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CULTURA DE MASSA SiLvi11 Borelli Simone Luci Pereira O tema da culrura de massa mostra-se fundamental para a compreensão dos processos e embates por que passam as questões cultma.is na modernidade capi talista. Sua presença nos debates sobre cultura, arre, mercado e política- tanto na esfera acadêmica, como em outras arenas sociais, e até no senso comum - aéesta e justifica a pertinência de retomarmos a contextualização desce tema, seus principais marcos conceitua.is e históricos e as perspectivas para o debate contemporâneo. Estudos teóricos e críticos sobre o fenômeno começam a surgir nas décadas de 1920-30, impulsionados pela presença e força que a cécnica e os meios de comunicação de grande alcance e seus conteúdos passam a ter naquele momen to. Entretanto, como sugere Marcín-Barbero (1997), é necessário compreender que os meios e a cultura massiva não surgiram repentinamente nessa época, mas viveram a gestação lenta e gradual de seus principais elementos nos sécu los anteriores, desde o alvorecer da modernidade ocidental. Nos processos de massificação da sociedade durante o século x1x parecem estar as origens daquilo que viria, apenas no século XX, a ser nomeado "cultura de massa". Por isso, retoman1os aqui criticamente um pouco desse processo histórico. A ideia de uma sociedade de massas cem matrizes históricas, sociais e políticas nos processos de industrialização, urbanização e estabelecimenro de uma economia de mercado, desde o início do século XIX, em países como Inglaterra e França. Surgia assim o fenômeno das massas, da aglomeração urbana, das multidões na rua, das revoltas trabalhadoras, como a Revolução de 1848, a Comuna de Paris, entre ouu-as. Máquinas, multidões, cidades: um trinômio que significava o progresso, o fascínio, mas também o medo devido ao estranhamenco que as novas condições de vida impunham aos indivíduos, que se viam desgarrados das relações familiares, tradi cionais, rurais, com suas correlatas relações de fidelidades, tradições, concepções de tempo regido pela natureza, ligação com a terra. Mas o medo advinha também por parte das elites, que viam uma ameaça constante na mistura e proximidade física entre diferences (social, cultural e economicamente falando). Vai-se construindo, a partir de então, ramo um processo de incorporação (que não excluía também os processos de opressão e exclusão) dessas camadas populares recém-chegadas do campo, transformadas em "massas urbanas", aos elementos de consumo e à cultura hegemônica; como também teorias formuladas pelo pensamento conservador da 101 102 UJ o ! o elice da época que pudessem compreender essas massas e seu comportamento, bem como forjar códigos e ações para o seu ordenamenro/disciplinamento e controle. Essa multidão, ou massa, passa a ser construída, representada e encarada, no pensamento médico, urbanista, social e ftlosófico do século XIX e início do xx, como uma totalidade amorfa sem objetivos ou projetos, ameaçadora do controle e da ordem social. A formulação de teorias conservadoras serviria para explicar o fenômeno das massas, organizando a visão da burguesia/elite sobre as camadas baixas da população, consideradas perigosas, por isso devendo ser controladas e reprimidas, sob o risco de, sem isso, acabarem com a civilização, racionalidade e progresso que se buscava no século das Luzes. Dentre estas teorias, surgem as ideias de Alexis de Tocqueville sobre a maioria e seu poder, como também as de Stuart Mil!, pressupondo que a junção de indivíduos isolados com sua consequente agregação levaria a uma uniformização de diferentes e ao império da mediocridade coletiva. É nessa época que começam os escudos sobre a psicologia das multidões, cujos argumentos partem da noção de que as massas sempre têm ações incons cientes, irracionalistas, bestializantes, e por isso precisariam ser controladas pela parcela racional e civilizada da sociedade. Den cro desse pensamento conservador, pode-se perceber também as ideias de Gustave Le Bon, para quem as massas são decorrência da sociedade industrial, que cria multidões articuladas à turbulência e onde uma cerca alma coletiva leva os indivíduos a agirem em grupo de maneira diversa da forma como se comportariam se estivessem isolados. Em comum, essas formulações guardam uma visão pessimista e uma ideia pejorativa dessas massas e da sociedade que então se edificava sob sua presença, significando ajuntamento, multidão, mistura, uniformização, homogeneização, irracionalidade. Essas ideias ganharam lastro e se tornaram dominantes nas primeiras décadas do século XX, quando os sinais explícitos da presença das tecnologias que torna ram possíveis os meios de comunicação massivos se fàziam patentes. Este ideário acabou _por balizar - seja para ratificar, seja rechaçar - correntes de pensamento que se dispuseram a pensar os conteúdos dessas mensagens veiculadas de maneira incensa e maciça via rádio, jornais, revistas, publicidade, TV, em que vigoravam o paradigma da manipulação e inconsciência das massas, ou, contrariamente, como nos estudos norte-americanos dos anos 1940-50, que viam na cultura de massa a democratização superando hierarquias e conflitos sociais, contra o pessimismo já demonstrado do pensamento aristocrático europeu, e na crença de que essa cultura massiva era a cultura das massas, advinda e produzida por esta parcela social. Assim é que podemos compreender o surgimento do conceito ou da teoria da cultura de massa. Já desde o início do século xx, vinha se desenvolvendo nos Estados Unidos a construção de uma corrente de escudos e de pensamento com enfoque microssociológico e emográfico dos modos de comunicação na organização social, bem como uma preocupação em concribuir com métodos científicos para resolução dos desequilíbrios sociais. ESCOLA DE CHICAGO Esta Escola propõe noções, como a de ecologia humana, para pensar grupos segregados nas cidades, negros, jovens, imigrames, em que a noção de organis mo, seu funcionamento e a relação com o ambiente traria a busca por ferra mentas para análise das atitudes, comportamentos dos grupos no "laboratório social" (que eram as cidades), e na fundação dos meios de comunicação nesses processos de assimilação, mobilidade etc. Robert Park, entre outros pensadores, influenciados pelo sociólogo Georg Sim mel e suas noções sobre a metrópole, a vida mental, a personalidade do citadino que convive com diversos e intensos estímulos nervosos, cria aquilo que foi uma marca na Escola de Chicago: a busca pela análise empírica de situações e grupos concretos escudados pela via etnográfica, na qual a ambivalência da personalidade urbana- individualizada mas também uniformizada diante da homogeneização dos comportamentos-vai se expressar também na concepção de meios de comunicação do grupo, visco como simultaneamente fator de emancipação ou aprofundamento da experi ência individual e causador da superficialidade das relações. Por volta da década de 1920, vai-se operando um processo de transforma ção social e cultural, que já vinha gesrando desde o início da Modernidade, mas que nessa época é flagrante. Uma associação entre o estabelecimento de uma economia de mercado assentada na industrialização e nas transformações que deram as bases tecnológicas para a estrutura social que se implantava; a urbanização como modelo socioeconômico e modo de vida por excelência do sistema capitalista, com todas as mudanças culturais, perceptivas, sensoriais e nas sociabilidades que isso trazia; o estabelecimento de uma sociedade de consumo, em que este passa a ser o ingrediente-chave do estilo de vida e da culcura das sociedades modernas ocidencais; meios de comunicação que passam a ter alcance antes não visto, como rádio, cinema, publicidade, jornais, revistas, cinema, TV, que difundem valores, comportamentos,bens simbólicos que se querem totalizances, alcançando o maior número possível de pessoas. Este último aspecto, interligado a codos os outros, torna-se central para o esta belecimento de uma cultura de massa, com w11 conteúdo que salienta mudanças na cultma e nas formas de comunicação; de algo verbal, seja no padrão literário e escrito, seja na oralidade popular e tradicional, as culturas de massa veiculariam um 103 104 modelo/padrão de linguagem audiovisual ou "verbo-vaca-visual" (Lima, 2011), que romaria a frente como norma hegemónica de comunicação nesta nova era. Conhecendo esse conrexro, bem como as noções referentes à massificação da sociedade desde o século XIX, e, ainda, na esteira das preocupações da Escola de Chicago, é que podemos compreender ainda mais "os empirismos do novo mundo" (Mactelart, 2001), ou seja, escudos preocupados com a materialidade dos fenômenos ligados à comunicação e cultura de massa produzidos nos EUA. Estes nos interessam, dentre outros motivos, por ser aqueles em que se pode identifica r, mais própria e explicitamente, um enfoque sobre a cultura de massa, termo a partir de então assumido e teorizado. MASS COMMUNICATION RESEARCH Em 1927 foi publicada a obra de H. Lasswell, Propaganda techniques in the world war, um marco do campo de escudos denominado Mass Communication Reserach, que nas décadas seguintes congregaria autores desde a Engenharia das comunicações, passando pela Psicologia, Sociologia, com propósicos teóricos e enfoques divergentes, mas que podem ser percebidos no que têm de comum, a saber, uma orientação empirista e até quantitativa de estudos; uma orientação pragmática com forre inclinação política e instrumental; e uma cerra noção de modelo comunicativo e de cultura de massa que fundamenta esses estudos. Sem nos deter mais profundamente em rodas as nuances e particularidades de rodos esses escudos, cumpre saber que havia entre eles uma corrente füncionalista, que se originou nos escudos de Lasswell e se propagou nos de P. Lazarsfeld e R. Merron, mas que tem como inspiração o esrrucural-funcionalismo britânico, predominante na amropologia social de então, com base sociológica muito forte que remontava aos pressupostos de Émile Durkheim. O estrutural-funcionalismo pensa o sis�ema social em sua globalidade, como um organismo cujas diferentes partes desempenham funções de integração e coesão para a manutenção do sistema. Assim, no que diz respeito aos conteúdos propagados pelos meios de comunicação de massas, a preocupação é compreender os efeitos das mensagens, onde os meios são vistos mais geralmente como onipotentes, causa única e suficiente dos efeitos verificados, o que faz que a audiência seja encarada como passiva, exposta sem proteção aos estímulos advindos dos meios, como na ação de urna "agulha hipodérmica" (termo de Lasswell) que atingiria camadas profundas de maneira quase imperceptível e inconsciente. Nessa linha funcionalisca norte-americana, a concepção dos meios e da cultura de massa roma a forma de algo instrumental, como ferramenta ou mecanismo de regulação da sociedade, construindo uma teoria que acabava por servir para a manutenção e reprodução dos valores do sistema social capitalista e do estado de coisas existente. A visão de cultura de massa que subjaz disso é uma noção que lembra os teóricos da massificação da sociedade do século x1x, segw1do a qual uma determinada visão sobre as massas parece ter aqui se transformado na correlata ideia de cultura de massa, isto é, algo homogêneo e alienante, construído para gerar tipos específicos de efeitos desejados, seja pelos donos dos conglomerados de comunicação, seja pelo Estado. Algo encarado como disfunção e degradação da cultura superior, degradando o gosto e reiterando a redundância, a repetição, em que o parâmetro são os elementos da cultura formal ou erudita, e a cultura de massa é vista pela lente da ausência e da inferioridade. Nas décadas seguintes a esses pioneiros escudos de mídia norte-americanos, vai-se criando um espírito mais crítico a isso, chegando até a se esboçar (com Marshall McLuhan e outros) um certo otimismo com relação à cultura de massa e sua afirmação positiva por seu poder democrarízanre. Entretanto, ainda nas décadas de 1930 e 1940, surge outro referencial de interpretação do fenômeno da cultura e dos meios massivos, que teve no cen tro de suas preocupações, entre outras coisas, a crítica profunda a esse modelo inscrumencal, funcionalista e acrítico de pensar os fenômenos, edificando-se uma reflexão que, criticando a racionalidade desenvolvida pelo sistema capi talista (presente inclusive nos escudos das mídias), propõe um olhar radical de questionamento sobre a técnica e seus usos na cultura. Nascia nos anos 1920, na Alemanha, a Escola de Frankfurt, que teve naquele momento como seus principais expoentes T. Adorno. M. Hokheimer e W Benjamin. INDÚSTRIA CULTURAL No conceito cunhado em 1947 por Adorno e Horkheimer, indúst ria cultu ral, já se mostram as bases desta reflexão, na própria crítica que os autores fazem ao termo cultura de massa. Segundo eles, este termo rrazia uma confusão ao dar a entender que cultura de massa referia-se à cultura produzida de maneira espontânea pelas massas populares. A construção da teoria crítica da sociedade moderna passa, para os frankfurtia nos, pela rejeição da cultura de massa como cultura, pela afirmação do conceito de indústria cultural e pela constatação da impossibilidade de existência de tradições, culrura popular, obra de ane e espaço para o autêntico no mundo moderno. Para Theodor W Adorno, por exemplo, a sociedade moderna está permeada de falseamento ideológico intrínseco, que impede o surgimento de manifes- 105 8 2 � � 106 rações de originalidade, criatividade e atividade - no pleno sentido da ação realizada por sujeiros ativos - e que impossibilita qualquer forma de produção ou recepção culturais críticas. Assim sendo, indústria cultural, no sentido mais preciso do conceito frankfurciano, produz mercadorias resulrantes de processo de fabricação padronizado e homogeneizado no inrerior de uma sociedade na qual a ideologia é a sociedade como fenômeno (Adorno, 1962). A radicalidade frankfurciana - e fundamentalmenre adorniana, na medi da em que Walter Benjamin, por exemplo, se distancia inúmeras vezes, das concepções adornianas (Koche, 1978) - é compreendida quando inserida em conrexto histórico mais amplo. Em um mundo esrilhaçado pela ameaça nazifascisra, derurpado pela ascensão stalinista e projetado idilicamente nos espaços audiovisuais - da já competenre indústria culrural americana-, torna se justificável o surgimento de uma interpretação cujo pressuposto estético é o da negatividade, e cuja perspectiva analítica revela um inequívoco tom de desencantamento, resultante do diagnóstico da presença de uma sociedade fragmentada, descontínua e em processo acelerado de desagregação. Esses elementos servem de base para a construção não só de um método científico, denominado pelo próprio Adorno como dialética negativa, mas também do referencial teórico de enunciação dos pressupostos da estética da negatividade. Os frankfurtianos, em permanente processo de mobilidade em direção ao exílio norte-americano, viveram um momento histórico trágico marcado pela perda das esperanças e pela impossibilidade de realização de qualquer utopia. Há que se lamentar, entretanto, que uma reflexão cão precisa no diagnóstico de um modelo de organização da racionalidade moderna- modelo fundamentado no papel determinante da produção, nas tendências ao controle da informação e na preponderância da administração técnica- não tenha conseguido projetar novas utopias em meio ao caos evidente. Ainda que, e paradoxalmente, seja difícil supo� a possibilidade da imaginação nesse momenco de utopias,que não as associadas às experiências bolchevista-stalinista ou nazifascista. Um dos grandes problemas da concepção adorniana diz respeito à im possibilidade de desvincular culrura e manifestações estéticas e artísticas da contaminação onipresente da ideologia; os produtos culrurais nas sociedades modernas são permanentemente fabricados e absorvidos pelos mecanismos vo razes da indústria cultural. A existência da verdadeira culrura ou de verdadeiras obras de arte está diretamente relacionada à presença de expressiva autonomia, capaz de negar a sociedade na qual estão inseridas. Os equívocos dessa abordagem localizam-se em dois pontos: em uma noção de cultura informada por uma concepção em que a estética é exclusivamente aquela da arte moderna, e em uma proposta que transforma a produção, a producividade e a racionalidade em elemencos determinantes para codas as demais articulações no interior da sociedade. Nessa perspectiva, os producores não criam, repetem; os produtos não marcam rupcuras, são sempre os mesmos; e os receptores não criticam, apenas consomem e reproduzem passivamente a ideologia intrínseca. Os contornos desta reílexão emaranharam-se, e muito, com a consolida ção histórica da cultura de massa e a ampliação dos espaços das mídias em todo o mundo. CULTURA DE MASSA NO BRASIL No Brasil, isso ocorre a partir de meados dos anos 1960, quando se observa uma cisão que segmentou o campo cultural em três fragmentos polarizados e ex cludentes: o culro, o de massa e o popular. Por quesrões que hoje parecem óbvias, o massivo foi responsabilizado, ao mesmo tempo, pela vulgarização do erudito e pela degradação do popular. Para os críticos desse projeto de modernidade, a "cu.lrura de massa" -que não deve ser confi.mdida com a noção de indústria cultural (Adorno, 1986) - comou-se a razão mesma do processo de modernização, e os meios de comunicação passaram a ser seus principais instrumentos de realização. Do ponto de vista teórico, o que se pode observar nesse debate, hoje em dia, é a presença significativa da tradição frankfurciana para se pensar a cultura contemporânea. Os parâmetros da Escola de Frank.fure começaram a ser apropriados no Brasil no final dos anos 1960, tanto por intelectuais marxistas quanco por críticos radicais ao marxismo. Um dos trabalhos pioneiros, Arte e sociedade em Marci1Se, Adorno e Benjamin, publicado em 1969, é de autoria de José Guilherme Merquior, um "liberal" e "impenitente adversário dos frankfurcianos" (Cohn, 1986: 29). No mesmo ano, entretamo, a editora Civilização Brasileira publicou, numa tradução pioneira de José Lino Grünnewald, a hoje famosa reflexão de Walter Benjamin A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1985). Em seguida, nos anos 1970 e 1980, o pensamenco frankfurtiano construiu uma trajetória baseante visível e se consolidou no interior de um debate marxista, já significativo nas décadas anteriores, mas apropriado e adaptado, nessa época, com o objetivo de interpretar, criticamenre, o modelo de modernização e os processos de industrialização da cultura no Brasil. São vários os intelectuais que escreveram sobre Benjamin e Adorno, ou traduziram seus artigos, passando a desenvolver uma reflexão baseada nos prin cípios da teoria crítica, abrindo brechas para problematizar o lugar da cuJtura 107 108 no interior do debate marxista - determinação/dominância, superestrutura/ infraestrutura - e sedimentando uma tradição de pensar as mídias (numa melhor precisão do conceiro frankfurciano: pensar a indústria cultural) sob a ótica do que se denominou crítica ideológica dos meios, entendidos, estes últimos, como representantes de uma fase complexa de modernização do capitalismo adminis trado. Esta abordagem atravessou as últimas décadas, mantendo-se ativa dentro do campo da reflexão sobre cultura de massa, indústria cultural e modernização. ESTUDOS CULTURAIS INGLESES Dos anos 1980 em diante, na América Latina, é possível notar a presença de reflexões que se mostram em diálogo com aquelas construídas pelos escudos culturais ingleses, os quais, desde os anos 1970, viviam uma diáspora mundial, comando características diferenciadas em cada localidade. Esses estudos, ao afir marem a cultura como questão-chave para o entendimento dos processos sociais, salientam-na corno cultura comLUn, ordinária, numa relação em que a vida diária não deve estar ausente da reflexão, em que o cotidiano deve ser o foco principal de interpretação, sempre numa perspectiva de se pensar a materialidade da vida. Por aqui, influenciou fortemente o pensamento latino-americano sobre comunicação e cul cura, mais precisamente, as formulações de Jesús Marcín-Barbero e Nésror García Canclini (Escosteguy, 2001 ), interessados em pensar na presença cada vez maior da indústria cultural na vida cotidiana e na questão da cultura popular em meio a isso. O processo conjuntural em que se manifestaram as formulações inglesas, nos anos 1950-60, parece ser correlato ao que ocorreu na América Latina na década de 1970-80 com a globalização, a crise do horizonte marxista, o debate sobre a modernidade, as indústrias culturais, a sociedade de consumo. Isso tudo levou a um redimensionamenro dos posicionamentos teórico-conceituais vigentes, tais como o rµarxismo determinista- que buscava ver e explicar os conflitos por meio de uma única contradição (a de classe)-, impedindo de se pensar a pluralidade de matrizes culturais. Um marxismo de corre gramsciano passa a ganhar força nesses estudos, para uma melhor compreensão sobre as relações entre cultura e classe social, redesenhando assim não só o sentido da cultura, como também o da política, permitindo reconhecer as culturas populares e a formação de identidades. Na perspectiva do filósofo italiano Antonio Gramsci, entrariam em jogo noções como negociações, compromissos, mediações e busca por hegemonia, relativizando o conceito de ideologia e colaborando para a reformulação e crítica de uma teoria funcionalista sobre os meios de comunicação de massa como poderosos e absolutos. Negociações seriam como uma mescla de elementos de oposição e adaptação, um misto de lógicas contraditórias que representam ramo os valores dominantes como também as apropriações por pane dos receptores relacionadas com suas formas de vida. Destaca-se o fato de não se poder compreender o popular como algo pro duzido pelo povo ou para o povo, mas sim como aquilo que é adorado pelas camadas populares, apropriado por elas, por ser adequado às suas concepções de mundo. Vem daí a noção de não se pensar a cultura popular como algo em si mesmo, isolada, pura, autônoma, mas situada num campo mais complexo de relação de forças, de luta por hegemonia dentro do campo cultural. Nesse sentido é que Marrín-Barbero argumenta que a cultura vista nas so ciedades urbanas latino-americanas não se encontram comparcimentadas·encre cultura popular, massiva e erudita, de forma cristalizada e estanque, mas sim envolvidas numa cadeia complexa de interferências, contaminações, misturas, em que não se pode alimentar uma visão utópica de um popular, de um povo bom, ingênuo, autêntico, porque ligado ao passado, ao rural; em detrimento do que é urbano, moderno, visro como ruim. E, mais, como se estivessem separados. Deve-se pensar a cultura urbana atual não só como aquilo que é produzido pelo povo, mas pelo que o povo consome, suas apropriações, seus hábitos de leitura, audição, diversão. Isso cudo sugere a ideia de mestiçagem, com a complexidade do urbano colocando moderno e arcaico junros. Assim, os conteúdos da cultura massificada propagados pela indústria cultural, mesmo modificados de suas formações originais, miscigenados com outras formas culturais, ou ainda buscando uniformizar diferenças, estilos, épocas, linguagens, mostram-se ainda revelando elementospopulares; o que hoje chan1amos de culturas de massa são elementos de matrizes culturais, de tradições populares de séculos passados que nos interpelam a partir do massivo (Martín-Barbero, 1997), trazendo a noção de "cultura popular de massas" para se pensar esses fenômenos, asswnindo que a cultura passa por embates, por movimentos de dominação e subordinação interiores, em que nada pode ser afirmado como aucêncico, autônomo, indepen dente e interior a si mesmo, havendo uma luca cultural, com pontos de contenção e de resistência, apropriação e expropriação de bens culturais. Dessa maneira, se a ideia de cultura de massa passa por embaces em seu trajeto histórico como conceito, desde uma empolgação funcional isca, passando pela crítica frankfurriana, até chegarmos aos reposicionamentos dos escudos culturais britânicos e latino-americanos, é preciso compreender que não há um consenso definitivo sobre essas definições, como se esses períodos históricos fossem se alternando e anulando as considerações anteriores. O que se quis mostrar aqui foi a constituição de um debate, em sua história e na contempo raneidade, que se encontra vivo e dinâmico. 109
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