tido (mais amplo) na medida em que, em vez de se considerar a educação como um processo continuado, obedecendo a esquemas 6. Evidentemente, o problema é mais complexo do que pode parecer à primeira vista. Definir inovação por oposição à tradição é uma primeira aproximação, sem dúvida válida, porém não suficiente. Com efeito, pode-se querer inovar o ensino nos seus métodos, a fim de se manter viva a tradição. Teríamos aqui métodos inovadores a serviço de objetivos tradicionais, vale dizer, de uma concepção tradicional da educação e da cultura. 7. Para um confronto entre as pedagogias da essência e da existência, ver Suchodolski, B., La Pédagogie et les grands courants philosophiques. Ver, também, para um confronto entre escola tradicional e escola nova, Gilbert, R., Idéias actuais em pedagogia. No que diz respeito às correntes de filo sofia da educação comumente difundidas a partir dos manuais de origem norte-americana, poderíamos considerar o essencialismo e o perenalismo no interior da concepção “humanista” tradicional ao passo que o progressismo e o reconstrucionismo integram a concepção “humanista” moderna. 18 pré-definidos, seguindo uma ordem lógica, considera-se que a edu cação segue o ritmo vital que é variado, determinado pelas diferen ças existenciais ao nível dos indivíduos; admite idas e vindas com predominância do psicológico sobre o lógico; num segundo sentido (mais restrito e especificamente existencialista), na medida em que os momentos verdadeiramente educativos são considerados raros, pas sageiros, instantâneos. São momentos de plenitude, porém fugazes e gratuitos.8 Acontecem independentemente da vontade ou de pre paração. Tudo o que se pode fazer é estar predisposto e atento a esta possibilidade. Compreende-se agora porque é a concepção “humanista” mo derna que está na base do chamado Movimento da Escola Nova. Já se pode, então, precisar melhor o significado do critério enunciado anteriormente. Dizer-se que algo (um método, uma experiência educativa) é inovador porque se opõe ao tradicional significa dizer que ao invés de se centrar no educador, no intelecto, no conhecimento, centra-se no educando, na vida, na atividade (ação). Ao invés de seguir uma ordem lógica, segue uma ordem predominantemente psicológica. Ao invés de subordinar os meios (métodos) aos fins (objetivos: o homem adulto e o domínio cogni tivo do conteúdo cultural disponível), subordina os fins aos meios (cf. Dewey: “Educação é vida; vida é desenvolvimento; e a fina lidade do desenvolvimento é mais desenvolvimento”). 3. A concepção analítica de Filosofia da Educação não pres supõe explicitamente uma visão de homem nem um “sistema filosó fico” geral.9 Pretende que a tarefa da Filosofia da Educação é efetuar a análise lógica da linguagem educacional.10 Dado que a linguagem educacional é uma linguagem comum, isto é, não forma lizada, não “científica”, o método que mais se presta à tarefa pro posta é o da chamada análise informal ou lógica informal.11 A 8. Cf. Bollnow, O. F., Pedagogia e Filosofia da Existência, especial mente, pp. 27-30 e 188-204. 9. Para uma visão de conjunto da concepção analítica, ver a excelente coletânea La concepción analítica de la filosofia, 2 vols., (seleção e introdu ção de Muguerza, Javier). 10. Entre os principais textos da concepção analítica de filosofia da educação, destacam-se: O’Connor, D. J. Introduction a la Filosofia de la Education e Scheffler, I., A Linguagem da Educação. Ver, .também, Smith, B. O., e Ennis, R. H., (orgs.) Lenguaje y Conceptos en la Education. Para uma exposição didática, consulte-se Kneller, G. F., La lógica y el len guaje en la education. 11. A “lógica informal” se desenvolveu principalmente através dos pen sadores ligados à chamada “escola de Oxford” e representou uma reação, no 19 análise informal postula que o significado de uma palavra só pode ser determinado em função do contexto em que é utilizada. Enten da-se, porém, tratar-se do contexto linguístico12 e não do contexto sócio-econômico-político, ou, numa palavra, histórico. Partindo do princípio segundo o qual o significado de uma palavra é determinado pelo emprego, isto é, pelo uso que dela se faz, a análise informal julga não ser necessário ultrapassar o âmbito da linguagem corrente para se compreender o significado das palavras. De acordo com essa concepção, para se determinar o significado de “inovação” será necessário analisar o contexto (linguístico) em que ela é utilizada. Não há, pois, critérios predeterminados. 4. A concepção dialética de Filosofia da Educação também se recusa a colocar no ponto de partida determinada visão de homem. Interessa-lhe o homem concreto, isto é, o homem como “síntese de múltiplas determinações”, vale dizer, o homem como conjunto das relações sociais. Considera que a tarefa da Filosofia da Educação é explicitar os problemas educacionais. Entende, contudo, que os problemas educacionais não podem ser compreendidos senão por re ferência ao contexto (histórico) em que estão inseridos. Como a concepção “humanista” moderna admite que a realidade é dinâ mica. Não erige, entretanto, o dinamismo em princípio metafísico, isto é, em uma força misteriosa, um “élan vital” que governa o pro cesso objetivo de modo imperscrutável cabendo ao homem apenas admitir sua existência, sujeitar-se ao seu capricho, entrar no seu ritmo. Segundo a concepção dialética o movimento segue leis obje tivas que não só podem como devem ser conhecidas pelo homem. Encarando a realidade como essencialmente dinâmica, não vê neces sidade de negar o movimento para admitir o caráter essencial da realidade (concepção “humanista” tradicional) nem de negar a essência para admitir o caráter dinâmico do real (concepção “huma nista” moderna). O dinamismo se explica pela interação recíproca do todo com as partes que o constituem, bem como pela contrapo sição das partes entre si. Determinada formação social, mercê das interior do pensamento analítico, à preocupação quase exclusiva com a lin guagem formalizada. Marco dessa reação é o trabalho de Strawson sobre a referência em que desenvolve uma crítica aos Principia mathemática. Ver o texto de Strawson e a resposta de B. Russell, in Simpson,T. M., Semántica filosófica, pp. 57-93. 12. Strawson fala em “contexto de elocução (utterance)”. Em segui da diz o que entende por contexto: “Por ‘contexto’ entendo, pelo menos, o tempo, o lugar, a situação, a identidade do locutor, os temas que constituem o foco imediato de interesse e as histórias pessoais, tanto do locutor quanto daqueles a quem ele se endereça”. Strawson P. F., Escritos Lógico-Lingüís- ticos (Sobre Referir), in Os Pensadores, vol. LII, p. 280. 20 contradições que lhe são inerentes, engendra sua própria negação, evoluindo no sentido de uma nova formação social. Nesse contexto, o papel da educação será colocar-se a serviço da nova formação social em gestação no seio da velha formação até então dominante.13 A concepção dialética aponta, pois, para um sentido radical de inovação, isto é, inovar significa mudar as raízes, as bases. Trata-se, pois, de uma concepção revolucionária de inovação. Pode-se ir, agora, mais além na explicitação do critério enun ciado. Dizer-se que algo é inovador porque se opõe ao tradicional significa aqui não apenas substituir métodos convencionais por outros. Trata-se de reformular a própria finalidade da educação, isto é, colo- cá-la a serviço das forças emergentes da sociedade. Passemos agora à articulação do esquema acima apresentado com o processo concreto, isto é, com a atividade educacional taí como ela vem se manifestando no seio da organização social em que vivemos a qual assume feições características com a consolidação do poder burguês e a conseqüente formulação de sua visão de mundo: o liberalismo.14 A escola surge, então, como o grande instrumento de realização dos ideais liberais. Forja-se, a partir da segunda me tade do século XIX a idéia da “escola redentora da humanidade”. Desencadeia-se a campanha pela escola pública, universal e gratuita. Surgem os chamados “sistemas nacionais de ensino”. No século atual, especialmente a partir da primeira grande guerra, as esperanças depositadas na escola resultam frustradas. A escola que nascera com a missão de “redimir os homens de seu duplo pecado histórico: a ignorância, miséria moral e a opressão, miséria política”,15 revelou-se incapaz de levar a bom termo aquele objetivo. Acreditou-se, então, 13. A literatura sobre educação tendo como referência a concepção dialética vem se intensificando a cada dia, tanto em quantidade como em qualidade. Ver, por exemplo, Dommanget, M. Los Grandes Socialistas y la Education: de Platón a Lenin. Marx, K., e Engels, F., Crítica da Educação e do Ensino (introdução e notas de R. Dangeville). Manacorda, M. A., Marx y la Pedagogia Moderna. Suchodolski, B., Teoria Marxista de la Educa tion. Manacorda, M. A., El Princípio Educativo em Gramsci. Jovine, D. B., Principi di Pedagogia Socialista. Radice, L. L., Educazione e Rivo- luzione. Gramsci, A., La Alternativa Pedagógica (seleção e introdução por M. A. Manacorda). Snyders, P., Para onde vão as Pedagogias Não-Dire- tivas? Ver, ainda, para uma análise da escola: Baudelot C., e Establet, R., L’école capitaliste en France. Lindenberg, D., (org.), L’internationale communiste et l’école de classe. Snyders, G., École, Classe et lutte de classe. 14. Tal visão de mundo constitui, com efeito, o pano de fundo das diferentes concepções antes mencionadas, com exceção, é óbvio, da concepção dialética que se impôs a tarefa de efetuar a crítica da ideologia liberal, pon do em evidência suas bases reais. 15. Zanotti, L. J., Etapas Históricas de la Política Educativa, pp. 22-23. 21 que a razão do fracasso não estava na escola como tal, mas no tipo de escola de que se dispunha. Conseqüentemente, manteve-se a crença na “escola redentora da humanidade”. Todavia, para que ela pudesse desempenhar seu papel, era mister reformar a escola. Desencadeia-se, então, o movimento da escola nova. Esse movi mento, no entanto, começa a perder ímpeto a partir da segunda grande guerra. Começa-se a desconfiar de se ter atribuído à escola uma tarefa imensamente superior às suas possibilidades. Passa-se, então, a falar em Educação Permanente e a se valorizar as formas de educação informal, para-escolar ou, simplesmente, não-escolar, até o ponto em que se chega mesmo a advogar a destruição da escola. Nesse quadro, as atenções se voltam para as potencialidades educa tivas dos meios de comunicação de massa e ensaia-se o aproveita mento das conquistas tecnológicas no processo educativo. Nota-se que a fase da “escola redentora da humanidade” cor responde à escola convencional e tem suas bases naquilo que se con vencionou chamar aqui de concepção “humanista” tradicional de filo sofia da educação. A “Escola Nova” pretende reformular interna mente o aparelho escolar, inspirada na concepção “humanista” mo derna. Quanto à terceira fase, não é por acaso que ela toma corpo no mesmo período em que ganha terreno a influência da concepção analítica. É que esta está em estreita relação com o neo-positivismo, cujo postulado da neutralidade científica é estendido também às con quistas tecnológicas. E a concepção dialética? Como se daria sua articulação com o movimento histórico? Aqui é preciso observar que as analises do tipo daquela que foi sumariada acima,16 incorrem numa falácia. Elas sugerem que a uma etapa sucede outra, isto é, a primeira etapa é substituída e superada pela segunda, esta pela terceira e assim sucessivamente. Entretanto, não é isso o que se da. O movimento da “Escola Nova” não aboliu a escola convencional, muito ao con trário. Ela está aí e constitui o padrão dominante nas amplas redes escolares oficiais. A “escola nova” é que constitui exceção,17 orga- nizando-se o título de escolas experimentais ou como nucleos raros, muito bem equipados e destinados a reduzidos grupos de elite. O movimento da “escola nova” não logrou constituir-se em “sistema 16. A análise mencionada baseia-se em Zanotti, L. J., op. cit. 17. Escrevendo por volta de 1930, portanto, no auge do movimento da “Escola Nova” na Europa, Gramsci passou em revista diversas experiên cias de escola renovada, e, ao final, registrou a seguinte anotação “ É útil acompanhar todas estas tentativas, que não são mais do que exceções, mais talvez para ver o que não se deve fazer do que por qualquer outra razão". (Gramsci, A., Os Intelectuais e a organização da Cultura, p. 151). 22 público de ensino” e influenciou apenas superficialmente os proce dimentos adotados nas escolas oficiais. Da mesma forma, os meios de comunicação de massa e a tecnologia do ensino que caracterizam a terceira etapa (a etapa atual, segundo Zanotti) continuam desem penhando papel secundário e influenciando apenas perifericamente o aparelho escolar propriamente dito. Para se compreender esse fenômeno e dissipar a falácia acima aludida, é necessário ultrapassar a superfície dos fatos e vincular o processo educativo às condições estruturais da sociedade que o engendra. Ora, dissemos antes que a organização social em que vivemos adquiriu feições características com a consolidação do poder burguês e a conseqüente formulação de sua visão de mundo. Isto significa que a burguesia, ao conso- lidar-se no poder, se torna não apenas classe dominante mas também classe hegemônica. O signo da hegemonia consiste em que a visão de mundo da classe dominante — o liberalismo — transforma-se em senso comum, vale dizer, a ideologia burguesa passa a ser com partilhada pelo conjunto da sociedade. Tal fato não significa en tretanto, que ficam anulados os antagonismos de classe característicos da sociedade estruturada sobre a base do modo de produção capita lista. Ao contrário, a hegemonia cimenta a dominação, o que quer dizer que a divisão de classes com interesses conflitantes é pres suposta.Nesse quadro a sucessão de etapas (na política educativa) e a correspondente emergência de concepções (de filosofia da edu cação) diferenciadas constituem mecanismos de recomposição acio nados pela classe dominante para garantir sua hegemonia. Assim, a fase da “escola redentora da humanidade” situava a educação em termos explicitamente políticos. A escola era entendida como um instrumento para “transformar os súditos em cidadãos”,18 portanto, um instrumento de participação política, um meio de se implantar a democracia efetiva. Ora, tratava-se de uma proposta que repre sentava os anseios não apenas da classe dominante como também da classe dominada. Fica aí evidente o caráter hegemônico da burguesia, isto é, ela é não só classe dominante mas também diri gente: seus interesses são expressos de modo a abarcar também os interesses das demais classes; a ideologia liberal se torna consenso. Isto não se dá, porém, de modo linear, mas de maneira contraditória, conflituosa. Com efeito, se a participação política das massas con figura um interesse comum a ambas as classes (dominante e domi nada) ao se efetivar, acaba por colocá-las em confronto de vez que os interesses específicos de uma e outra são inconciliáveis em última instância. A expectativa dos representantes da classe dominante era a de que o povo, uma vez alfabetizado, iria apoiar seus programas 18. Zanotti, L. J., op. cit., p. 43. 23 de governo. Isto, porém, não se deu, como ilustra a citação se guinte: “Entre 10 e 20, se difunde a convicção de que apesar da alfabetização universal não resulta tão simples implantar, de ver dade, as formas democráticas de governo. ( . . . ) Começou a se advertir que nem sempre ‘um povo ilustrado escolhia bem os seus go vernantes’ e que se davam casos de povos instruídos, alfabetizados, que apesar de tudo, continuavam ‘elegendo Rosas’, isto é, seguiam a demagogos, aceitavam tiranos e caudilhos, e deixavam de lado os melhores programas de governo, que se lhes ofereciam em cartilhas bem impressas”.19 Tais “programas de governo”, obviamente, eram “os melhores” do ponto de vista dos interesses dominantes. As camadas dominadas, não se identificando com os referidos pro gramas, buscavam, dentre as alternativas propiciadas pelas várias frações da classe dominante em luta pela hegemonia, aquela que acenasse com algum espaço que permitisse a manifestação de seus interesses.20 Desse modo, as decisões do povo não coincidiam com as expectativas das elites: “Algo, em síntese, não havia funcionado bem. Algo não havia saído como se esperava. Algo tinha sido mal feito, talvez”.21 E para corrigir aquilo que não estava “funcio nando bem” desencadeia-se o movimento da “Escola Nova”. A “escola nova” surge, pois, como. um mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante, hegemonia essa ameaçada pela cres cente participação política das massas, viabilizada pela alfabetização através da escola universal e gratuita. Ao enfatizar a “qualidade do ensino”, a “escola nova” desloca o eixo de preocupações do âmbito político (relativo à sociedade em seu conjunto) para o âmbito téc- nico-pedagógico (relativo ao interior da escola), cumprindo, ao mes mo tempo, uma dupla função: manter a expansão da escola nos limites suportáveis pelos interesses dominantes e desenvolver um tipo de ensino adequado a esses interesses. Com isso, a “escola nova”, ao mesmo tempo que aprimorou a qualidade do ensino des tinado às elites, forçou a baixa da qualidade do ensino destinado às camadas populares já que sua influência provocou o afrouxa mento da disciplina e das exigências de qualificação nas escolas 19. Zanotti, L. J., op. cit., p. 44. 20. O trecho abaixo ilustra ao mesmo tempo o comportamento das massas e a leitura que dele faz a elite: “E quando apareceu em cena a figura de Perón, o povo ‘ilustrado’, quer dizer, ao menos alfabetizado, voltou a dar as costas aos programas e aos velhos líderes das bibliotecas e dos periódicos doutrinários e seguiu o impulso irracional de suas paixões. A União Democrática triunfou, não se esqueça, na província de Corrientes, que ostenta um dos primeiros lugares na escala de porcentagem de alfabetiza ção em todo o país. Quer dizer que a relação entre ignorância e peronismo não era, pelo menos, tão direta como se pretendeu”. (ibidem, p. 46). 21. Ibidem, p. 46. 24 convencionais. E quando surgem movimentos22 que intentam uma renovação pedagógica na direção dos interesses populares e começam a se desenvolver críticas à “escola nova” tendentes a incorporar as suas contribuições no esforço de formulação de uma pedagogia po pular,23 o avanço do capitalismo monopolista já oferece condições à política educacional de acionar um novo mecanismo de recompo sição de hegemonia: os meios de comunicação de massa e as tecno logias de ensino.24 As considerações anteriores pretendiam mostrar, por um lado, que não é possível compreender criticamente as diferentes concep ções sem recorrer à concepção dialética. Isto porque, sendo as di ferentes tendências expressão das diferentes forças que contradito riamente tecem o tecido social, elas não podem ser compreendidas senão por referência ao contexto histórico da estrutura da sociedade que as engendra. Por outro lado, as referidas considerações pre tendiam também indicar que a concepção dialética está presente desde o início, isto é, desde a fase da “escola redentora da humanidade”. Subsumindo variadas correntes e movimentos sociais,25 a referida concepção inspira e orienta de modo mais ou menos sistematizado a atuação dos diferentes grupos que se empenham em colocar a edu cação e a escola a serviço das forças emergentes da sociedade, abrin do espaços para a expressão dos interesses populares; buscando tornar de fato de todos aquilo que a ideologia liberal proclama ser de di reito de todos, contribuem para fazer predominar a nova formação social que está sendo gerada no seio da velha formação até agora dominante. Em suma, podemos concluir que há diferentes concepções de inovação, segundo as diferentes concepções de filosofia da educação. Assim, de acordo com a concepção “humanista” tradicional a ino vação será entendida de modo acidental, como modificações super ficiais que jamais afetam a essência das finalidades e métodos pre conizados em educação. Inovar é, pois, sinônimo de retocar super ficialmente. De acordo com a concepção “humanista” moderna, 22. Ver, por exemplo, o movimento Freinet bem como aqueles movi mentos que se desenvolveram a partir das idéias de Paulo Freire. Para um exame sucinto e um confronto entre Freinet e P. Freire, veja-se, Ribeiro, S. A. O., Em Busca de uma Metodologia para uma Educação Libertadora. 23. Ver, por exemplo, Snyders, G., Pedagogia Progressista e Lepape, M. C., Pedagogia e Pedagogias. 24. Observe-se a tendência em se transformar a escola, especialmente aquela dos países subdesenvolvidos, em mercado de consumo de artefatos, freqüentemente obsoletos, produzidos nos países desenvolvidos. Ver, Mattelart, As Multinacionais da Cultura. 25. Ver, a respeito, Beer, M., História do Socialismo e das Lutas Sociais. 25 inovar será alterar essencialmente os métodos, as formas de educar. Já do ponto de vista analítico inovar não será propriamente alterar nem acidental nem essencialmente. Inovar será utilizar outras for mas. Portanto, novo é o outro. Quer dizer, inovação educacional traduz-se pelo uso de outros meios (os “media”) que se acrescentam aos meios convencionais, compõem-se com eles ou os substituem. Deve-se notar que em todos esses casos a inovação é entendida em função do aparelho educacional como tal, sem referência ao con texto. As dificuldades da educação são sempre tributadas ao próprio processo educativo. E em conseqüência,as soluções são preconi zadas no interior desse processo sem que se questione as finalidades da educação uma vez que estas são definidas extrinsecamente, isto é, ao nível da organização social que engendra a organização educa cional. Já para a concepção dialética, inovar, em sentido próprio, será colocar a educação a serviço de novas finalidades, vale dizer, a serviço da mudança estrutural da sociedade. Nos casos anteriores também se levanta a questão do papel da educação no processo de mudança social; entretanto, mudança social é entendida aí em sentido conjuntural e não estrutural; acidental e não essencial. Com base nas conclusões do parágrafo anterior, podemos dis tinguir quatro níveis de inovação em educação, tomando-se como ponto de partida o ensino tradicional:26 a ) São mantidas intactas a instituição e as finalidades do en sino. Quanto aos métodos, são mantidos no essencial, sofrendo, no entanto, retoques superficiais. b ) São mantidas a instituição e as finalidades do ensino. Os métodos são substancialmente alterados. c) São mantidas as finalidades do ensino. Para atingi-las, entretanto, a par das instituções e métodos convencionais, retocados ou não, utilizam-se formas para-institucionais e/ou não-institucio- nalizadas. d ) A educação é alterada nas suas próprias finalidades. Bus cam-se os meios considerados mais adequados e eficazes para se atingir as novas finalidades. Deve-se notar que as experiências inovadoras tenderão a se enquadrar, via de regra, nos segundo e terceiro níveis. O primeiro 26. Entenda-se por ensino tradicional aquele que é ministrado numa instituição — a escola — de acordo com o seguinte esquema: O educador, repositório da cultura, transmite conteúdos ao educando que os capta e assimila. 26 nível, enquanto limite inferior, não constitui, ainda, a inovação pro priamente dita. E o quarto nível, enquanto limite superior, supõe um salto qualitativo que ultrapassa o significado contido na pala vra inovação. Com efeito, as experiências aí enquadradas, mais do que inovar o ensino, intentam colocar a educação a serviço da re volução social. BIBLIOGRAFIA Baudelot, C. e Establet, R., L’école capitaliste en France. Paris, Maspero, 1971. Beer, M., História do Socialismo e das Lutas Sociais. Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, s/d. Bollnow, O. F., Pedagogia e Filosofia da Existência. Petrópolis, Vozes, 1971. Brubacher, J. S., Modem Philosophies of Education. New York, McGraw- -Hill Book Company, 1962. Cunningham, W. F., Introdução à Educação. Porto Alegre, Ed. Globo/ MEC, 1975. Dommanget, M., Los Grandes Socialistas y la Educación: de Platon a Lenin. Madrid, Ed. Fragua, 1972. Dumont, F., Les Idéologies. Vendôme, Presses Universitaires de France, 1974. Gabel, J., La Fausse Conscience. Paris, Les Ed. de Minuit, 1962. Gabel, J., Sociologie de l’aliénation. Vendôme, Presses Universitaires de France, 1970. Gabel, J., Idéologies. Paris, Ed. Anthropos, 1974. 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