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A EPISTEMOLOGIA DE KUHN

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A EPISTEMOLOGIA DE KUHN
Fernanda Ostermann
Instituto de Física, UFRGS
Porto Alegre RS
Resumo
Neste trabalho, é apresentada a epistemologia proposta por Kuhn, a partir de alguns conceitos principais de sua teoria: paradigma, ciência normal, revolução científica, incomensurabilidade. O modelo kuhniano encara o desenvolvimento científico como uma seqüência de períodos de ciência normal, nos quais a comunidade científica adere a um paradigma. Estes períodos, por sua vez, são interrompidos por revoluções científicas, marcadas por crises/anomalias no paradigma dominante, culminando com sua ruptura. A crise é superada quando surge um novo candidato a paradigma. Ao comparar o antigo e o novo paradigma, Kuhn defende a tese da incomensurabilidade. Algumas implicações de suas idéias para o ensino de Ciências são também discutidas.
I. Introdução
O trabalho de Thomas Kuhn (1977, 1978) é um marco importante na construção de uma imagem contemporânea de ciência. Suas idéias sobre o desenvolvimento científico são precursoras - a primeira edição de seu primeiro livro A estrutura das revoluções científicas é de 1962 - época na qual autores como Lakatos (1989) e Feyerabend (1989) ainda não haviam publicado suas obras principais, e Popper (1972) não tinha sido traduzido nos países de língua inglesa.
Ao propor uma nova visão de ciência, Kuhn elabora críticas ao positivismo lógico na filosofia da ciência e à historiografia tradicional. Em síntese, esta postura epistemológica superada pelo modelo kuhniano acredita, entre outras coisas, que a produção do conhecimento científico começa com observação neutra, se dá por indução, é cumulativa e linear e que o conhecimento científico daí obtido é definitivo. Ao contrário, Kuhn encara a observação como antecedida por teorias e, portanto, não neutra (apontando para a inseparabilidade entre observações e pressupostos teóricos), acredita que não há justificativa lógica para o método indutivo e reconhece o caráter construtivo, inventivo e não definitivo do conhecimento. Esta posição, mais tarde, configurar-se-á como o que existe de consenso entre os filósofos contemporâneos da ciência. Em verdade, nos dias de hoje, assistimos a um rico e controvertido debate entre os diferentes modelos de desenvolvimento científico (modelos como o de Popper (1972), Lakatos (1989), Feyerabend (1989), Toulmin (1972), Laudan (1977), entre outros), mas, ao mesmo tempo, podemos reconhecer que cada um, a seu modo, representa uma oposição à postura empirista-indutivista.
Em particular, para Kuhn a ciência segue o seguinte modelo de desenvolvimento: uma seqüência de períodos de ciência normal, nos quais a comunidade de pesquisadores adere a um paradigma, interrompidos por revoluções científicas (ciência extraordinária). Os episódios extraordinários são marcados por anomalias / crises no paradigma dominante, culminando com sua ruptura.
Um possível esquema para o modelo de ciência kuhniano seria o seguinte:
Fig. Erro! Argumento de opção desconhecido.: O modelo kuhniano
A seguir, discutiremos os conceitos centrais da teoria de Kuhn apresentados na Fig. 1, mais detalhadamente.
II. Paradigma
Certamente, paradigma é o conceito mais fundamental de sua teoria. No entanto, após a publicação do Estrutura das revoluções científicas , grande polêmica instalou-se em torno de seu significado. Em 1965, quando é realizado o Seminário Internacional sobre Filosofia da Ciência em Londres - evento marcante para a discussão do tema - Kuhn recebe várias críticas.
Masterman (1979), por exemplo, constatou a ambigüidade apresentada pela palavra paradigma na sua primeira obra: o termo fora utilizado por Kuhn de vinte e duas maneiras diferentes. Reconhecendo as confusões induzidas pela apresentação original, Kuhn esclarece seu significado no Posfácio - 1969 (Kuhn, 1978).
O termo paradigma tem um sentido geral e um sentido restrito. O primeiro foi empregado para designar todo o conjunto de compromissos de pesquisas de uma comunidade científica (constelação de crenças, valores, técnicas partilhados pelos membros de uma comunidade determinada). A este sentido, Kuhn aplicou a expressão matriz disciplinar . Disciplinar porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; matriz porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada (Kuhn, 1978, p. 226). Os principais tipos de componentes de uma matriz disciplinar são:
- generalizações simbólicas: assemelham-se a leis da natureza. Algumas vezes, são encontradas sob a forma simbólica. Por exemplo, F=ma; outras vezes, são expressas em palavras - a uma ação corresponde uma reação igual e contrária.
- modelos particulares: são modelos ontológicos ou heurísticos que fornecem as metáforas e as analogias aceitáveis. Por exemplo, as moléculas de um gás comportam-se como pequenas bolas de bilhar elásticas movendo-se ao acaso.
- valores compartilhados: são valores aos quais os cientistas aderem - predições devem ser acuradas; predições quantitativas são preferíveis às qualitativas; qualquer que seja a margem de erro permissível, esta deve ser respeitada regularmente numa área dada. Existem também valores que devem ser usados para julgar teorias completas: devem ser simples, dotadas de coerência interna, plausíveis, compatíveis com outras teorias disseminadas no momento.
- exemplares: este último tipo de paradigma refere-se ao sentido restrito desta palavra ao qual Kuhn atribuiu grande importância. Exemplares são as soluções de problemas encontrados nos laboratórios, nos exames, no fim dos capítulos dos manuais científicos, bem como nas publicações periódicas, que ensinam, através de exemplos, os estudantes durante sua educação científica. Descobrindo, com ou sem assistência de seu professor, uma maneira de encarar um novo problema como se fosse um problema que já encontrou antes, o estudante passaria a dominar o conteúdo cognitivo da ciência que, segundo Kuhn, estaria não nas regras e teorias, mas antes, nos exemplos compartilhados fornecidos pelos problemas. Uma ilustração deste ponto de vista é dada por Kuhn através de uma generalização simbólica - a segunda Lei de Newton - F=ma (Kuhn, 1978, p. 233). Os estudantes aprendem, quando confrontados com uma determinada situação experimental, a selecionar forças, massas e acelerações relevantes. Isto ocorre à medida que passam de uma situação problemática a outra e enfrentam o problema de adaptar a forma F=ma ao tipo de problema: queda livre, pêndulo simples, giroscópio. Uma vez percebida a semelhança e reconhecida a analogia entre dois ou mais problemas distintos, o estudante pode estabelecer relações entre os símbolos e aplicá-los à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado eficácia. A forma F=ma funciona como instrumento, informando ao futuro cientista que similaridades procurar, e sinalizando o contexto dentro do qual a situação deve ser examinada. Dessa aplicação resulta a habilidade para ver a semelhança entre uma variedade de situações, o que faz com que o estudante passe a conceber as situações problemáticas como um cientista, encarando-as a partir do mesmo contexto que os outros membros do seu grupo de especialistas.
III. Ciência normal
Ciência normal é a tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma, ou seja, modelar a solução de novos problemas segundo os problemas exemplares . A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos (Kuhn, 1978). Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma. A ciência normal restringe drasticamente a visão do cientista, pois as áreas investigadas são certamente minúsculas. Mas essas restrições, nascidas da confiança no paradigma, revelam-se essenciais para o desenvolvimento científico.Kuhn (1978) faz uma metáfora que relaciona a ciência normal à resolução de quebra-cabeças. Quebra-cabeça é uma categoria de problemas que servem para testar a engenhosidade ou habilidade do cientista na resolução de problemas. Para ser classificado como quebra-cabeça, um problema deve não só possuir uma solução assegurada, mas também obedecer a regras (ponto de vista estabelecido; concepção prévia) que limitam tanto a natureza das soluções aceitáveis como os passos necessários para obtê-las.
Uma comunidade científica, ao adquirir um paradigma, adquire também um critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito, podem ser considerados como dotados de uma solução possível. Os problemas - tipo quebracabeça - são os únicos que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver (Kuhn, 1978). Uma das razões pelas quais a ciência normal parece progredir tão rapidamente é a de que seus praticantes se concentram em problemas que somente a sua falta de habilidade pode impedir de resolver.
A imagem de ciência normal, concebida por Kuhn, é a de uma atividade extremamente conservadora, na qual há uma adesão estrita e dogmática a um paradigma (Zylbersztajn, 1991). Mas essa rigidez da ciência normal é, para Kuhn, condição necessária para o progresso científico. Para ele, somente quando os cientistas estão livres de analisar criticamente seus fundamentos teóricos, conceituais, metodológicos, instrumentais que utilizam é que podem concentrar esforços nos problemas de pesquisa enfrentados por sua área. Ao debater um possível critério de demarcação (critério que distinguiria a ciência da pseudociência ou metafísica) com Popper, Kuhn (1979) coloca que a ciência se diferencia de outras atividades por possuir um período de ciência normal , no qual haveria um monismo teórico (existência de um único paradigma). Segundo Kuhn (1979):
"É precisamente o abandono do discurso crítico que assinala a transição para uma ciência."
Alguns exemplos de ciência normal apresentados por Kuhn (1978) são: a astronomia durante a Idade Média (paradigma ptolomaico); a mecânica nos séculos XVIII e XIX (paradigma newtoniano); a ótica no século XIX (paradigma ondulatório); a Teoria da Relatividade no século XX (paradigma relativístico).
Kuhn (1978) classifica ainda os problemas que constituem a ciência normal em três tipos:
1. Determinação do fato significativo
Com a existência de um paradigma, fatos empregados na resolução de problemas tornam-se merecedores de uma determinação mais precisa, numa variedade maior de situações. Como exemplos de determinações significativas de fatos, Kuhn (1978) cita: na Astronomia - a posição e a magnitude das estrelas, os períodos dos eclipses das estrelas duplas e dos planetas; na Física - comprimentos de onda e intensidades espectrais, condutividades elétricas. As tentativas de aumentar a acuidade e extensão do conhecimento científico sobre certos fatos ocupam uma fração significativa da atividade dos cientistas no período de ciência normal. A invenção, a construção e o aperfeiçoamento de aparelhos são também atividades realizadas para tais fins. Os aceleradores de partículas (como o existente no Fermilab - E.U.A.) são um exemplo de até onde os cientistas estão dispostos a ir, se um paradigma os assegurar da importância dos fatos que pesquisam.
2. Harmonização dos fatos com a teoria
Basicamente, esta atividade no período de ciência normal consiste da manipulação de teorias levando a predições que possam ser confrontadas diretamente com experiência e do desenvolvimento de equipamentos para a verificação de predições teóricas. Na história da ciência temos, como ilustração, a máquina de Atwood, inventada quase um século depois dos Principia , para fornecer a primeira demonstração da segunda Lei de Newton. Mais recentemente, a construção de aceleradores para a detecção de partículas subatômicas (como o quark-top) previstas teoricamente (pelo Modelo Padrão). Este tipo de trabalho científico consiste em buscar um acordo, cada vez mais estreito, entre a natureza e a teoria. É interessante observar que a existência de um paradigma coloca o problema a ser resolvido. A concepção da aparelhagem capaz de resolver o problema está baseada no próprio paradigma, isto é, sem os Principia, por exemplo, as medidas feitas com a máquina de Atwood estariam vazias de significado.
3. Articulação da teoria
Esta classe de problema na ciência normal é considerada por Kuhn (1978) como a mais importante de todas. Consiste no trabalho empreendido para articular a teoria do paradigma, resolvendo algumas de suas ambigüidades e permitindo a solução de problemas até então não resolvidos. Algumas das experiências que visam à articulação são orientadas para a determinação de constantes físicas. A determinação da constante da gravitação universal (G) por Cavendish, na última década do século XVIII, é um exemplo de articulação do paradigma newtoniano. Contudo, os esforços para articular um paradigma não estão restritos à determinação de constantes universais. Podem também visar a leis quantitativas: a Lei de Coulomb sobre a atração elétrica é um exemplo. Existe, ainda, uma terceira espécie de experiência que tem o objetivo de articular um paradigma. Freqüentemente, um paradigma que foi desenvolvido para um determinado conjunto de problemas é ambíguo na sua aplicação a outros fenômenos estreitamente relacionados. Com isso, investe-se na reformulação de teorias, adapatando-as à nova área de interesse. Este trabalho leva a outras versões, fisicamente equivalentes, mas mais coerentes do ponto de vista lógico e/ou mais satisfatórias esteticamente. Um exemplo desta atividade, é a formulação analítica da mecânica clássica ou os trabalhos de Euler, Lagrage, Laplace e Gauss que visavam aperfeiçoar a adequação entre o paradigma de Newton e a observação celeste (Kuhn, 1978).
IV. Revoluções Científicas
Há períodos nos quais o quebra-cabeça da ciência normal fracassa em produzir os resultados esperados. Os problemas, ao invés de serem encarados como quebra-cabeças, passam a ser considerados como anomalias, gerando um estado de crise na área de pesquisa - o chamado período de ciência extraordinária. Mas, por que a ciência normal - um empreendimento não dirigido para as novidades e que a princípio tende a suprimi-las - pode ser tão eficaz para provocá-las? Kuhn (1978) responde a esta questão colocando que a ciência normal por sua rigidez conduz a uma informação detalhada e a uma precisão da integração entre a observação e a teoria que não poderia ser atingida de outra maneira. Sem os instrumentos especiais, construídos sobretudo para fins previamente estabelecidos, os resultados que conduzem às anomalias poderiam não ocorrer. (Somente sabendo-se com precisão o que se deveria esperar é que se é capaz de reconhecer que algo saiu errado.) Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e, conseqüentemente, de uma ocasião para a mudança de paradigma.
A emergência de novas teorias é, geralmente, precedida por um período de insegurança profissional, pois exige a destruição em larga escala do paradigma e grandes alterações nos problemas e nas técnicas da ciência normal. Kuhn (1978) dá três exemplos, na história da ciência, de crise e emergência de um novo paradigma:
1) Fim do século XVI: fracasso do paradigma ptolomaico (modelo geocêntrico) e emergência do paradigma copernicano (modelo heliocêntrico).
2) Fim do século XVIII: substituição do paradigma flogístico (Teoria do Flogisto) pelo paradigma de Lavoisier (teoria sobre a combustão do oxigênio).
3) Início do século XX: fracasso do paradigma newtoniano (mecânica clássica) e surgimento do paradigma relativístico (Teoria da Relatividade).
Kuhn (1978) observa, nestes três exemplos, que:
- a nova teoria surgiu somente após o fracasso caracterizado na atividade normal de resolução de problemas;
- a nova teoria surge uma ou duas décadas depois do início do fracasso;
- a soluçãopara cada um desses exemplos foi antecipada em um período no qual a ciência correspondente não estava em crise. Tais antecipações foram ignoradas, precisamente por não haver crise.
Os cientistas não rejeitam paradigmas simplesmente porque se defrontam com anomalias. Uma teoria científica, após ter atingido o status de paradigma, somente é considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituí-la. As teorias não são falsificadas por meio de comparação direta com a natureza. Decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro. A transição para um novo paradigma é chamada por Kuhn de revolução científica.
Uma revolução científica, na qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações.
A emergência de um novo paradigma é, para Kuhn, repentina, no sentido de que pode ocorrer no meio da noite, na mente de um homem profundamente imerso na crise. Como o indivíduo inventa (ou descobre que inventou) uma nova maneira de ordenar os dados é uma questão que Kuhn considera não investigável (inescrutável, em suas palavras) e acredita que assim seja permanentemente. Em geral, segundo este filósofo da ciência, os homens que fazem essas invenções fundamentais são jovens ou novos na área em crise, isto é, menos comprometidos com o velho paradigma.
Durante o período de transição, o antigo paradigma e o novo competem pela preferência dos membros da comunidade científica, e os paradigmas rivais apresentam diferentes concepções de mundo. Se novas teorias são chamadas para resolver as anomalias presentes na relação entre uma teoria existente e a natureza, então a nova teoria bem sucedida deve permitir predições diferentes daquelas derivadas de sua predecessora. Essa diferença não poderia ocorrer se as duas teorias fossem logicamente compatíveis. É nesse sentido que Kuhn emprega a expressão incomensurabilidade de paradigmas, cujo aspecto fundamental é que os proponentes dos paradigmas competidores praticam seus ofícios em mundos diferentes. A idéia de incomensurabilidade está relacionada ao fato de que padrões científicos e definições são diferentes para cada paradigma (Kuhn, 1978). Para sustentar a tese de que as diferenças entre paradigmas sucessivos são ao mesmo tempo necessárias e irreconciliáveis, Kuhn dá como exemplo a revolução científica que substitui o paradigma newtoniano pelo relativístico. Esta transição ilustra, segundo ele, com particular clareza a revolução científica como sendo um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas vêem o mundo. Para o autor, devemos superar a concepção de que a dinâmica newtoniana pode ser derivada (como um caso particular) da dinâmica relativista (comumente esta é a abordagem dos livros e das aulas nos cursos universitários de Física). Kuhn argumenta, entre outras coisas, que os referentes físicos dos conceitos einsteinianos não são de modo algum idênticos àqueles conceitos newtonianos que levam o mesmo nome: a massa newtoniana é conservada; a einsteiniana é conversível com a energia.
Por tratar-se de uma transição entre incomensuráveis, a transição entre paradigmas em competição não pode ser feita passo a passo, por imposição da lógica e de experiências neutras. Por ter esse caráter, ela não é e não pode ser determinada simplesmente pelos procedimentos de avaliação característicos da ciência normal, pois esses dependem parcialmente de um paradigma determinado e esse paradigma, por sua vez, está em questão. Quando os cientistas participam de um debate sobre a escolha de um paradigma, seu papel é necessariamente circular. Cada grupo utiliza seu próprio paradigma para argumentar em favor desse mesmo paradigma. Se houvesse apenas um conjunto de problemas científicos, um único mundo no qual ocupar-se deles e um único conjunto de padrões científicos para sua solução, a competição entre paradigmas poderia ser resolvida de forma rotineira, por exemplo, contando-se o número de problemas resolvidos por cada um deles. Mas, na realidade, tais condições nunca são satisfeitas completamente. Aqueles que propõem os paradigmas em competição estão sempre em desentendimento, mesmo que em pequena escala (Kuhn, 1978). Como, então, são os cientistas levados a realizar a revolução?
Embora, algumas vezes, seja necessário uma geração para que a revolução se realize, as comunidades científicas seguidamente têm sido convertidas a novos paradigmas. Alguns cientistas, especialmente os mais velhos e mais experientes, resistem indefinidamente, mas a maioria deles pode ser convertida. Ocorrerão algumas conversões de cada vez, até que, morrendo os últimos opositores, todos os membros da profissão passarão a orientar-se por um único - mas, agora, diferente - paradigma.1
1 As dificuldades de conversão foram, freqüentemente, observadas pelos próprios cientistas. Planck (apud Kuhn, 1978) comentou que [...] uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes [...] mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela.
Assim, para Kuhn (1978), a natureza do argumento científico envolve a persuasão e não a prova. Cientistas abraçam um paradigma por toda uma sorte de razões que, em geral, se encontram inteiramente fora da esfera da ciência.
Kuhn acredita que o cientista que adota um novo paradigma precisa ter fé na sua capacidade de resolver os grandes problemas com que se defronta, ciente apenas de que o paradigma anterior fracassou em alguns deles. A crise instaurada pelo antigo paradigma é condição necessária mas não suficiente para que ocorra a conversão. É igualmente necessária a existência de fé no candidato a paradigma escolhido, embora não precise ser, nem racional, nem correta. Em alguns casos, somente considerações estéticas pessoais e inarticuladas fazem alguns cientistas se converterem ao novo paradigma.
Kuhn é acusado por Popper (1979), Lakatos (1979), entre outros, de traçar uma imagem irracional do debate científico. Para Lakatos (1979), crise é um conceito psicológico - trata-se de um pânico contagioso - e revolução científica kuhniana é irracional, uma questão da psicologia das multidões, sendo este modelo, por ele considerado, uma redução da filosofia da ciência à psicologia ou sociologia dos cientistas.
Respondendo às críticas, Kuhn adota uma posição mais moderada (Kuhn, 1979). Segundo esta posição, existem boas razões compartilhadas pela comunidade científica, as quais são aplicadas nos debates científicos. Algumas dessas boas razões referem-se às qualidades de uma boa teoria: precisão, consistência, simplicidade, amplitude de aplicação, fecundidade. Estas seriam usadas na comparação de teorias rivais. No entanto, as boas razões funcionam como valores e, portanto, podem ser aplicadas de maneiras diversas pelos cientistas em casos específicos.
Quanto à incomensurabilidade, Kuhn a encara de uma forma menos problemática, sugerindo, então, que os cientistas ao participarem de debates interparadigmáticos devam reconhecer-se uns aos outros como membros das diferentes comunidades de linguagem e, a partir daí, tornarem-se tradutores. O processo de traduções proposto por Kuhn não assegura a conversão, pois os cientistas podem concordar quanto à fonte de suas discordâncias e, mesmo assim, manterem-se fiéis às suas teorias, já que os valores que eles compartilham podem ser aplicados de forma distinta.
De qualquer forma, Kuhn continua atribuindo um significativo grau de arbitrariedade aos debates envolvendo julgamentos de valor, os quais considera elemento importante da prática científica.
Com respeito à noção, explícita ou implícita, segundo a qual as mudanças de paradigma levam os cientistas a uma proximidade sempre maior da verdade (posicionamento de Popper e Lakatos, por exemplo), Kuhnacredita que podemos explicar tanto a existência da ciência como seu sucesso, sem a necessidade de recorrermos a um objetivo preestabelecido. O processo de desenvolvimento científico corresponde à seleção pelo conflito da maneira mais adequada de praticar a ciência - seleção realizada no interior da comunidade científica. O resultado final de uma seqüência de ciência extraordinária, separada por períodos de ciência normal, é o conjunto de instrumentos notavelmente ajustados que chamamos de conhecimento científico moderno (Kuhn, 1978). Estágios sucessivos de desenvolvimento são marcados por um aumento da articulação e especialização do saber científico. Para Kuhn, todo esse processo pode ter ocorrido, como no caso da evolução biológica (teoria darwinista), sem o benefício de uma verdade científica permanentemente fixada, da qual cada estágio do desenvolvimento científico seria um exemplar mais aprimorado.
Segundo seus críticos, a filosofia kuhniana tende a um relativismo. Uma vez concebido o paralelismo que existe na tese da incomensurabilidade, é possível concluir que ambos os paradigmas podem estar certos, ou seja, não se pode provar que um deles está mais próximo da verdade.
V. Conclusão Kuhn e o Ensino de Ciências
As idéias kuhnianas representam um importante referencial para o trabalho em sala de aula. A visão de ciência transmitida nas aulas e nos livros didáticos, as estratégias de ensino utilizadas podem ser fundamentadas no modelo de Kuhn sobre o desenvolvimento científico.
Adotando essa postura epistemológica, estaremos questionando a imagem que cientistas e leigos têm da atividade científica, que disfarça a existência e o significado das revoluções no campo da ciência. O desenvolvimento científico, em geral, é visto como sendo basicamente cumulativo e linear, consistindo em um processo, freqüentemente comparado à adição de tijolos em uma construção. Nesta concepção, a ciência teria alcançado seu estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais, as quais, uma vez reunidas, constituiriam a coleção moderna dos conhecimentos científicos. Mas não é assim que a ciência se desenvolve. Segundo o modelo kuhniano, muitos dos problemas da ciência normal contemporânea passaram a existir somente depois da revolução científica mais recente.
Em relação a uma estratégia baseada na filosofia de Kuhn, Zylbersztajn (1991) propõe que os alunos de disciplinas científicas sejam encarados como cientistas kuhnianos. Os passos instrucionais delineados, nesta estratégia, são:
1) Elevação do nível de consciência conceitual: os alunos, nesta etapa, devem conscientizar-se de suas concepções alternativas.
2) Introdução de anomalias: o objetivo principal deste passo instrucional é criar uma sensação de desconforto e insatisfação com as concepções existentes, através do conflito entre estas e o pensamento científico. Demonstrações, experimentos, argumentos teóricos podem ser aplicados. É o equivalente instrucional ao período de ciência extraordinária, no modelo de Kuhn.
3) Apresentação da nova teoria: nesta etapa, os alunos recebem um novo conjunto de idéias que irão acomodar as anomalias. O professor faz, então, o papel de um cientista tentando converter outros a um novo paradigma.
4) Articulação conceitual: trata-se do equivalente instrucional aos quebracabeças da ciência normal. Neste estágio, esforços são dirigidos para a interpretação de situações (experimentais ou teóricas) e à resolução de problemas.
Esta monografia pretende ser apenas uma introdução às idéias de Kuhn. A importância de sua teoria para o campo da filosofia da ciência é imensa e, portanto, não pode ser aqui esgotada. Além disso, nos últimos anos, a pesquisa em ensino de Ciências tem buscado, em sua concepção de desenvolvimento científico, uma fundamentação mais atualizada. Dentre as muitas implicações trazidas pelo seu modelo, podemos destacar:
- A problematização do conhecimento e, conseqüentemente, o questionamento sobre a visão de ciência tão difundida nos livros e nas aulas (o ensino do método científico como uma seqüência rígida de passos que começa com uma observação e culmina em uma descoberta);
- A busca do paralelismo (muitas vezes encontrado, outras vezes não) entre a história da ciência e as concepções das crianças acerca dos fenômenos físicos;
- A busca da correspondência entre epistemologia e aprendizagem, no sentido de se utilizar sua teoria para entender algumas questões sobre a dinâmica da mudança conceitual e inspirar possíveis metodologias de ensino.

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