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A credibilidade nas políticas públicas.pdf Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 219 João Batista Marques 1. Introdução À guisa de introdução, quero apresentar este modesto trabalho ao profícuo reflexio- nar dos estudiosos do tema que, seguramen- te, terão maior clarividência e poderão acrescentar significativas idéias e opiniões mais abalizadas a respeito da prática da Gestão da Coisa Pública. Não é objetivo deste senão a tentativa de clarificar alguns con- ceitos, tornar mais acessíveis as noções fun- damentais do atuar dos agentes políticos na gestação e gestão dos dinheiros que o povo, conscientemente, delega ao Estado para que este o administre da forma a mais eficaz e eficiente possível. Também, consoante a fi- nalidade deste, é aceitável oferecer subsídios que possam instrumentalizar a consecução de políticas públicas confiáveis e factíveis de avaliação e que possam revigorar e forta- lecer o Estado Democrático de Direito no qual estamos inseridos. A gestão pública moderna tem como substrato a imprescindibilidade de um con- teúdo ético, moral e legal por parte dos ato- res que a informam. É igualmente um com- ponente dela a existência de um conteúdo A gestão pública moderna e a credibilidade nas políticas públicas João Batista Marques é Advogado, Mestre em Estudos Políticos Aplicados pela Fundación Internacional y para Iberoamérica de Admi- nistración y Políticas Públicas, Madrid, Espa- nha, 2001. Sumário 1. Introdução. 2. A gestão pública. 3. A mo- derna gestão pública. 4. A credibilidade nas políticas públicas. 5. Conclusão. Revista de Informação Legislativa220 pleno de elementos tecnológicos que facul- tem a utilização dos mesmos para submi- nistrar à atuação dos intervenientes o po- tencial de eficácia e eficiência que se espera da Administração dos bens públicos. A crença no resultado positivo da políti- ca pública a ser implementada encontra-se em relação de interdependência com a cre- dibilidade de que goza a Administração Pública por intermédio dos seus gestiona- dores. 2. A gestão pública As organizações, inobstante o fato de serem públicas ou privadas, são entidades por intermédio das quais se relacionam pessoas em busca de metas não só indivi- duais, como também metas coletivas, alme- jando com tal propósito atingi-las de ma- neira a alcançar a máxima utilidade e bene- fício a um custo mínimo. O que diferencia, basicamente, a organi- zação do setor público daquela que promo- ve o setor privado para as empresas pode ser vislumbrado por intermédio do poder de coação que tem o Estado em razão do particular. Não se pode ver como traço dis- tintivo entre as duas formas de organização a problemática da estrutura hierárquica, pois tanto uma como a outra utilizam o modelo de mando. A gestão que promove o Estado para prestar os serviços que lhe são acometidos tem caráter singular. Pois, ao mesmo tempo em que as empresas prestam um serviço ao público, pondo ao seu dispor produtos e serviços úteis, possuem esses entes como fim último de sua existência a obtenção de lu- cros a maior quantidade possível. Já com o Estado acontece algo bem diferente com a prestação de seus serviços. E para que um Estado possa bem cumprir com os seus fins, possa funcionar corretamente, os gestores públicos têm que ter primeiro em conta os interesses gerais da sociedade e, por outro lado, devem estar respaldados pela legiti- midade democrática em seu maior grau, bem como dispor dos meios de informação sufi- cientes para gerar com eficiência a gestão que levam a cabo; e para que tudo isso seja possível e mais eficaz, é necessário que haja uma estrutura administrativa interna capaz de apresentar as soluções adequadas para os problemas com que se enfrentam os po- deres públicos na hora de implantar uma política pública. Para que o setor público esteja apto a aten- der as demandas sociais, para que, objeti- vamente, possa funcionar, algumas condi- ções hão que ser postas em evidência, ou seja, a gestão há que ter como prioridade absoluta os interesses da sociedade; que o Estado-gestor tenha informações suficien- tes que possibilitem o exercício pleno de seu poder-dever e, ao mesmo tempo, não se tor- ne demasiado paquidérmico; deve estar o Estado amparado por uma organização interna preparada, e deve ser movimen- tada por uma coordenação adequada, bem como dotada de mecanismos motivado- res e incentivadores em relação ao seu aparato humano. A gestão do setor público, por sua vez, significa o resultado da dedicação ao contí- nuo estudo da organização interna do go- verno, tendo em vista o seu próprio funcio- namento jurídico-político que, em ultima ra- tio, consubstancia a gerência da adminis- tração do interesse comum. Note-se que este estudo deve ter como horizonte os princípios abstraídos da análise teórico-prática resul- tante da ótica da economicidade. 3. A moderna gestão pública Ao falar sobre a modificação da lei de funcionamento do Tribunal de Contas da Espanha, seu presidente pediu a introdu- ção de elementos de gestão moderna: “uns elementos que se poderiam incluir é a cria- ção de um registro de maus gestores”, prele- cionava. O tribunal não só tem que pôr de manifesto que houve má gestão, mas tam- bém deve determinar umas responsabilida- des. Isso não pode ser feito apenas pelos Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 221 controles internos de cada órgão da Admi- nistração do Estado, que depende do gover- no, mas por intermédio do Tribunal de Con- tas, que depende do parlamento. Cabe, então, refletir sobre o que vem a ser a gestão moderna. As modernas práticas de gestão, como suplicado pelo Presidente do Tribunal de Contas Espanhol, são também conhecidas pela expressão inglesa “value for money” e constituem um conjunto de medidas prag- máticas, levadas a efeito pela Administra- ção Pública, que se fundamentam em uma lógica econômica a ser empregada nos va- lores dos serviços públicos. Caracterizam- se por interpretação valorativa, do ponto de vista econômico, do serviço que presta o Estado ao cidadão e tem como traço distin- tivo a gestão por objetivos, avaliados, pois, por medidas de realização; são utilizadas como parâmetro as regras de mercado com todos os seus mecanismos; dá-se primazia à competitividade como forma de dinami- zar a relação custo-benefício dos serviços públicos; e, por fim, promove a eleição de um novo sistema de autoridade, de respon- sabilidades e de contabilidade. Segundo Juan ANTONIO GARDE (2001), “a nova Gestão Pública trata de reno- var e inovar o funcionamento da Ad- ministração, incorporando técnicas do setor privado, adaptadas as suas características próprias, assim como desenvolver novas iniciativas para o logro da eficiência econômica e a efi- cácia social, subjaz nela a filosofia de que a administração pública oferece oportunidades singulares, para me- lhorar as condições econômicas e so- ciais dos povos”. A novel gestão se baseia na informação, cuja essência assume o caráter do conteúdo da ação de ter que ser transmitida, depois de analisada e armazenada, bem como ser liberada, para que possa servir para as fu- turas tomadas de decisões, para novo con- trole e para a subseqüente avaliação. De acor- do com METCALFE y RICHARDS (1987), “a gestão pode definir-se em termos de processamento de informação, di- vidido entre reunir informação, trans- miti-la, analisá-la, armazená-la, libe- rá-la e finalmente empregá-la na to- mada de decisões,no controle e na avaliação” (tradução livre). Um dos pilares essenciais sobre a eficiên- cia no gestionar da coisa pública pode, even- tualmente, ter o seu foco de análise visto sob o ângulo do que significa o Controle para a gestão. A efetividade de um controle da gestão vai depender do conhecimento das finali- dades, dos meios e dos resultados das polí- ticas públicas que se implantam; depende, por outro lado, do valor que se dá à infor- mação obtida com a implantação; e também da correção dos eventuais equívocos que intervenham no desenho da política. O controle deve ser de modo tão amplo que possibilite um feedback completo da ati- vidade proposta na política pública. Deve ter como traço característico um espectro amplo que permita a análise desde o ponto de vista da legalidade do gasto, que possa ter uma resposta baseada na prontidão, para permitir que a avaliação constitua fer- ramenta motivadora de conseqüências po- líticas para os gestores e, forçosamente, deve centrar-se na eficiência do gasto, pois não se admite um gasto do dinheiro público que não seja bem feito, em todos os seus aspectos. Naturalmente, a medida proposta pelo insigne Presidente do Tribunal de Contas de Espanha encontra respaldo nas mais re- centes teorias que justificam a moderniza- ção da gestão pública. Também se podem ouvir ecos do acima enunciado no Informe NOLAN (1999) pu- blicado na Grã-Bretanha em 1995 com o tí- tulo Standards in public life e que constitui um documento de valor inestimável de con- sulta e estudo dos comportamentos éticos dos funcionários públicos e dos agentes políticos. Traz o documento importantes recomendações, inclusive com o estabeleci- Revista de Informação Legislativa222 mento de códigos de condutas éticas para aqueles que trabalham na vida pública. O documento, ainda, aporta relevantes aspec- tos para o tema do Controle, corroborado pelas sábias palavras de Sir David Cooke- sey, Presidente da Comissão de Auditoria daquele país “Cremos que sempre que se gasta o dinheiro público em quantidades significativas, se deveria aplicar os princípios da auditoria pública. Com os princípios da auditoria pública queremos dizer, que se deveria nomear auditores externos que deveriam ser independentes dos organismos aos quais se pratica a auditoria; que a au- ditoria deveria consistir em não so- mente uma auditoria de probidade que comprove que o dinheiro se gasta de forma honesta e correta, mas tam- bém que deveria comprovar que se gaste o dinheiro bem ...; para concluir: os auditores deveriam poder publicar informes no interesse público sempre que creiam que é importante que o público saiba onde houve malversa- ção ou mal uso dos dinheiros públicos. Estes informes no interesse público fun- cionam como uma espécie de freio e equilíbrio muito importantes para as- segurar que se mantenham os altos ní- veis de conduta na vida pública”. No documento formulado pela ORGA- NIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DE- SENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE, está pontualizado que um controle efetivo terá que ter publicação com “informes e contas anuais, incluída informação acerca do papel e compe- tência do órgão, os planos a longo prazo e a estratégia; os membros do órgão, os resultados comparados com os objetivos-chave, objetivo para o ano vindouro, o compromisso com uma administração aberta e métodos para consegui-la; e onde se pode obter in- formação adicional (incluído como se pode inspecionar o registro de inte- resses dos membros de cada órgão e como apresentar reclamações)”. Portanto, fica justificado que a medida proposta pelo ilustre presidente do Tribu- nal Espanhol de Contas tem boas condições para possibilitar um maior controle sobre as contas públicas. Provavelmente, os custos com a supervi- são seriam diminuídos, pois ficaria, na prá- tica, muito mais difícil haver desvio nos gas- tos realizados pelos agentes públicos. Pos- sibilitada estaria uma maior qualidade da gestão, pois a ninguém ocorreria estar dis- posto a assumir o risco político, nem pôr em risco a carreira na administração pública, o que significa uma melhora considerável na disposição de eficiência dos gastos. Por outro lado, a questão não resulta de fácil aplicação nas administrações públicas, em geral, inclusive por uma razão cultural em países de pouca tradição democrática, pelo que comprometeria politicamente mui- tos setores que fazem da atividade pública uma forma de aquisição de recursos para o próprio patrimônio ou para o patrimônio de outrem. Ademais, imagino que existem, e sem- pre haverá, pessoas que não estão compro- metidas com os legítimos interesses da socie- dade, por seus comportamentos que deno- tam um desapreço pelo cumprimento das normas estatuídas no estado democrático de direito. Sem embargo, isso não deve sig- nificar o impedimento para se pôr em mar cha uma cruzada contra os desonestos, os malversadores dos bens públicos, dos que se utilizam da função pública em benefício próprio. A título de resumo, a administração da coisa pública deve estar resguardada de to- dos os tipos de ilicitudes e irregularidades que possam provocar manchas na gestão dos dinheiros públicos, e, para tanto, há que ser dotada de um conjunto de instrumentos relacionados com a gestão desses fundos, que sejam utilizados para definir responsa- bilidades e também expectativas entre as partes interessadas, para que se possa con- Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 223 seguir os resultados que foram coletivamente pactuados. 4. A credibilidade nas políticas públicas Discutir o papel da credibilidade como determinante dos custos de transação do in- tercâmbio político parece estar umbilical- mente ligado ao tema da gestão pública moderna, cujo desafio maior é ser capaz de apresentar um desenvolvimento sustentá- vel, eficaz e eficiente. No mesmo documento formulado pela OCDE, acima referido, está assentada a preo- cupação de muitos de seus membros, que é o sentimento de um “declive manifesto da confiança na administração pública”. Os ci- dadãos parecem estar perdendo a confiança nos responsáveis pela tomada de decisões, com as correspondentes repercussões nega- tivas sobre a legitimidade do governo e das instituições estatais. O denominado “défi- cit de confiança” vem alimentado por es- cândalos divulgados pelos meios de comu- nicação, que abarcam desde atos indevidos dos funcionários até casos de autêntica cor- rupção. Poucos ou nenhum dos países mem- bros daquela organização hão se livrado do escândalo ou da realidade dos fatos. O mes- mo documento conclui que “há uma maior tendência a apoiar-se na promoção de valo- res e o aumento da transparência mediante procedimentos de denúncia e mecanismos de declaração prévia de interesses”. Sir Robert Douglas, ex-ministro de Eco- nomia da Nova Zelândia e impulsor da re- forma gerencialista iniciada por aquele país em 1984, entende que, por melhor que pu- desse estar intencionada a implantação de uma política pública, de nada adiantaria se cercar de todas garantias de aplicação se não estivesse presente o pressuposto da con- fiança que o cidadão deposita nos seus ges- tores governamentais, e nesse particular prelecionava: “A batalha pela coerência e a cre- dibilidade – centrais em toda decisão política submetida à coordenação do governo – é perpétua; nunca se ganha de uma vez por todas. Recuperar a credibilidade pode levar muito mais tempo que ganhá-la pela primeira vez. Se a confiança é quebrada, haveria que dar a seguinte alavancada na refor- ma, e fazê-lo já ( ... ) As pessoas resis- tem às mudanças quando o governo carece de credibilidade, até que o con- traste entre seu comportamento ante- rior e os imperativos das novas medi- das imponham sobre a economia cus- tos importantes que haveriam sido perfeitamente evitáveis”. O problema da credibilidade das políti- cas públicas de um governo está imbricado primacialmente, e de maneira quase inexo- rável, com os seguintes e importantes aspec- tos, a saber: em primeiro lugar, com o con- ceito de estabilidade de suas instituições; em segundo plano, com a configuração en- tre aquilo que é público e aquilo que é priva- do, pois se encontra refletida pela Adminis- tração Pública, cuja síntese constitui o pa- pel de intermediação entre os objetivos últi- mos do Setor Público e os interesses da socie- dade civil; em terceiro lugar, com a consti- tuição de uma espécie de necessidade per- manente de mudança que, ao final e ao cabo, diz respeito ao alcance e à dimensão mes- ma das políticas públicas a serem objeto da intervenção; e, por fim, com os mecanismos sociais plasmados pela pluralidade de ato- res, pela crescente iniciativa dos particula- res e pelo dinamismo dos mercados, nota- damente em um contexto de globalização e em face do crescente desenvolvimento dos diversos segmentos do terceiro setor. A gestão da res publica segundo Juan ANTONIO GARDE (1996): “hoje mais do que nunca gestionar organizações públicas é administrar recursos, informação e decisões atra- vés de mecanismos de integração. A integração de recursos, de equipamen- tos, de objetivos, de departamentos, de níveis de governo, de interesses, de Revista de Informação Legislativa224 fórmulas de regulação, aparece como fator relevante e, tudo isso, alinhado com um permanente processo de ne- gociação. A adaptação, como respos- ta necessária às mudanças não pre- vistas do entorno e a sua complexida- de, necessita de altas quotas de flexi- bilidade, iniciativa e capacidade de integração para responder aos impre- vistos com eficácia. Os paradoxos e os conflitos não são situações excep- cionais, são a cotidianidade em nos- sas decisões organizativas”. E de tudo isso se pode falar em outra carac- terística que resulta ser indispensável para a consecução de uma gestão eficiente e de- sejada pelas pessoas que é a necessidade de, ao implementar determinada ação go- vernamental, esta ser, pois, crível, já que o político deve sempre ter em conta os proble- mas que afligem os cidadãos, para que se possam vislumbrar a opinião e as razões dos mesmos. Faz-se necessário, portanto, que se defina conjuntamente o problema pelo gestor público e pelos clientes usuários, para que seja implantada uma política de- sejável e adequada, resultado do proces- so de gestão democrático. A credibilidade na gestão pública, natu- ralmente, há de resultar como fator determi- nante para o logro da política pública que se pretenda pôr em curso, pois esta necessi- ta ser fiável diante dos exigentes olhos do usuário contribuinte que já não está mais tão despreocupado com a gestão de seus interes- ses confiados aos agentes gestores. Segundo, ainda, Juan ANTONIO GARDE (2001), “A gestão pública neste contexto interdependente aparece como instru- mento ativo da tomada de decisões políticas ao incorporar valores sociais, avaliar incidências das decisões e operar como marco organizado de consenso social, integrando e promo- vendo a participação da sociedade civil nas decisões públicas”. O povo cada vez mais exige gestores go- vernamentais conscientes de seu papel. E a expectativa geral é que as políticas públicas originadas no seio do setor público sejam destinadas a dar soluções adequadas, e não simplesmente gastos desnecessários ao erá- rio. É importante ressaltar que o cidadão não é apenas um consumidor inerte dos servi- ços que presta o Estado; é mais, é uma espé- cie de acionista de uma grande empresa denominada Setor Público. É seu desejo, por conseguinte, estar protegido por normas de revelação e responsabilidade no trato de seus interesses, bens e serviços. O insigne professor Francisco Cabrillo, da Universidade Complutense de Madrid, expõe interessante colocação em torno do tema da credibilidade da gestão pública e fundamenta suas explicações no que deno- mina “Teoria das expectativas razoáveis”, que consiste em termos gerais no que se se- gue: para que uma política pública funcio- ne adequadamente e tenha bom êxito, é ne- cessário e imprescindível que as pessoas creiam que o governo a cumprirá em sua concepção, execução e que o resultado seja, ao mesmo tempo, a um custo mínimo e com o máximo de benefício possível. É o mesmo que dizer que o governo cumpra com o que ficou delineado, programado para a políti- ca pública, pois, se assim não agir, as pes- soas descontam a expectativa de que a me- dida vai até o seu termo final. As políticas públicas que pretendam implantar-se têm que ter o respaldo da con- fiança que as pessoas depositam na admi- nistração pública, para que não haja desne- cessário desperdício dos recursos públicos com um programa que, não contando com a crença que dá a legitimidade, redundará em assombroso fracasso. Exemplo ilustrativo do que se afirma em torno da credibilidade da política de gestão da coisa pública, e que teve êxito, pode ser verificado no âmbito da macroeconomia bra- sileira recente, em que o governo, com o ob- jetivo de promover o equilíbrio orçamentá- rio, visando, acima de tudo, reduzir os gas- tos no setor público, introduziu uma políti- ca, que se fez por demais crível para a socie- Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 225 Bibliografia ANTONIO GARDE, Juan. Gerencia y administración financiera. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1996. ______ Gestión Pública: consideraciones teóricas y operativas. Madrid: FIIAPP, 2001. GONZALEZ-PÁRAMO, J. M. et al. Gestión pública: fundamentos técnicas y casos. Barcelona: Ariel, 1997. METCALFE; RICHARDS. Improving public mana- gement. Londres: Sage Publications, 1987. NOLAN, Lord. Normas de conducta para la vida pú- blica. Madrid: Documentos INAP, 1999. ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DE- SENVOLVIMENTO ECONÔMICO. La ética em el servicio publico. [S. l.]: OCDE, [1- - -?]. PABLOS, Laura de, et al. El control económico del gasto público. Presupuesto y Gasto Público, [S. l.], n. 11. p. 115-142, 1993. VALIÑO CASTRO, Aurelia. Los instrumentos de in- formación para la gestión pública: principales deficien- cias y propuestas de reforma: documentos de tra- bajo. Disponível em: <http://www.ucm.es/ BUCM/cee/doc&98199819.htm>. dade, de contenção dos gastos com salários do funcionalismo público federal, impon- do-lhes um congelamento de salários por mais de sete anos. Outro importante progra- ma que pôs de manifesto a expectativa de credibilidade do povo brasileiro em seus gestores foi o programa de privatização le- vado a efeito nos últimos anos. Deve ser res- saltado que, em princípio, não se acredita- va ser possível, haja vista a posição gover- namental débil, mas que, com o passar dos anos, pode-se confirmar que a intenção era válida e que tinha o mérito de ser verdadeira. 5. Conclusão Neste mundo globalizado de final de século e início de um novo milênio, o Esta- do, como invenção humana recente, nada mais deve significar que aquela instituição personificada em seus agentes políticos e em seus agentes gestores, aquele ente ins- trumental de que se vale a sociedade para promover a mediação dos interesses da co- letividade, objetivando fomentar o seu in- trínseco desenvolvimento. A Administração Pública se move nesse contexto pela delegação, pelo assentimento que depositou a sociedade em seus agentes, para que esses realizem da melhor forma possível o ministério de que todos necessita- mos, uma vez que ao particular não é dada a faculdade nem o dever de realizar o bem co- mum, mas ao Estado, que a este se substituiu. A gestão pública, portanto, e consideran- do o princípio econômico da escassez, em que as demandas sociais são ilimitadas e os recursos financeiros para satisfazê-las são escassos, deve primar pelo gestionamento adequado, eficaz e eficiente de tudo aquilo que for gerado no seio social, sempre tendo em vista o interesse do coletivo. O gestor da coisa pública é, por conse- guinte, um vocacionado para o servir ao social, antes mesmo de qualquer interesse particular; aquele que, alçado à condição de mandatário dos anseios e necessidades da sociedade, deve procurar estar propenso ao atendimento das condições necessárias e suficientes para a consecução do bem-estar do povo. Deve, pois, ser capaz de vislum- brar o entorno, analisá-lo profundamente e propor as modificações que se façam indis- pensáveis, balizando-se pela economicida- de, pela ética, pela moral, pelos bons costu- mes e pelas regras jurídicas imanentes à fun- ção pública. A Democracia e suas dificuldades -Bandeira de Mello.pdf Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 255 1. Democracia formal e democracia substancial Independentemente dos desacordos possí- veis em torno do conceito de democracia, pode- se convir em que dita expressão reporta-se nu- clearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igual- dade de todos os homens e armado ao propósi- to de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou por meio de repre- sentantes seus livremente eleitos pelos cida- dãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde resulta que Estado democrá- tico é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados. Sem dúvida essa noção, tal como expendi- da, maneja também conceitos fluidos ou im- precisos (liberdade, igualdade, deliberações respeitosas destes valores, instituições armadas de maneira a concretizar determinados resul- tados). Sem embargo, é dela – ou de alguma outra que se ressinta de equivalentes proble- matizações – que se terá de partir para esboçar uma apresentação sumária de certas relações entre Estado e democracia, algumas das quais são visíveis e outras apenas se vão entremos- trando a uma visão prospectiva. A democracia e suas dificuldades contemporâneas CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO Celso Antônio Bandeira de Mello é Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo. SUMÁRIO 1. Democracia formal e democracia substancial. 2. A crise dos instrumentos clássicos da democracia. 3. Tentativas de resposta à crise da democracia. 4. Insuficiência dos meios concebidos para salvaguar- da dos ideais democráticos. 5. Possível agravamento da crise da democracia. 6. Globalização e noelibe- ralismo: novos obstáculos à democracia. Revista de Informação Legislativa256 Seja como for – e até mesmo em razão da sobredita fluidez dos conceitos implicados na noção de democracia – ,é conveniente distin- guir entre Estados formalmente democráticos e Estados substancialmente democráticos, além de Estados em transição para a democracia, tendo-se presente, ainda assim, o caráter apro- ximativo destas categorizações. Estados apenas formalmente democráticos são os que, inobstante acolham nominalmente em suas Constituições modelos institucionais – hauridos dos países política, econômica e socialmente mais evoluídos – teoricamente ap- tos a desembocarem em resultados consonan- tes com os valores democráticos, neles não apor- tam. Assim, conquanto seus governantes (a) sejam investidos em decorrência de eleições, mediante sufrágio universal, para mandatos temporários; (b) consagrem uma distinção, quando menos material, entre as funções le- gislativa, executiva e judicial; (c) acolham, em tese, os princípios da legalidade e da indepen- dência dos órgãos jurisdicionais, nem por isso, seu arcabouço institucional consegue ultrapas- sar o caráter de simples fachada, de painel apa- ratoso, muito distinto da realidade efetiva. É que carecem das condições objetivas in- dispensáveis para que o instituído formalmen- te seja deveras levado ao plano concreto da re- alidade empírica e cumpra sua razão de exis- tir. Biscaretti Di Ruffía, em frase singela, mas lapidar, anotou que “a democracia exige, para seu funcionamento, um minimum de cultura política”, que é precisamente o que falta nos países apenas formalmente democráticos. As instituições que proclamam adotar em suas Cartas Políticas não se viabilizam. Sucumbem ante a irresistível força de fatores interferentes que entorpecem sua presumida eficácia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de um lado, os segmentos sociais dominantes, que as con- trolam, apenas buscam manipulá-las ao seu sabor, pois não valorizam as instituições de- mocráticas em si mesmas, isto é, não lhes de- votam real apreço. Assim, não tendo qualquer empenho em seu funcionamento regular, pro- curam, em função das próprias conveniências, obstá-lo, ora por vias tortuosas, ora abertamente quando necessário, seja por iniciativa direta, seja apoiando ou endossando quaisquer desvir- tuamentos promovidos pelos governantes, sim- ples prepostos, meros gestores dos interesses das camadas economicamente mais bem situa- das. De outro lado, como o restante do corpo social carece de qualquer consciência de cidadania1 e correspondentes direitos, não ofe- rece resistência espontânea a essas manobras. Ademais, é presa fácil das articulações, mobi- lizações e aliciamento da opinião pública, quan- do necessária sua adesão ou pronunciamento, graças ao controle que os segmentos dominan- tes detêm sobre a “mídia”2, que não é senão um de seus braços. É que – como de outra feita o dissemos – as instituições políticas destes países “não resultaram de uma maturação his- tórica; não são o fruto de conquistas po- líticas forjadas sob o acicate de reivindi- cações em que o corpo social (ou os es- tratos a que mais aproveitariam) nelas estivesse consistentemente engajado; não são, em suma, o resultado de aspirações que hajam genuinamente germinado, crescido e tempestivamente desabrocha- do no seio da sociedade”. Pelo contrário, suas instituições jurídico- políticas, de regra, “foram simplesmente adquiridas por importação, tal como se importa uma mercadoria pronta e acabada, suposta- mente disponível para proveitoso consu- mo imediato. Nestes Estados recepcio- nou-se um produto cultural, ou seja, o fruto de um processo evolutivo marcado por uma identidade própria, transplan- tando-o para um meio completamente distinto e caracterizado por outras cir- cunstâncias e vicissitudes históricas. É dizer: instituições refletoras de uma dada realidade vieram a ser implantadas de baixo para cima, como se fossem irrele- vantes as diversidades de solo e de en- raizamento”3. Em suma: esses padrões de organização política não se impuseram à conta de autêntica resposta a conflitos ou pressões sociais que os tivessem inapelavelmente engendrado; antes, foram assumidos porque a elite dirigente de sociedades menos evoluídas, de olhos postos nas mais evoluídas, entendeu que se constituí- am em um modelo natural a ser incorporado como expressão de um desejável estágio civili- 1 O fenômeno não é restrito às camadas sociais mais desfavorecidas, mas alcança também a cha- mada classe média. 2 O Brasil é um perfeito exemplo da situação descrita. 3 Representatividade e democracia. In: DIREITO Eleitoral. Belo Horizonte : Del Rey, 1996. P.45. Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 257 zatório. Então, não lhes atribuem outra impor- tância senão figurativa. Daí que, não estando cerceadas por uma consciência social democrá- tica e correlata pressão, ou mesmo pelos even- tuais entusiasmos de uma “opinião pública”, já que as modelam a seu talante, aceitam as instituições democráticas “apenas enquanto não interferentes com os amplos privilégios que conservam ou com a vigorosa dominação política que podem exercer nos bastidores, por detrás de uma máscara democrática, graças, justamente, ao precário estágio de desen- volvimento econômico, político e social de suas respectivas sociedades”4. De outra parte, esta situação inferior em que vivem os Estados apenas formalmente demo- cráticos lhes confere, em todos os planos, um caráter de natural subalternidade em face dos países cêntricos, os quais, compreensivelmen- te, são os produtores de idéias, de “teorias” políticas ou econômicas, concebidas na confor- midade dos respectivos interesses e que se im- põem aos subdesenvolvidos, não apenas pelo prestígio da origem, mas também por toda a espécie de pressões. Sendo conveniente aos países desenvolvidos a persistência desta mes- ma situação, que lhes propicia, em estreita ali- ança com os segmentos dominantes de tais so- ciedades, manejar muito mais comodamente os governos dos países “pseudodemocráticos” em prol de suas conveniências econômicas e polí- ticas5, é natural que existam entraves suplemen- tares para superação deste estágio primário de evolução. Resulta deste quadro que as sociedades de incipiente cultura política para poderem vir a se configurar como Estados democráticos, de- mandariam mais do que apenas reproduzir em suas Constituições os traços especificadores de tal sistema de governo. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar suas instituições básicas de maneira a prevenir ou dificultar os mecanis- mos correntes de seu desnaturamento6 e, de outro – o que ainda seria mais importante –, empenhar-se na transformação da realidade social buscando concorrer ativamente para pro- duzir aquele mínimo de cultura política indis- pensável à prática efetiva da democracia, úni- ca forma de superar os entraves viscerais ao seu normal funcionamento. Uma vez que a democracia se assenta na proclamação e reconhecimento da soberania popular, é indispensável “que os cidadãos tenham não só uma consciência clara, interiorizada e reivin- dicativa deste título jurídico político que se lhes afirma constitucionalmente reco- nhecido como direito inalienável, mas 4 Ibidem, p. 46. 5 Ainda aqui, o Brasil vale como exemplo. Após uma formidável campanha desencadeada pela “mí- dia” em prol de reformas constitucionais, com des- taque para as reformas fiscal e administrativa (sem o que, dizia-se, o País seria “ingovernável”), o Pre- sidente Fernando Henrique Cardoso, em seu primei- ro ano de Governo, animado por esta onda reformis- ta, fez aprovar quatro emendas constitucionais. Cu- riosamente, entretanto, essas quatro emendas, ao invés de se reportarem a problemas internos foram todas – registre-se e sublinhe-se – sintonizadas com aspirações externas ou de agrado internacional. Devem ter sido consideradas as verdadeiramente ur- gentes e importantes. São as seguintes: (a) Emenda Constitucional nº 6, de 15.8.95, por força da qual, de um lado, foram eliminados o conceito de empre- sa brasileira de capital nacional e a preferência que o Poder Público lhe deveria dar quando preten- desse adquirir bens e serviços e, de outro, permitiu- se, assim, que a exploração mineral do subsolo bra- sileiro pudesse ser feita por empresas controladas e dirigidas por pessoas não residentes no País, o que dantes era vedado. (b) A Emenda Constitucio- nal nº 7, também de 15 de agosto do mesmo ano, veio extinguir a garantia de que a navegação de ca- botagem e interior no Brasil fosse, salvo caso de necessidade pública, privativa de embarcações na- cionais, pelo que não há mais óbice constitucional a que seja feita por embarcações estrangeiras; além disto, suprimiu a exigência de que os armadores, os proprietários, o comandante e pelo menos dois ter- ços dos tripulantes de nossas próprias embarcações fossem brasileiros (espantosa a minúcia dos inte- resses alienígenas em excluir até mesmo a cláusula que estabelecia devessem ser brasileiros dois ter- ços dos tripulantes de nossas próprias embarcações). (c) A de nº 8, da mesma data das anteriores, veio para eliminar a previsão de que a exploração de ser- viços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunica- ções fossem explorados diretamente pela União ou por concessão a pessoa sob controle acionário esta- tal. (d) A de nº 9, também da mesma data, para fle- xibilizar as disposições relativas ao monopólio es- tatal do petróleo. 6 Sem embargo, os que acedem ao Poder, esme- ram-se na tendência inversa. Valendo-se de meios próprios e impróprios, que outrora combatia, após ingentes esforços junto ao Legislativo, o Presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu fazer passar emenda constitucional em proveito próprio: a da reelegibilidade para os atuais ocupantes da Chefia do Executivo. Completará, assim, neste particular, Revista de Informação Legislativa258 que disponham das condições indispen- sáveis para poderem fazê-lo valer de fato. Entre estas condições estão, não apenas (a) as de desfrutar de um padrão econô- mico-social acima da mera subsistência (sem o que seria vã qualquer expectati- va de que suas preocupações transcen- dam as da mera rotina da sobrevivência imediata), mas também, as de efetivo acesso (b) à educação e cultura (para al- cançarem ao menos o nível de discerni- mento político traduzido em consciên- cia real de cidadania) e (c) à informa- ção, mediante o pluralismo de fontes diversificadas (para não serem facilmen- te manipuláveis pelos detentores dos veículos de comunicação de massa)”7. Uma vez reconhecido que nos Estados ape- nas formalmente democráticos o jogo espontâ- neo das forças sociais e econômicas não pro- duziu, nem produz por si mesmo – ou ao me- nos não o faz em prazo aceitável – as transfor- mações indispensáveis a uma real vivência democrática, resulta claro que, para eles, os ven- tos neoliberais, soprados de países cujos estádios de desenvolvimento são muito superiores, não oferecem as soluções acaso prestantes nestes úl- timos. Valem, certamente, como advertência con- tra excessos de intervencionismo estatal ou con- tra a tentativa infrutífera de fazer do Estado um eficiente protagonista estelar do universo econô- mico. Sem embargo, nos países que ainda não alcançaram o estágio político cultural requerido para uma prática real da democracia, o Estado tem de ser muito mais que um árbitro de confli- tos de interesses individuais. Cumpre ter presente que acentuadas dispa- ridades econômicas entre as camadas sociais, que já foram superadas em outros países, in- clusive mediante ação diligente do Estado, persistem em todos aqueles de insatisfatória realização democrática. Nestes, a péssima qua- lidade de vida de vastos segmentos da socieda- de, bloqueia-lhes o acesso àquele “mínimo de cultura política” a que se reportava Biscaretti Di Ruffía. Assim, seria descabido imaginar que o papel do Estado pode ser o mesmo em quais- quer deles. De fato, para engendrar os requisitos con- dicionais ao funcionamento normal da demo- cracia ou promover-lhes a expansão, o Estado não tem alternativa senão a de se constituir em um decidido agente transformador, o que su- põe, diversamente do que hoje pode ocorrer nos países que já ultrapassaram esta fase, um de- sempenho muito mais participante, notadamen- te no suprimento dos recursos sociais básicos e no desenvolvimento de uma política promoto- ra das camadas mais desfavorecidas. Na medida em que suas instituições e prá- tica estejam voltadas a este efeito transforma- dor, caberia qualificá-las como Estados em tran- sição para a democracia. Entretanto, se, em despeito do formal obséquio que lhe prestem através das correspondentes instituições clás- sicas, deixarem de consagrar-se à instauração das condições propiciatórias de uma real vi- vência e consciência de cidadania, não se lhes poderá reconhecer sequer este caráter. Ademais, contrariamente ao que pode su- ceder, e vem sucedendo nos Estados substanci- sua paridade com dois outros seus confrades sul- americanos que também fizeram aprovar emendas da mesma natureza: os srs. Fujimori (Peru) e Me- nem (Argentina), os quais, tal como ele, desenvol- vem políticas ao gosto dos organismos internacio- nais controlados pelos países cêntricos, sendo-lhes conveniente que permaneçam no poder o máximo de tempo possível. Note-se que, desde a primeira Constituição Republicana, todas, com exceção da Carta da Ditadura de 1937, proibiam a reeleição do Presidente, perfeitamente cônscias do risco dos Chefes de Executivo usarem seus formidáveis po- deres para assegurar-se a continuidade no mandato sucessivo. Foi o que bem anotou Geraldo Ataliba: “Aliada, portanto, à temporariedade dos mandatos executivos encontra-se, no Brasiil, a consagração tra- dicional do princípio da não reeleição dos seus exer- centes. Querem, destarte, as instituições assegurar que a formidável soma de poderes que a república presidencialista põe nas mãos do Chefe do Executi- vo seja toda ela empregada no benefício da função e jamais em benefício próprio. Não é por outra razão que tal função designa-se no discurso político, por magistratura, dada a impessoalidade e imparciali- dade que hão de caracterizar o comportamento do seu titular.” (República e Constituição. Revista dos Tribunais, 1985. – grifo do autor). 7 Representatividade e democracia. P. 46. Ob- serve-se que, entre nós, os veículos de comunicação a que a esmagadora maioria da população verdadei- ramente acede são o radio e a televisão. Daí que a força, não apenas informativa, mas também alicia- dora ou persuasiva, que possuem é incontrastável. Assim, não por acaso, em contradita frontal às Cons- tituições e às leis, concessões de radio e televisão são outorgadas sem um procedimento licitatório pré- vio; distribuídas como favor. Acresça-se que uma única emissora de televisão detém índices de audi- ência esmagadores, o que lhe proporciona, com uma tecnologia de Primeiro Mundo sobre cabeças do Terceiro Mundo, modelar, a seu talante, a opinião e o pensamento do cidadão comum. Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 259 almente democráticos, naqueles outros que ain- da estão em caminho de sê-lo, quaisquer tran- sigências com a rigidez do princípio da legali- dade, quaisquer flexibilizações do monopólio legislativo parlamentar, seriam comprometedo- ras deste rumo. É que toda concentração de poder no Exe- cutivo, assim como qualquer indulgência em relação a suas pretensões normativas, consti- tuem-se em substancial reforço ao autoritaris- mo tradicional, solidificam uma concepção paternalista do Estado – identificado com a pessoa de um “Chefe” – e alimentam a tendên- cia popular de receber com naturalidade e es- perançoso entusiasmo soluções caudilhescas ou messiânicas. Em uma palavra: atribuir ao Executivo – órgão estruturado em torno de uma chefia uni- pessoal – poderes para disciplinar relações en- tre administração e administrados é, nos paí- ses de democracia ainda imatura, comporta- mento que em nada concorreria para a forma- ção de uma consciência valorizadora da res- ponsabilidade social de cada qual (que é a pró- pria exaltação da cidadania) ou para encarecer a importância básica de instituições imperso- nalizadas como instrumento de progresso e bem-estar de todos. Contrariamente, serviria apenas para reconfirmar a anacrônica relação soberano-súdito8. Assim, em despeito da generalizada tendên- cia mundial de transferir ao Executivo poderes substancialmente legislativos, ora de maneira explícita e sem rebuços, como se fez na França (e logo acomodada pelos teóricos em uma eu- fêmica reconstrução do princípio da legalida- de), ora mediante os mais variados expedien- tes ou através de acrobáticas interpretações dos textos constitucionais, nos Estados que ainda carecem de uma experiência democrática sóli- da, a acolhida destas práticas não é compatível com a democracia, ainda que tal fenômeno haja sido suscitado – reconheça-se – por razões ob- jetivas poderosas, tanto que se impuseram ge- neralizadamente. 2. A crise dos instrumentos clássicos da democracia O tópico do fortalecimento do Poder Exe- cutivo, e correlato declínio do Legislativo, sus- cita reflexões que concernem genericamente ao tema das relações entre Estado e democracia, extravasando em muito o âmbito das conside- rações feitas quanto à especificidade de suas repercussões imediatas nos países onde ainda é débil o enraizamento social da democracia. É sabido que, em despeito da importância atribuível ao Parlamento na história da demo- cracia, importância esta correlata ao declínio do poder monárquico, o Executivo, sucessor do rei, cedo começou a recuperar, em detrimento óbvio das Casas Legislativas e, pois, de um dos pilares da democracia clássica, os poderes nor- mativos que lhe haviam sido retirados9. É cer- to, sem dúvida, que, na presente quadra histó- rica, poderosas e objetivas razões vêm concor- rendo crescentemente para isto. Desde que o Estado, por força da mudança de concepções políticas, deixou de encarar a realidade social e econômica como um dado, para considerá-la como um objeto de transfor- mação, sua ação intervencionista operada por via da Administração e traduzida não só em aprofundamento, mas sobretudo em alargamen- to de suas missões tradicionais, provocaria, como tão bem observou Ernst Forsthoff, uma insuficiência das técnicas de proteção das li- berdades e de controle jurídico, as quais havi- am sido desenvolvidas sob o signo do Estado liberal10. Acresce que, inobstante ameacem vingar e prevalecer concepções neo-liberais, nem por isto reduzir-se-á a intensificação de um con- trole do Estado sobre a atividade individual. É que o progressivo cerceamento da liberdade dos indivíduos, tanto como o fortalecimento do Poder Executivo, arrimam-se também em ra- zões independentes das concepções ideológi- 8 Assim, exempli gratia, o atual Chefe do Poder Executivo brasileiro – no passado, havido como um “intelectual progressista” e hoje associado politica- mente com expoentes da ditadura que dantes com- batia – não se constrangeu em expedir uma “medi- da provisória” à cada 19 horas, conforme registro feito há alguns meses pela Revista Veja. Nisto con- tribuiu eficazmente para a crescente desmoraliza- ção das instituições democráticas entre nós, tanto mais porque ditas medidas têm sido visivelmente inconstitucionais, por ausentes os pressupostos de sua válida produção. 9 Notável a este respeito é o estudo desenvolvi- do por Santa Maria Pastor, em seu Fundamentos de Derecho Administrativo.Madrid : Editorial Centro de Estudio Ramon Areces. 1998. v.1, p 690-714. 10 Traité de Droit Administratif Allemand. Tra- dução da 9. Ed. alemã por Michel Fromont. Bruxe- lles : Établissements Émile Bruyant, p.126-127 e133. Revista de Informação Legislativa260 cas sobre as missões reputadas pertinentes ao Estado. Um outro fator de extrema relevância – o progresso tecnológico – igualmente con- correu e concorre de modo inexorável para es- tes mesmos efeitos. Deveras, o extraordinário avanço tecnoló- gico ocorrido neste século, a conseqüente com- plexidade da civilização por ele engendrada e, correlatamente, o caráter cada vez mais técni- co das decisões governamentais, aliados à ten- dência recente da formação de grandes blocos político-econômicos formalizados, quais mega- Estados, conspiram simultaneamente contra o monopólio legislativo parlamentar e, possivel- mente, a médio prazo, até mesmo contra as li- berdades individuais. Senão, vejamos. Sabidamente, como resultado da evolução tecnológica, as limitadas energias individuais se expandiram enormemente, com o que am- pliou-se a repercussão coletiva da ação de cada qual, dantes modesta e ao depois potencialmen- te desastrosa (pelo simples fato de exponenci- ar-se). Em face disto, emergiu como imperati- vo inafastável uma ação reguladora e fiscali- zadora do Estado muito mais extensa e intensa do que no passado. Notoriamente, o “braço tec- nológico” propiciou gerar, em escala macros- cópica, contaminação do ar, da água, poluição sobre todas as formas, inclusive sonora e visu- al, devastação do meio ambiente, além de en- sejar saturação dos espaços, provocada por um adensamento populacional nos grandes conglo- merados urbanos, evento, a um só tempo, im- pulsionado e tornado exeqüível pelos recursos conferidos pelo avanço tecnológico. Tornou-se, pois, inelutável condicionar e conter a atuação das pessoas físicas e jurídicas dentro de pautas definidas e organizadas, seja para que não se fizessem socialmente predatórias, seja para acomodá-las a termos compatíveis com um convívio humano harmônico e produtivo. Em suma: como decorrência do progresso tecnológico engendrou-se um novo mundo, um novo sistema de vida e de organização social, consentâneos com esta realidade superveniente. Daí que o Estado, em conseqüência disto, teve que disciplinar os comportamentos individu- ais e sociais muito mais minuciosa e extensa- mente do que jamais o fizera, passando a imis- cuir-se nos mais variados aspectos da vida in- dividual e social. Este agigantamento estatal manifestou-se sobretudo como um agigantamento da admi- nistração, tornada onipresente e beneficiária de uma concentração de poder decisório que des- balanceou, em seu proveito, os termos do ante- rior relacionamento entre Legislativo e Execu- tivo. Com efeito, este último, por força de sua estrutura monolítica (chefia unipessoal e orga- nização hierarquizada), é muito mais adapta- do para responder com presteza às necessida- des diuturnas de governo de uma sociedade que vive em ritmo veloz e cuja eficiência máxima depende disto. Ademais, instrumentado por uma legião de técnicos, dispõe dos meios há- beis para enfrentar questões complexas cada vez mais vinculadas a análises desta natureza e que, além disto, precisam ser formuladas com atenção a aspectos particularizados ante a diver- sidade dos problemas concretos ou de suas im- plicações polifacéticas, cujas soluções dependem de análises técnicas – e não apenas políticas. 3. Tentativas de resposta à crise da democracia Estes fatores convulsionantes do quadro clássico da democracia (e não apenas da de- mocracia liberal) suscitaram respostas tenden- tes a neutralizar, ao menos parcialmente, os riscos oriundos da transferência de poderes do Legislativo para o Executivo e da maior expo- sição, individual ou coletiva dos cidadãos, a um progressivo cerceamento das liberdades. A disseminação do parlamentarismo terá sido, possivelmente, o meio de que as socieda- des mais evoluídas lançaram mão, na esfera política, para minimizar as conseqüências do fortalecimento do Executivo. Os Estados Uni- dos da América do Norte constituem-se em exceção confirmadora da regra. Com efeito, ainda dentro dos quadros tradicionais de orga- nização política, não havendo irrompido ou- tras fórmulas de estruturação democrática do Poder e ante a presumida impossibilidade de deter utilmente a aludida transferência de atribuições do Legislativo para o Executivo, a solução terá sido transformar este último em delegado daquele. Ou seja: se o Executivo, ar- mado agora de formidáveis poderes, atuar des- comedidamente, em descompasso com o senti- mento geral da coletividade, é simplesmente derrubado. Ou seja: converte-se o Parlamento, acima de tudo, em um organismo dotado do mais formidável poder de veto: o veto geral; portanto, uma inversão radical, do modesto e provisório poder de veto típico do Executivo. Na esfera administrativa, ganha relevo cres- cente o procedimento administrativo, obrigan- Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 261 do-se a administração a formalizar cuidadosa- mente todo o itinerário que conduz ao proces- so decisório. Passou-se a falar na “jurisdicio- nalização” do procedimento administrativo (ou processo, como mais adequadamente o deno- minam outros), com a ampliação crescente da participação do administrado no iter prepara- tório das decisões que possam afetá-lo. Em suma: a contrapartida do progressivo condici- onamento da liberdade individual é o progres- sivo condicionamento do “modus procedendi” da Administração. Outrossim, no âmbito processual, mas com as mesmas preocupações substanciais de defe- sa dos membros da sociedade contra o poder do Estado, surge o reconhecimento e proteção dos chamados “interesses difusos” ou “direitos difusos”, os quais, em última instância, ao nosso ver, não passam, quando menos em grande número de casos, de uma dimensão óbvia dos simples direitos subjetivos. De fato, não há sen- tido algum em conceber estes últimos com vi- são acanhada, presa a relações muito típicas do direito privado, inobstante categorizado como noção pertinente à teoria geral do direito. 4. Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democráticos Os valiosos expedientes a que se vem alu- dir minimizaram, mas não elidiram, a debili- tação dos indivíduos perante o Estado, assim como o enfraquecimento da interação entre os cidadãos e o Poder Público. O certo é que entre a lei e os regulamentos do Executivo, hoje avassaladoramente invasi- vos de todos os campos (nada importando quan- to a isto que hajam sido autorizados expressa- mente ou resultem da generalidade das expres- sões legais que os ensejam), há diferenças ex- tremamente significativas que, no caso dos re- gulamentos, repercutem desfavoravelmente tanto no controle do poder estatal quanto na suposta representatividade do pensamento das diversas facções sociais. Estas diferenças, a se- guir referidas, ensejam que as leis ofereçam aos administrados garantias muitas vezes superio- res às que poderiam derivar unicamente das características de abstração e generalidade tam- bém encontradiças nos regulamentos. Deveras, as leis provêm de um órgão cole- gial – o Parlamento – no qual se congregam várias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que este órgão do Poder se constitui em verdadeiro cadinho onde se mes- clam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção jurídica termina por ser, quan- do menos em larga medida, fruto de algum con- temperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a aprovação de uma lei, são necessárias transi- gências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma intera- ção, ao invés da mera imposição rígida das con- veniências de uma única linha de pensamento. Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à média do pensamento social predo- minante muito maior do que ocorre quando as normas produzidas correspondem à simples expressão unitária da vontade comandante do Executivo, ainda que este também seja repre- sentativo de uma das facções sociais, a majori- tária. É que, afinal, como bem observou Kel- sen, o Legislativo, formado segundo o critério de eleições proporcionais, ensejadoras justa- mente da representação de uma pluralidade de grupos, inclusive de minorias, é mais demo- crático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária ou, no caso do Parlamenta- rismo, como fruto da vitória eleitoral de um partido. Daí que os regulamentos traduzem uma perspectiva unitária, monolítica, da corrente ou das coalizões partidárias prevalentes. Além disso, o próprio processo de elabora- ção das leis, em contraste com o dos regula- mentos, confere às primeiras um grau de con- trolabilidade, confiabilidade e imparcialidade muitas vezes superior ao dos segundos, ense- jando, pois, aos administrados um teor de ga- rantia e proteção incomparavelmente maiores. É que as leis se submetem a um trâmite gra- ças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam a caminho de se- rem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da im- prensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, difi- culta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis com o interesse público em ge- ral, ensejando a irrupção de tempestivas alte- rações e emendas para obstar, corrigir ou mi- nimizar tanto decisões precipitadas quanto pro- pósitos de favorecimento ou, reversamente, tra- tamento discriminatório, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de grupos ou seg- mentos sociais, econômicos ou políticos. Ade- Revista de Informação Legislativa262 mais, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa Legis- lativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a nor- matização projetada, embargando, em grau maior, a possibilidade de erros ou inconveni- ências provindos de açodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, benéfico ao planejamento razoável da atividade econô- mica das pessoas e empresas e até dos projetos individuais de cada qual. Já os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, ensancham as ma- zelas que resultariam da falta deles. Oposta- mente às leis, os regulamentos são elaborados em círculo restrito, fechado, desobrigados de qualquer publicidade, libertos, então, de qual- quer fiscalização ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz em função da di- retriz estabelecida pelo Chefe do Governo ou de um grupo restrito, composto por seus mem- bros. Não necessita passar, portanto, pelo em- bate de tendências políticas e ideológicas dife- rentes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia e assim também pode ser alterado ou suprimido. Tudo quanto se disse dos regulamentos em confronto com as leis, deve-se dizer – e com muito maior razão – das medidas provisórias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto é, descompasso flagrante com seus pressupostos constitucionais e com a teratológica reitera- ção delas. 5. Possível agravamento da crise da democracia Ao que foi dito cumpre acrescer – e é este possivelmente o aspecto mais importante – que, na atualidade, está ocorrendo um distanciamen- to cada vez maior entre os cidadãos e as ins- tâncias decisórias que lhes afetam diretamen- te a vida. A claríssima tendência à formação de blocos de Estados, de que a Europa é a mais evidente demonstração, por exibir um estágio qualitativamente distinto das ainda prodrômi- cas manifestações, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento de fórmulas políti- cas organizatórias muito distintas das que vi- goraram no período imediatamente anterior e, como dito, um distanciamento quase que ine- vitável entre o cidadão e o Poder. Com efeito, as decisões tomadas pelos Conselhos de Mi- nistros Europeus (os quais não são investidos por eleições para este fim específico) possivel- mente afetam de maneira mais profunda a vida de cada europeu do que as tomadas pelos res- pectivos Parlamentos nacionais, isto é, pelos que receberam mandato expresso para lhes re- gerem os comportamentos (O chamado “Par- lamento Europeu”, distintamente do que o nome sugere não é um órgão legislativo). Procederia concluir que um número cada vez menor de pessoas decide sobre a vida de um número cada vez maior delas e que os mo- delos tradicionais, sobre os quais se assentou e se procurou assegurar a democracia, estão se esgarçando. Os valores liberdade, igualdade, assim como a realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institu- cionais da democracia representativa), encon- tram-se, hoje, provavelmente, muito mais res- guardados enquanto valores incorporados à cultura política do ocidente desenvolvido do que propriamente pela eficiência dos vínculos formais das instituições jurídico-políticas. Dito de outro modo: a convicção generalizada de que liberdade e igualdade são bens inestimáveis atua como um freio natural sobre os governan- tes e permite que a positividade concreta de tais valores se mantenha ainda incólume, con- quanto as instituições concebidas para assegu- rá-los já não possuam mais as mesmas condi- ções de eficácia instrumental que possuíram. Para usar uma imagem exacerbada, é como se já houvesse se iniciado uma caminhada em direção a um “despotismo esclarecido”. Poder-se-ia entender que os valores próprios da democracia encontram-se tão profundamente enraizados na consciência coletiva de socieda- des politicamente mais evoluídas que se consti- tuiriam em estágio já definitivamente incorpo- rado, tornando impensável a possibilidade de qualquer retrocesso, independentemente da in- trínseca eficiência das instituições concebidas para lhes oferecer o máximo de respaldo. Nada garante, entretanto, o otimismo desta suposição. Ainda permanece verdadeira a clás- sica asserção de Montesquieu: “todo aquele que tem poder tende a abusar dele; o poder vai até onde encontra limites”11. A História da huma- nidade, inobstante a progressiva evolução em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episódios ainda muito recentes, que a preva- lência de idéias generosas ou o sepultamento de discriminações odiosas e preconceitos de toda ordem mantém correlação íntima com as 11 De l’ esprit des lois. Paris :Garnier 1869. P.142. Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 263 situações coletivas de bem-estar e segurança. E duram tanto quanto duram estas. No patamar do humano existem algumas constantes de comportamento social comuns à generalidade da esfera animal. Tal como os ir- racionais, que, uma vez saciados, convivem bem com as demais espécies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acica- tados pelo temor, também as coletividades hu- manas, quando ameaçadas pela presumida in- segurança ou pelo risco ao seu bem-estar, subs- tituem suas convições e ideais mais elevados pelas pragmáticas (e já agora especificamente humanas) racionalizações e atacam com zoo- lógica violência. Surtos de racismo, de recha- ço ao estrangeiro, de nacionalismo exacerba- do, de inconformismo com as levas migratóri- as advindas de um refluxo do colonialismo ou simplesmente da descomposição política, eco- nômica ou social de outras sociedades – quais- quer deles já prenunciados nas tendências de grupos políticos ou sociais em algumas socie- dades européias – tanto como o recente e de- vastador consórcio bélico dos principais Esta- dos desenvolvidos contra um país árabe, o Ira- que (cujo ditador, quanto a isto, em nada é di- ferente dos demais, distinguindo-se deles ape- nas em que se revela mais resistente aos inte- resses das grandes potências e mais preocupa- do na defesa dos pertinentes ao próprio País), demonstram exemplarmente a precariedade das idéias que não se encontrem alicerçadas, simul- taneamente, em interesses e em instituições formais hábeis para mantê-las consolidadas. À vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, é difícil prenun- ciar, nestes umbrais do próximo milênio, o que seus albores reservam para a sobrevivência da democracia e, muito mais, portanto, para as possibilidades dos países subdesenvolvidos acederem às condições propiciatórias de uma democracia substancial. É que os subdesen- volvidos têm sido e são, naturalmente, meros peões no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional; logo, por defi- nição, sacrificáveis para o cumprimento dos objetivos maiores dos que movem as peças. 6. Globalização e neoliberalismo: novos obstáculos à democracia Talvez se possa concluir, apenas, que as condições evolutivas para aceder aos valores substancialmente democráticos, como igualda- de real e não apenas formal, segurança social, respeito à dignidade humana, valorização do trabalho, justiça social (todos consagrados na bem concebida e mal-tratada Constituição Bra- sileira de 1988), ficarão cada vez mais distan- tes à medida que os governos dos países subde- senvolvidos e dos eufemicamente denomina- dos em vias de desenvolvimento – em troca do prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos – entreguem-se incondicional- mente à sedução do canto de sereia proclama- dor das excelências de um desenfreado neoli- beralismo e de pretensas imposições de uma idolatrada economia global. Embevecidos nar- cisisticamente com a própria “modernidade”, surdos ao clamor de uma população de miserá- veis e desempregados, caso do Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este cântico mo- nocórdio, monolítica e incontrastavelmente entoado pelos interessados. Diga-se de passagem que é incorreta a su- posição de que tanto a chamada “globalização da economia” (com as feições que, indevida- mente, se lhe quer atribuir como inerências), quanto o “neoliberalismo”, constituam-se sim- plesmente em um estágio evolutivo determi- nado tão só por transformações econômicas inevitáveis e, conseqüentemente, que encam- pá-las nada mais significa senão adotar uma atitude racional de atualização do pensamento para mantê-lo conformado ao que há de inco- ercível no desenvolvimento histórico. Esta for- ma de “interpretar” o fenômeno presente é – como freqüentemente ocorre – apenas uma for- ma astuciosa de valorizar o próprio ideário e de desacreditar, por antecipação, as contesta- ções que se lhes possam fazer. É que traz con- sigo, implícita, ou mesmo explicitamente, a prévia qualificação dos que se lhe oponham, como ultrapassados (“dinossauros”). Em rigor, elas nada mais são que “teoriza- ções” pobres, racionalizações, elaboradas para justificar interesses meramente políticos – e destarte contendíveis – dos países cêntricos e das camadas economicamente privilegiadas, em cujo bojo e proveito foram gestadas. Com efei- to, o modesto acervo de idéias atualmente di- fundidas “sub color” de verdade científica uni- versal nada mais é que o uso de nomenclatu- ras novas encobridoras de experiências velhas, destinadas a consagrar um simples movimen- to de retorno, quando menos parcial, ao sécu- lo passado, ao statu quo precedente à emer- gência do chamado Estado Social de Direito ou Estado Providência. Revista de Informação Legislativa264 Relembremos que a partir de meados do século XIX e sobretudo no início do atual ir- rompeu e expandiu-se um movimento de in- conformismo das camadas sociais mais desfa- vorecidas cujas condições de vida, como é no- tório, eram extremamente difíceis. Fazendo eco a tais eventos, eclodiram, no campo das idéias e sucessivamente das realizações políticas, manifestações, de maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes – comunismo e social democracia – insurgentes ambas contra o quadro político social da época. O Manifesto Comunista (1848) e assim tam- bém ulteriormente Encíclicas papais (“Rerum Novarum”, 1891, “Quadragesimo Anno”, 1931) são expressivas de uma visão então crí- tica e renovadora. Os resultados concretos des- te panorama de insurgência, em suas duas ver- tentes, foram, respectivamente, de um lado, a Revolução Comunista de 1917 e implantação de tal regime na Rússia e, de outro a expansão da social democracia. Em sintonia com esta segunda vertente, consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os “Di- reitos Sociais”, na Constituição mexicana, tam- bém de 1917 e ao depois na Constituição ale- mã de Weimar em 1919, disseminando-se pelo mundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte que a preocupação em fazer do Estado um agen- te de melhoria das condições das camadas so- ciais mais desprotegidas expande-se ao longo de todo o século presente, explicando porque passou a ser referido como Estado Social de Direito ou Estado Providência. De outra parte, o regime comunista, ano a ano se alastrava, implantando-se em novos países. Paralelamen- te, o colonialismo e seu sucessor, o imperialis- mo das grandes potências do Ocidente, inicia um processo de agonia, lenta, mas contínua, afligido também por censuras crescentes ao excessivo desequilíbrio entre as nações (Encí- clicas “Mater er Magistra”, 1961, “Pacem in Terris”, 1963 e “Populorum Progressio”, 1967). Foi, desde o início, o temor de que se ex- pandisse a concepção comunista – radicalmente antitética à sobrevivência do capitalismo – com sua capacidade de atrair as massas insatisfei- tas, ou quando menos de alimentar os ativistas que as mobilizavam, o que forneceu o necessá- rio combustível para a implantação e dissemi- nação do Estado Social de Direito. Com efeito, a História não registra gestos coletivos de ge- nerosidade das elites para com as camadas mais carentes (ainda que seja pródiga em exemplos dela no plano individual). Ora bem, assim como o receio do comunismo propiciou a irrupção do Estado Providência, sua falência na União Soviética e no Leste Europeu – e sinais precur- sores de seu declínio no Extremo Oriente – está a lhe determinar o fim. A simples cronologia dos eventos e das cor- relatas idéias o demonstram de modo incon- tendível. O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo. Tão logo fracassa o co- munismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais, agora “recauchuta- das” com o rótulo de “neo”, propondo liminar- mente a eliminação ou sangramento das con- quistas trabalhistas e direitos sociais, do mes- mo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado sob a designação aparentemen- te técnica de “globalização”. Não há nisto, como é óbvio, coincidência alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de interes- se dos países dominantes e das camadas soci- ais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalços que lhes impuseram as con- cessões feitas no curso do século presente, em- penham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do século passado e início deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes. No momento, parece que não há mais nú- cleo algum capaz de contender esta rebarbati- va unaninimidade que se autolisonjeia com o qualificativo de moderna, categorizando como ultrapassados quaisquer que ainda não hajam renunciado ao trabalho de pensar criticamen- te. A bipolaridade mundial, dantes existente (mas finda com a implosão da União Soviéti- ca), com o confronto de idéias provindas dos dois centros produtores de ideologias antagô- nicas, ensejava, além da área de fricção, de per si desgastadora de seus extremismos, um natu- ral convite à crítica de ambas, na trilha da sín- tese resultante de tal dialética. A momentânea ausência das condições objetivas para um de- bate consistente possivelmente é, para os paí- ses subdesenvolvidos, um dos piores dramas deste final de milênio e um dos maiores obstá- culos a que venham, finalmente, a abicar em regimes efetivamente democráticos. A função administrativa.pdf Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 7 Vladimir da Rocha França 1. Introdução Um ponto crucial na teoria geral da ciência do direito administrativo é o tema da função administrativa. Partindo das categorias da teoria geral do direito referentes à teoria das normas, tenta-se aqui traçar um conceito de função administrativa compatível com o nosso di- reito positivo. As considerações desse ensaio devem ser visualizadas dentro da perspectiva dog- mática da ciência jurídica, tomando-se o direito positivo pátrio como sua base empí- rica. São as normas jurídicas, e o prisma que as mesmas oferecem para os eventos do mundo social, o foco de convergência das reflexões que seguem. Advertimos que a óptica adotada neste trabalho apenas constitui um corte metodo- lógico, cujo objetivo é surpreender o plano do dever-ser no fenômeno da ação adminis- trativa. 2. Sobre as competências Numa perspectiva juspositivista, os atos jurídicos podem ser visualizados como de- A função administrativa Vladimir da Rocha França é Mestre em Di- reito Público pela UFPE. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Professor de Di- reito Administrativo da Universidade Poti- guar. Advogado em Natal/RN. Sumário 1. Introdução. 2. Sobre as competências. 3. A repartição das funções do Estado. 4. A im- portância da lei. 5. Identificação da função ad- ministrativa perante as demais funções do Estado. 6. Conceito de função administrativa. Revista de Informação Legislativa8 clarações prescritivas que consubstan- ciam o exercício da prerrogativa de criar regra jurídica (Cf. FRANÇA, 2004, p. 37- 40)1. Essa prerrogativa constitui um poder jurídico. Ao lado dos poderes jurídicos, há os di- reitos subjetivos. Ambos representam facul- dades, que são conferidas às pessoas – su- jeitos de direito – pelo ordenamento jurídi- co (Cf. ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1998, t. 1, p. 433-444)2. O direito subjetivo é efeito de um ato jurí- dico individual3. Consiste na exigibilidade de uma ação ou omissão, devida pelo sujei- to obrigado ao sujeito titular, em torno de um bem jurídico, assegurada pela aplicabi- lidade e executoriedade de uma sanção, ou pela possibilidade de invalidação de qual- quer regra jurídica que lhe afronte (Cf. KELSEN, 1991, p. 151-158; VILANOVA, 2000, p. 224-230). O poder jurídico nasce, por sua vez, em uma regra jurídica geral, sendo reconheci- da a todo aquele preencha as condições de sua outorga, no bojo de um ato jurídico in- dividual (Cf. MELLO O., 1979, v. 1, p. 429; JÈZE, 1928, p. 37-40; VILANOVA, 2000, p. 147-150). Representa a exigibilidade, em prol do sujeito titular, de sujeição das esfe- ras de direito das demais pessoas aos efei- tos jurídicos produzidos pelo exercício des- sa prerrogativa4. No poder jurídico, não há referência a um bem jurídico específico, mas a uma classe de bens jurídicos. Embora o exercício do poder jurídico possa ser sujeito à caducidade ou decadên- cia, o poder jurídico não é retirado do orde- namento jurídico por tal razão (ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1998, t. 1, p. 435). Outra característica interessante: o poder jurídico só deve ser modificado por regra jurídica geral, atingindo todos os indivíduos nela investidos (Cf. ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1998, t. 1, p. 435; JÈZE, 1928, p. 40; MELLO O., 1979, v. 1, p. 430). Entretanto, os poderes jurídicos não podem ser modificados a pon- to de sua extinção, se assegurados constitu- cionalmente. Os direitos e os interesses não são a mes- ma coisa. Os interesses são fins fixados pe- los indivíduos que demandam, para sua satisfação, alguma conduta humana. Sem atividade material, não há efetivação do in- teresse (Cf. ALESSI, 1966, t. 1, p. 267-269). Mediante o exercício dos direitos, há a preparação ou determinação das atividades materiais necessárias para a concretização dos interesses, dentro dos limites estabele- cidos pelo ordenamento jurídico. Pelos po- deres jurídicos, os indivíduos criam regras ou conservam os direitos subjetivos e deve- res jurídicos já criados. Os particulares criam, pelo exercício do poder jurídico da autonomia da vontade, as regras individuais que entendem necessá- rias para a efetivação de seus interesses pri- vados, isto é, de interesses que apenas dizem respeito aos seus portadores, isoladamente considerados. Esse poder jurídico é exercido mediante atos jurídicos de direito privado. Nem todos os interesses podem ser atin- gidos mediante as regras criadas por esse poder jurídico, em razão do grau de rele- vância dessas finalidades. Esses interesses são os interesses públicos. Os interesses públicos representam a dimensão pública dos interesses do indiví- duo, que é delimitada pelos princípios jurí- dicos (Cf. MELLO O., 2001, p. 57-66; DALLARI, 1999, p. 78). São os interesses que os indivíduos mantêm como membros da sociedade, e segundo grau de evolução histórica desse corpo social. Não são os in- teresses públicos estranhos ao indivíduo, mas sim os interesses que o mesmo compar- tilha com os demais membros da coletivida- de que integra. Todo poder jurídico ligado à concretiza- ção de um interesse público denomina-se competência (Cf. MELLO O., 2001, p. 110). Em razão da prevalência do interesse público sobre o interesse privado, quem exer- ce o poder público é colocado em posição de privilégio e supremacia em relação aos de- mais sujeitos de direito (Cf. MELLO O., 2001, p. 30-33). Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 9 Cabe ao Estado realizar os interesses públicos, distintos com os interesses do Es- tado como sujeito de direito: os interesses secundários ou interesses privados do Es- tado. O alcance do interesse privado do Estado só é regularmente admissível quan- do conciliado com o interesse público a ser efetivado no caso concreto. Uma vez que a competência destina-se ao interesse público, e que este não é exclu- sivo de quem exerce tal poder, toda a ativi- dade estatal tem a natureza de função. Pois o Estado existe para dar materialidade a interesses que não se encontram na sua es- fera privada de interesses, para alcançar fi- nalidades que não lhes são exclusivas. No sistema do direito positivo brasileiro, isso é cristalino, haja vista o enunciado do art. 3o da Constituição Federal: “Art. 3o. Constituem objetivos fun- damentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a margi- nalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. As competências são indisponíveis, ou seja, inalienáveis, intransmissíveis (em re- gra) e irrenunciáveis pelos seus titulares, apenas podendo ser modificadas mediante regras jurídicas. Tal característica se impõe em razão do caráter funcional que é ineren- te a essa classe de poderes jurídicos. O exercício da competência determina a sujeição das esferas jurídicas das pessoas ao que estabelece, mas a regularidade desse desempenho depende da conciliação com interesse público que justifique a outorga do poder e, bem como, do respeito aos direitos constitucionais dos cidadãos. Em outras palavras, não representam as competênci- as apenas poderes jurídicos, mas sim pode- res funcionais, “deveres-poderes”, cujo exer- cício só é validamente sustentável se orien- tado à satisfação do interesse público e den- tro da juridicidade. A expressão “dever-poder” não deixa de indicar a síntese de duas relações jurídicas (Cf. SANTI, 2000, p. 113): (i) a relação entre a pessoa jurídica estatal e o agente público, na qual este tem o dever de exercer as suas prerrogativas em prol do interesse público, sob pena de responsabilização nas esferas civil, administrativa e penal; e, (ii) a relação entre o agente público e os cidadãos, em que estes têm o dever de reconhecer e respeitar o exercício da competência. Portanto, o sistema do direito positivo determina os limites positivos e negativos quanto ao modo e fim do exercício das com- petências. A técnica de atribuição de pode- res ilimitados é juridicamente inaceitável5. As pessoas estatais6 recebem competên- cias, redistribuídas internamente em ór- gãos. Ao titular desse órgão – o agente público – caberá a tarefa de emitir a declaração prescritiva a ser imputada à pessoa estatal. Acompanhando a lição de Celso Antônio
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