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Palavras em ato: A Literatura de autoria feminina na Idade Média Luciana Calado Deplagne (DLCV/PPGL/UFPB) Resumo Esta comunicação pretende tecer um breve panorama da literatura medieval de autoria feminina, focando nosso interesse em alguns topos recorrentes nos textos das escritoras: a autorrepresentação; a enunciação feminina como necessidade; a representação das relações de gênero; a busca por uma espiritualidade desviante. Nossa discussão será baseada nos estudos de teóricas feministas, como Luiza Lobo, Ria Lemaire, Rita Schmidt, Rivera-Garretas, Michelle Perrot, etc, que vêm refletindo sobre Literatura de autoria feminina e a importância desse resgate para um repensar da nossa História Literária. Palavras-chave: Autoria feminina, Literatura Medieval, Gênero 1 INTRODUÇÃO As obras medievais de autoria feminina durante muito tempo estiveram ausentes das prateleiras das livrarias e bibliotecas, das antologias literárias, dos livros didáticos e, consequentemente, da memória literária dos/das leitores/leitoras ocidentais. O silenciamento das vozes femininas na História da Literatura é responsável pela importante lacuna existente em relação a pesquisas e estudos de obras escritas por mulheres no período medieval. Sabe-se que tal abismo bibliográfico não é exclusivo do período medieval, mas poderia se estender pela história literária em geral. Não há dúvidas de que o estudo desse importante veículo de transmissão da cultura que é a Literatura não pode ser desvinculado da dinâmica das práticas sociais e das variadas formas de controle às quais ele está sujeito, na medida em que, como já salientou Jonathan Culler (1999:54), “a concordância de critério de excelência literária foi historicamente comprometido por critérios não literários, envolvendo raça e gênero, por exemplo”. Desse modo, a pesquisa que desenvolvemos no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB se origina a partir da discussão sobre o processo de canonização, nos questionando com Roberto Reis (73) “quem articulou o cânon – de que posição social falava, que interesses representava, qual seria seu público-alvo e qual a sua agenda política, qual o seu estatuto de classe, de gênero ou étnico, por quais critérios norteou a sua eleição ou rejeição de obras e autores.”. A presente comunicação tem como foco principal resgatar obras de algumas das primeiras escritoras ocidentais, identificando aspectos recorrentes em seus escritos, tais como: auto- 287 representação, corpo feminino, relações de gênero. Utilizamos como categoria de análises as discussões teóricas do pensamento feminista contemporâneo, acreditando ser uma via possível de compreensão das relações de poder e de gênero que estão inseridas nos escritos medievais, em particular, naqueles de autoria feminina. Nessa perspectiva teórica de recuperação da memória feminina, julgamos fundamental que tal resgate surja a partir de suas próprias vozes, através da recuperação de textos e espaços de mulheres. Trata-se, como bem define Rita Schmidt (1999: 37), “de dar visibilidade à autoria feminina e assim, reconstituir a voz da mulher e suas representações no contexto da natureza gendrada da autoria/paternidade cultural que funda o prestígio da função autoral.” Ancorando-se em pesquisas de medievalistas que já se debruçaram nesse estudo da produção literária de autoria feminina e ou de eu-lírico feminino na Idade Média, tais como Ria Lemaire, Maria do Amparo Maleval, Anne Paupert, Pierre Bec, Eliane Vienot, Peter Dronke, Régine Pernoud, Odile Deplanche, Rivera Garretas, buscaremos identificar espaços de participação da mulher através da escrita, na qual ela representa seu mundo exterior, revela seus anseios e se auto-representa. Dessa forma, mais do que enfatizar a vitimização da mulher nesse período da história, nosso trabalho prima pelo reconhecimento da resistência feminina aos preceitos sociais impostos ao longo da história. A fim de tecer nas próximas linhas uma breve exposição desses escritos femininos repartimos nossa comunicação em três expressões distintas da escrita feminina na Idade Média, focalizando as relações de gênero através da auto-representação e da representação feminina do corpo. Primeiramente, os relatos auto-biográficos femininos, em seguida a poesia lírica das trobairitz e por último o tratado médico de Trotula de Salerno, De mulierum passionibus. 2 RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS NOS ESCRITOS FEMININOS MEDIEVAIS O papel da mulher na história vem sendo um dos tópicos de interesse nos estudos medievais, como uma forma de resgatar as minorias silenciadas pela historiografia tradicional. No caso da Idade Média, as fontes históricas utilizadas no estudo da participação feminina ao longo da história são quase exclusivamente documentos literários e religiosos de autoria masculina, o que levou a concepção generalizada de um “Mâle Moyen Âge”(Idade Média masculina), difundida por George Duby, um dos historiadores de maior impacto sobre os 288 medievalistas. No entanto, alguns pesquisadores vêm reavaliando tal ponto de vista através da análise de fontes de autoria feminina, e de uma releitura dos documentos históricos. Em 1998, a revista feminista CLIO dedicou um número exclusivo a essa reavaliação da perspectiva dubyniana, intitulado “George Duby et l´histoire des femmes”. Em um dos artigos, “Pour une revision du “Mâle” Moyen Âge de George Duby”, Any Livingstone chega à seguinte conclusão: “Les femmes n’étaient pas « en marge ». Elles n’étaient pas l’« autre ». Non, elles étaient des individus bien installés au coeur des rapports structurant la société. Et l’important est bien là : que les chercheurs, désormais, « entendent » les voix des femmes médiévales et puissent les restituer au récit du passé”i. Virginia Woolf, já no início do século XX, alertara também para essa distância entre a condição feminina na vida real e a imagem da mulher representada na literatura de autoria masculina, confrontando esses dois espaços patriarcais: o real e o ficcional: ... Se a mulher só existisse na ficção escrita pelos homens, poder-se-ia imaginá- la como uma pessoa de maior importância: muito versátil, heróica e mesquinha; admirável e sórdida; infinitamente bela e medonha ao extremo; tão grande quanto o homem e até maior, para alguns. Mas isso é a mulher na ficção. Na realidade, (...) ela era trancafiada, surrada e atirada pelo quarto. (WOOLF, 1985, p.56) Tais observações nos apontam para a importância de se buscar as vozes femininas do passado para a reconstituição da história das mulheres, a partir de suas próprias representações, tanto do mundo exterior, quanto de si mesmas. É evidente que toda representação e auto-representação estão inseridas em um contexto determinado, em um certo “lugar” de onde se fala, pois todo ser está de certa forma condicionado ao seu meio, ao seu período histórico e seus valores, mesmo quando se colocam em posição contrária. Tal delimitação espacial nos parece um importante instrumento de análise na abordagem da experiência feminina da escrita na Idade Média, na medida em que nos ajuda a reconhecer o processo de busca de uma identidade nas representações e auto-representações das escritoras medievais. Nossa análise segue o conceito de “lugar” definido pela lingüista e psicanalista francesa Luce Irigaray, sendo o qual “cada um(a) tem um lugar, este lugar que envolve apenas aquele ou aquela, que é a capa primeira de seu corpo, sua identidade corporal, sua delimitação, igualmente em relação aos outros corpos”ii. 289 Uma leitura de textos de autoria feminina deixa-nos rapidamente perceber alguns traços identificadores dessa escrita, tanto naforma quando no conteúdo. Uma das marcas de distinção encontra-se na auto-representação feminina, seja em textos autobiográficos, seja na expressão do eu-lírico nos textos poéticos. É comum observar nas suas auto-representações a autocrítica, a auto-depreciação das escritoras medievais, podendo ser interpretadas como consciência da condição de inferioridade em que a mulher se encontrava em relação ao papel social ocupado pelo homem. Elas estavam, de certa forma, penetrando em um universo quase exclusivamente masculino, o da escrita. A identificação desse lugar de subordinação ocupado pela mulher é ainda mais importante na análise de textos especificamente auto-biográficos. Como ressalta a historiadora Rivera Garretas (1995:160), En un género literario cuyo canon ortodoxo ha sido desde hace muchos siglos tan acusadamente masculino como éste, es obvio que las mujeres que han querido contar por escrito su vida han entrado, en tanto que género (femenino), en condiciones de una precariedad especial. Precariedad, porque la experiencia de vida de ellas no es, por principio, considerada representativa de la experiencia universal o significativa de la época, y porque el público a quien va dirigido el texto autobiográfico va a juzgarlo (y las autoras son conscientes de ello) a través del prisma deformante de la feminidad de la autora. Mas, apesar da escrita autobiográfica apresentar-se como um gênero literário dedicado às confissões e experiências dos protagonistas históricos masculinos, é notória a presença da autoria feminina desse gênero literário como forma de reivindicar um espaço de registro da participação feminina no contexto da sociedade patriarcal. Temos, por exemplo, na Baixa Idade Média, os relatos autobiográficos espirituais de Hildegarde de Bingen(séc XII), Christiana de Stommeln (séc. XIII-XIV), Juliana de Norwich (séc XIV), as memórias de Leonor López de Córdoba(séc XIV-XV), o relato de vida da sua contemporânea Christine de Pizan, e a autobiografia de Margery Kempe, escrita em 1432. Se a auto-depreciação e humildade marcam os relatos dessas escritoras, como uma tomada de consciência de sua condição de inferioridade da mulher na vida real, podemos observar nas entrelinhas que se trata, sobretudo, de um jogo estratégico encontrado para se adentrar no espaço literário masculino. Em alguns casos, como no da escritora Christine de Pizan, na sua obra mais célebre “A Cidade das Damas”, tal manobra revela-se na atitude alternante de se apresentar ora como uma “simples escolar ignorante [...] pobre de espírito”, ora de valorizar-se através da elevada erudição e conhecimento amplo de obras literárias, da história, da filosofia, 290 demonstrado ao longo da obra, assim como através das vozes de outros personagens, como o da dama alegórica Razão que no início da narrativa explica o motivo da sua aparição e de ela ter sido escolhida entre todos para construir a cidade utópica em defesa das mulheres: “não aparecemos a qualquer um. Mas tu, minha cara Christine, pelo grande amor que dedicaste à busca da verdade em teu longo e assíduo estudo, que te fez retirar-te do mundo, tornando-te solitária, mereceste nossa amizade e mostraste-te digna de nossa visita”iii. Tal recurso de autoafirmação fica evidente no final da obra quando a própria Christine descorre a favor da modéstia: “quanto mais uma pessoa abunda em virtudes, mais demonstra humildade e gentileza”. 3 OUSADIA E AUTO-REPRESENTAÇÃO NA POESIA LÍRICA DAS TROBAIRITZ Interessante observar expressões distintas de auto-representação dentro da própria literatura feminina do período, em decorrência da modalidade literária. Na lírica trovadoresca, por exemplo, a valorização feminina presente na poesia do “fin´amors” através da representação de vassalagem do trovador em relação à Dama é igualmente visível na poesia das trobairitz, as poetisas trovadoras do século XII e XIII. Conserva-se, portanto, a descrição positiva que põe em valor as características físicas e morais feminina. Nesse aspecto, observamos na poesia das trobairitz uma auto-representação feminina bastante valorizadora, como observamos na estrofe, reproduzida abaixo, da Condessa de Diaiv. Trata-se de um dos mais célebres poemas dessas poetisas, o único cuja melodia foi também conservada. A chantar m’er de so qu’ieu non volvria, Tan me rancur de lui cui sui amia, Car ieu l’am mais que nuilla ren que sia: Vas lui no .m val merces ni cortesía Ni ma beltatz ni mos pret ni mos sens, C’atressi .m sui enganad’e trahïa Com degr’ esser, s’ieu fos desavinenz. Ponho-me a cantar o que não queria, Queixo-me tanto de quem sou a ‘amiga’ Pois amo-o mais que tudo nesta vida: Mas nada o toca: dó, nem cortesia, Nem m´alma, beleza e valores tantos Por ele sou enganada e traída, Assim como se me faltassem encantos. Constituída de monólogos amorosos (cansós, sirventès, coblas) e de diálogos poéticos (tensons), a poesia das trobairitz representa uma forma de expressão feminina em resposta à literatura dos trovadores. Apesar de enquadrar-se no mesmo código do amor cortês, o conjunto dos poemas de trobairitz apresenta um estilo mais livre com o maior grau de subjetividade em 291 relação aos poemas de seus colegas trovadores e trouvères. Segundo a opinião de alguns pesquisadores, como Pierre Bec, Meg Bogin, John Baldwin, Beretta Spampinato, Jeanroy, sobre a produção poética dessas mulheres, tais diferenças e a essência mesmo das duas poesias (de autoria masculina e de autoria feminina) se justificam na própria motivação de suas escritas. Enquanto os troubadours encontravam no fazer poético uma maneira de ascensão social, uma motivação de ordem profissional, as trobairitz encontravam nessa atividade um meio de expressão, de se tornarem visíveis, portanto, razões pessoais. O código sócio-poético trovadoresco é utilizado pelas mulheres trovadoras de maneira invertida na representação da situação erótica habitual, na medida em que são as poetisas que assumem o papel ativo do prejador, que rogam o amor do seu amante (cavalier ou amic) escolhido por suas qualidades (proeza). Observa-se, no entanto, uma sensualidade mais marcante na lírica feminina, assim como uma linguagem mais direta, mais clara, como vemos nos versos da poetisa Castelosa: “[...]Que pòis dòmna s´avé / D´amar, prejar deu be / Cavalièr, s´em lui vê / Proez´e vassalatge.” (“Pois, quando uma dama decide amar, é ela quem deve pedir o amor do cavaleiro, se ela vê nele proeza e qualidades cavalerescas”). Ou ainda os ousados versos da trobairitz Condessa de Dia: “Bela amics, avinenz e bos, Quora´us tenrai em mon poder, Et que jagués ab vos um ser, Et que´us dès um bais amores? Sapchatz, gran talan n´auria Que´us tengués em luòc del marit [...]”, “Belo amigo, charmoso e cortês, quando ter-vos-ei em meu poder E que me deitarei ao vosso lado, E que possa dar-vos beijo de amor? Saiba que muito prazer teria De vos ter no lugar do meu marido[...]” Na introdução da antologia de poemas, Chants d´amour des femmes-troubadours, traduzidos para o francês moderno, Pierre Bec(1995:40) faz menção a essa distorção do código de amor cortês trovadoresco: Enquanto que para o trovador, o desejo eternamente insaciado (ao menos em princípio), se junta às tensões sociais que o dinamizam, fixando-se à imagem idealizada de uma mulher altiva e inacessível, para a grande dama poetisa, a sensualidade continua mantendo um valor bem preciso de prova de amor. Vê-se, por outro lado, a discrição (celar), valor fundamental nos trovadores, não parece existir na poesia das trobairitz que, ao contrário, falam de seu amor com ostentaçãov.Além das cansós, outra modalidade poética cultivada pelas trobairitz foi a tenson, que consiste em um debate poético entre dois interlocutores, no qual cada um defende em estrofes alternadas sua opinião sobre um tema estabelecido. Desse gênero, doze nomes de trobairitz 292 aparecem nos manuscritos como autoras ou co-autoras: N´Alaisina Iselda, Na Caraenz, Almuc de Castelnou, Iseult de Capion, Na Felipa, Guilheima de Rosers, Na Lombarda, Maria de Ventadorn, Isabela et Domna H. De acordo com o enunciador a tenson pode ser classificada como: - tenson de mulher x mulher (3 cantigas); - tenson mista homem x mulher (7 ou 8 cantigas), das quais, tanto as trobaritiz quanto os troubadours têm a autoria referenciada nas biografias dos trovadores, chamadas “vidas”. - tensons fictícias, onde apenas o interlocutor masculino é identificado e a dama é anônima. Entre as tensons provençais, encontra-se um corpus de canções obscenas, designada pelo especialista Patrice UHL (2008), de “contra-textos”, na medida em que se revela a anti-doxa cortês. “Tal corpus durante muito tempo ignorado do público devido a censura intelectual foi desenterrado pela onda de renovação dos estudos medievais nos anos 1970-1980. Na França, Réné Nelli (Nelli, 1977) e Pierre Bec (Bec, 1984) contribuíram ativamente ao redescobrimento dessa “parte maldita” do trobar1. As composições de teor mais ousado, são atribuídas, quase unanimemente pelos medievalistas, a uma criação exclusivamente masculina, mesmo quando o eu-lírico é feminino, como no caso da tenson “Montan e uma dama”. Transcrevo a seguir a primeira estrofe dessa tenson, iniciada pela Dama, e que revela bem o teor satírico de alusão sexual explícita: Eu veing vas vos, Seingner, fauda levada, Venho a vós, Senhor, saia levantada, c’auzit ai dir c’avetz nom En Montan, Pois falam que vos chamais Montador c’anc de fotre non fui asassonada, Como de foder, nunca estou saciada, et ai tengut dos anz un capellan, Em dois anos, tive um monsenhor e sos clergues e tota sa masnada ; Seus sacerdotes e toda a cambada! et ai gros cul espes e trameian Tenho um bumbum grande e bem tentador e maior con que d’autra femna nada2. E no mundo boceta maior não há Apenas a pesquisadora Angélica Rieger (apud. Uhl, 2008) inclui entre poemas de trobairitiz tal tenson, alegando que 3 : 1 « Ce corpus longtemps ignoré du public du fait de la censure savante a refait surface à la faveur du renouvellement des études médiévales dans les années 1970-1980. En France, René Nelli (Nelli, 1977) et Pierre Bec (Bec, 1984) ont activement contribué à la redécouverte de cette « part maudite » du trobar » UHL, Patrice. “La Tenson entre Montan et une dame(P-C 306. 2) :petit dialogue obscène entre amics fin »s. In : Expressions. Université de la Reunion, n°31. 2008, pp. 67-85. Cf:www.reunion.iufm.fr/Recherche/Expressions/31/Uhl.pdf 2 Tradução literal : Venho a vós, Senhor, saia levantada,/Pois, ouvi dizer que sois chamado de Seu Montador,/Como de foder, não estou nunca saciada,/Durante dois anos, tive um padre da capela, /Seus sacerdotes e toda sua cambada,/Tenho um bumbum grande e rechonchudo que vibra,/E a vagina maior do que a de qualquer outra mulher. 293 [..] considerando a execução oral e musical, do ponto de vista da performance,- que tem relevante papel nessa composição -, a introdução de uma voz feminina só tem sentido se tais versos forem declamados por uma mulher. Desse modo, não é inconcebível que uma mulher também tenha sido co-responsável da composição. Acerca da grande resistência em se considerar de autoria feminina composições de caráter provocador, com alusões sexuais diretas, o pesquisador Patrice Uhl argumenta que: 4 Não é medieval a idéia de que as mulheres não empregaria uma linguagem obscena ou escatológica em poesia. É o produto de uma representação da mulher tipicamente burguesa; uma imagem clichê da “fragilidade” e “delicadeza” femininas, convergindo com o pudor e o recato que “por natureza” são característicos das damas. Uma imagem anacrônica conforme as normas da sociedade, morais e religiosas da burguesia bem pensante do século XIX! Quanto à obscenidade, inclusive aquela enunciada pelas mulheres, tudo indica que nas cortes medievais, occitanas ou não, era tão cultivada quanto no meio popular. 5 QUESTÕES DE AUTORIA E APROPRIAÇÃO Não só em relação às cantigas das trobairitz, mas grande parte de peças cujo eu-lírico era feminino, como no caso das cantigas de amigo galego-portuguesas, teve a autoria atribuída aos trovadores. Repensando a historiografia literária, a pesquisadora Ria Lemaire(2011:09) desenvolveu um precioso estudo sobre as origens desse gênero literário medieval, chegando a seguinte conclusão: “Essas cantigas eram reminiscências de uma grande arte da canção de mulher dialogada, canções cantadas e improvisadas por mulheres como canções de trabalho e de dança. Elas pertenciam a uma tradição poética arcaica, ininterrupta, da mulher compositora e poetisa indo-europeia até o século XX e que, no momento em que começa em Portugal a transição da oralidade para a escrita, 3 […] dans le cadre d’une exécution orale et musicale – elle a certainement joué un rôle important dans cette pièce – l’introduction d’une voix féminine dans ce texte n’a de sens que si, du point de vue de la « performance », cette voix est réellement interprétée par une femme. Mais si c’est une femme qui récite de tels vers, il n’est plus inconcevable qu’elle soit aussi co-responsable dela composition » 4 L’idée que des femmes ne sauraient employer un langage obscène ouscatologique en poésie n’est pas une idée médiévale. C’est le produit d’une représentation de la femme typiquement bourgeoise ; une image clichée de la « fragilité » et de la « délicatesse » féminines, allant de pair avec la pudeur et la retenue qui « par nature » siéraient aux dames. Une image anachronique conforme aux normes sociétales, morales et religieuses de la bourgeoisie bien pensante du XIXe siècle ! Quant à l’obscénité, y compris énoncée par des femmes, tout indique que les cours médiévales, qu’elles fussent occitanes ou non, en étaient aussi friandes que le petit peuple. 294 foram – como nos outros países da Europa! – transcritas, ou manuscritas, ou copiadas ou imitadas por poetas ou escribas masculinos, aos quais, em seguida, elas foram atribuídas. Neste caso, segundo a pesquisadora, houve uma dupla apropriação da autoria, uma vez que: “o gênero de canções dialogadas, cuja ars poética exige que elas sejam cantadas e improvisadas por – ao menos duas – mulheres alternadamente, foi atribuído a Autores-escritores individuais. E houve apropriação da origem, no sentido em que canções que nasceram no contexto de uma cultura ao mesmo tempo regional – a da Galiza e do Norte de Portugal – e “internacional” – a indo-europeia – foram apropriadas e anexadas por uma Nação como primeiro capítulo da sua História da Literatura (portuguesa). O problema da desautorização da voz feminina faz parte do processo de seleção e de exclusão, como fator que opera na canonização de escritores e obras. Historicamente assentado por valores ligados ao patriarcalismo, à moral cristã, à elite dominante, entre outros, o processo de canonização reproduz necessariamente as relações de poder e interesses de classe e de gênero constituintes de um determinado período histórico. Gostaria, por fim, de resgatar um outro exemplo representativo dessa desapropriaçãode autoria feminina de maneira arbitrária. Dessa vez, em pleno Renascimento, período em que, paralelamente aos avanços da economia, do direito, e o advento da imprensa, intensificaram-se as ações misóginas, como a caça às feiticeiras, apoiadas no discurso oficial de médicos, juristas, teólogos e literatos acentuador da desvalorização e diabolização da mulher. Foi precisamente neste contexto que a escritora e médica Trotula de Rugiero, do século XI, teve sua obra atribuída a um autor. Também mestra da Scuola Medica Salernitana, na Itália, Trotula viveu em Salerno e foi bastante reconhecida pelo seu trabalho até o final da Idade Média. Seu tratado de receitas terapêuticas e de medicina preventiva, em especial no que se refere à clínica obstetrícia e ginecológica é composto de três partes: um prólogo, uma parte sobre sua prática de cura de doenças relacionadas à obstetrícia, do antes, durante e depois do parto. A terceira parte compreende uma série de receitas de cosméticos para o embelezamento do corpo. A pesquisadora Carmen Grilo Diniz(2001)vi, ressalta que: O trabalho das médicas de Salerno, assim como de outras autoras médicas medievais, como Hildegarde de Bingen (1098-1173), nos levam a relativizar - pelo menos como regra geral - a escuridão do período no que diz respeito às mulheres e às prática cultas de cuidados com a saúde. Um dos dados que produz mais estranhamento é a diferença de concepção sobre a sexualidade e a 295 reprodução nos escritos dessas autoras, em contraste com os de outros religiosos. A menstruação é chamada de "flores" por Trótula e Hildegarde, em analogia às flores das árvores, essenciais à produção dos frutos; ambas insistem no especial cuidado para o bem-estar das mulheres menstruadas. Para Brooke (1995:39), a prescrição do uso do ópio no parto por Trótula é especialmente interessante, porque na época o alívio das dores, em especial as do parto, era expressamente proibido pela Igreja. Ainda que o trabalho de Hildegarde seja pontuado de referências à serpente e ao pecado, tanto ela quanto Trótula escreveram com bastante otimismo sobre o desejo e o prazer sexual, o que é espantoso tanto para a época quanto pelo fato de a primeira ter chegado a ser canonizada - talvez porque parte dos seus escritos estiveram desaparecidos até o século passado. Bastante difundida sua obra durante o medievo, traduzida em vários idiomas, Trótula teve, no entanto, sua identidade questionada no século da invenção da imprensa, pelo seu primeiro editor, em 1544. Período de intensa hostilidade em relação ao “segundo sexo”, o Renascimento negou a autoria dessa obra a uma mulher, alegando o elevado grau de cientificidade impossível para a sabedoria feminina da época. Apenas pesquisas recentes do final do século XX é que vão devolver a Trotula o reconhecimento da autoria de sua obra De mulierum passionibus. A esse respeito, é valioso o estudo da historiadora espanhola Rivera Garretas Trotula: el cuerpo de mujer (1995:107), onde ela busca identificar, através da crítica feminista contemporânea, os elementos construtores da categoria “corpo feminino” no texto De mulierum passionibus. Si el cuerpo es, en buena parte, lenguaje, discurso, y nuestro lenguaje es un lenguaje fálico, masculino, donde situar a Trotula y a su tratado sobre el cuerpo de las mujeres? Seguramente no es casualidad que haya sido tan sinuoso el camino que salía de Trotula y su cuerpo y su palavra de mujer negados desde el siglo XVI, y que llega a un final de etapa en el cual las mujeres tenemos alguna posibilidad de recuperar cuerpo y lenguage. En outras palavras, no es precisamente por una “ironia de la historia” que durante cuatro siglos se han acumulado esfuerzos para cancelar la incómoda identidad de Trotula. Una apoyatura filosófica compleja en que asentar con cierta autonomia un lenguaje de y en torno al cuerpo femenino la ofrece el pensamiento de la diferencia sexual. 6 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES Nesse breve estudo sobre a produção feminina na Europa feudal tentamos resgatar traços da escrita feminina e suas próprias representações da realidade, através de formas distintas de expressões: relatos auto-biográficos, a versão feminina da poesia lírica trovadoresca e até um 296 tratado médico. Acreditamos, pois, que o conhecimento de tais obras constitui o único meio de colocar abaixo representações errôneas e nocivas, às quais, ao longo da história os escritos femininos foram expostos. Seus escritos nos dão prova da importância da palavra feminina como meio das mulheres participarem do processo histórico, manifestando sua visão de mundo em uma sociedade tradicionalmente androcêntrica. Estudar o passado, então, para compreender as raízes da dominação que deram suporte às relações hierárquicas de gênero através do tempo e identificar as marcas de resistência constituintes do discurso e trajetória feminina. . REFERÊNCIAS BEC, Pierre. Chants d’amour des femmes-troubadours : Trobairitz et « chansons de femme ». Paris: Stock/Moyen Âge, 1995. BOGIN, Meg. Les femmes troubadours. Paris: Collection femmes, 1978. CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999. DE PIZAN. La Cité des Dames. Trad. Thérèse Moreau et Eric Hicks. Paris: Stock/Moyen Age, 2000. 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WOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. NOTAS: i « As mulheres não estavam “na margem”. Elas não eram o “outro”. Não, elas eram indivíduos bem instalados no coração das relações estruturadoras da sociedade. E o importante está exatamente aí: que os pesquisadores a partir de agora, “escutem” as vozes das mulheres medievais e possam resgatá-las nas narrativas do passado » LIVINGSTONE, Amy. « Pour une révision du « mâle » Moyen Âge de Georges Duby (États-Unis) », Clio, numéro 8/1998, Georges Duby et l'histoire des femmes, [En ligne], mis en ligne le 3 juin 2005. URL : http://clio.revues.org/document318.html. Consulté le 30 juin 2008. ii "Chacun (e) a un lieu, ce lieu-ci qui n'enveloppe que lui ou elle, qui est l'enveloppe première de son corps, son identité corporelle, sa limite, également par rapport aux autres corps." Luce Irigaray. Éthique de la différence sexuelle. Paris: Minuit, 1984, p. 43. iii “[...] nous n´apparissons pas à n´importe qui. Mais toi, ma chère Christine, par le grand amour que tu as porté à la recherche du vrai dans cette longue et assidue étude, qui t´a retirée du monde et rendue ainsi solitaire, tu as mérité notre amitié et t´es montré dingne de notre visite...” DE PIZAN. La Cité des Dames.Trad. Thérèse Moreau et Eric Hicks. Paris: Stock/Moyen Age, 2000, p.42. iv - Todas as referências de poemas de trobairitz aqui citadas foram retiradas da obra de Pierre Bec Chants d´amour des femmes-troubadours. Ver referência completa na Bibliografia. v « Alors que pour l´homme-troubadour, le désir éternellement inassouvi (du moins en príncipe), joint aux tensions sociales qui le dynamisent, se fixe sur l´image idéalisée d´une dame hautaine et inaccessible, pour la grande dame poétesse, la sensualité continue de maintenir une valeur bien précise de preuve d´amour. On voit d´autre part que la discrétion (le celar), valeur fondamentale chez les troubadours, ne semble pas exister chez les trobairitz qui, au contraire, parlent de leur amour avec ostentation ». vi -Tese de doutorado, intitulada Entre a técnica e os direitos humanos - possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, (2001) disponível no seguinte endereço eletrônico: www.mulheres.org.br/parto/fundocorpo.htm 298
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