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POMIAN, Krzystof - Memória

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POMIAN, Krzystof. Memória. IN: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, 
Casa da Moeda, 2000. V. 42 (Sistemática), p. 507-516.
MEMÓRIA
Atlas, Colecção, Documento/monumento,
Fóssil, Memória, Ruína/restauro
Todo o animal é, a partir de um determinado grau de organização, portador
de muitas memórias. A memória da espécie, que todos os seres vivos possuem
esta, graças. à estrutura desdobrada do material genético em que está inscrita,
garante que a forma inicial seja replicada e, por consequência, se reproduza, a
menos que uma mutação, origem de algo de novo e imprevisto, venha perturbar
este processo. A memória representada pelo sistema de defesa imunológica, a qual
conserva a lembrança de como o organismo é ameaçado por vários agentes
patogénicos, lembrança que permite reagir de maneira adequada a novos assaltos
de inimigos já conhecidos. A memória individual, cuja entidade, velocidade e
acúmen progridem a pari e passu do desenvolvimento e da complexidade do
sistema nervoso; esta memória permite imitar certos comportamentos aprendidos
quando se apresenta uma situação a que estes comportamentos estão associados.
Este último tipo de memória adquire no homem dimensões e possibilidades novas
pelo facto de ele procurar objectos e comunicar com os seus semelhantes e com o
mundo não apenas através dos órgãos dos sentidos mas também através da
linguagem.
Toda a <memória> é em primeiro lugar uma faculdade de conservar os
vestígios do que pertence já em si a uma época passada. Trata-se tanto nos
animais como no homem, de estados do sistema nervoso provocados pelo
contacto com seres, objectos OU acontecimentos, que subsistem ainda quando ode
mento que os originou desapareceu há um período de tempo mais ou menos
longo. A natureza destes estados é desconhecida; segundo algumas hipóteses,
consistem em modificações da estrutura molecular de células nervosas ou de uma
categoria particular destas células. Seja como for, porque os caracteres adquiridos
ao longo da ontogénese não podem ser transmitidos por hereditariedade, o
conteúdo de uma memória individual desaparece, tratando-se de um animal, com
o indivíduo que é seu portador. Para o homem, as coisas acontecem de outro
modo porque os vestígios do passado podem ser transmitidos sob a forma de
criações exteriores ao j próprio organismo, capazes de uma existência autónoma
em relação a este último. E o caso dos relatos que passam de narrador em
narrador conservando a sua identidade, à excepção de algumas poucas varian-tes,
e é também o caso dos escritos, desenhos, quadros, esculturas, etc. E estes vários
tipos de representações não são os únicos vestígios do passado que os homens
conservam. Vestígios são também as relíquias, e com este termo queremos
designar qualquer fragmento de um ser ou de um objecto inanimado que, tal como
uma imagem objectiva, pode ser transmitido de indivíduo para indivíduo, de
geração para geração. Imagens e relíquias apresentam-se ambas sob a forma de
coisas, e ambas se encontram nas colectâneas, nas colecções, que são
precisamente a correlação objectiva da memória especificam ente humana que é a
memória colectiva e transgeradonal.
A capacidade para conservar sinais e vestígios do que pertence em si a um
passado já remoto não é uma característica exclusiva dos seres vivos. Em
determinadas circunstâncias, qualquer corpo se revela capaz de conservar as
marcas dos seres que se encontram nas proximidades ou de acolher e proteger os
seus restos. Os <fósseis> descobertos nas entranhas da Terra e que, desde tempos
antiquíssimos, são reunidos nas colecções, constituem precisamente essas marcas
e esses restos, imagens e relíquias dos seres vivos desaparecidos, das bactérias até
aos hominídeos. Atribui-se, no entanto, à Terra uma memória apenas em sentido
metafórico, querendo dizer que conserva os vestígios do seu passado.
Efectivamente, a memória é também a capacidade, essa sim exclusiva dos seres
vivos — ou de criações do homem concebidas propositadamente para esse fim—,
de reconstruir uma situação mais ou menos análoga à já verificada no momento
em que o ser ou o objecto, agora presente sob a forma de resíduo, possuía ainda
toda a sua completude originária. No caso de um animal, é a capacidade para
imitar um comportamento associado a uma situação que já experimentou e na
qual volta a encontrar-se. No caso de um ser humano, é igualmente a capacidade
para repetir os comportamentos aprendidos, mas também de ressuscitar as
impressões ou os sentimentos já vividos ou de os descrever oralmente é além
disso a capacidade para descrever os seres, os objectos ou os acontecimentos
vistos ou observados no passado.
A <<memória>> é, em suma, o que permite a um ser vivo remontar no
tempo, relacionar-se, sempre mantendo-se no presente, com o passado: conforme
os casos, exclusivamente com o seu passado, com o da espécie, com o dos outros
indivíduos. No entanto, esta subida no tempo permanece sujeita a limitações
muito restritivas. E sempre indirecta; com efeito, entre o presente e o passado
interpõem-se sinais e vestígios mediante os quais — e só deste modo — se pode
compreender o passado; trata-se de recordações, imagens, relíquias. E sempre
imperfeita, porque o passado não pode, em circunstância alguma, ser
simplesmente restituído na íntegra, e toda a reconstrução é sempre arcada pela
dúvida. Isto verifica-se por maioria de razão quando a memória recorre a
recordações pessoais, que parecem tão vívidas e frescas, e que contudo
percebemos conterem uma grande parte de fantasia. E, por maioria de razão, é
assim quando a reconstrução do passado se funda em vestígios, imagens ou
relíquias que são os supor-tes da memória colectiva ou transgeracional. Indirecta,
imperfeita a subida no tempo praticada pela memória é no entanto a única a que
temos acesso. Em particular, todos os nossos conhecimentos acerca do passado da
Terra e dos seres vivos, do homem ou duma dada sociedade existente numa dada
época e num dado território, todos os conhecimentos, em suma, que formam o
conteúdo da história, só podem ser obtidas graças aos <<fósseis>> e a
<<documentos/ monumentos>> de todos os géneros, ambos, por assim dizer,
recorda- ções colectivamente materializadas.
Um acontecimento, um ser ou um objecto deixam num indivíduo que com
ele tenha entrado em contacto uma marca tanto mais profunda quanto mais o
acontecimento, o ser ou o objecto era insólito, inesperado, espantoso. Estes
vestígios, porém, embora resistentes, esbatem-se. Por isso se inventaram vários
sistemas para conservar as recordações o mais longamente possível, de modo a
poder transmití-las aos outros, garantindo-lhes assim uma duração perene. Na
prática, esta arte da memória é uma arte da linguagem: ensina a conservar as
narrativas e permite, pois, a um indivíduo tomar-se o depositário das recordações
daqueles a quem nunca conheceu porque morreram muito antes do seu
nascimento, e por sua vez transmitir estas recordações aos seus descendentes.
Assim se forma a tradição oral que, durante milénios, constituiu o principal
conteúdo da memória colectiva e transgeracional. Enquanto assim foi, tal
memória não era substancialmente diferente da individual. Mais precisamente, a
memória colectiva era constituída por uma sucessão de memórias individuais,
cada uma delas recebendo as recordações das outras e conservando-as como suas.
Assim, cada indivíduo identificava-se, sem disso se dar conta, com os seus
antepassados,dos quais recebia a herança e se tomava portanto uma reencarnação.
A memória colectiva e transgeracional começa a assumir as características
particulares com o aparecimento da <<coleçção>>: conjunto de objectos naturais
ou artificiais afastados dos circuitos de utilização, colocados sob uma protecção
especial e expostos. A partir desse momento, a memória colectiva começa a
adquirir suportes diferentes dos cérebros dos indivíduos. E também necessário
que as colecções se insiram não apenas nas reláções entre o aquém e o além mas
ainda nas que unem os mortos aos vivos, o passado ao presente. Por outras
palavras, é preciso que sejam expostas não apenas ao olhar dos deuses e dos
demónios mas também dos homens. É, pois, a passagem das coleções enterradas
em sepulturas, por exemplo as do Egipto ou da China antigos, às colecções
expostas nos templos ou nos palácios, que marca o nascimento da memória
colectiva e transindividual, porquanto dotada de meios de transmissão que a
tomam completamente diferente da memória do indivíduo. Porque, a partir do
momento em que as colecções são expostas à vista dos homens, cada objecto
nelas contido pode ser comparado com outros similares e todos podem ser
confrontados com os objectos adoptados na vida de todos os dias. Surge então a
possibilidade de perceber a diferença entre os objectos provenientes de um
passado remoto, os mais próximos do presente e os de hoje, e portanto a
possibilidade de apreciar cada objecto como testemunho do seu tempo enquanto
concretização de uma recordação.
Acontece, assim, habitualmente que se atribua a várias categorias de
objectos a qualificação de documentos ou monumentos, ou seja, a qualificação de
vestígios, imagens ou relíquias através das quais é possível estabelecer uma
relação com o passado de que provêm. Para obter esta qualificação, os objectos
devem sair do circuito das activiciades utilitárias, se é que alguma vez nele
estiveram inseridos, ou para passarem a fazer parte de uma colecção, ou para
serem degradados, para se tomarem restos; neste caso são promovidos a objectos
de colecção após um período de latência. Mas enquanto, embora fazendo parte de
uma colecção, os objectos só entram nas relações entre o aquém e o além, como
por exemplo acontece quando apreciados numa perspectiva puramente estética,
em relação a cânones transcendentes do belo, eles não são ainda documentos ou
monumentos. Só quando se começa a compará-los entre eles e com os objectos do
mesmo tipo fabricados no presente, o tempo adquire espessura pouco a pouco e,
ao mesmo tempo, formam-se, através de uma mesma série de operações, a
<<memória>> colectiva e o <<documento/monumento>> que se toma seu
suporte.
Isto é válido quando se fala não apenas de objectos obtidos artificialmente
mas também daqueles que se produzem naturalmente como os fósseis>>. Desde
épocas muito remotas os fósseis chamaram a atenção dos homens. Mas, durante
muitíssimo tempo, eram considerados sobretudo como curiosidades, «brincadeiras
da natureza». Eram inseridos em colecções e admirados, o que constituía também
uma maneira de os colocar entre o aquém e o além. Havia que mudar de atitude
perante eles para começara considerá-los, pelo contrário, como monumentos
através dos quais pode ser revelado o passado da Terra. Também neste caso,
comparando os fósseis entre eles e com os vestígios deixados pelos animais e as
plantas hoje vivas, foi possível estabelecer pouco • a pouco a sua sucessão e medir
os intervalos de tempo interpostos. Deste modo a memória colectiva dos homens
estendeu-se a um passado anterior ao aparecimento da espécie humana, e ao
mesmo tempo os fósseis mudaram também de categoria tomando-se, de uma
curiosidade que eram, os suportes da memória, monumentos: vestígios do passado
da Terra, relíquias de seres irremediavelmente desaparecidos.
Até agora não se nomeou ainda a escrita, embora tenha uma importância
capital para o que nos interessa. Efectivamente, ela serve desde as origens não
apenas para comunicar com os deuses por. meio da adivinhação ou das inscrições
que lhes são dedicadas mas também para transmitir mensagens aos homens que,
como supomos, viverão mais tarde. A invenção da escrita representa, pois, uma
verdadeira viragem no processo de formação da memória colectiva: a partir de
agora, de uma geração à geração seguinte já não se transmitem apenas as
tradições orais, por um lado, e, por outro, objectos coleccionados que não podem
falar senão a linguagem das imagens. Transmitem-se também textos, documentos
de todos os géneros, e é a sua acumulação ao longo do tempo que permite mudar
radicalmente de atitude face ao passado.
No mundo da tradição oral, que não conhece a escrita, dá-se
necessariamente uma identificação entre aquele que narra uma história vinda do
passado e o autor dessa história. De facto, aprender a história saber recitá-la em
público equivale a apropriar-se dela em tudo, e para tudo, a substituir o autor.
Uma tal substituição toma-se, aliás, quase inevitável pelo facto de uma cadeia
contínua de intermediários ligar o autor ao último intérprete da sua obra, e esta
continuidade não permite perceber quão longo é o intervalo de tempo que os
separa: as alterações verificadas na história não podem ser definidas enquanto se
não dispõe de um prototipo fixo que permita descobri-las com uma operação de
confronto. Porque a tradição oral é contínua e flexível, os acontecimentos
ocorridos no intervalo que separa q presente do passado tornam-se imperceptíveis,
assimilando-se aos do passado verdadeiro, o que retira a este intervalo de tempo
toda a espessura e leva a identificar os seus termos como se o período que eles
delimitam fosse privado de realidade. A idade da narrativa, se é que dela se tem
consciência, aparece então como uma realidade sem tempo: uma aproximação do
além mais do que uma referência cronológica.
Os documentos escritos, esses sim, possuem uma duração, a duração das
coisas. Durante um longuíssimo período de tempo escolhiam-se materiais
particularmente resistentes ao desgaste para servirem de suporte aos escritos. Por
isso, ao longo dos anos, estes documentos acumulam-se no significado mais
literal do termo; enchem as colecções especializadas na conservação, ou seja,
bibliotecas e arquivos. Deste modo preenchem de conteúdo o intervalo de tempo
ao longo do qual são produzidos e concretizam a sua duração, tornam-na visível.
Tomam-na até mensurável se tiverem a mínima data ou outra indicação
cronológica, mesmo sumária e difícil de interpretar. Mas ainda que não datados,
os <<documentos>> escritos apresentam características, exactamente como os
<<monumentos>>, de que são afins, e podem constatar-se as suas variações em
função do tempo mal se procede a comparações mais sistemáticas. Além disso, é
necessário organizar estas comparações, o que não é simples. Ter um grande
número de documentos escritos ainda não basta para esse fim, embora seja uma
condição necessária. Ao contrário da tradição oral, na qual a relação entre o
passado e o presente é imediata, porque o segundo é apenas um prolongamento do
primeiro, o que no limite permite a sua identificação, os documentos escritos
oferecem a possibilidade de perceber as diferenças entre passado e presente,
supostos à partida separado por um intervalo de tempo durante o qual aconteceu
algo e reunidos virtualmente numa série mais ou menos longa de intermediários.
Entre os vários tipos de documentos escritos devemos citaresse documento muito
particular que são as cartas geográficas e as colecções de cartas geográficas, ou
seja, os atlas. Fruto de numerosas viagens e de expedições de exploração, de
medições, de uma quantidade de estudos destinados a elaborar métodos para
projectar numa superfície plana um sector da superfície do glogo terrestre com os
seus vários acidentes, o <<atlas>> regista e transmite uma história
pluridimensional e muito complexa. Conta à sua maneira um passado, o passado
que termina com a realização do atlas. Descreve também terras, muitas vezes
muito distantes e de difícil acesso. Através do atlas é, pois, representado também
o lado invisível do tempo e do espaço. O carácter peculiar e o excepcional
interesse dos mapas e dos atlas para uma investigação sobre a memória colectiva
devem-se precisamente ao facto de os documentos deste tipo porem em evidência
a dimensão espacial das coisas representadas, dimensão que outros documentos
tendem a descurar ou pelo menos a não tornar tão explícita. E isto, se bem que a
memória colectiva e transgeracional, exactamente como a memória individual,
coloque sempre as suas recordações num espaço determinado e que essa
localização seja tão importante como a localização temporal, sobretudo quando se
trata de proceder a uma reconstrução do passado.
Ora, a <<memória>> enquanto capacidade, mesmo circunscrita, de
remontar no tempo não realiza plenamente as suas faculdades potenciais senão
quando chega a esta reconstrução, à restauração, nos limites do possível, do
estado originário daquilo que chegou até nós em estado de ruína; mas o conceito
de <<ruína/restauro» como ideias correlativas deve ser tomado numa acepção
muito ampla. De facto, qualquer vestígio, seja uma imagem ou uma relíquia, é
uma ruína no sentído em que é sempre e necessariamente uma parte de algo e que
este carácter de parcialidade depende, na grande maioria dos casos, de
circunstâncias concomitantes, depende do acaso. Toda a imagem é, parcial porque
mostra apenas um aspecto do que representa, um único ponto de vista escolhido
segundo critérios que as mais das vezes não são os nossos, se é que não nos
aparecem mesmo como sendo inteiramente obscuros. De resto, ainda que um ser,
um acontecimento ou um objecto sejam representados por muitas imagens,
essencialmente nada muda, porque permanecem sempre numerosos aspectos que
se revelam irremediavelmente destruídos. Quanto às relíquias, fragmentos ou
pedaços de seres vivos ou de objectos inanimados, são por definição parciais.
Porque é uma imagem, ou relíquia, ou ambas as coisas ao mesmo tempo, todo o
<<documento/monumento>> é necessariamente parcial. E uma ruína, como de
resto toda a recordação. E, se interessa, é porque permite conservar uma relação
com o passado e também porque permite remontar no tempo e encontrar algo da
completude original perdida permite proceder a uma reevocação.
Adoptado deste modo, o termo ‘reevocação’ indica evidentemente
operações muito díspares. Reevocava-se o passado caindo em êxtase diante de
objectos considerados como tendo pertencido a esse passado para de novo recitar
as cenas que se julgava terem ocorrido no momento original. E reevocava-se
sempre o passado durante as cerimónias religiosas que fazem reviver diante dos
participantes acontecimentos ocorridos há milhares de anos. Nestes dois casos,
evidentemente, estabelece-se uma relação entre presente e passado que é
imediata; assim não sendo, não se teria podido supor possível uma transposição
mental ou espiritual entre o primeiro e o segundo. Neste sentido, seria mais
exacto, a propósito de todas as reevocações litúrgicas do passado, falar não já de
subida no tempo, mas, francamente, de abolição do tempo. De facto, tudo
acontece como se o intervalo que nos separa dos acontecimentos de fundo não
tivesse realidade alguma, ou pelo menos como se a perdesse no decurso da
cerimónia, como se, enquanto esta é celebrada, o tempo permanecesse em
suspenso. Aqui a memória colectiva é considerada como sendo capaz de
transformar, em determinadas condições, uma recordação, uma imagem ou uma
relíquia, numa presença real, de efectuar mais do que uma reevocação: uma
ressurreição do passado.
Durante muito tempo, também a história se fundou na definição da relação
entre presente e passado enquanto relação imediata e na convicção de que,
tratando-se de acontecimentos de que não pudera ser testemunha ocular, fosse
dever do historiador anotar simplesmente as relações daqueles que a eles
assistiram, assumindo a sua responsabilidade e, portanto, identificando-se com os
seus autores. Aqui se reencontra a atitude face ao passado que era própria da
tradição oral, mas que vigorara durante muitos séculos mesmo no mundo da
escrita. A mesma atitude fundada na assimilação implícita do passado a um. além
manifesta-se na atribuição de carácter sagrado aos objectos de colecção, quer do
ponto de vista religioso quer do ponto de vista estético. O abandono da praxis de
tratar os escritos como se pertencessem à tradição oral e os objectos de colecção
como se fossem objectos de culto levou a que, com o tempo, a história se tivesse
transformado, na teoria e na prática, e se houvesse formado a memória colectiva e
transgeracional consciente, que não pode ter relações com o passado senão
através de recordações materializadas: documentos, monumentos, fósseis, ruínas,
etc.
O aparecimento do problema do restauro, da reconstrução do estado fisico
originário de um objecto, e mais em particular de uma obra de arte, faz parte deste
mesmo processo, como dele faz parte o problema de estabelecer o significado
original de um texto ou de qualquer significante, e o problema de reconstruir,
partindo dos fósseis, a estrutura e o aspecto dos seres vivos de que constituem. as
relíquias. A principio o restauro limita-se aos textos e às obras dos Antigos, que se
querem assimilar tal como se supõe que fossem na origem, e isto dá lugar a todo
um trabalho de comparação: comparam-se as diferentes cópias do mesmo
manuscrito e diversas obras, que apresentem semelhanças evidentes; vir-se-á
assim a perceber pouco a pouco como certos caracteres variam, e a formar as
séries de textos ou de objectos classificados por ordem cronológica. Note-se que
se praticam os restauros apenas em objectos provenientes de épocas
extremamente valorizadas, ou por outras palavras, objectos que representam um
passado que seria bom ver reviver. Durante muito tempo consideraram-se como
dignos de serem restaurados apenas os objectos greco-romanos, mas bem
depressa se deu em restaurar os manuscritos medievais, importantes para as
controvérsias jurídicas, teológicas ou políticas.
Só no século passado se começou a restaurar a vasta escala os monumentos
medievais. E só nos nossos dias se chegou ao ponto de tirar todo o género de
conclusões da ideia de que se não pode estabelecer uma relação com o passado
senão mediata, e do corolário desta ideia; constituído pela constatação da
impossibilidade de considerar como nulo e não. existente o intervalo que separa
todo o presente do seu passado. Procura-se, pois, actualmente restaurar os
monumentos respeitando as transformações que sofreram ao longo da sua história
ou, pelo menos, tentando manter os seus vestígios, em vez de os apagar
simplesmente como dantes se fazia. Também assim se procura pôr em evidência
as partes restauradas de um objecto para que ressaltem das que se conservaram no
estado original.Insiste-se deste modo no carácter imperfeito, indirecto, incerto
dessa subida no tempo que é toda a obra de restauro.
Vimos a pari passu a evolução dos processos seguidos para restabelecer o
significado de um texto ou de uma obra de arte, e que são em tudo e para tudo
comparáveis aos utilizados para o restauro dos monumentos, com a simples
diferença de que se trata neste caso de restabelecer uma interpretação que se
perdeu e, portanto se lida, não com objectos materiais, mas com a linguagem.
Com o passar do tempo, a convicção de que todo o texto tenha um sentido
originário, bem determinado, único, que basta descobrir, atenuou-se até ao ponto
de ter desaparecido quase inteiramente nos nossos dias. Tende-se doravante a ter
em conta todos os múltiplos significados que se justapuseram a uma obra ao
longo da sua existência histórica. Privilegia-se, portanto, na mesma obra o
carácter aberto, que permitiu várias leituras, cada uma das quais pode ser
parcialmente explicada. Adaptam-se assim as regras da hermenêutica à idéia de
uma relação necessariamente mediata com -o passado, à exigência de ter em conta
o que se fez em tomo de uma obra no intervalo de tempo que nos separa do
momento em que nasceu.
O suporte material da <<memória>> colectiva e transgeracional,
constituído pelos documentos, monumentos, objectos de colecção, livros e atlas,
fósseis e ruínas, enriqueceu-se no. século passado com uma grande quantidade de
elementos novos. Foram encontrados graças a uma pesquisa sistemática, que os
descobriu em lugares por vezes insuspeitados, por exemplo em grutas, devem-se a
achados casuais algumas das mais sensacionais revelações do nosso tempo, as
quais lançaram nova luz sobre importantes sectores do passado. Novos elementos
foram também adquiridos graças ao aperfeiçoamento das técnicas, sobretudo as
de datação, que transformaram em monumentos da história natural ou da história
humana objectos que antes não tinham relação alguma nem com uma nem com
outra. Territórios que, até há pouco tempo, parecia nunca terem tido história,
reencontraram hoje o seu passado. Mundos inteiros engolidos pelo tempo
reemergiram à superfície. Mas o facto mais extraordinário das últimas décadas é a
prodigiosa dilatação da duração da espécie humana. O passado incluso na
memória colectiva é hoje mais longo, mais rico e mais bem datado do que foi
anteriormente.
Por outro lado, este passado está presente em medida muito maior do que
antes precisamente no centro do presente. E está presente em sentido
absolutamente literal onde se descobrem vestígios até então enterrados,
constituindo arqueódromos ou lugares protegidos no interior das próprias cidades,
onde se restauram edifícios antigos ou se libertam certos elementos cobertos por
acrescentos mais recentes, onde se criam museus e se multiplicam as exposições.
E está presente também na medida em que os restauros, as reconstruções e as
reinterpretações, cujo número cresce continuamente, tornam actuais as
recordações concretizadas nos objectos, põem de novo em circulação o conteúdo
da memória, legitimam certas consequências que poderão influenciar os nossos
comportamentos futuros. A sociedade em que vivemos, virada para o futuro,
mantém no entanto relações com o passado, as quais são tão importantes para ela
como eram para as sociedades que a antecederam, mas de carácter muito
diferente. De facto, estas relações fundam-se, não numa tradição que age de
maneira espontânea, sem que alguém cuide de perpetuá-la, mas num programa
explícito de conservação dos suportes materiais da memória colectiva e da sua
restauração no seu estado original sempre que possível. Por isso a nossa memória,
mais rica do que nunca, é também muito mais vulnerável porque depende mais do
que anteriormente dos riscos das conjecturas económicas, políticas e militares.
Felizmente, difunde-se cada vez mais a consciência de que, entre as nossas
obrigações perante as gerações futuras, ocupa um lugar de honra o dever de
transmitir em boas condições aquilo que recolhemos em inúmeras colecções.
Podemos, pois, esperar que, se o homem não se vir reduzido dentro em pouco ao
estado de fóssil e a globalidade do seu património ao estado de ruína, os nossos
sucessores encontrem na sua memória documentos e monumentos suficientes para
formarem ideias muito claras acerca do nosso presente tornado o seu passado.
[K. P.].

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