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POMIAN, Krzystof. Memória. IN: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2000. V. 42 (Sistemática), p. 507-516. MEMÓRIA Atlas, Colecção, Documento/monumento, Fóssil, Memória, Ruína/restauro Todo o animal é, a partir de um determinado grau de organização, portador de muitas memórias. A memória da espécie, que todos os seres vivos possuem esta, graças. à estrutura desdobrada do material genético em que está inscrita, garante que a forma inicial seja replicada e, por consequência, se reproduza, a menos que uma mutação, origem de algo de novo e imprevisto, venha perturbar este processo. A memória representada pelo sistema de defesa imunológica, a qual conserva a lembrança de como o organismo é ameaçado por vários agentes patogénicos, lembrança que permite reagir de maneira adequada a novos assaltos de inimigos já conhecidos. A memória individual, cuja entidade, velocidade e acúmen progridem a pari e passu do desenvolvimento e da complexidade do sistema nervoso; esta memória permite imitar certos comportamentos aprendidos quando se apresenta uma situação a que estes comportamentos estão associados. Este último tipo de memória adquire no homem dimensões e possibilidades novas pelo facto de ele procurar objectos e comunicar com os seus semelhantes e com o mundo não apenas através dos órgãos dos sentidos mas também através da linguagem. Toda a <memória> é em primeiro lugar uma faculdade de conservar os vestígios do que pertence já em si a uma época passada. Trata-se tanto nos animais como no homem, de estados do sistema nervoso provocados pelo contacto com seres, objectos OU acontecimentos, que subsistem ainda quando ode mento que os originou desapareceu há um período de tempo mais ou menos longo. A natureza destes estados é desconhecida; segundo algumas hipóteses, consistem em modificações da estrutura molecular de células nervosas ou de uma categoria particular destas células. Seja como for, porque os caracteres adquiridos ao longo da ontogénese não podem ser transmitidos por hereditariedade, o conteúdo de uma memória individual desaparece, tratando-se de um animal, com o indivíduo que é seu portador. Para o homem, as coisas acontecem de outro modo porque os vestígios do passado podem ser transmitidos sob a forma de criações exteriores ao j próprio organismo, capazes de uma existência autónoma em relação a este último. E o caso dos relatos que passam de narrador em narrador conservando a sua identidade, à excepção de algumas poucas varian-tes, e é também o caso dos escritos, desenhos, quadros, esculturas, etc. E estes vários tipos de representações não são os únicos vestígios do passado que os homens conservam. Vestígios são também as relíquias, e com este termo queremos designar qualquer fragmento de um ser ou de um objecto inanimado que, tal como uma imagem objectiva, pode ser transmitido de indivíduo para indivíduo, de geração para geração. Imagens e relíquias apresentam-se ambas sob a forma de coisas, e ambas se encontram nas colectâneas, nas colecções, que são precisamente a correlação objectiva da memória especificam ente humana que é a memória colectiva e transgeradonal. A capacidade para conservar sinais e vestígios do que pertence em si a um passado já remoto não é uma característica exclusiva dos seres vivos. Em determinadas circunstâncias, qualquer corpo se revela capaz de conservar as marcas dos seres que se encontram nas proximidades ou de acolher e proteger os seus restos. Os <fósseis> descobertos nas entranhas da Terra e que, desde tempos antiquíssimos, são reunidos nas colecções, constituem precisamente essas marcas e esses restos, imagens e relíquias dos seres vivos desaparecidos, das bactérias até aos hominídeos. Atribui-se, no entanto, à Terra uma memória apenas em sentido metafórico, querendo dizer que conserva os vestígios do seu passado. Efectivamente, a memória é também a capacidade, essa sim exclusiva dos seres vivos — ou de criações do homem concebidas propositadamente para esse fim—, de reconstruir uma situação mais ou menos análoga à já verificada no momento em que o ser ou o objecto, agora presente sob a forma de resíduo, possuía ainda toda a sua completude originária. No caso de um animal, é a capacidade para imitar um comportamento associado a uma situação que já experimentou e na qual volta a encontrar-se. No caso de um ser humano, é igualmente a capacidade para repetir os comportamentos aprendidos, mas também de ressuscitar as impressões ou os sentimentos já vividos ou de os descrever oralmente é além disso a capacidade para descrever os seres, os objectos ou os acontecimentos vistos ou observados no passado. A <<memória>> é, em suma, o que permite a um ser vivo remontar no tempo, relacionar-se, sempre mantendo-se no presente, com o passado: conforme os casos, exclusivamente com o seu passado, com o da espécie, com o dos outros indivíduos. No entanto, esta subida no tempo permanece sujeita a limitações muito restritivas. E sempre indirecta; com efeito, entre o presente e o passado interpõem-se sinais e vestígios mediante os quais — e só deste modo — se pode compreender o passado; trata-se de recordações, imagens, relíquias. E sempre imperfeita, porque o passado não pode, em circunstância alguma, ser simplesmente restituído na íntegra, e toda a reconstrução é sempre arcada pela dúvida. Isto verifica-se por maioria de razão quando a memória recorre a recordações pessoais, que parecem tão vívidas e frescas, e que contudo percebemos conterem uma grande parte de fantasia. E, por maioria de razão, é assim quando a reconstrução do passado se funda em vestígios, imagens ou relíquias que são os supor-tes da memória colectiva ou transgeracional. Indirecta, imperfeita a subida no tempo praticada pela memória é no entanto a única a que temos acesso. Em particular, todos os nossos conhecimentos acerca do passado da Terra e dos seres vivos, do homem ou duma dada sociedade existente numa dada época e num dado território, todos os conhecimentos, em suma, que formam o conteúdo da história, só podem ser obtidas graças aos <<fósseis>> e a <<documentos/ monumentos>> de todos os géneros, ambos, por assim dizer, recorda- ções colectivamente materializadas. Um acontecimento, um ser ou um objecto deixam num indivíduo que com ele tenha entrado em contacto uma marca tanto mais profunda quanto mais o acontecimento, o ser ou o objecto era insólito, inesperado, espantoso. Estes vestígios, porém, embora resistentes, esbatem-se. Por isso se inventaram vários sistemas para conservar as recordações o mais longamente possível, de modo a poder transmití-las aos outros, garantindo-lhes assim uma duração perene. Na prática, esta arte da memória é uma arte da linguagem: ensina a conservar as narrativas e permite, pois, a um indivíduo tomar-se o depositário das recordações daqueles a quem nunca conheceu porque morreram muito antes do seu nascimento, e por sua vez transmitir estas recordações aos seus descendentes. Assim se forma a tradição oral que, durante milénios, constituiu o principal conteúdo da memória colectiva e transgeracional. Enquanto assim foi, tal memória não era substancialmente diferente da individual. Mais precisamente, a memória colectiva era constituída por uma sucessão de memórias individuais, cada uma delas recebendo as recordações das outras e conservando-as como suas. Assim, cada indivíduo identificava-se, sem disso se dar conta, com os seus antepassados,dos quais recebia a herança e se tomava portanto uma reencarnação. A memória colectiva e transgeracional começa a assumir as características particulares com o aparecimento da <<coleçção>>: conjunto de objectos naturais ou artificiais afastados dos circuitos de utilização, colocados sob uma protecção especial e expostos. A partir desse momento, a memória colectiva começa a adquirir suportes diferentes dos cérebros dos indivíduos. E também necessário que as colecções se insiram não apenas nas reláções entre o aquém e o além mas ainda nas que unem os mortos aos vivos, o passado ao presente. Por outras palavras, é preciso que sejam expostas não apenas ao olhar dos deuses e dos demónios mas também dos homens. É, pois, a passagem das coleções enterradas em sepulturas, por exemplo as do Egipto ou da China antigos, às colecções expostas nos templos ou nos palácios, que marca o nascimento da memória colectiva e transindividual, porquanto dotada de meios de transmissão que a tomam completamente diferente da memória do indivíduo. Porque, a partir do momento em que as colecções são expostas à vista dos homens, cada objecto nelas contido pode ser comparado com outros similares e todos podem ser confrontados com os objectos adoptados na vida de todos os dias. Surge então a possibilidade de perceber a diferença entre os objectos provenientes de um passado remoto, os mais próximos do presente e os de hoje, e portanto a possibilidade de apreciar cada objecto como testemunho do seu tempo enquanto concretização de uma recordação. Acontece, assim, habitualmente que se atribua a várias categorias de objectos a qualificação de documentos ou monumentos, ou seja, a qualificação de vestígios, imagens ou relíquias através das quais é possível estabelecer uma relação com o passado de que provêm. Para obter esta qualificação, os objectos devem sair do circuito das activiciades utilitárias, se é que alguma vez nele estiveram inseridos, ou para passarem a fazer parte de uma colecção, ou para serem degradados, para se tomarem restos; neste caso são promovidos a objectos de colecção após um período de latência. Mas enquanto, embora fazendo parte de uma colecção, os objectos só entram nas relações entre o aquém e o além, como por exemplo acontece quando apreciados numa perspectiva puramente estética, em relação a cânones transcendentes do belo, eles não são ainda documentos ou monumentos. Só quando se começa a compará-los entre eles e com os objectos do mesmo tipo fabricados no presente, o tempo adquire espessura pouco a pouco e, ao mesmo tempo, formam-se, através de uma mesma série de operações, a <<memória>> colectiva e o <<documento/monumento>> que se toma seu suporte. Isto é válido quando se fala não apenas de objectos obtidos artificialmente mas também daqueles que se produzem naturalmente como os fósseis>>. Desde épocas muito remotas os fósseis chamaram a atenção dos homens. Mas, durante muitíssimo tempo, eram considerados sobretudo como curiosidades, «brincadeiras da natureza». Eram inseridos em colecções e admirados, o que constituía também uma maneira de os colocar entre o aquém e o além. Havia que mudar de atitude perante eles para começara considerá-los, pelo contrário, como monumentos através dos quais pode ser revelado o passado da Terra. Também neste caso, comparando os fósseis entre eles e com os vestígios deixados pelos animais e as plantas hoje vivas, foi possível estabelecer pouco • a pouco a sua sucessão e medir os intervalos de tempo interpostos. Deste modo a memória colectiva dos homens estendeu-se a um passado anterior ao aparecimento da espécie humana, e ao mesmo tempo os fósseis mudaram também de categoria tomando-se, de uma curiosidade que eram, os suportes da memória, monumentos: vestígios do passado da Terra, relíquias de seres irremediavelmente desaparecidos. Até agora não se nomeou ainda a escrita, embora tenha uma importância capital para o que nos interessa. Efectivamente, ela serve desde as origens não apenas para comunicar com os deuses por. meio da adivinhação ou das inscrições que lhes são dedicadas mas também para transmitir mensagens aos homens que, como supomos, viverão mais tarde. A invenção da escrita representa, pois, uma verdadeira viragem no processo de formação da memória colectiva: a partir de agora, de uma geração à geração seguinte já não se transmitem apenas as tradições orais, por um lado, e, por outro, objectos coleccionados que não podem falar senão a linguagem das imagens. Transmitem-se também textos, documentos de todos os géneros, e é a sua acumulação ao longo do tempo que permite mudar radicalmente de atitude face ao passado. No mundo da tradição oral, que não conhece a escrita, dá-se necessariamente uma identificação entre aquele que narra uma história vinda do passado e o autor dessa história. De facto, aprender a história saber recitá-la em público equivale a apropriar-se dela em tudo, e para tudo, a substituir o autor. Uma tal substituição toma-se, aliás, quase inevitável pelo facto de uma cadeia contínua de intermediários ligar o autor ao último intérprete da sua obra, e esta continuidade não permite perceber quão longo é o intervalo de tempo que os separa: as alterações verificadas na história não podem ser definidas enquanto se não dispõe de um prototipo fixo que permita descobri-las com uma operação de confronto. Porque a tradição oral é contínua e flexível, os acontecimentos ocorridos no intervalo que separa q presente do passado tornam-se imperceptíveis, assimilando-se aos do passado verdadeiro, o que retira a este intervalo de tempo toda a espessura e leva a identificar os seus termos como se o período que eles delimitam fosse privado de realidade. A idade da narrativa, se é que dela se tem consciência, aparece então como uma realidade sem tempo: uma aproximação do além mais do que uma referência cronológica. Os documentos escritos, esses sim, possuem uma duração, a duração das coisas. Durante um longuíssimo período de tempo escolhiam-se materiais particularmente resistentes ao desgaste para servirem de suporte aos escritos. Por isso, ao longo dos anos, estes documentos acumulam-se no significado mais literal do termo; enchem as colecções especializadas na conservação, ou seja, bibliotecas e arquivos. Deste modo preenchem de conteúdo o intervalo de tempo ao longo do qual são produzidos e concretizam a sua duração, tornam-na visível. Tomam-na até mensurável se tiverem a mínima data ou outra indicação cronológica, mesmo sumária e difícil de interpretar. Mas ainda que não datados, os <<documentos>> escritos apresentam características, exactamente como os <<monumentos>>, de que são afins, e podem constatar-se as suas variações em função do tempo mal se procede a comparações mais sistemáticas. Além disso, é necessário organizar estas comparações, o que não é simples. Ter um grande número de documentos escritos ainda não basta para esse fim, embora seja uma condição necessária. Ao contrário da tradição oral, na qual a relação entre o passado e o presente é imediata, porque o segundo é apenas um prolongamento do primeiro, o que no limite permite a sua identificação, os documentos escritos oferecem a possibilidade de perceber as diferenças entre passado e presente, supostos à partida separado por um intervalo de tempo durante o qual aconteceu algo e reunidos virtualmente numa série mais ou menos longa de intermediários. Entre os vários tipos de documentos escritos devemos citaresse documento muito particular que são as cartas geográficas e as colecções de cartas geográficas, ou seja, os atlas. Fruto de numerosas viagens e de expedições de exploração, de medições, de uma quantidade de estudos destinados a elaborar métodos para projectar numa superfície plana um sector da superfície do glogo terrestre com os seus vários acidentes, o <<atlas>> regista e transmite uma história pluridimensional e muito complexa. Conta à sua maneira um passado, o passado que termina com a realização do atlas. Descreve também terras, muitas vezes muito distantes e de difícil acesso. Através do atlas é, pois, representado também o lado invisível do tempo e do espaço. O carácter peculiar e o excepcional interesse dos mapas e dos atlas para uma investigação sobre a memória colectiva devem-se precisamente ao facto de os documentos deste tipo porem em evidência a dimensão espacial das coisas representadas, dimensão que outros documentos tendem a descurar ou pelo menos a não tornar tão explícita. E isto, se bem que a memória colectiva e transgeracional, exactamente como a memória individual, coloque sempre as suas recordações num espaço determinado e que essa localização seja tão importante como a localização temporal, sobretudo quando se trata de proceder a uma reconstrução do passado. Ora, a <<memória>> enquanto capacidade, mesmo circunscrita, de remontar no tempo não realiza plenamente as suas faculdades potenciais senão quando chega a esta reconstrução, à restauração, nos limites do possível, do estado originário daquilo que chegou até nós em estado de ruína; mas o conceito de <<ruína/restauro» como ideias correlativas deve ser tomado numa acepção muito ampla. De facto, qualquer vestígio, seja uma imagem ou uma relíquia, é uma ruína no sentído em que é sempre e necessariamente uma parte de algo e que este carácter de parcialidade depende, na grande maioria dos casos, de circunstâncias concomitantes, depende do acaso. Toda a imagem é, parcial porque mostra apenas um aspecto do que representa, um único ponto de vista escolhido segundo critérios que as mais das vezes não são os nossos, se é que não nos aparecem mesmo como sendo inteiramente obscuros. De resto, ainda que um ser, um acontecimento ou um objecto sejam representados por muitas imagens, essencialmente nada muda, porque permanecem sempre numerosos aspectos que se revelam irremediavelmente destruídos. Quanto às relíquias, fragmentos ou pedaços de seres vivos ou de objectos inanimados, são por definição parciais. Porque é uma imagem, ou relíquia, ou ambas as coisas ao mesmo tempo, todo o <<documento/monumento>> é necessariamente parcial. E uma ruína, como de resto toda a recordação. E, se interessa, é porque permite conservar uma relação com o passado e também porque permite remontar no tempo e encontrar algo da completude original perdida permite proceder a uma reevocação. Adoptado deste modo, o termo ‘reevocação’ indica evidentemente operações muito díspares. Reevocava-se o passado caindo em êxtase diante de objectos considerados como tendo pertencido a esse passado para de novo recitar as cenas que se julgava terem ocorrido no momento original. E reevocava-se sempre o passado durante as cerimónias religiosas que fazem reviver diante dos participantes acontecimentos ocorridos há milhares de anos. Nestes dois casos, evidentemente, estabelece-se uma relação entre presente e passado que é imediata; assim não sendo, não se teria podido supor possível uma transposição mental ou espiritual entre o primeiro e o segundo. Neste sentido, seria mais exacto, a propósito de todas as reevocações litúrgicas do passado, falar não já de subida no tempo, mas, francamente, de abolição do tempo. De facto, tudo acontece como se o intervalo que nos separa dos acontecimentos de fundo não tivesse realidade alguma, ou pelo menos como se a perdesse no decurso da cerimónia, como se, enquanto esta é celebrada, o tempo permanecesse em suspenso. Aqui a memória colectiva é considerada como sendo capaz de transformar, em determinadas condições, uma recordação, uma imagem ou uma relíquia, numa presença real, de efectuar mais do que uma reevocação: uma ressurreição do passado. Durante muito tempo, também a história se fundou na definição da relação entre presente e passado enquanto relação imediata e na convicção de que, tratando-se de acontecimentos de que não pudera ser testemunha ocular, fosse dever do historiador anotar simplesmente as relações daqueles que a eles assistiram, assumindo a sua responsabilidade e, portanto, identificando-se com os seus autores. Aqui se reencontra a atitude face ao passado que era própria da tradição oral, mas que vigorara durante muitos séculos mesmo no mundo da escrita. A mesma atitude fundada na assimilação implícita do passado a um. além manifesta-se na atribuição de carácter sagrado aos objectos de colecção, quer do ponto de vista religioso quer do ponto de vista estético. O abandono da praxis de tratar os escritos como se pertencessem à tradição oral e os objectos de colecção como se fossem objectos de culto levou a que, com o tempo, a história se tivesse transformado, na teoria e na prática, e se houvesse formado a memória colectiva e transgeracional consciente, que não pode ter relações com o passado senão através de recordações materializadas: documentos, monumentos, fósseis, ruínas, etc. O aparecimento do problema do restauro, da reconstrução do estado fisico originário de um objecto, e mais em particular de uma obra de arte, faz parte deste mesmo processo, como dele faz parte o problema de estabelecer o significado original de um texto ou de qualquer significante, e o problema de reconstruir, partindo dos fósseis, a estrutura e o aspecto dos seres vivos de que constituem. as relíquias. A principio o restauro limita-se aos textos e às obras dos Antigos, que se querem assimilar tal como se supõe que fossem na origem, e isto dá lugar a todo um trabalho de comparação: comparam-se as diferentes cópias do mesmo manuscrito e diversas obras, que apresentem semelhanças evidentes; vir-se-á assim a perceber pouco a pouco como certos caracteres variam, e a formar as séries de textos ou de objectos classificados por ordem cronológica. Note-se que se praticam os restauros apenas em objectos provenientes de épocas extremamente valorizadas, ou por outras palavras, objectos que representam um passado que seria bom ver reviver. Durante muito tempo consideraram-se como dignos de serem restaurados apenas os objectos greco-romanos, mas bem depressa se deu em restaurar os manuscritos medievais, importantes para as controvérsias jurídicas, teológicas ou políticas. Só no século passado se começou a restaurar a vasta escala os monumentos medievais. E só nos nossos dias se chegou ao ponto de tirar todo o género de conclusões da ideia de que se não pode estabelecer uma relação com o passado senão mediata, e do corolário desta ideia; constituído pela constatação da impossibilidade de considerar como nulo e não. existente o intervalo que separa todo o presente do seu passado. Procura-se, pois, actualmente restaurar os monumentos respeitando as transformações que sofreram ao longo da sua história ou, pelo menos, tentando manter os seus vestígios, em vez de os apagar simplesmente como dantes se fazia. Também assim se procura pôr em evidência as partes restauradas de um objecto para que ressaltem das que se conservaram no estado original.Insiste-se deste modo no carácter imperfeito, indirecto, incerto dessa subida no tempo que é toda a obra de restauro. Vimos a pari passu a evolução dos processos seguidos para restabelecer o significado de um texto ou de uma obra de arte, e que são em tudo e para tudo comparáveis aos utilizados para o restauro dos monumentos, com a simples diferença de que se trata neste caso de restabelecer uma interpretação que se perdeu e, portanto se lida, não com objectos materiais, mas com a linguagem. Com o passar do tempo, a convicção de que todo o texto tenha um sentido originário, bem determinado, único, que basta descobrir, atenuou-se até ao ponto de ter desaparecido quase inteiramente nos nossos dias. Tende-se doravante a ter em conta todos os múltiplos significados que se justapuseram a uma obra ao longo da sua existência histórica. Privilegia-se, portanto, na mesma obra o carácter aberto, que permitiu várias leituras, cada uma das quais pode ser parcialmente explicada. Adaptam-se assim as regras da hermenêutica à idéia de uma relação necessariamente mediata com -o passado, à exigência de ter em conta o que se fez em tomo de uma obra no intervalo de tempo que nos separa do momento em que nasceu. O suporte material da <<memória>> colectiva e transgeracional, constituído pelos documentos, monumentos, objectos de colecção, livros e atlas, fósseis e ruínas, enriqueceu-se no. século passado com uma grande quantidade de elementos novos. Foram encontrados graças a uma pesquisa sistemática, que os descobriu em lugares por vezes insuspeitados, por exemplo em grutas, devem-se a achados casuais algumas das mais sensacionais revelações do nosso tempo, as quais lançaram nova luz sobre importantes sectores do passado. Novos elementos foram também adquiridos graças ao aperfeiçoamento das técnicas, sobretudo as de datação, que transformaram em monumentos da história natural ou da história humana objectos que antes não tinham relação alguma nem com uma nem com outra. Territórios que, até há pouco tempo, parecia nunca terem tido história, reencontraram hoje o seu passado. Mundos inteiros engolidos pelo tempo reemergiram à superfície. Mas o facto mais extraordinário das últimas décadas é a prodigiosa dilatação da duração da espécie humana. O passado incluso na memória colectiva é hoje mais longo, mais rico e mais bem datado do que foi anteriormente. Por outro lado, este passado está presente em medida muito maior do que antes precisamente no centro do presente. E está presente em sentido absolutamente literal onde se descobrem vestígios até então enterrados, constituindo arqueódromos ou lugares protegidos no interior das próprias cidades, onde se restauram edifícios antigos ou se libertam certos elementos cobertos por acrescentos mais recentes, onde se criam museus e se multiplicam as exposições. E está presente também na medida em que os restauros, as reconstruções e as reinterpretações, cujo número cresce continuamente, tornam actuais as recordações concretizadas nos objectos, põem de novo em circulação o conteúdo da memória, legitimam certas consequências que poderão influenciar os nossos comportamentos futuros. A sociedade em que vivemos, virada para o futuro, mantém no entanto relações com o passado, as quais são tão importantes para ela como eram para as sociedades que a antecederam, mas de carácter muito diferente. De facto, estas relações fundam-se, não numa tradição que age de maneira espontânea, sem que alguém cuide de perpetuá-la, mas num programa explícito de conservação dos suportes materiais da memória colectiva e da sua restauração no seu estado original sempre que possível. Por isso a nossa memória, mais rica do que nunca, é também muito mais vulnerável porque depende mais do que anteriormente dos riscos das conjecturas económicas, políticas e militares. Felizmente, difunde-se cada vez mais a consciência de que, entre as nossas obrigações perante as gerações futuras, ocupa um lugar de honra o dever de transmitir em boas condições aquilo que recolhemos em inúmeras colecções. Podemos, pois, esperar que, se o homem não se vir reduzido dentro em pouco ao estado de fóssil e a globalidade do seu património ao estado de ruína, os nossos sucessores encontrem na sua memória documentos e monumentos suficientes para formarem ideias muito claras acerca do nosso presente tornado o seu passado. [K. P.].
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