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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE18 Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história Psychology and Mental Health: three moments of a history RESUMO Neste artigo são apresentados e analisados três momentos da trajetória dos psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do campo da Saúde Mental, no município de Belo Horizonte, Minas gerais. O primeiro é aqui chamado de implantação, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio matricial. Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área. conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente prática matricial. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial; Apoio matricial; Psicoterapia de grupo. ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas gerais, Brazil. The first moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third, matrix support. This paper is examines a literature review and documents of the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand, enables the professional to work with present-day practice in matrix support. KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix support; Psychotherapy, group. João lei te Ferre i ra Neto 1 1 Professor do Programa de Pós- graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas gerais (PUC Minas); doutor em psicologia da PUC São Paulo. jleite.bhe@terra.com.br 19 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história I N T R O D U ç à O Quando a psicologia foi reconhecida como profis- são em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote- rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório, a organizacional e a educacional. a saúde pública ainda não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos essa situação mudou drasticamente. Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Ca- dastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psi- cologia (sPinK, 2007). diversos estudos apontam que a crescente presença dos psicólogos na saúde pública no Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátri- ca e com a criação do campo chamado de Saúde Mental (dimEnstEin, 1998; fERREiRa nEto, 2004). o objetivo deste artigo é a apresentação de al- guns elementos da história da entrada e do percurso dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde Mental, no município de Belo Horizonte, Minas gerais. as fontes bibliográficas e documentais pesqui- sadas indicam que a construção desse percurso nesse município ocorreu em três momentos, marcados por características próprias, em que a noção de Saúde Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua integração no contexto do SUS. Na década de 1980, ocorreu o primeiro período chamado de implantação, seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial, respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa análise histórica abordará com maior atenção a pre- sença de duas polaridades que atravessam este campo. a polaridade entre abordagens individuais e coletivas, e a composta pela especificidade da Saúde Mental e da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo da saúde geral e reforma sanitária. além da necessá- ria revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de dados será um conjunto de documentos produzidos no decorrer da história mineira e da nacional. MOMENTO ‘IMPLANTAçÃO’ – ANOS 1980 o Programa de Saúde Mental foi oficialmente implantado em Minas gerais, na região Metropolitana de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do go- vernador tancredo Neves pelo Partido do Movimento democrático Brasileiro (PMdB). Nesse período, um número expressivo de profissionais de saúde com perfil progressista ocupou postos importantes na Secretaria de Estado de Saúde. É importante lembrar que o período de abertura democrática no país consolidou uma [...] tática desenvolvida inicialmente no seio do mo- vimento sanitário, de ocupação de espaços públicos de poder e de tomada de decisão como forma de in- troduzir mudanças no sistema de saúde. (amaRantE, 1998, p. 91). a chamada Nova república tornou-se o apogeu dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário, juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu com o próprio Estado. os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados atendendo em centros de saúde sem ligação com um projeto ou programa que organizasse ações em Saúde Mental. Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar 20 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história a proposta do Pisam parte da avaliação de uma prevalência de transtornos mentais de 18% e uma demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem ações de prevenção primária, integração da Saúde Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção primária era considerada eficaz a realização de “grupos operativos de gestantes, mães, professores e o atendi- mento a crises” (mEndonça filho; alKimin, 1998, p. 25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser conduzido por psicólogos. Quanto ao atendimento clínico individual, os pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico- logia. o Pisam teve curta duração devido, entre outras causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos privados (mEndonça filho; alKimin, 1998). Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde 1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em centros de saúde no município. a atuação na época era voltada para a demanda infantil, para a participação em outros programas em andamento nas unidades (pueri- cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação junto a instituições comunitárias.Existe uma indicação no documento pela priorização do trabalho em grupos, “por permitir uma melhor resposta a demanda” (sEcRE- taRia municiPal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar, eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma, a expressão Saúde Mental era tomada de um modo genérico, sem relação com as propostas da reforma psiquiátrica. Nos antecedentes à oficialização do Programa de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada e genérica do que poderia ser definido como Saúde Mental na rede pública. algumas vezes, era entendida como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o doente grave, como as ações preventivas e a participação nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo, mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra. Já no Programa de ações da Saúde Mental da re- gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do programa na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo- ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria com algumas prefeituras. as equipes são estabelecidas como referência secundária, ou seja, como atendimento especializado. a princípio, o Programa de Saúde Men- tal buscava formular, de modo ainda primário, uma concepção integral de saúde – o famoso trinômio do bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio), psicólogo (psico) e assistente social (social). a falta de experiência para uma formulação mais sofisticada do que seria um trabalho em equipe multiprofissional e interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter- nativa mais óbvia. o documento retoma o histórico anterior do Pisam e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob- jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental. Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à demanda específica (doença mental), apoio aos demais programas dos centros de saúde integrando a Saúde Mental no contexto global da saúde, apoio técnico ao nível primário, articulação com os recursos das comunidades (escolas, creches, hospitais e associações Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar 21 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica do programa. apenas no primeiro eixo é mencionada a necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final- mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de ‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido de evitar ‘internações desnecessárias’ (sEcREtaRia dE Estado dE saúdE, 1985, p. 8). ainda não se falava em substituição do modelo hospitalar. a ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten- dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma de abordagem das questões de Saúde Mental” (sEcRE- taRia dE Estado dE saúdE, 1985, p. 7). aponta ainda que a intervenção em grupos é um trabalho que exige constante discussão e aprofundamento por parte dos profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por avaliação de seus impactos. a partir desse período os psicólogos continuam envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos serviços, mas também começam a receber a clientela prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes com transtornos graves e persistentes. Como notificado no documento, a formação em serviço por meio de su- pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais constante. além disso, inicia-se o curso de Especializa- ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede, oferecido pela Escola de Saúde de Minas gerais (Esmig), com forte acento na prática clínica de base psicanalítica lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se tornará Escola Brasileira de Psicanálise. Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por- tador de algumas características. anterior à implantação oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra- mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra- ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio da psiquiatria. Somente quando Programa de ações é implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar, e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a atuação dos psicólogos aos pacientes graves. Nesse momento, é marcante a preocupação da integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde e a participação de seus profissionais em ações cole- tivas com outros profissionais do serviço. as práticas de grupo se constituem numa importante diretriz de trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais agentes. além disso, é preconizado o apoio técnico ao nível primário, estratégia que somente se consolidará no terceiro momento de ‘apoio matricial’. MOMENTO ‘ANTIMANICOMIAL’ – ANOS 1990 a passagem entre os dois primeiros momentos analisados está atravessada por alguns importantes eventos. o primeiro deles, no ano de 1987, foi o II Encontro Nacional dos trabalhadores em Saúde Mental em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de maio como o dia Nacional da luta antimanicomial. os psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela- borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do movimento em relação ao Estado. as diretrizes apon- tavam para um caminho de alargamento das fronteiras da luta para uma ação no interior da própria cultura, trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade puramente assistencial e criava pontes entre as ações no Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar 22 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu, desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção” (amaRantE, 1998, p. 93), induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista e sua tática de ocupação da máquina estatal. desde essa nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade civil e os movimentos populares e com as associações de usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa e da opinião pública. através do segundo evento, em 1989, a reforma psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter- venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos na Casa de Saúde anchieta e a seqüente criação de dis- positivosantimanicomiais na cidade, numa gestão que inspirou várias experiências posteriormente conduzidas por todo o país (amaRantE, 1998, p. 83). Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação ao Congresso do Projeto de lei 3.657/89 visando re- gulamentar o processo de reestruturação da atenção à Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal Paulo delgado (Partido dos trabalhadores de Minas gerais, Pt/Mg). Em Belo Horizonte, somente durante a gestão municipal do prefeito Patrus ananias, do Pt (1993 a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSa) de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos profissionais ficassem comprometidas e congestionadas com a inesgotável demanda espontânea ou encaminha- da de crianças com dificuldade escolar, pacientes com quadros de ansiedade, aqueles pertencentes à ‘clientela cativa’ dos centros de saúde. Nessa gestão, foi nomeado para a Smsa o psiquiatra César Campos, engajado, já de longa data, com os movimentos de luta contra o aparato asilar. Iniciou-se a construção de dispositivos substitutivos ao hospital, os centros de convivência e os centros de referência em Saúde Mental (CERsam, versão mineira dos Centros de atenção Psicossocial – caPs). Um importante documento que avalia esse período foi publicado numa coletânea organizada por técnicos da saúde, com a assessoria do professor Emerson Merhy, sobre a gestão da saúde. o capítulo que nos interessa é assinado pela coordenadora do Fórum Mineiro de Saúde Mental e pela coordenadora da Saúde Mental da Smsa (lobosquE; abou-yd, 1998). Nesse docu- mento, intitulado A cidade e a loucura – entrelaces, o projeto de Saúde Mental é apresentado em uma versão marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva “a extinção do hospital psiquiátrico” e sua substituição por outro modelo de atenção (p. 244). o texto, que possui uma função de relatório da gestão, possui um marcado tom político de ruptura comparado ao de anteriormente. Essa ruptura é afirmada em pelo menos quatro aspectos. o primeiro deles, de cunho mais ideológico e organizacional, era a postulação de uma incompatibilidade com certa vertente do movi- mento sanitário com seu acento nos cuidados primários, em detrimento do tratamento das doenças. Segundo as autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritário, é estabelecida uma divisão indesejada [...] nos hospícios, os loucos; nos centros de saúde, os pequenos desviantes – crianças ditas problemáticas, mulheres ditas deprimidas – e as práticas preventivistas em geral. (1998, p. 245). o projeto propõe o abandono do modelo america- no de psiquiatria comunitária, adotado anteriormente pelo Programa da região Metropolitana de 1985, com seus níveis primário (rede básica), secundário (serviços especializados) e terciário (hospital), pois valida a perma- nência do hospital no topo do modelo assistencial. Por isso, afirma que os cERsam “não se caracterizam como serviços intermediários ou secundários” (p. 252), mas Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar 23 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história compõem uma rede de assistência que visa substituir os hospitais psiquiátricos, sem hierarquizar os níveis de atenção. o segundo tem componentes de gestão de pessoal, uma vez que a coordenação encontrou certa “oposição por parte de profissionais de Saúde Mental”, os quais se mostravam resistentes “a assumir as novas diretrizes do trabalho” (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 253). a proposta aponta uma mudança de foco da atenção das “crianças robustas e gestantes saudáveis”, consideradas clientela majoritária das unidades básicas, para os psicóticos e neuróticos graves, que passam a ser quali- ficados como “prioridades assistenciais” (p. 247). Isso acarretou, por parte da gestão, uma ação de desestímulo ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem como a presença em grupos de outros programas, como aqueles voltados para “gestantes ou diabéticos” (p. 246). o tom depreciativo de avaliação do trabalho em grupos e da participação em outros programas de promoção da saúde, questionável, deve ser entendido a partir desse contexto de uma gestão que se compromete com a direção antimanicomial da Saúde Mental. No presente momento o debate se faz no esforço de evitar a dissocia- ção entre ações clínicas e de promoção de saúde. o terceiro aspecto, de caráter político-adminis- trativo, configurou-se como passo fundamental para garantir a reorganização da assistência a partir das di- retrizes antimanicomiais: a nova relação da SMSa com os hospitais psiquiátricos. Isso envolveu a gestão dos hospitais privados conveniados por parte da Secretaria. Nesse sentido, foram realizadas várias ações visando efe- tivar a desmontagem do aparato manicomial: supervisão hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados ao SUS, proibição de novas internações fora dos dois hospitais públicos, disponibilização de todos os leitos hospitalares privados conveniados na central de inter- nação municipal. Uma das medidas mais eficazes para a organização da nova rede de assistência em Saúde Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente, antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta, via distrito Sanitário, com um profissional de Saúde Mental no centro de saúde mais próximo de sua casa. a organização desse fluxo impediu que os pacientes em alta ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein- ternados após nova crise. garantiu também a chegada dos egressos nas unidades básicas de saúde, rompendo o circuito: alta, residência, crise e nova internação. Pacientes e familiares passaram a conhecer uma nova possibilidade de atenção profissional, próxima de suas casas. decorridos alguns anos após esse conjunto de ações, é possível deduzir que para romper com o cir- cuito hospitalar não é suficiente somente a implantação de equipes nas unidades, é necessário uma política de organização do fluxo da demanda. Caso contrário, os profissionais permaneceriam com sua atividade drenada com a clientela cativa do serviço, sem que os egressos se tornassem parte de sua clientela habitual. o quarto aspecto, de caráter ético e técnico, diz respeito à concepção de clínica que subsidia um projeto antimanicomial. de um lado, existe o destaque à psica- nálise: “sem a psicanálise, [...] sem a referência que nos inspira, nossas práticas de pensamento e de trabalho não seriam o que são” (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 249). as autoras reconhecem que a psicanálise usualmente não está presente em momentos políticos incisivos, sendo, portanto esta uma rara articulação. ainda é necessário se fazer uma análise mais acurada dos limites e dificul- dades oriundos da hegemonia da psicanálise no campo da Saúde Mental (fERREiRa nEto, 2008). de qualquer modo, a contribuição da psicanálise, isoladamente, não é suficiente para se pensar sobre a atuação na saúde pública. Permanece a dificuldade presente no despreparo para conduzir uma clínica sem setting definido. É necessário, então, desfazer sua colagem com a clínica de consultório, uma vez que os espaços da primeira são múltiplos, ou seja, abordagem Gabriel Destacar GabrielDestacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar 24 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc. Isso não se apresenta como tarefa simples, uma vez que a formação prevalente ainda atende a esse modelo. as autoras reconhecem que os profissionais não receberam anteriormente este tipo de formação e perguntam: “quem a recebe, aliás?!” (p. 263). o texto relata também duas importantes ações extraclínicas desenvolvidas pela Saúde Mental junto à demanda infantil. a primeira foi a criação de fóruns regionais de atenção à Saúde Mental da Criança e do adolescente, envolvendo variados segmentos, tais como os técnicos de Saúde Mental e da educação, membros de Conselhos tutelares e de outras instâncias comunitárias, com o objetivo de criar espaços de diálogo e busca de soluções na atenção à infância tanto individual quanto coletivamente. a ação dos psicólogos nesse processo foi de suma relevância. o segundo foi o Projeto arte na Saúde, como postura clínico-política de não psicologizar as dificuldades infantis, utilizando espaços comunitários com monitores da própria comunidade, desenvolvendo atividades com crianças, idealizado por uma psicóloga de unidade básica. Vemos, portanto, nesse segundo momento, a psi- cologia comparecer com suas fraquezas e virtudes. No âmbito da ação clínica junto ao paciente com transtor- nos graves e persistentes, havia muito que aprender, o que ocorreu processualmente e não sem dificuldades e resistências. No âmbito das ações extra-clínicas, a trajetória da psicologia junto às crianças, adolescentes e até mesmo junto ao diálogo interinstitucional agregou contribuições importantes ao projeto. MOMENTO ‘APOIO MATRICIAL’ – ANOS 2000 o Programa de Saúde da Família (PSF) é a principal estratégia para reorientação do modelo assistencial de atenção à saúde (bRasil, 2004a). É um movimento de reorientação do modelo assistencial, operacionalizado mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde, tendo vínculo formal com uma parcela da população adscrita. Foi formulado pelo Ministério da Saúde em 1994, mas começou a ser implantado, em Belo Horizonte, em 2002 com o nome de BH – Vida. o documento municipal a ser analisado, datado de 2 de julho de 2003, foi intitulado Saúde Mental na assistência básica (sEcREtaRia municiPal da saúdE, 2003), e visava estabelecer parâmetros para as relações entre o projeto de Saúde Mental e o BH–Vida. Seu contorno busca atender à função de ‘apoio matricial’ preconizada pelo Ministério da Saúde (bRasil, 2004B). Seu diferencial em relação a outros documentos é sua redação conjunta entre a coordenação de Saúde Mental e as gerências de atenção à Saúde, ainda que a linguagem e o ideário que ele apresenta tenham clara ligação com a Saúde Mental. o documento aponta para o desenvolvimento de ações “que vão da assistência e da clínica às dimensões relativas à reabilitação/reinserção no mundo do trabalho, da cultura, da reprodução social ampla” (p. 2). discute também a importância do atendimento na crise, even- to que alimenta o sistema manicomial sem a busca apressada da internação. Finalmente, indica o traba- lho em equipe como instrumento para superação do paradigma médico, “alargando competências comuns, desmontando e reorganizando poderes e saberes esta- belecidos” (p. 3). No âmbito da integração das Equipes de Saúde Mental (ESM) com as Equipes de Saúde da Família (ESF), o documento preconiza que as primeiras [...] priorizarão o atendimento aos portadores de sofrimento mental grave e persistente e as ESF se responsabilizarão pelas necessidades clínicas desta clientela. (p. 4). Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar 25 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história as ESM continuariam acolhendo outras demandas mais leves, mas estas seriam atendidas pelas ESF com apoio das ESM. os usuários e familiares devem par- ticipar da formulação dos projetos terapêuticos, e do controle e planejamento das ações de Saúde Mental. as ações de apoio matricial devem realizar a [...] discussão conjunta dos casos entre ESM/ESF, como forma de intercambiar cotidianamente, no trabalho concreto, saberes e competências, bem como, progres- sivamente, ir delimitando a clientela. (p. 5). Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde aprovou a portaria 154, que cria os Núcleos de apoio à Saúde da Família (Nasf), fortalecendo as ações de apoio matricial, através da criação de núcleos multiprofissionais, numa composição escolhida entre 13 opções profissionais, com ênfase nas ações de planejamento, educação continuada, promoção da saúde e atendimento de casos. No caso da Saúde Mental deve-se priorizar as abordagens coletivas. recomenda também a presença de pelo menos um pro- fissional de Saúde Mental em cada Nasf (diáRio oficial da união, 2008, p. 39). Na portaria são considerados profissionais de Saúde Mental: psicólogos, psiquiatras e te- rapeutas ocupacionais (e não mais os assistentes sociais). Esse apoio matricial ainda dá seus primeiros passos, sendo que avaliar seu real impacto necessitará de um tempo maior. Inicialmente nota-se uma preocupação muito centrada na diminuição e qualificação da demanda para a Saúde Mental (siRimim, 2007). Contudo, podemos esperar que a aproximação no trabalho cotidiano entre as Esm e as Esf, terá vários outros desdobramentos. CONSIDERAçÕES FINAIS refletir a partir de estudos históricos com enfoques e recortes variados sobre trajetória da Saúde Mental é uma maneira de evitar dissolver acontecimentos singulares em uma suposta “continuidade ideal” teleológica (foucault, 1979, p. 28). também cerceia a tentação sempre presente da produção de uma versão oficial da ‘história’ que, em geral representa uma mitologia construída por um grupo hegemônico. o recorte histórico aqui apresentado, que tem por eixo a atuação do psicólogo, possui várias hipóteses de interpretação. Uma delas é que as direções previstas em 1984 na implantação do programa, o ideário de inte- gração na saúde geral de prática de apoio às equipes de saúde e da valorização das práticas grupais, retorna com vigor no apoio matricial. Podemos deduzir também que a ação antimanicomial, que num primeiro momento opôs a ação clínica às práticas grupais, se configurou como um momento essencial para garantia do projeto de atenção ao paciente grave. o antagonismo ‘clínica versus promo- ção’ foi estrategicamente necessário para permitir uma conjunção de esforços dos profissionais de Saúde Mental na rede, sempre escassos frente à demanda de trabalho. Contudo, com a consolidação da assistência ao paciente grave, é possível pensarmos em fazer uma agenda de integração em que ações de promoção caminhem juntas com ações clinicas nas práticas de apoio matricial. a Saúde Mental é um projeto sempre em movimento, composto por diferentes atores sociais, que em diferentes momentos, têm contribuído para sua contínua reinvenção. No caso do psicólogo, encontramos inicialmente as deficiências de uma formação clínica baseada num modelo liberal-privado de consultório, o que não o preparava para a opção prioritária do programa. Sua formação se deu, portanto, em serviço,através das práticas de atendimento aliada às supervisões. Sua entrada no SUS transformou sua concepção de clínica e introduziu novas perspectivas de clínica ampliada (fERREiRa nEto, 2008). Mais recentemente, a ênfase presente em sua for- mação para práticas grupais e intervenções psicossociais pode capacitá-lo de modo diferencial para a presente prática de apoio matricial. Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar Gabriel Destacar 26 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história R E F E R Ê N C I A S amaRantE, P. (org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. rio de Janeiro: Fiocruz, 1988. bRasil. Ministério da Saúde. Atenção básica e a Saúde da Família. 2004a. disponível em: <http://dtr2004.saude. gov.br/dab/atencaobasica.php>. acesso em: 20 fev. 2006. ______. 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