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Paulo Roberto de Almeida VOLTA AO MUNDO EM 25 ENSAIOS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E ECONOMIA MUNDIAL Hartford Edição do Autor 2014 Volta ao Mundo em 25 Ensaios Relações Internacionais e Economia Mundial ................................... Volta ao Mundo em 25 Ensaios Relações Internacionais e Economia Mundial Paulo Roberto de Almeida Doutor em ciências sociais. Mestre em economia internacional. Diplomata. Edição do Autor - 2014 6 Direitos de publicação reservados: © Paulo Roberto de Almeida 2014 _______________________________________________________ ALMEIDA, Paulo Roberto. Volta ao Mundo em 25 Ensaios: Relações Internacionais e Economia Mundial; Hartford: Edição do Autor, 2014. 110 p. 1. Política internacional. 2. Relações internacionais. 3. Economia. 4. História. 5. Sociologia. 6. Globalização 7. Brasil. 8. Marxismo. 9. Título _______________________________________________________ Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração do Google Images Contato com o autor: www.pralmeida.org pralmeida@me.com (1.860) 989-3284 Esta versão: 04/11/2014 Grande dúvida: grande despertar. Pequena dúvida: pequeno despertar. Nenhuma dúvida: nenhum despertar. Máxima Zen Facts are stubborn things; and whatever may be our wishes, our inclinations, or the dictates of our passions, they cannot alter the state of facts and evidence. John Adams In: Thomas Sowell, Economic Facts and Fallacies (New York: Basic Books, 2011, p. iii) From a very early age, ... I knew that when I grew up I should be a writer. Between the ages of about seventeen and twenty-four I tried to abandon this idea, but I did so with the consciousness that I was outraging my true nature and that sooner or later I should have to settle down and write books. George Orwell, “Why I Write” In: A Collection of Essays of George Orwell (New York: Harcourt Brace, 1953, p. 309) 9 ........................................... Índice Apresentação 11 1. Por que o mundo é como é, e como ele poderia ser melhor... 17 2. Economia mundial: de onde viemos, para onde vamos? 22 3. Política internacional: por que não temos paz e segurança? 26 4. Direitos humanos: o quanto se fez, o quanto ainda resta por fazer 29 5. Políticas econômicas nacionais: divergências e convergências 32 6. Cooperação internacional e desenvolvimento: isso muda o mundo? 36 7. Guerra e paz no contexto internacional: progressos em vista? 39 8. Individualismo e interesses coletivos: qual a balança exata? 42 9. Duas tradições no campo da filosofia social: liberalismo e marxismo 45 10. Como organizar a economia para o maior (e melhor) bem-estar possível 49 11. Livre comércio: uma ideia difícil de ser aceita (e, no entanto, tão simples) 53 12. Políticas ativas pelos Estados funcionam?; se sim, sob quais condições? 56 13. Competição e monopólios (naturais ou não): como definir e decidir? 59 14. Orçamentos públicos devem ser sempre equilibrados? 62 15. Países ou pessoas ricas o são devido a que os pobres são pobres? 65 16. Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos? 68 17. Por que a América Latina não decola: alguma explicação plausível? 71 18. Por que o Brasil avança tão pouco: sumário das explicações possíveis 74 19. Distribuição de renda: melhor fazer pelo mercado ou pela ação do Estado? 77 20. Brasil: o que poderíamos ter feito melhor, como sociedade, e não fizemos? 80 21. Qual a melhor política econômica para o Brasil?: algumas opções pessoais 84 22. Qual a melhor política externa para o Brasil?: algumas preferências pessoais 87 23. O que podemos aprender com a experiência dos demais países? 91 24. Nossa contribuição para o mundo: onde o Brasil pode ser melhor 95 25. Itinerário percorrido e o que resta fazer 98 Apêndices Relação dos ensaios publicados no site Ordem Livre 103 Livros publicados pelo autor 106 Nota sobre o autor 110 11 .............................................................. Apresentação Os ensaios constantes deste pequeno livro resultaram, originalmente, de um convite efetuado por meu amigo Diogo Costa, quem, no final de 2009, sugeriu que eu contribuísse, durante todo o ano de 2010, com uma série de ensaios a serem divulgados quinzenalmente no site Ordem Livre (ordemlivre.org). Os temas seriam de minha livre escolha, com a expectativa, apenas sugerida, de que eles fossem representativos de meu pensamento sobre a ordem econômica e política internacional e brasileira, por meio de pequenos textos se possível formulados numa linguagem didática, acessível, portanto, a um público mais vasto. Diogo não me impôs nenhuma diretriz específica, mas, em correspondência de 7 de dezembro de 2009, sugeriu que meus ensaios sintéticos pudessem promover pelo menos um dos seguintes princípios: (a) liberdade individual; (b) livre mercado; (c) governo limitado; (d) paz. Cabe registrar que não tenho, atualmente, nenhuma objeção quanto a qualquer um desses princípios, embora, em minha juventude, eu possa ter exibido, durante vários anos, uma grande desconfiança tanto do livre mercado (depreciativamente identificado ao capitalismo predatório e desigual), quanto do governo limitado (que os estatistas identificam ao Estado mínimo), consoante a formação gramsciana, e mesmo marxista, que recebíamos nas instituições de ensino. Esta era, e suponho que ainda seja em grande medida, a communis opinio na maior parte do establishment acadêmico brasileiro, embora o cenário possa estar se alterando aos poucos, dada a exacerbação cansativa daquilo que eu mesmo já chamei de “gramscismo de botequim” e de “marxismo de orelha” (ou seja, apenas aprendido nas aulas de algum docente iluminado, não necessariamente na leitura das obras de Marx e outros epígonos). Mais, passons... Diogo também indicou sua preferência em que meus textos estivessem voltados a contestar argumentos, não intenções, e que eles se limitassem a atacar (ou defender) ideias, não pessoas ou grupos. Estas foram, em tudo e por tudo, as recomendações efetuadas naquela ocasião, o que achei totalmente pertinente e adequado a um espaço público liberal e democrático como é o site Ordem Livre. Com base nessas explicações suficientemente claras, e a despeito de estar me preparando, naquele mesmo momento, para um estágio de vários meses na China, decidi aceitar seu convite, tendo plena consciência – o que representaria um esforço extraordinário de síntese e de concisão – de que os meus textos não poderiam ultrapassar o tamanho ideal de duas páginas, o que representava um desafio e tanto para quem 12 se acostou, desde os bancos universitários, a ser desnecessariamente extenso em tudo o que escreve, na mesma linha de um prolixo “estilo florestânico” absorvido na leitura das obras do mestre da escola paulista de sociologia (e um marxista esclarecido, embora dogmático, sob vários aspectos). Assumindo a encomenda de certa forma desafiadora, passei imediatamente a redigir os textos aqui compilados, antes mesmo de partir para a China, o que foi feito rapidamente entre o Natal e o Ano Novo de 2009, com a única exceção do 25o. ensaio, que deixei para redigir quando já estivesse vivendo naquela autocracia que o sociólogo alemão Karl Wittfogel caracterizou como sendo o melhor exemplo do “despotismooriental”. Escolhi fazer ensaios nos terrenos da economia mundial e das políticas públicas, que são os meus temas mais frequentes de leituras e pesquisas, em torno dos quais eu costumo fazer sínteses explicativas que depois são transmutadas em aulas, ou expressas em textos divulgados nos meios de comunicação social que uso ou frequento. Com base nas perguntas mais recorrentes com que sou confrontado nessas interações diretas, em aulas ou por meio das ferramentas associadas à internet, tentei redigir ensaios curtos que pudessem atender às dúvidas de alunos e de interlocutores, bem como de possíveis leitores nesses ambientes abertos. Eles cobrem alguns dos temas mais comuns das relações internacionais contemporâneas, meu campo de pesquisas e de estudos nas últimas décadas, depois de ter começado minha trajetória intelectual pelos caminhos mais frustrantes – pelo menos no Brasil – da sociologia do desenvolvimento. Um foco especial, justamente, estava dirigido a questões vinculadas à economia mundial e ao desenvolvimento brasileiro e latino-americano, sem excluir, quando era o caso, uma breve discussão em torno das políticas macroeconômicas e setoriais em aplicação no Brasil. Os ensaios foram concebidos num espírito essencialmente didático, e construídos em torno de um formato ideal que pretendia, idealmente, reproduzir a seguinte sequência de argumentos: (a) uma exposição inicial sobre a questão formulada no título de cada ensaio; (b) um balanço da situação corrente atinente ao tema, bem como o eventual tratamento dado a ele no mundo ou no Brasil; (c) algumas sugestões sobre como melhor encaminhar uma solução de melhor eficiência econômica e de maior utilidade social para os problemas detectados; (d) o que caberia adotar, como solução, em caso de dilemas detectados, ou as perspectivas e opções remanescentes oferecidas aos atores sociais e agentes públicos mobilizados em torno do problema focado. Com base nessa organização inicial, decidi formular uma lista tentativa de questões para serem encaminhadas e redigidas rapidamente. 13 Consultando agora meus arquivos, encontrei o planejamento inicial de temas (e seus títulos) que pretendia abordar na série de ensaios, o que fiz em Paris, em 9 de dezembro de 2009, numa etapa de volta de viagem preparatória que acabara de empreender na China, em Shanghai e em Beijing. Eis aqui a lista dos ensaios que me serviram de guia naquela ocasião: 1. Por que o mundo é como é (e como ele poderia ser melhor...) 2. Economia mundial: de onde viemos, para onde vamos? 3. Política internacional: por que não temos paz e segurança? 4. Direitos humanos: o quanto se fez, o quanto ainda resta por fazer 5. Políticas econômicas nacionais: divergências e convergências 6. Cooperação internacional e desenvolvimento: isso muda o mundo? 7. Guerra e paz no contexto internacional: progressos em vista? 8. Individualismo e interesses coletivos: qual a balança exata? 9. Duas tradições no campo da filosofia social: liberalismo e marxismo 10. Como organizar a economia para o maior (e melhor) bem-estar possível 11. Livre comércio: uma ideia difícil de ser aceita (e, no entanto, tão simples) 12. Políticas ativas pelos Estados funcionam?; se sim, sob quais condições? 13. Competição e monopólios (naturais ou não): como definir e decidir? 14. Orçamentos públicos devem ser sempre equilibrados? 15. Países ou pessoas ricas o são devido a que os pobres são pobres? 16. Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos? 17. Por que a América Latina não decola: alguma explicação plausível? 18. Por que o Brasil avança tão pouco: sumário das explicações possíveis 19. Distribuição de renda: melhor fazer pelo mercado ou pela ação do Estado? 20. Brasil: o que poderíamos ter feito melhor, como sociedade, e não fizemos? 21. Qual a melhor política econômica para o Brasil?: algumas opções pessoais 22. Qual a melhor política externa para o Brasil?: algumas preferências pessoais 23. O que podemos aprender com a experiência dos demais países? 24. Nossa contribuição para o mundo: onde o Brasil pode ser melhor 25. Uma volta ao mundo em 25 ensaios: itinerário percorrido e o que resta fazer Registro, ainda, esta anotação, feita naquele mesmo momento, num hotel de Paris: “Decisão tomada, planejamento feito, só me cabe dar a partida ao processo. Prazo: um ano; depois: fechamento do projeto e um balanço pessoal do percurso.” Para dar ainda maior consistência ao compromisso assumido, resolvi registrar e divulgar essa lista de trabalhos 14 projetados num blog que mantinha naquela ocasião (mas ainda ativo), o DiplomataZ, o que fiz em 14 de dezembro de 2009 (o que pode ser visto neste link: http://diplomataz.blogspot.com/2009/12/26-uma-lista-de-possiveis-trabalhos-em.html). Mais adiante, tendo já redigido quase todos os textos, inseri esta nota na mesma postagem: “Apenas como informação, terminei todos os trabalhos, entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010, menos o último, que pretendo fazer mais adiante. Eles serão publicados progressivamente ao longo de 2010, sendo que eu terei oportunidade de revisar e corrigir alguma coisa no meio do caminho... Addendum em Abril de 2010, Shanghai, China.” O que pretendia, portanto, oferecer aos meus leitores, consoante minhas inclinações didáticas, era uma exposição inicial de cada uma das questões listadas naquele sumário, visando objetivos analíticos e prescritivos, seguida de um debate em torno das opções em jogo, ao se constatar um “problema” de relações internacionais ou de política econômica nacional, finalizando com propostas de políticas, segundo minhas próprias concepções. Ao redigir os ensaios, procurei não sobrecarregá-los em demasia com remissões a autores, teorias ou dados quantitativos, de maneira a tornar os textos mais leves e acessíveis a um público mais amplo. Também me fixei o objetivo ideal de tentar “esgotar” cada um dos assuntos em poucas páginas. Meus livros “normais” já são por demais acadêmicos e veem acompanhados – como é o caso nesse tipo de produção – de um aparato crítico e bibliográfico que torna, por vezes, prolixa a apresentação e a discussão de alguns dos problemas enfocados, mormente os de comércio e finanças internacionais. Daí a opção, no conjunto, por textos mais concisos e puramente descritivos, sem o jargão especializado em relações internacionais e dispensando a remissão a livros e autores consultados (ou já lidos) para compor os ensaios. Esta compilação representa, portanto, um grande esforço de síntese e de concisão, uma vez que tenho, como é sabido pelos meus poucos leitores, o péssimo hábito de estender-me por dezenas de páginas sobre as origens históricas, os desenvolvimentos correntes e as implicações políticas e econômicas das questões que normalmente entram em minha agenda de trabalho. Espero que o formato aqui adotado encontre leitores compreensivos e interessados em aprofundar cada um dos temas, aos quais eu terei prazer em sugerir ensaios analíticos mais “pesados”, ou fornecer uma bibliografia mais ampla sobre cada um deles. Em todo caso, trata-se de um exercício de redução de meus textos ao que deveria ser o tamanho ideal: escapar da verborragia grandiloquente (muitas vezes inútil) dos ensaios acadêmicos “normais” para tentar encontrar um público mais vasto, que a rigor não tem tempo, nem disposição, para enfrentar longas digressões intelectuais sobre temas e problemas correntes. 15 Seguindo aquele roteiro inicialmente traçado, os textos foram elaborados numa única etapa sequencial, razão pela qual seria recomendável tentar seguir o raciocínio adotado nos ensaios também no seu ordenamento linear. Nada impede, contudo,de se buscar argumentos sobre cada uma das questões tratadas de forma independente e aleatória. Não se requer nenhuma leitura especializada em relações internacionais ou mesmo em economia para seguir a linha argumentativa contida em meus ensaios, concebidos e redigidos com os objetivos didáticos já mencionados. Parafraseando um personagem muito conhecido nos Estados Unidos, Will Rogers, eu também costumo dizer que as pessoas aprendem de duas maneiras: pela leitura ou com pessoas mais espertas. Eu não me considero mais esperto ou mais inteligente do que a média dos acadêmicos: acredito que sou apenas alguém esforçado, que lê mais do que a média, e que observa detidamente o mundo, aprendendo com os outros ou por meio da simples observação dos fatos, aqueles visíveis, disponíveis nos circuitos de informação, e os mais obscuros, que derivam de um contato mais intenso com os livros de história e de história econômica, tarefa muitas vezes associada a pesquisas que voluntariamente empreendo nesses terrenos. Tendo nascido em berço pouco esplêndido, em casa sem jornais ou revistas, e com raríssimos livros, aprendi desde cedo a buscar em bibliotecas essas fontes indispensáveis de acesso a um conhecimento mais consistente sobre os problemas do mundo. Tenho sido muito feliz na companhia dos livros, e é por isso que me dedico agora a colocar em livros um pouco do conhecimento que capturei ao longo de toda uma vida, não só na companhia dos livros, mas sobretudo na atenta observação das coisas do mundo. Certamente encontrei pessoas mais espertas pelo caminho, mas foi geralmente por intermédio desses prosaicos instrumentos de leitura, complementados pelo intenso acompanhamento da imprensa escrita e audiovisual, que aprendi um pouco do que sei sobre o mundo atualmente; também somos, Carmen Lícia e eu, nômades inveterados, sempre com o carro na estrada, ou e nos mais diferentes tipos de transportes, indo de um canto a outros nos muitos países em que já residimos ou que visitamos em viagens contínuas, constantes, incessantes. Talvez seja por isso mesmo que sempre recomendo a meus alunos não confiar tanto nos professores, mas ler intensamente, o tempo todo, com o objetivo de se tornarem autodidatas conscientes e deliberados. Exatamente o que sempre fui, em toda a minha vida, e não pretendo mudar agora que começo a fazer a síntese de tudo o que aprendi em anos e décadas de leituras, viagens e observações. 16 Estes pequenos ensaios, sem quaisquer referências bibliográficas, sem remissões documentais, e praticamente sem qualquer aparato quantitativo, na base de argumentos puramente qualitativos, talvez possam testemunhar quanto à extensão desse meu autodidatismo radical. Nunca hesitei, aliás, em recomendar a mesma atitude a todos os meus alunos, meus interlocutores, aos eventuais leitores: leiam sempre, mas, sobretudo, olhem o mundo, e pensem com sua própria cabeça; garanto que funciona... Paulo Roberto de Almeida Hartford, 4 de novembro de 2014 17 1. Por que o mundo é como é, e como ele poderia ser melhor... Imaginemos um viajante estratosférico, vindo para a Terra em sua espaçonave, procurando distinguir e compreender o que vê, em aproximações sucessivas. Primeiro visualizaria aquele planeta azul de que falam os astronautas; depois identificaria grandes manchas cinzas ou verdes, segundo os oceanos focalizados, manchas interrompidas aqui e ali por massas de cores e tamanhos distintos, correspondendo às regiões dos cinco ou seis continentes entrevistos do espaço: verde para as densas florestas tropicais, o amarelo ou ocre dos espaços desérticos, as tonalidades mais claras das regiões temperadas e o branco dos polos; por fim, teria a grande variedade de cores exibida pelas implantações agrícolas e construções urbanas das muitas sociedades humanas. Chegando mais perto, ele veria que algumas dessas explorações rurais exibem um quadriculado perfeito, correspondendo ao que chamamos de agronegócio, enquanto outras estão dispersas em vastas zonas de ocupações irregulares, com muita destruição dos recursos naturais em volta e alguma degradação ambiental: são as unidades de exploração familiar, de subsistência e de baixa produtividade, geralmente nas regiões tropicais. Quanto às zonas urbanas, nosso viajante extraterrestre teria todos os tipos de paisagens: enormes cidades modernas, repletas de grandes edifícios modernos, cortadas por vias expressas; pequenas cidades do interior, de arquitetura mais tradicional; e uma variedade de grandes ou pequenas cidades com todos os tipos de habitações: condomínios de luxo, mansões espetaculares, mas também favelas urbanas e ajuntamentos periféricos, revelando a imensa desigualdade da condição humana nas sociedades nacionais que se distribuem por todas essas regiões e continentes. Planando, agora, a baixa altura sobre essas cidades, nosso visitante exterior teria todas as combinações possíveis à sua disposição: pessoas de alta renda se deslocando em carros de luxo ou em helicópteros pessoais, cidadãos de classe média fazendo compras em shoppings multicoloridos pelos neons atrativos, trabalhadores especializados concentrados em fábricas ou escritórios, empregados informais em situação de exploração abjeta em negócios não registrados, capitalistas do campo aqui, agricultores miseráveis e trabalhadores volantes ali, em regiões de agricultura primitiva e de baixa produtividade. Nas ruas e semáforos, ele se depararia com carros fechados, passantes apressados, vendedores de ocasião e uma quantidade variável de pedintes 18 andrajosos, dependendo do país ou região que estivesse sobrevoando. Nas zonas tropicais os contrastes seriam certamente mais fortes do que nas temperadas, embora as migrações humanas, legais e clandestinas, venham colorindo todo o planeta de todas as gradações possíveis no imenso leque de riquezas e misérias humanas. Este é o nosso mundo, rico e miserável ao mesmo tempo, contraditório e desigual nas situações econômicas e nos regimes políticos, extremamente variado nas línguas e religiões, mas unificado pelos mesmos desejos humanos de algumas coisas muito simples: comida, segurança, bem-estar material, boa saúde, disponibilidade de bens úteis à existência e alguma perspectiva de melhora no curso da própria geração. Todos aspiram a essas mesmas coisas, em graus variáveis de necessidade ou ambição, assim como todos desejam um bem intangível, um pouco mais difícil de ser ‘entregue’: a felicidade humana; isto é, a realização de outros sentimentos ainda mais subjetivos: o amor, o afeto, a satisfação pessoal no convívio com entes queridos. Se ao nosso viajante estratosférico fosse facultado pesquisar livremente entre os terráqueos as fontes e as razões daquela sensação que os anglossaxões chamam de fulfilling (e que os franceses designam por accomplissement), ele constataria que a condição básica para sua realização é simplesmente esta: a liberdade de escolha. Poder escolher onde morar, definir uma profissão, realizar-se como ser social, dispor de uma renda suficiente para fazer suas próprias opções em termos de bens materiais e ofertas culturais que melhor atendam suas necessidades ou seus gostos pessoais, deslocar-se livremente pelo planeta para visitar templos, museus, florestas e praias, comer em bons restaurantes, comprar roupas vistosas e confortáveis, ser atendido nos melhores hospitais e poder conversar livremente e relacionar-se com quem encontrar pela frente, ou simplesmente ficar sentado em frente da televisão, sem outras preocupações do que a certeza de que se dispõe de seres amados em volta de si, que lhe dão a segurança de uma vidatranquila, sem os sobressaltos de guerras, da violência, da delinquência ou de catástrofes de qualquer tipo. Esse talvez seja o conjunto de requisitos materiais e imateriais que poderiam definir aquilo que chamamos de felicidade humana, um estado ainda relativamente raro em muitas sociedades humanas em pleno século 21. A felicidade não está diretamente correlacionada ao PIB per capita ou ao IDH dos países, embora não se possa descartar a imensa interface que existe entre, de um lado, um nível satisfatório de renda e de 19 serviços públicos (como a assistência à saúde, por exemplo), bem como um provimento adequado de educação de base para o enfrentamento dos problemas mais comezinhos da vida humana; e, de outro, essa sensação d’accomplissement, que se aproxima, em parte, da felicidade. A felicidade é, simplesmente, a liberdade que se tem de poder escolher, sem muitas restrições materiais, aquilo que nos faz ser feliz; para isso é preciso dispor de um mínimo (ou provavelmente mais do que isso) de recursos, compatíveis com o “valor” do bens – materiais ou intangíveis – que tragam a sensação de ser feliz. O fato é que a imensa maioria dos seres humanos, talvez dois terços de um planeta com mais de sete bilhões de habitantes, não dispõe da simples liberdade de escolher onde trabalhar, onde morar, como garantir sua segurança alimentar, sua segurança física ou até a satisfação de necessidades bem mais simples: água potável, saneamento básico, transporte acessível, escolas e hospitais de qualidade, escolas, sem mencionar a liberdade de escolher quem definirá as regras que impactarão a sua vida no trabalho, na disponibilidade da renda pessoal, na habitação e na segurança, justamente. Um dos argumentos frequentemente aventados para explicar essas imensas desigualdades distributivas e de acesso aos bens materiais e intangíveis é a de que os ricos se tornaram ricos porque extraíram sua riqueza dos pobres, ou seja, povos ou países pobres dominados e explorados pelos cidadãos ricos dos países ricos, cabendo, portanto, liquidar com a dominação e com essa exploração para corrigir imediatamente as iniquidades existentes. Existe toda uma literatura de baixa qualidade, mas de fácil aceitação, que pretende justamente que a riqueza de uns é devida à pobreza de outros. Esse simplismo e esse maniqueísmo já não são mais aceitáveis hoje em dia, se algum dia o foram. Para recusar esse tipo de argumento equivocado, bastaria, aliás, ao nosso extraterrestre examinar a situação do Haiti; ele pode fazê-lo tanto a partir da estratosfera – de onde ele veria a mesma ilha, Hispaniola, perfeitamente dividida numa porção verde, à direita, a República Dominicana, e numa mancha ocre e desolada do lado esquerdo, que corresponde exatamente ao Haiti –, quanto no plano histórico- político, que informa que o Haiti foi a primeira colônia da América Latina a se libertar da dominação europeia, ainda no final do século 18. Pois bem, o Haiti nunca foi explorado diretamente por potências estrangeiras desde então, constituindo uma nação independente que escolheu o seu próprio caminho para o subdesenvolvimento e para a degradação ambiental. Uma mistura de elites insensíveis – e até predatórias – e uma 20 população miserável, jamais educada para explorar os recursos naturais de forma sustentável, tais fatores representaram a “receita” terrível que levou o Haiti à situação que ele exibe ainda hoje (e no futuro previsível): não só um Estado falido, mas uma sociedade arrasada pela degradação ambiental e pela desestruturação social. Em uma palavra: uma população sem qualquer liberdade de escolha, a não ser (embora muito precariamente) a de emigrar e de tentar refazer a vida em outros países. O Haiti não é o que é hoje por excesso de “exploração capitalista”, como querem alguns, mas provavelmente pela insuficiência de “exploração” capitalista, pela incapacidade de suas elites de inserir o país nos amplos circuitos da economia mundial, de onde poderiam vir a tecnologia, os capitais, a inovação e, sobretudo, as ideias que permitiriam ao país um pouco de progresso, de prosperidade, enfim, um pouquinho de felicidade humana. O erro fatal do Haiti foi ter se isolado da comunidade internacional, da economia mundial, e preservado estruturas defasadas, feitas de má educação, de escassos valores cívicos, baixa integração social. Tudo isso deixou o Haiti num patamar de baixa produtividade do trabalho humano, com reduzidas possibilidades de crescimento econômico e, atualmente, com poucas saídas para sua inserção internacional. Povos atrasados são feitos, antes de mais nada, de países isolados. A geografia e a história confirmam essa verdade elementar. Embora não existam determinismos geográficos ou fatalidades históricos, as condições naturais condicionam, em certa medida, as possibilidades de desenvolvimento. Nada absoluto nesta frente, do contrário, o Japão, uma ilha dotada de poucas terras agricultáveis, escassos recursos naturais e quase nenhuma energia própria, seria um país condenado ao subdesenvolvimento e a baixos padrões de vida. No entanto, se trata de uma das sociedades mais ricas do planeta, ainda que essa riqueza só tenha “brotado” nos últimos 150 anos, bem depois que o Haiti se despediu da condição de ser uma das colônias mais ricas do Caribe. Olhando o mundo de maneira desprevenida, nosso extraterrestre veria que os países mais abertos à inovação, ao comércio, aos intercâmbios ilimitados com todos os demais povos são também as sociedades e nações mais avançadas e progressistas, de maior nível de renda e com um grau de ‘felicidade humana’ um pouco maior. Isso só se alcança com liberdade de escolha, e esta depende fundamentalmente de quão aberto é o país ao exterior. O Japão, justamente, se manteve isolado de intercâmbios com o mundo 21 exterior durante muito tempo, mas quando despertou para o seu atraso em relação aos países mais avançados decidiu rapidamente adotar padrões e tecnologias estrangeiras, enviando milhares de seus jovens estudar no exterior, a partir da Revolução Meiji. A China não faz nada diferente, no último meio século, depois de ter enfrentado uma decadência secular, fruto, justamente, de seu isolamento em relação ao mundo. Nosso viajante exterior, mesmo sem ser especialmente educado em economia ou sem dispor de estatísticas completas, não teria muita dificuldade em concluir que a liberdade individual, a liberdade de dispor de seus bens sem que alguém (ou o próprio Estado) ameace tomá-los de maneira arbitrária, a liberdade de poder transacionar esses bens (ou a sua própria força de trabalho) sem muitas restrições impostas por governos intrusivos, essas qualidades são as que criam povos ricos, sociedades prósperas e amantes da paz. Falaremos em maior detalhe sobre tudo isso nos próximos ensaios... 22 2. Economia mundial: de onde viemos, para onde vamos? Economia mundial não é um termo que se possa empregar antes do século 16 e ainda assim com certa reserva. Mesmo a partir da unificação geográfica do mundo, conduzida na era dos descobrimentos europeus por Colombo, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, a economia mundial não era, em absoluto, universal. Nessa primeira onda de globalização, de caráter mercantil, tratava-se, mais exatamente, de um arquipélago de economias centrais, predominantemente de origem europeia, vinculadas às suas respectivas periferias nas novas terras “descobertas” e conquistadas, mediante um sistema usualmente conhecido como ‘exclusivo colonial’. Os demais centros regionais – o ‘Império do Meio’ (China), o império Mogul, na Índia, o mundo muçulmano (que começava a ser unificado sob o jugootomano) e outros ‘blocos’ sub- regionais, na Eurásia ou nas Américas – não tinham realmente condições de disputar qualquer hegemonia econômica mundial, como diriam os marxistas. Até o final do século 18, China e Índia constituíam duas grandes economias, produzindo bens valorizados nos mercados ocidentais, mas dotadas de instituições pouco adaptadas aos desafios da nova economia industrial, caracterizada pelo que se poderia chamar, ainda no jargão marxista, de um ‘modo inventivo de produção’. Foi precisamente a partir da revolução industrial na Inglaterra, nessa mesma época, que tem início a diferenciação dos centros econômicos mundiais, processo que os historiadores econômicos chamam de ‘grande divergência’, ou seja, a aceleração da transformação tecnológica no Ocidente, seguida da dominação absoluta das potências europeias sobre o resto do mundo (destinada a durar cinco séculos, talvez até hoje). Essa segunda grande onda da globalização, de natureza industrial, conforma o que se poderia chamar, pela primeira vez, de economia mundial, uma rede integrada de centros produtores de matérias primas, de um lado, servidas pelos centros financeiros europeus – com a libra inglesa e os bancos britânicos em seu núcleo – e as oficinas manufatureiras, de outro, dotadas das novas tecnologias industriais de produção em massa. As economias nacionais, até então pouco diferenciadas entre si – posto que uniformemente e predominantemente de base agrícola ou mercantil – começam a exibir diferenças estruturais, a partir de níveis de produtividade bem mais elevados nos sistemas industriais. A defasagem de renda começa sua escalada para índices sempre 23 crescentes, entre o centro e a periferia, num processo que se desenvolveria durante praticamente dois séculos, com um recrudescimento ainda mais intenso durante a maior parte do século 20, para diminuir apenas a partir da terceira onda de globalização, depois da derrocada do socialismo, a partir do último quinto desse século. No intervalo, a economia mundial capitalista seria desafiada por duas ameaças muito diferentes, entre si, mas concordantes em sua ação desagregadora de um sistema verdadeiramente unificado de relações mercantis e financeiras. A partir da primeira guerra mundial, as crises recorrentes dos centros capitalistas desenvolvidos no entre guerras (em especial a de 1929 e a depressão que se seguiu) e a implantação de sistemas coletivistas (o primeiro, de natureza soviética, desde 1917, e os fascismos, pouco depois), com suas experiências estatizantes e antiliberais, representaram uma ‘breve’ interrupção de setenta anos no processo de globalização. No imediato pós-segunda guerra mundial, as muitas experiências de nacionalizações e de estatizações no Ocidente capitalista, com seu cortejo de práticas intrusivas, dirigistas e planos de ‘desenvolvimento’ (com muito planejamento estatal centralizado, mesmo no capitalismo) representaram, igualmente, um retrocesso na reunificação de um sistema de mercado verdadeiramente mundial, desde então colocado sob a égide dos dois irmãos de Bretton Woods (o FMI e o Banco Mundial) e do GATT (OMC, em 1995). Foi somente a partir das reformas econômicas ‘neoliberais’ iniciadas na China a partir dos anos 1980 e da implosão e quase completo desaparecimento dos regimes socialistas, entre 1989 e 1991, que o processo de reunificação da economia mundial é retomado, no bojo da terceira onda de globalização capitalista, desta vez dominada pela sua vertente financeira (mas que inclui também os investimentos diretos). O fim do socialismo representou pouco em termos de concorrência manufatureira – já que o socialismo era um medíocre produtos de bens industrializados – e menos ainda em termos de fluxos financeiros e tecnológicos – onde os países socialistas eram ainda mais marginais, senão irrelevantes – mas significou um impacto decisivo em termos de mercados e, sobretudo, de mão-de-obra (com um destaque absoluto para a China). A fase atual, se ainda não pode ser identificada com um novo processo de ‘convergência’ da economia mundial, caracteriza-se, pelo menos, pela diminuição da divergência entre as regiões – com notáveis exceções, como nos casos da África, do Oriente Médio e em grande medida da América Latina – e pelo rápido catch-up 24 experimentado por alguns emergentes dinâmicos. No curso dos últimos vinte anos de globalização, a China e a Índia retiraram centenas de milhões de pessoas de uma miséria abjeta, colocando-as numa situação de pobreza moderada, justamente em função das reformas econômicas empreendidas e de sua inserção na globalização. Esse processo deve continuar, pelo menos naqueles países que decidiram substituir antigas políticas protecionistas e estatizantes por uma abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros diretos. O lado financeiro permanece ainda a dimensão problemática da globalização, não porque a liberdade de circulação de capitais seria, em si, desestabilizadora das economias nacionais, mas porque os governos ainda insistem em praticar políticas monetárias e cambiais inconsistentes com os novos dados da economia mundial. O monopólio dos bancos centrais na emissão de moedas-papel, na fixação das taxas de juros (sem correspondência efetiva com o equilíbrio real dos mercados de capitais) e seu papel na manutenção de regimes cambiais irrealistas e desajustados explica muito das crises financeiras ocorridas na segunda metade dos anos 1990 e em 2007-2009. As bolhas que se formam não são o resultado de ‘forças cegas do mercado’ – como políticos inescrupulosos e economistas pretensamente keynesianos proclamam – mas sim a consequência das manipulações dos governos em setores sensíveis da economia real. A possibilidade de maiores progressos em direção à convergência econômica mundial depende, assim, tanto da continuidade da abertura dos países ao processo de globalização quanto da habilidade dos governos em manterem soberania monetária e cambial no novo contexto criado pela unificação paulatina dos mercados de capitais. Não é provável que essa convergência se dê rapidamente, tendo em vista a resistência de muitos governos à abertura comercial e financeira e sua tendência a continuar manipulando taxas de juros e regimes cambiais, mas é previsível que a globalização continue avançando naqueles países e regiões propensos a aceitarem as novas regras de mercado. Independentemente do que digam aqueles que condenam as novas políticas ‘neoliberais’, é um fato que os países que mais progressos fizeram no plano do crescimento econômico e da prosperidade de seus povos são aqueles que mais rapidamente souberam integrar-se comercialmente na economia mundial, e dela puderam aproveitar os efeitos benéficos dos investimentos diretos, que trazem capitais, 25 know-how e tecnologia. A lição parece ter sido aprendida, mas nem todos souberam dela retirar os ensinamentos adequados. Ça viendra, à son temps... 26 3. Política internacional: por que não temos paz e segurança? A história da humanidade é, em grande medida, uma história de guerras, como ensina John Keegan em seus muitos livros de história militar. Guerras de conquista por territórios, recursos e escravos; guerras de defesa contra inimigos mais poderosos; impérios expansionistas (desde os mongóis, sobre a China, até a Alemanha e o Japão, no século 20); alianças militares (defensivas e ofensivas) e enormes gastos estatais com aparatos bélicos custosos; e, finalmente, uma tentativa de deslegitimar a guerra, no contexto do direito internacional. Este é o cenário evolutivo – nem sempre para melhor – das sociedades humanas desde a mais remotaantiguidade. Os ‘progressos’ da civilização também assistiram à expansão exponencial da capacidade de matar, como demonstrou Niall Ferguson (em The War of the World). É duvidoso que se possa traçar uma trajetória linear dos progressos da paz e da promoção dos direitos humanos desde aqueles tempos até os nossos dias; mas também é certo que o mundo fez enormes progressos desde a antiga prática de cortar orelhas e línguas e furar os olhos dos adversários vencidos (ou de simplesmente matá-los, convertendo suas esposas e filhos em escravos) até a observância relativamente bem aceita, atualmente, dos códigos de guerra e das limitações da ‘arte de matar’ que foram sendo gradualmente implementados desde o surgimento da Cruz Vermelha e dos diversos protocolos a esse respeito identificados com Haia e Genebra, sobretudo. Em uma palavra, a política internacional tornou-se menos guerreira, menos conquistadora e menos imperialista, tornando-se mais parlamentar e mais fundada no direito internacional, pelo menos para aqueles países que aceitaram plenamente as normas limitadoras do ‘direito da guerra’ (basicamente contidas na Carta da ONU e alguns outros instrumentos pertinentes). Desde o final da Segunda Guerra Mundial não mais ocorreram grandes conflitos globais – em virtude, em grande medida, da posse de armas nucleares pelos principais ‘contendores’ – e as principais potências militares demonstraram um notável poder de contenção na condução de seus conflitos regionais ou nas guerras por procuração (proxy wars). É realisticamente previsível que elas continuem a se comportar da mesma forma, sobretudo no contexto da interdependência econômica contemporânea e do fim dos impérios coloniais. 27 Menos otimista, contudo, é o cenário das guerras regionais, dos conflitos intra- estatais (guerras civis, étnicas ou religiosas, a busca de autonomia por minorias que se consideram oprimidas, enclaves derivados dos azares da geopolítica e da antiga geografia colonialista, etc.) e, sobretudo, daquilo que os especialistas chamam, desde já, de ‘quarta guerra mundial’: o terrorismo (a ‘terceira’ tendo sido a Guerra Fria, entre os blocos socialista, liderado pela finada União Soviética, e ‘ocidental’, ainda identificado com a supremacia militar e tecnológica dos Estados Unidos, e que se concluiu pela implosão do primeiro, sem qualquer tipo de enfrentamento militar). Ainda que a tese seja seriamente disputada por alguns especialistas, parece ser um fato histórico que países dominados por economias de livre mercado, totalmente integrados na economia mundial e dispondo de instituições democráticas consolidadas, não costumam iniciar guerras contra países e economias similares (ou semelhantes). Isto não quer dizer que países que possuem McDonalds nunca entrarão em guerra com seus equivalentes, posto que é possível encontrar produtos e serviços globais em quaisquer ditaduras da atualidade, mas que é bem menos provável que democracias de mercado recorram à solução militar para encaminhar suas disputas com outros estados e países: elas costumam recorrer às instituições e instrumentos criados no último meio século de multilateralismo político e judicial, hoje expressos em ‘tribunais’ ou ‘cortes’ internacionais de natureza geral ou de cunho especializado (como no órgão de solução de controvérsias da OMC, por exemplo). Resulta desse cenário que os conflitos mais prováveis e os enfrentamentos mais cruéis – em termos de violações graves dos direitos humanos e das próprias ‘leis da guerra’ – são aqueles existentes entre Estados (alguns ‘falidos’) ou dentro de países insuficientemente desenvolvidos no plano da governança democrática, do funcionamento de instituições estatais essenciais do ponto de vista dos serviços públicos e de requerimentos básicos como justiça, segurança coletiva, franquias democráticas e livre expressão dos direitos das minorias. Estados autocráticos, ditaduras pessoais, caudilhos arbitrários são mais suscetíveis de constituírem ameaças à paz e à segurança (regionais ou internacional). Numa conclusão algo simplista, pode-se dizer que países democráticos, Estados dotados de instituições governamentais de comando submetidas a ritos eleitorais regulares, caracterizados por liberdade individual, justiça independente e governo 28 limitado, são os mais suscetíveis de contribuírem para a causa da paz e da segurança internacionais. Em sentido contrário, conflitos militares ou mesmo cruéis matanças de civis inocentes são mais suscetíveis de aparecer e se disseminar entre países ou dentro de Estados caracterizados pela inexistência de estruturas ‘normais’ de governança, total desrespeito à lei e ao direito das minorias, falta de liberdades elementares e anomia social parcial ou generalizada. De fato, observando-se os conflitos contemporâneos – guerras regionais, guerras civis, lutas étnicas e intertribais e terrorismo de fundo religioso ou com origem no nacionalismo extremado – constata-se que eles correspondem exatamente aos cenários descritos acima. Infelizmente, o mundo ainda é caracterizado pela soberania absoluta dos Estados nacionais, mesmo daqueles incapazes de proteger suas populações ou que estão na própria origem das piores violações dos direitos humanos e das franquias democráticas. A despeito dos progressos registrados no caminho do direito das gentes, o mundo westfaliano ainda não está próximo de ser substituído por um sistema universal integrado por regimes constitucionais de estilo kantiano. Um dia, talvez... 29 4. Direitos humanos: o quanto se fez, o quanto ainda resta por fazer Direitos humanos denotam uma categoria relativamente recente na história da humanidade. Num sentido lato, o conceito pode remontar aos iluministas escoceses e franceses dos séculos 17 e 18; num sentido estrito, ele está vinculado aos principais instrumentos nacionais e universais relativos aos direitos do indivíduo e dos cidadãos, cujos exemplos mais relevantes são, sem dúvida alguma, a Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, da Revolução francesa, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela ONU em 1948. A declaração de independência americana (1776) também contém os principais elementos filosóficos que a vinculam à mesma tradição iluminista britânica e ao constitucionalismo europeu do século 18. Muitos outros instrumentos de promoção e de proteção dos direitos humanos, individuais ou coletivos, ou até avançando para direitos econômicos, sociais e culturais, foram sendo propostos, negociados e implementados desde então, numa proliferação de iniciativas humanitárias que só perde para a disseminação e extensão das violações aos mesmos direitos; isso geralmente ocorre, ao longo da história, em situações de guerra, de graves conflitos políticos ou a mando de ditadores, quase tão comuns quanto as tentativas, em grande parte frustradas, de prevenir ou coibir esses atentados aos direitos humanos. Uma consulta aos sites da ONU, assim como aos de ONGs especializadas, poderá ilustrar a riqueza dos mecanismos e instrumentos já aprovados ou em curso de implementação nesse campo; não haveria espaço, neste ensaio, para uma relação completa dessa imensa coleção, infelizmente ainda mais virtual do que real, no contexto do mundo real de iniquidades que é o nosso. Embora se possa traçar uma linha evolutiva quanto à definição, defesa e promoção ativa dos direitos humanos ao longo do processo civilizatório, desde a antiga mutilação punitiva ou a eliminação pura e simples dos vencidos nas batalhas, até o respeito à integridade física dos prisioneiros de guerra, e desde os despotismos mais absolutos até a afirmaçãoplena das liberdades políticas e individuais na atualidade, não existe uma correlação unívoca entre progressos materiais e culturais das sociedades humanas e o respeito a todos esses direitos. Não por outra razão, a nação alemã, pátria de Kant, Goethe e tantos outros intelectuais humanistas, permitiu, também, num momento de grande desenvolvimento educacional, tecnológico e científico, a ascensão e 30 o pleno ativismo criminoso de um Hitler, provavelmente o exemplo mais escabroso e desprezível do violador absoluto dos direitos humanos em pleno século 20. Embora os sistemas controlados por Stalin e Mao Tsé-Tung superem em número absoluto de mortos a máquina do holocausto nazista, Hitler foi diretamente responsável pela eliminação física de milhões de pessoas, antes de tudo judeus inocentes, mas também prisioneiros de guerra soviéticos. Filosoficamente, a afirmação dos direitos humanos deita raízes em tempos imemoriais, começando com o povo judeu, passando pela Grécia antiga e pelos ensinamentos de Buda, Jesus Cristo e dos filósofos medievais, até alcançar os humanistas da era moderna, em especial os iluministas e constitucionalistas. Na era contemporânea, os direitos humanos foram formalizados em instrumentos mandatórios ou recomendatórios, em todo caso dotados de força de lei quando incorporados à legislação interna dos Estados democráticos consolidados. No plano da ação prática, as primeiras iniciativas em defesa dos direitos humanos se referem à luta pela abolição da tortura e dos castigos cruéis, no contexto da reforma religiosa e do combate à Inquisição, e à campanha pela abolição do tráfico e do trabalho escravo, na Inglaterra oitocentista. A luta contra a mão-de-obra servil constituiu, igualmente, a primeira afirmação da sociedade civil no contexto da transição do Brasil para a modernidade, combate ao qual está associado o nome de Joaquim Nabuco, dentre vários outros que pugnaram pela extinção da mais longa e mais perniciosa instituição jamais existente no Brasil. É justamente nessa área que existe a mais antiga, ainda efetiva, entidade de defesa dos direitos humanos: a Anti-Slavery Society, de cujos relatórios periódicos o Brasil é, infelizmente, um frequentador reincidente e regular. A despeito desse combate mais do que secular, a escravidão direta – ou seja, a posse individual de um escravo – e diversas outras formas de servidão involuntárias são ainda ocorrências muito comuns em diversos países tropicais. As violações mais disseminadas dos direitos humanos, contudo, são aquelas relativas aos direitos políticos e religiosos de milhões de pessoas nos mais diversos países, sem mencionar os graves atentados existentes em situações de guerra (com maior incidência no continente africano). Novas formas de violações dos direitos humanos continuam a ser criadas por governos autoritários, herdeiros ou não dos terríveis experimentos dos fascismos e 31 comunismos existentes no século 20, cuja contabilidade macabra se cifra em milhões de mortos, sobretudo nos gulags soviético e chinês. No caso da China, embora os campos de reeducação dos tempos do maoísmo delirante não sejam mais comuns, a repressão aos dissidentes do regime e a censura absoluta aos meios de comunicação de massa – com destaque para a internet – continuam a ser exercidos de forma ampla e disseminada. Ao fim e ao cabo, a defesa e afirmação dos direitos humanos ainda estão em sua infância, no Brasil e no mundo, cabendo aos espíritos humanistas um trabalho constante de vigilância e de promoção desses direitos. 32 5. Políticas econômicas nacionais: divergências e convergências Dois dos desenvolvimentos mais auspiciosos nas últimas duas ou três décadas da história econômica mundial são a aproximação conceitual, ou seja, teórica, e a gradual convergência, no plano prático, das políticas públicas da área econômica dos principais protagonistas da interdependência econômica contemporânea. Com efeito, embora continue a haver enorme dispersão prática nas políticas setoriais – relativas à distribuição de renda, estrutura tributária, políticas industrial, agrícola, trabalhista ou educacional – das grandes economias modernas, a divergência parece ser menor no que tange aos fundamentos conceituais e aos aspectos operacionais das principais políticas macroeconômicas – monetária, fiscal e cambial. Mais um pouco e se poderia dizer que o “pensamento único” está triunfando na prática no que se refere ao principal coquetel de políticas econômicas básicas. Muitos não concordarão e, portanto, cabe a discussão que empreendemos a seguir. Certo, não se pode ainda falar de coordenação e convergência entre essas políticas, mas, na presente fase de globalização financeira, a distância entre os processos de formulação dessas políticas e o modo de funcionamento das agências públicas encarregadas de sua implementação e monitoramento constante quase não apresentam diferenças de natureza, apenas contrastes quase superficiais. As razões se devem, em grande medida, ao estreitamento dos horizontes possíveis de atuação dos governos responsáveis, num contexto em que os mercados estão praticamente unificados, seja pelo lado comercial, seja pela vertente dos fluxos financeiros, seja ainda pelos mecanismos de cooperação desenvolvidos desde o final da Segunda Guerra, com destaque para as duas entidades de Bretton Woods. O FMI teria, finalmente, triunfado, depois de tantas críticas e diatribes? Não exatamente, mas os países já estão adotando o “modelito básico”, quase um prêt-à-porter: flexibilidade cambial, responsabilidade fiscal, abertura moderada ao comércio e investimento, contenção monetária, viés anti- inflação, multilateralismo de meios, enfim, um menu trivial das políticas econômicas fundamentais, que podem diferir em sua aplicação prática, mas não se distinguem nos mecanismos principais de aplicação. 33 O chamado ‘fim da História’ tem algo a ver com essa evolução positiva das políticas econômicas nacionais: a inexistência de alternativas credíveis aos sistemas de mercado – não necessariamente democráticos – e o estreitamento da liberdade deixada aos governos soberanos na fixação de políticas fundamentais do terreno econômico contribuíram para o processo de aproximação e até de identidade entre essas políticas básicas. Já não são mais possíveis, ou aceitáveis, as políticas de beggar-thy-neigbhor (empurre a crise para o seu vizinho) muito comuns nas crises do entre-guerras, assim como estão totalmente banidas as formas mais nefastas de protecionismo comercial – controles quantitativos, discriminação entre parceiros, subsídios diretos e restrições não justificadas em bases legítimas – para nada dizer dos controles de capitais (ainda praticados em escala mais restrita) e das desvalorizações agressivas das moedas nacionais. De fato, na crise atual, as tentações protecionistas – que foram muitas, certamente – não se traduziram num retrocesso generalizado do sistema multilateral de comércio. Por outro lado, tampouco se assistiu, como nos anos 1930, ao festival de desvalorizações agressivas que acabavam sendo neutralizadas por ações similares em outros parceiros, restrições generalizadas aos pagamentos externos e controle quase total sobre os fluxos de capitais, sem mencionar a própria inconversibilidade das moedas. Ou seja, evitou-se o pior: o recurso a medidas extremas e o essencial da cooperação internacional foi preservado, com até algum reforço do FMI. A despeito do que possam dizer economistas ‘alternativos’ e intelectuais algo exóticos de países periféricos, que continuam a denunciar de forma tão vaga quanto desprovida de fundamentaçãoas políticas ‘neoliberais’ dos países da OCDE, o fato é que essas políticas vêm convertendo-se no mainstream das políticas econômicas básicas dos principais protagonistas da interdependência global. A fundamentação para essa relativa homogeneidade de práticas e instrumentos macroeconômicos parece constituir- se de um conjunto uniforme de princípios e regras de cunho pragmático. Elas são as seguintes: (a) embora a inflação seja sempre um recurso à disposição de governos irresponsáveis, devido aos monopólios da emissão monetária e da fixação dos juros básicos, as sociedades e grupos setoriais já não aceitam mais ver o seu poder de compra erodido pela permissividade emissionista de gastadores contumazes; 34 (b) ainda que todos os eleitores apreciem gastos públicos, especialmente em áreas sociais, os cidadãos cada vez mais escolarizados dos tempos atuais sabem que eles serão chamados a pagar a conta, de uma forma ou de outra, em algum momento do futuro (juros da dívida pública, inflação ou diminuição das prestações sociais); (c) por mais que os exportadores se esforcem para manter o câmbio baixo, os cidadãos e governos tendem a preferir taxas realistas ou até valorizadas, posto que elas ajudam no combate à inflação e dão essa sensação de riqueza num mundo cada vez mais globalizado. Por outro lado, mesmo com todos os protestos de antiglobalizadores pouco racionais, e até de alguns governos populistas, o fato é que o receituário padrão implementado pelo FMI e outras agências intergovernamentais encontra cada vez mais aceitação entre os países anteriormente contestadores de sua filosofia e formas de atuação. A começar que, depois da implosão e virtual desaparecimento do socialismo, as instituições de Bretton Woods se tornaram praticamente universais, possuindo um corpo de associados provavelmente superior ao de membros da ONU; por outro lado, as experiências fracassadas de estatismo exacerbado, de fechamento ao investimento estrangeiro e de protecionismo mais renitente deram lugar a políticas e práticas mais abertas e compatíveis com o modelo OCDE de interdependência econômica; por fim, a própria globalização se encarregou de premiar os inseridos e de punir os recalcitrantes, com taxas de crescimento diversificadas e maior estabilidade nos dados fundamentais das macroeconomias nacionais. Dessas constatações emergiram a confluência de políticas e, alguns casos, até convergência e coordenação. Não se espere, porém, que o bloco das economias mais importantes – representado em grande medida pelo atual G20 financeiro – adote um receituário único de políticas macroeconômicas e setoriais, ou que todos esses países passem a trocar receitas de liberalização entre si, para sua maior integração no processo de globalização: governos democraticamente eleitos ainda têm de responder a demandas contraditórias de seus eleitores e suas políticas são tão divergentes quanto as orientações filosóficas ou ideológicas dos líderes eleitos. Mas, em blocos mais restritos ou filosoficamente mais próximos – como o grupo da moeda única da UE e o núcleo de economias mais avançadas da OCDE, como o G7 – as diferenças entre essas políticas são mais de 35 circunstância ou de dosagem dos ‘remédios’ do que propriamente de natureza essencial da prescrição efetuada. Claro, determinados governos mais dirigistas – coloquemos como exemplo o chinês – consegue ainda modular a oferta geral de crédito na economia simplesmente dando ordens aos principais banqueiros (que são em grande medida estatais), o que nas democracias exige coisas mais complicadas como conselhos monetários, comitês de política monetária, fiscalização dos parlamentos, escrutínio da grande imprensa e sobretudo o debate aberto entre especialistas. Mas, no fundamental, os mecanismos não diferem muito dos nossos procedimentos relativos a depósitos compulsórios, direcionamento dos depósitos para determinados créditos prioritários, enxugamento temporário por mecanismos ad hoc em caso de necessidade e coisas do gênero. E, para quem pretende que a China destoa das regras do consenso de Washington e adota uma filosofia econômica totalmente contrastante com o que é praticado nos principais países do Ocidente capitalista, vale lembrar que ela tem sido extremamente responsável na implementação de suas políticas econômicas e que o seu sucesso econômico – notável nas últimas três décadas – se deve precisamente a sua abertura, não ao que ainda resta de dirigismo no seu sistema econômico. Em resumo, a despeito de flutuações conjunturais e de objetivos nacionais diferenciados, as políticas econômicas nacionais caminham para maior convergência e identidade de propósitos, não para horizontes muito divergentes entre si. Repetindo: a China, por muitos apontada como exemplo de política nacional própria, que continua a manter um controle estatal sobre as principais alavancas estratégicas de sua economia, caminha, a despeito de tudo, para mais liberalização, não para menos: para todos os efeitos práticos, a filosofia de suas políticas econômicas básicas é neoliberal, não socialista ou estatizante. Não se trata ainda do fim da História, mas em matéria econômica, estamos assistindo a uma espécie de “fim da Geografia”... 36 6. Cooperação internacional e desenvolvimento: isso muda o mundo? O conceito de cooperação, num entendimento puramente formal da palavra, implica uma ação voluntária de dois ou mais parceiros em prol de objetivos comuns, sendo subjacente ou implícita a ideia de que juntos eles conseguirão fazer algo que talvez não pudessem alcançar isoladamente. Nessa compreensão, a realidade da cooperação é relativamente recente na comunidade internacional, posto que até o advento dos primeiros organismos intergovernamentais, a partir de meados do século 19, e mais especificamente da ONU, um século depois, não havia espaços políticos ou instrumentos para o estabelecimento de uma cooperação genuína entre Estados soberanos. Até então, a realidade das relações entre Estados era feita, na melhor das hipóteses, de concorrência em bases autônomas, ou, na pior, de animosidade ou de hostilidade, que podiam resultar, inclusive, em conflitos militares, sendo muito comum a relação de dominação, de exploração e de subordinação entres os países. Na acepção moderna do termo, a realidade da cooperação está intrinsecamente ligada aos objetivos da Carta da ONU e à atuação de suas agências especializadas, nos diversos campos estabelecidos desde 1945 e que vem sendo ampliados gradualmente desde então, sempre quando novos temas – energia nuclear, direito do mar, meio ambiente, direitos da criança e da mulher, habitação, e vários outros – recolhem certa unanimidade dos Estados no sentido de seu tratamento multilateral. Os dois objetivos prioritários da ONU são a cooperação entre os Estados para a preservação da paz e da segurança internacional e para promover o desenvolvimento dos povos dos países membros. Obviamente, como não se pode contornar a questão central do poder – ou seja, quem manda e quem obedece –, a ONU (como antes dela a Liga das Nações) não poderia dar um encaminhamento satisfatório ao primeiro conjunto de objetivos sem fixar mecanismos não igualitários de resolução de disputas, hoje consolidados no seu Conselho de Segurança (não muito diferente do sistema oligárquico da Liga); aí não se trata tanto de cooperação, mas de coerção, o que também é necessário. Descontados, porém, os poucos episódios de coerção multilateral – ou seja, as operações de peace keeping (muitas) ou de peace making (pouquíssimas) da ONU – a maior parte da agenda onusiana (PNUD e a dúzia de agênciasespecializadas atuantes) 37 está prioritariamente voltada para a cooperação ao desenvolvimento, cenário que implica a mesma relação desigual já existente na questão do poder, ou seja, países que prestam cooperação, de um lado, e países que recebem cooperação, de outro. Esse tipo de relação assimétrica – que desde o início da ONU dividiu os países em desenvolvidos e em desenvolvimento, com a situação bizarra, mas temporária, dos chamados “socialistas” – tem sido preservado desde então, sem mudanças relevantes ou significativas no plano das capacitações nacionais. Em outros termos, a interação entre cooperação e desenvolvimento não parece ter produzido os resultados esperados pelos seus promotores multilateralistas de 60 anos atrás. A questão, portanto, que deve ser colocada de forma clara é se esse tipo de ação cooperativa, nas formas que vêm sendo prestadas tradicionalmente, pode, de fato, produzir o que propõe, ou seja, desenvolvimento. O registro histórico do período transcorrido desde a aplicação sistemática e institucional da cooperação técnica ao desenvolvimento só pode ser avaliado em categorias inferiores, do tipo sucesso moderado até o fracasso evidente, numa gradação que possui vários casos de lento progresso, mas nenhum de rápida prosperidade em direção ao desenvolvimento. A realidade do desenvolvimento mundial, nos últimos dois séculos e meio – grosso modo, desde o início da Revolução Industrial – não foi feita de grandes alterações na quase imóvel hierarquia econômica do desenvolvimento: a despeito do desaparecimento de alguns grandes impérios e a descolonização completa do chamado Terceiro Mundo, a grande divergência se manteve praticamente intacta durante a maior parte do período. Os que já eram desenvolvidos no século 19 continuaram desenvolvidos no decorrer do século 20, e as economias atrasadas e periféricas permaneceram, em grande medida, atrasadas e periféricas. Os únicos países a terem saltado a barreira do desenvolvimento durante esse período foram, de uma parte os nórdicos, de outra o Japão, todos por terem reunido condições culturais e institucionais que resultaram num processo autogerado de crescimento sustentável e transformador das antigas estruturas conservadoras e fixadas na economia primária. A situação não conheceu mudanças notáveis durante a maior parte do século 20, sendo apenas alterada pela emergência de algumas nações asiáticas à plena capacitação industrial, logo sendo chamados de NICs, ou novos países industriais. Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura são provavelmente os únicos exemplos de países que 38 alcançaram o desenvolvimento na segunda metade do século 20, tendo partido de patamares quase tão medíocres quanto os da maioria dos países da Ásia, da África e da América Latina, que, aliás, ainda patinam no subdesenvolvimento. Instrutivo constatar que nem o Japão ou os nórdicos, nem qualquer um dos países que se qualificaram posteriormente deveram a melhoria de suas situações respectivas à cooperação ao desenvolvimento. E resulta pelo menos estranho que dos países que mais receberam cooperação ao desenvolvimento desde os aos 1950 – como os africanos, em cifras equivalentes a muitas dezenas de bilhões de dólares – nenhum conseguiu escapar do não-desenvolvimento. Isto não quer dizer que ela seja absolutamente ineficaz, podendo ser útil, ou até mesmo necessária, nos casos mais dramáticos de inexistência de estruturas físicas e institucionais de um Estado ‘normal’ e de grande atraso educacional. Mas ela não é decisiva, ou suficiente, a ponto de mudar os dados básicos de um pais que não consiga reunir ele mesmo as condições para um processo endógeno de desenvolvimento (que implica a manutenção de um processo contínuo e sustentável de crescimento econômico, com transformações estruturais via inovações tecnológicas e distribuição social dos resultados da prosperidade assim criada). Ao contrario, ‘excesso’ de ajuda pode até prejudicar o processo de desenvolvimento, ao tornar o país em questão dependente da assistência externa, quando ele deveria estar buscando suas próprias fontes de crescimento num ciclo autogerado de investimento produtivo, poupança e atividades empreendedoras. Em resumo, a cooperação não tem a capacidade de mudar o destino dos países se os recebedores não souberem se organizar para inserir a economia nacional nos circuitos da economia mundial, pelo lado do comércio e dos investimentos, não pela vertente da assistência externa. Em retrospecto, a única ajuda a ser prestada por países ricos aos países pobres deveria ser aquela que simplesmente qualifica a população desses últimos no domínio do ensino universal de base e aquele técnico-profissional; todo o resto deveria ser deixado em segundo, ou terceiro, plano. 39 7. Guerra e paz no contexto internacional: progressos em vista? Toda pessoa sensível e educada, toda sociedade próspera, todos os regimes democráticos aspiram à paz. E, no entanto, a humanidade tem conhecido a guerra por mais de nove décimos do tempo decorrido desde o estabelecimento das primeiras civilizações sedentárias (mas várias guerras foram conduzidas por sociedades nômades, como os hunos e os mongóis). A razão parece ser simples: durante os mesmos nove décimos de história humana, as sociedades tem sido brutas, os homens pouco instruídos, a escassez uma regra mais constante do que a abundância e poucos regimes poderiam legitimamente ser chamados de democráticos, no sentido lato do termo (isto é, prevendo eleições para os cidadãos, mesmo com representação limitada a certa elite, como na Grécia antiga ou nas repúblicas italianas do Renascimento). É difícil traçar uma correlação unívoca, ou mecânica, entre progressos materiais, avanços democráticos domésticos e educação do povo; mas ela de fato existe, ainda que de forma não linear e não determinista. Algumas sociedades atrasadas são perfeitamente pacíficas, ao passo que democracias avançadas podem se lançar em guerras de conquista e em aventuras imperialistas. Mas a própria existência de “leis da guerra”, no contexto contemporâneo, indica que a humanidade realizou imensos progressos desde os tempos em que a eliminação de prisioneiros de guerra e tratamentos cruéis eram a regra em sociedades que consideravam as guerras corriqueiras e inevitáveis. Se existe alguma linearidade cronológica na “arte da guerra”, poderia ser esta: as guerras em sociedades antigas eram entre clãs e tribos rivais, geralmente pela busca de recursos escassos, aprovisionamento em escravos e outras necessidades urgentes da vida material, num contexto de equilíbrios instáveis pela sobrevivência física da comunidade; sociedades sedentárias, de base agrícola e mercantil, com alguma produção manufatureira, eram frequentemente objeto da cupidez de tribos de pastores guerreiros, formidáveis por suas táticas militares, atacando e fugindo rapidamente, levando com eles bens e mulheres, quando não, destruindo tudo que encontravam; sociedades mais estruturadas, com cidades vibrantes e grande comércio internacional passaram a contratar mercenários para a sua defesa, o que nem sempre dissuadiu príncipes mais ‘empreendedores’, capazes de comandar forças mais extensas, bem 40 treinadas; daí se passou à constituição de exércitos nacionais, baseados no recrutamento obrigatório e contando com profissionais devotados unicamente às artes militares, no quadro de Estados unificados e tendencialmente conquistadores; sociedades industriais também souberam produzir guerras industriais, ou seja, alinhando soldados como operários numa fábrica, e destruindo não apenas exércitos, mas cidades inteiras;culturas sofisticadas não foram garantia contra tiranos belicosos, que lançaram seus povos em guerras genocidas, com um poder mortífero situado na casa dos milhões; finalmente, a arma atômica conteve o desejo de matar das grandes potências, mas incitou aventureiros e fanáticos a se lançarem na proliferação artesanal e nos ataques terroristas. Talvez a linearidade cronológica esteja relativamente correta, mas não existe muito progresso moral desde o tempo das cavernas. Se houve algum avanço civilizatório, ele certamente se situa nos instrumentos de contenção dos instintos guerreiros dos homens, posto que os sentimentos primários continuam os mesmos de dez mil anos atrás: amor, ódio, cupidez, ambição de poder, perversões diversas que não dignificam a mensagem dos filósofos da paz, aqueles que pretendem que repúblicas constitucionais são mais propensas à paz perpétua. Pode ser, muito embora isso não tenha impedido o surgimento de tiranos ocasionais, animados de uma “vontade de poder” homicida. Entretanto, uma vez construído um sistema político baseado no famoso conceito dos checks and balances, com uma divisão satisfatória e equilibrada entre os poderes, é mais difícil que apareçam, nesse tipo de sociedade, ditadores de opereta e caudilhos belicosos, como em certos países não muito distantes. Governos limitados constituem, certamente, uma melhor garantia de paz do que governos despóticos, e este parece ser um vínculo de causalidade facilmente inteligível na vida das nações. Infelizmente, governos desse tipo constituíam uma ínfima minoria até poucas décadas atrás. Embora o número dos regimes democráticos venha aumentando de forma consistente em tempos recentes, o mundo ainda não é governado de maneira democrática, nem corre o risco de sê-lo no futuro previsível. Mesmo a Carta das Nações Unidas, supostamente garantidora da paz e da segurança internacionais, baseia-se no princípio westfaliano da soberania absoluta dos Estados membros. Embora seu preâmbulo refira-se aos “povos das Nações Unidas”, todos os seus artigos e capítulos 41 remetem aos Estados membros, que possuem, assim, preeminência sobre os direitos do homem e do cidadão. Democracia e direitos humanos não são exatamente princípios organizadores da vida internacional; enquanto não o forem, não existe nenhuma garantia de que as guerras sejam apenas um registro do passado, e não uma possibilidade do presente. O fato alentador, contudo, é que as guerras globais, típicas do ‘momento napoleônico’ que caracterizou o sistema internacional desde o final do século 18 até meados do século 20, parecem ter perdido o ímpeto, por uma combinação da dissuasão nuclear e a disseminação de regimes democráticos na maior parte do Ocidente desenvolvido. Atualmente, as guerras mais prováveis – a despeito do cenário ainda tradicional dos conflitos no Oriente Médio, mas que justamente mobilizam Estados despóticos, de um lado, contra a única democracia existente na região – não são mais entre Estados, mas dentro dos Estados, ocorrendo em circunstâncias frequentemente associadas a Estados falidos, conflitos religiosos e enfrentamentos étnicos, geralmente envolvendo minorias oprimidas. Não existe previsão capaz de antever o surgimento de democracias estáveis nesses cenários dominados pela desigualdade, pela pobreza, por regimes autoritários, desrespeitadores dos direitos humanos e das liberdades democráticas (reunião, expressão, religião, representação política e partidária etc.). Talvez a aposta kantiana não esteja errada: ela só estava dois ou três séculos antes do tempo certo. Os progressos da humanidade são irritantemente lentos, infelizmente... 42 8. Individualismo e interesses coletivos: qual a balança exata? A distinção entre interesses individuais e coletivos é antiga. No plano das ideias ela já estava presente nas reflexões de filósofos britânicos desde o século 17 e, possivelmente, antes disso, em São Tomás de Aquino e em alguns filósofos gregos. No plano de suas consequências práticas, ela aparece com maior nitidez no curso da revolução francesa, quando os conceitos mais importantes do liberalismo são estabelecidos, primeiro de forma empírica, depois de maneira mais formal, com os constitucionalistas franceses. Ao mesmo tempo, são desenvolvidos os conceitos opostos do socialismo, com o propósito de promover os interesses coletivos, enquanto o liberalismo pode ser equiparado, justamente, à defesa do individualismo. A topografia política tem observado desde essa época exatamente essa divisão fundamental, que resume todo o debate político dos séculos 19 e 20 e que parece destinado a perdurar indefinidamente. Esse é, provavelmente, o ponto central dos dilemas políticos modernos, o grande divisor de águas entre as duas grandes filosofias de nossa época, o elemento definidor por excelência das políticas públicas contemporâneas. Todos os Estados organizados da atualidade, pelo menos os que podem ser caracterizados como minimamente democráticos, se debatem com essa contradição fundamental, provavelmente duradoura em qualquer sociedade: a de definir e aplicar políticas macroeconômicas e setoriais que levem em conta, de um lado, a defesa legítima da privacidade e dos direitos individuais, e que possam implementar, de outro lado, serviços coletivos e bens públicos que contemplem outros direitos legítimos da comunidade (segurança, transportes, escolas, hospitais, além de garantia de emprego e boas perspectivas na aposentadoria). As populações dos Estados modernos não se inquietam tanto com os dilemas conceituais envolvidos na dicotomia do problema em causa, quanto com seus aspectos práticos, inclusive porque elas estão sempre demandando novos serviços e novas garantias – de emprego, de residência, de seguridade social, até de lazer – que antigamente eram providenciados pelos próprios indivíduos ou famílias. Governos, de seu lado, não discutem posturas filosóficas, apenas implementam políticas, embora os governantes possam ser influenciados – mas isto parece óbvio – por determinadas 43 concepções que orientam essas políticas, que podem se aproximar, ou se afastar, de um dos dois polos, geralmente mais constrangidos pelos orçamentos do que motivados pelas concepções subjacentes. A realidade dos Estados contemporâneos, pelo menos os do arco capitalista democrático, é feita de escolhas contínuas entre maiores ou menores medidas intrusivas na vida dos cidadãos, ou contribuintes. A política nesses países é feita de uma balança que se move regularmente entre políticas de cunho socialdemocrata – e, portanto, mais intrusivamente pendentes para o lado dos direitos coletivos – e políticas liberais, tendentes a reduzir impostos e promover os interesses privados. As eleições na Europa ocidental e nos EUA, desde várias décadas, tem confirmado essa indecisão constante dos eleitores entre governos de “direita” – supostamente identificados com políticas liberais – e governos de “esquerda”, que implementavam ativamente políticas de cunho social-democrático. Na prática, seja por inércia dos cidadãos, seja por populismo dos políticos, que gostam de prometer serviços públicos em cada vez mais áreas de interesse privado, todos os governos acabam avançando sobre os direitos individuais, de que é prova o crescimento constante da carga fiscal nos Estados membros da OCDE. Essa realidade é de certo modo surpreendente quando estudos empíricos feitos pelos melhores institutos independentes tem demonstrado que os países caracterizados por maior grau de liberdade – promotores, portanto, dos direitos individuais – são também os de maior crescimento, maior igualdade, menor
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