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Suzana Vasconcelos MEDXIII TUTORIAL 1 OBJETIVOS: 1. Entender a Reforma Psiquiátrica no Brasil (Lei 10.216). 2. Panorama atual da assistência/desassistência psiquiátrica. 3. Conhecer o modelo e a rede do atendimento psiquiátrico no Estado do Amapá. O NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA NO BRASIL E AS POLÍTICAS DE SAÚDE O desenvolvimento da psiquiatria no Brasil encontra-se relacionado à vinda da família real em 1808. Com a família real vieram cerca de 15 mil pessoas. Junto à nova estrutura houve o crescimento de alguns setores da economia, como o comércio e a indústria. Esse fato contribuiu para o crescimento da população na cidade pois, atraídas pela presença da corte e pela possibilidade de crescimento financeiro, muitas pessoas se dirigiram para o Rio de Janeiro. Com o acentuado crescimento da população, a cidade passou a apresentar alguns problemas e, dentre eles, a presença dos loucos pelas ruas. O destino deles era a prisão ou a Santa Casa de Misericórdia, que era um local de assistência, de caridade, não um local de cura. Lá, os loucos recebiam um “tratamento” diferenciado dos outros internos. Os loucos ficavam amontoados em porões, sofrendo repressões físicas quando agitados, sem contar com assistência médica, expostos à contaminação por doenças infecciosas e subnutridos. Neste momento, o recolhimento do louco não possuía um caráter de tratamento, terapêutico mas, sim, de preservação da ordem pública. Pode-se dizer que a inauguração do Hospício de Pedro II em 1852 foi o marco institucional da psiquiatria no Brasil. Sua criação foi o resultado da luta de um grupo de médicos que fazia parte da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ), que foi criada em 1829. Essa sociedade organizou uma Comissão de Salubridade visando à construção de um Código de Posturas → que fez um levamento, no qual foi constatado que os loucos viviam em precárias condições, tanto nos hospitais, como nas prisões e nas ruas. “Em vez das celas insalubres dos hospitais gerais e dos castigos corporais, os médicos advogam a necessidade de um asilo higiênico e arejado, onde os loucos pudessem ser tratados segundo os princípios do tratamento moral. Em outras palavras, o que se exigia era que os loucos, uma vez qualificados de doentes mentais, fossem tratados medicamente”. Em 1841, o decreto da fundação do Hospício Pedro II foi assinado pelo imperador de mesmo nome. Entretanto, passaram-se onze anos até a sua inauguração em 1852. Quando esta ocorreu, o hospício já contava com 144 alienados, tendo sua lotação atingida pouco depois de um ano do início de seu funcionamento. As críticas ao hospício também começaram a surgir pouco tempo após a inauguração e referiam-se à construção que deveria ter sido supervisionada por um médico, à falta de poder do médico sobre a instituição – a administração do hospício cabia a Santa Casa e o trabalho nas enfermarias era realizado pelas irmãs de caridade; à inexistência de uma nosologia psiquiátrica para classificar e separar os internados; à inexistência de critérios de seleção para a internação das pessoas; à falta de médicos; aos maus tratos aplicados aos alienados; à presença de órfãos nas enfermarias de adultos. À medida que o tempo passava, as críticas médicas ao hospício aumentavam e fortaleciam a reivindicação da classe médica, pois demonstravam que o hospício não era capaz de exercer seu objetivo, qual seja, a cura dos alienados. Após a instauração da República, em 1890, o Hospício de Pedro II se tornou Hospício Nacional de Alienados e foi desligado da Santa Casa, passando a ser administrado pelo Estado. Nesse mesmo ano, foram criadas a Assistência Médico Legal aos Alienados, as colônias de São Bento e de Conde de Mesquita na Ilha do Galeão (atual Ilha do Governador) e a colônia do Juqueri em São Paulo. Esta é uma das características da assistência psiquiátrica no Brasil: a constituição de colônias localizadas longe dos centros urbanos. Isso foi feito sob o pretexto de fornecer ao alienado o necessário afastamento das influências nocivas do meio ambiente e proporcionar as condições necessárias para sua reeducação moral – estratégia baseada nos princípios do isolamento e do trabalho da psiquiatria francesa de Pinel. A organização das políticas de saúde no Brasil pode ser distinguida em duas áreas de concentração, a Saúde Pública de cunho preventivo e coletivo, e a Assistência Médica, de caráter curativo e atrelada à Previdência Social. A psiquiatria passou a ser considerada especialidade médica a partir de 1912 e o número de estabelecimentos psiquiátricos sofreu um forte aumento. A partir da década de 1930, surgiram novas estratégias de tratamento com os choques insulínico e cardiazólico, com a eletroconvulsoterapia (ECT) e com a lobotomia. Algumas dessas novas técnicas foram bastante difundidas e utilizadas, como a eletroconvulsoterapia que ainda é praticada em alguns hospitais nos dias atuais. O período pós II Guerra Mundial trouxe importantes transformações para a psiquiatria no mundo ocidental. Houve o surgimento dos seguintes movimentos de reforma psiquiátrica: Comunidade Terapêutica, Psiquiatria de Setor, Suzana Vasconcelos MEDXIII Psiquiatria Comunitária, Antipsiquiatria e Psiquiatria Democrática Italiana. 1. A Lei Federal de 1903: O DECRETO 1.132 O Decreto Nº 1.132 de 22 de dezembro de 1903 que reorganiza a assistência a alienados foi a primeira lei nacional que abordou a questão dos alienados. Era composto por 23 artigos que tratavam dos motivos que determinam a internação e dos procedimentos necessários para a realização da mesma; da guarda dos bens dos alienados; da possibilidade de alta; da proibição em se manter alienados em cadeias públicas; da inspeção dos asilos feita por comissão a mando do ministro da justiça e negócios interiores; das condições necessárias para o funcionamento do asilo; do pagamento das diárias dos doentes; da composição dos trabalhadores do Hospício Nacional e das colônias de alienados; da penalidade pelo descumprimento da lei. O texto do decreto apresenta pontos bastante semelhantes à lei francesa de 1838, o que evidencia a influência desta lei. A preocupação inicial relaciona-se com o comprometimento da ordem pública e com a suposta condição de periculosidade do alienado, demonstradas através da manutenção da ordem pública e da segurança da sociedade. Desta forma, a autoridade pública adquiriu poder de recolher a pessoa para, posteriormente, avaliar sua condição de saúde e provar sua alienação. A internação era determinada por questões de segurança pública e não se relacionava com o bem-estar ou o cuidado para com o alienado. O exame médico apresentava papel secundário na determinação da internação e era realizado após a pessoa ter sido internada com o objetivo confirmar o quadro de alienação. Como na legislação francesa, a ordem pública e a segurança da sociedade são os fatores determinantes da realização da internação, estando a perícia médica em segundo plano neste procedimento. O artigo 2º aborda os procedimentos necessários para a internação. Em semelhança à lei francesa, este artigo declara que a internação pode ser solicitada por autoridade pública ou algum particular, mediante requisição ou requerimento. Enumera uma série de informações que devem ser fornecidas sobre a identificação da pessoa, sua descrição física, o motivo da internação e os fatos comprovantes da alienação que devem ser fornecidas. No caso da internação ser requerida por algum particular, a lei não menciona a necessidade de comprovação de parentesco ou outro tipo de relação. Desta forma, qualquer pessoa pode requerer a internação de alguém que seja suspeito de alienação ou que ameace a segurança da sociedade. As diferenças existentes entre essas duas formas de solicitação de internação– autoridade pública ou algum particular – podem ser percebidas na participação médica. Quando se trata de autoridade pública, a alienação é comprovada pela exposição de fatos e dos motivos que determinaram a detenção e o atestado médico é apresentado sempre que possível. Já no caso da requisição feita por algum particular, a lei determina que sejam apresentados dois pareceres médicos com até 15 dias entre o exame e a data do requerimento. O Decreto Nº 1.132 de 1903 vigorou até o ano de 1934 quando foi elaborado e promulgado o Decreto Nº 24.559 em substituição à legislação de 1903. Concluindo, essa lei indica a criação dos manicômios judiciários e regulamenta que a internação pode ser requerida pela ordem pública ou por algum particular, e essa ação é justificada pela necessidade de manutenção da ordem pública e da segurança da população e dos indivíduos. Isso reforça a visão de que o público-alvo da política de saúde mental seria perigoso e desordeiro, reforçando o estigma social de que esses indivíduos precisariam estar reclusos nos asilos e excluídos socialmente. Criou-se assim uma nova categoria política associada à doença mental, vinculando a identidade desses indivíduos a irracionalidade e anormalidade. 1. 2. A Lei Federal de 1934: O DECRETO 24.559 O Decreto 24.559 entrou em vigor em 03 de julho de 1934 e dispunha sobre a profilaxia mental, a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências. O título da lei apresenta novos elementos que se referem à profilaxia e à assistência da pessoa então denominada psicopata e demonstra uma preocupação com a questão da proteção tanto da pessoa doente quanto dos seus bens. Convém esclarecer que, neste contexto, o termo psicopata se refere a portador de psicopatologia. O tratamento psiquiátrico e o controle sobre a “doença mental” se expandem pela população já que a lei atinge a pessoa antes, durante e depois da internação. De acordo com Tykanori (1987), o decreto de 1934 foi formulado por meio de justificativas tecnocientíficas segundo uma ideologia eugenista. Tinha como objetivo promover a purificação da raça brasileira e considerava a doença mental como uma degenerescência moral de algumas raças, principalmente negros e amarelos. O tratamento era fundamentado na correção moral e o controle social resultava do isolamento e da exclusão dos supostos inferiores. Desta forma, o tratamento supostamente considerado uma ação técnica pôde apresentar um outro lado que atuava na retirada Suzana Vasconcelos MEDXIII da liberdade e da igualdade do cidadão, promovendo a justificativa e a sanção de uma política de controle social. Já o Decreto nº 24.559, de 1934, foi o primeiro a tratar da curatela/tutela, bem como da internação de menores e indivíduos usuários de substâncias psicoativas. Introduz a noção de incapacidade civil, o que distancia ainda mais tais indivíduos da categoria de cidadãos, autônomos e racionais. Também substitui a denominação “alienados” por “psicopatas”, além de vincular o uso de substâncias psicoativas à política de saúde mental. Essas mudanças geraram um novo tipo de enquadramento na categoria da política que associava uma categoria previamente existente (da doença mental) com novos tipos de comportamento (uso de substâncias psicoativas) também sujeitos a estigmas sociais. Ou seja, há uma amplificação e diversificação dos sujeitos enquadrados na categoria de loucos. O PROCESSO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL O início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo da eclosão do “movimento sanitário”, nos anos 70, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, eqüidade na oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado. O processo de Reforma Psiquiátrica brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar. Fundado, ao final dos anos 70, na crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, por um lado, e na eclosão, por outro, dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira é maior do que a sanção de novas leis e normas e maior do que o conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios. Em 1978, na cidade do Rio de Janeiro, alguns médicos psiquiatras realizaram uma série de denúncias sobre as condições de uma unidade hospitalar e as irregularidades ali existentes. Esse acontecimento repercutiu fora do hospital em questão e recebeu apoio de entidades importantes no setor saúde como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e o Movimento de Renovação Médica (REME), que haviam sido criados em 1976. Assim, foi constituído o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), movimento plural formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano. É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais. A experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio é inspiradora. Devido às denúncias, o Ministério da Saúde promoveu a demissão de 260 profissionais. Entretanto, esta medida provocou a ocorrência da “primeira greve no setor público no país após a instalação do regime de exceção política, num episódio que ficou conhecido como ‘crise da Dinsam’ (Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde)” Por meio desta mobilização e do apoio e participação do REME e do CEBES, houve a expansão do MTSM por diversas cidades brasileiras. Alguns Núcleos Estaduais do CEBES assim como alguns sindicatos passaram a contar com Comissões de Saúde Mental organizadas a partir do MTSM. Nesse mesmo ano foi realizado o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Camboriú que, devido à participação dos grupos acima mencionados, adquiriu um caráter político que repercutiu além do campo psiquiátrico. A partir desses acontecimentos a sociedade conheceu uma realidade da loucura e da instituição hospitalar que fazia parte do cotidiano apenas dos que trabalhavam nos hospitais. “A loucura/doença mental deixava de ser objeto de interesse e discussão exclusiva dos técnicos e alcançava as principais entidades da sociedade civil (ABI, OAB, CNBB, CONTAG, FETAG, etc), e a grande imprensa, que noticiava, com destaque e ininterruptamente por cerca de quase um ano, as condições relativas aos hospitais psiquiátricos e às distorções da política nacional de assistência psiquiátrica: a ‘questão psiquiátrica’ tornara-se uma questão pública”. O processo de reforma psiquiátrica brasileira foi fortemente influenciado por experiências internacionais como a comunidade terapêutica, a psicoterapia institucional, a psiquiatria de setor, a antipsiquiatria e, principalmente, a reforma psiquiátrica italiana. Apresentaremosde forma resumida tais experiências: • Comunidade Terapêutica (Inglaterra) e Psicoterapia Institucional (França). Ambas preocupavam-se em recuperar o Suzana Vasconcelos MEDXIII hospital psiquiátrico. Pode-se definir a Comunidade Terapêutica como um processo de reformas institucionais caracterizado pela adoção de medidas administrativas democráticas, participativas e coletivas, que têm como objetivo a transformação da dinâmica institucional asilar. Procurava chamar a atenção da sociedade para as péssimas condições dos internados nos hospitais psiquiátricos. A Psicoterapia Institucional considerava que a instituição hospitalar possuía características doentias que deveriam ser tratadas para que a mesma tivesse cunho terapêutico. • Psiquiatria de Setor (França) e Psiquiatria Comunitária (EUA). Estes movimentos deslocaram o ponto central do tratamento para a comunidade. A psiquiatria de setor é anterior à psicoterapia institucional e apresentou-se como um movimento de contestação da psiquiatria asilar, iniciado no período pós-guerra, na França. Foi considerado a matriz da política psiquiátrica francesa desde a década de 1960 e consistia na transferência do atendimento para a comunidade. A Psiquiatria Comunitária surgiu nos Estados Unidos em meio ao contexto da crise do organicismo mecanicista e encontrava- se no cruzamento da psiquiatria de setor e da socioterapia inglesa. Representou a delimitação de um novo campo para a psiquiatria, no qual havia um novo objeto, a saúde mental. A psiquiatria preventiva acreditava ter encontrado uma estratégia de intervenção nas causas das doenças mentais, fazendo com que procurasse realizar a prevenção das doenças e a promoção da saúde mental. • A Antipsiquiatria (Inglaterra) e a Psiquiatria Democrática Italiana (Itália): Esses movimentos iniciaram a crítica à psiquiatria enquanto saber e enquanto prática. A Antipsiquiatria surgiu na Inglaterra na década de 1960 através de um grupo de psiquiatras dos quais destacam-se Ronald Laing e David Cooper. Possuía como referências culturais a Fenomenologia, o Existencialismo, a obra de Foucault, algumas correntes da sociologia e psiquiatria norte americanas, Psicanálise e Marxismo. Pretendia romper com modelo assistencial e destituir o valor do saber médico com relação à explicação, à compreensão e ao tratamento das doenças mentais. Isto promoveu a aparição de um novo projeto de comunidade terapêutica, no qual há o questionamento do saber psiquiátrico. A antipsiquiatria denuncia a cronificação do hospital psiquiátrico e procura um diálogo entre loucura e razão, colocando a loucura entre os homens e, não, dentro deles. Este movimento inicia um processo de ruptura com o saber psiquiátrico moderno. A Psiquiatria Democrática Italiana foi iniciada por Franco Basaglia e fez uma crítica radical ao paradigma psiquiátrico afirmando a urgência da revisão das relações a partir das quais o saber médico fundava sua práxis. Em 1971, Basaglia vai para Trieste onde inicia a demolição do aparato manicomial através da construção e constituição de novas formas de entender, lidar e tratar a loucura. Esta demolição significou a realização de uma análise crítica da sociedade e da forma pela qual se relaciona com o sofrimento e a diferença; não significou uma negação da instituição e da doença mental, mas relacionou-se a uma negação do “poder” que a sociedade entregava à psiquiatria para que esta isolasse, excluísse e anulasse aqueles que se encontravam fora dos limites da normalidade social. O trabalho realizado em Trieste demonstrou a possibilidade da constituição de uma rede de atenção capaz de oferecer e produzir novas formas de sociabilidade e subjetividade para os que utilizam a assistência psiquiátrica, assim como o oferecimento e a produção de cuidados. Essa experiência conduziu à destruição do manicômio, ao fim da violência e do aparelho da instituição psiquiátrica tradicional. O MTSM foi constituído no mesmo ano em que a Itália aprovou uma lei que colocava em xeque a instituição manicomial pois proibia a realização de internações nos manicômios, determinava o esvaziamento progressivo destes estabelecimentos, estabelecia a necessidade da criação de serviços substitutivos e extinguia o estatuto de periculosidade do louco. A partir do deslocamento da discussão acerca da loucura e do manicômio do campo técnico para a sociedade em geral, questões como cidadania e direitos dos loucos ganharam importância. Neste contexto, a reforma psiquiátrica definia-se como um processo constante de construção de reflexões e transformações nos campos que compõem a sociedade – assistencial, cultural, conceitual e jurídico. Desta forma, percebemos que a proposta do movimento da reforma psiquiátrica estava além das mudanças de caráter técnico-assistencial, assim, o principal objetivo do movimento: “seria poder transformar as relações que a sociedade, os sujeitos e as instituições estabeleceram com a loucura, com o louco e com a doença mental, conduzindo tais relações no sentido da superação do estigma, da segregação, da desqualificação dos sujeitos ou, ainda, no sentido de estabelecer com a loucura uma relação de co-existência, de troca, de solidariedade, de positividade e de cuidados” Inicialmente, as ações do movimento concentraram-se na exposição da realidade asilar através das denúncias para que a sociedade tomasse conhecimento deste fato e, então, pudesse junto ao movimento, lutar para alterar a realidade psiquiátrica. A princípio, tais mudanças eram buscadas por meio de duas fontes: inverter a política privatizante de saúde mental e constituir uma rede de serviços extra-hospitalares. A partir de meados da década de 80 foram realizados encontros e conferências na área da saúde mental dando continuidade ao processo iniciado pelo MTSM – I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste (Vitória, Suzana Vasconcelos MEDXIII 1985), I Encontro Estadual de Saúde Mental do Rio de Janeiro (1986), I Conferência Estadual de Saúde Mental do Rio de Janeiro (março/1987), II Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste (abril/1987). Em junho de 1987 houve a I Conferência Nacional de Saúde Mental. Em dezembro desse mesmo ano, na cidade de Bauru, foi realizado o II Congresso Nacional do MTSM que promoveu o surgimento do lema “Por uma sociedade sem manicômios” caracterizando uma importante ruptura na trajetória do movimento. A adoção deste lema possibilitou a retomada do projeto de desinstitucionalização baseado na experiência italiana. Nesse congresso foi proposta a criação do Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de maio) que seria realizado anualmente e teria a participação de toda a sociedade. O primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) foi criado no ano de 1987, na cidade de São Paulo e apresentava-se como uma instituição intermediária entre o hospital e a comunidade. Em 1989, uma ação promovida pela prefeitura da cidade de Santos/SP pôde operacionalizar uma verdadeira transformação no âmbito psiquiátrico. A partir de denúncias de mortes de pacientes e de violências cometidas aos mesmos, houve uma intervenção numa clínica particular, a Casa de Saúde Anchieta. Este acontecimento permitiu colocar em prática uma experiência inédita e ousada na assistência em saúde mental brasileira. Com o fechamento do manicômio, a cidade de Santos pôde criar uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico que era composta por Núcleos de Assistência Psicossocial (NAPS), cooperativas sociais, associações e outras estratégias de cuidado e assistência que caracterizam uma rede territorial de atenção, em substituição ao modelo psiquiátrico tradicional pautado no manicômio. A experiência do município de Santos passa a ser um marco no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira. Trata-seda primeira demonstração, com grande repercussão, de que a Reforma Psiquiátrica, não sendo apenas uma retórica, era possível e exequível. Neste mesmo ano o deputado Paulo Delgado apresentou na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (PL) baseado na “extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais” A partir do final da década de 80 e início de 90, foi marcado pela necessidade de haver mudanças estruturais no modelo assistencial vigente; preconizou-se a criação de novas formas de cuidar e a construção de uma rede de serviços substitutivos. Neste contexto foram criados e/ou implantados diversos serviços que tinham como base o modelo de serviço de atenção diária, como hospital-dia, Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), foi nesse momento que esses serviços tomaram a forma como são conhecidos hoje. O reconhecimento destas novas formas de assistência demonstrou a transformação do modelo hospitalocêntrico, que era predominantemente asilar, com hospitalização integral e isolamento. AS LEIS FEDERAIS 2. O Projeto de Lei 3.657 de 1989. Em setembro de 1989 o deputado Paulo Delgado apresentou o Projeto de Lei 3.657 que dispunha sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamentava a internação psiquiátrica compulsória. O PL 3.657/89 era composto por 5 artigos baseados em quatro temas principais (Delgado, 1992b): deter a expansão dos leitos manicomiais; promover um novo tipo de cuidado; criar uma nova rede de serviços; proporcionar o fim das internações anônimas. “As principais transformações no campo jurídico-politico tiveram início a partir deste Projeto de Lei, que provocou enorme polêmica na mídia nacional, ao mesmo tempo em que algumas associações de usuários e familiares foram constituídas em função dele. Umas contrárias, outras a favor, o resultado importante deste contexto foi que, de forma muito importante, os temas da loucura, da assistência psiquiátrica e dos manicômios invadiram boa parte do interesse nacional”. Embora tenha sido formado num momento em que havia condições propícias para a transformação do modelo psiquiátrico, o PL enfrentou várias dificuldades no percurso para a sua aprovação. Durante doze anos este projeto tramitou pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Na Câmara dos Deputados sua aprovação ocorreu em 1991 e no Senado Federal o substitutivo do senador Sebastião Rocha foi aprovado somente em 2001. A maior resistência ao projeto veio do setor empresarial ligado aos hospitais psiquiátricos que viam no PL uma ameaça de perda de seus rendimentos. “Enfim, na prática, enquanto o PL não se tornava lei, a realidade ia sendo mudada pelos próprios portadores de transtorno mental, assim como pelos técnicos, familiares, voluntários, organizados em um amplo movimento de transformação das relações entre sociedade e loucura. Neste período foram extintos mais de 20 mil leitos psiquiátricos no Brasil, ao mesmo tempo em que foram criados cerca de 250 serviços de atenção psicossocial e mais de mil leitos psiquiátricos em hospitais gerais” No decorrer dos anos de luta pela aprovação do PL houve a criação de diversos serviços extra-hospitalares e a Suzana Vasconcelos MEDXIII promulgação de portarias ministeriais dentre as quais convém destacar: • Portaria 189 de 19/11/1991 – alterou o financiamento das ações e serviços de saúde mental; • Portaria 224 de 19/01/92 – regulamentou o funcionamento de serviços de saúde mental; • Portaria 1077 de 24/08/99 – assegurou o fornecimento de medicamentos básicos de saúde mental nos “serviços ambulatoriais públicos de saúde que disponham de atenção em saúde mental”; • Portaria 106 de 11/02/00 – criou e regulamentou o funcionamento dos serviços residenciais terapêuticos; • Portaria 799 de 19/06/00 – criou uma auditoria especial nos serviços de saúde mental com o objetivo de avaliar a assistência prestada, estabelecer mecanismos de supervisão permanente nos serviços e propor normas que possibilitem a continuidade do processo de transformação do modelo de atenção psiquiátrica. • Portaria 1220 de 7/11/2000 – determinou a avaliação da assistência em saúde mental prestada pelo SUS. A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental. É a partir deste período que a política do Ministério da Saúde para a saúde mental, acompanhando as diretrizes em construção da Reforma Psiquiátrica, começa a ganhar contornos mais definidos. É na década de 90, marcada pelo compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. As novas normatizações do Ministério da Saúde de 1992, embora regulamentassem os novos serviços de atenção diária, não instituíam uma linha específica de financiamento para os CAPS e NAPS. • É importante ressaltar que, no Brasil, até o início da década de 90, o Ministério da Saúde previa remuneração somente para internação psiquiátrica e consulta ambulatorial, dificultando a realização de outros procedimentos e outras atividades. As Portarias 189/91 e 224/92 representaram um importante avanço no processo de constituição de uma nova rede de serviços em detrimento ao hospital psiquiátrico, pois efetivaram o financiamento de estabelecimentos não manicomiais e permitiram o fechamento de instituições não qualificadas para a prestação de assistência. Em 1992 foi realizada a II Conferência Nacional de Saúde Mental que teve como temas principais: crise, democracia e reforma psiquiátrica; modelos de atenção em saúde mental; direitos e cidadania. Nesta conferência foram reafirmados os princípios da I CNSM e do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) e incorporados os princípios da reforma sanitária e da desinstitucionalização. A desinstitucionalização é um conceito extremamente importante no processo de Reforma Psiquiátrica e é uma de suas principais estratégias para a transformação da assistência, pode ser entendida como: • desospitalização – noção que não questiona o paradigma psiquiátrico tradicional e que procura fazer com que o saber e as técnicas psiquiátricas tenham uma melhor aplicação. Possui ênfase na prevenção e na reabilitação e procura substituir o hospital psiquiátrico por uma rede de serviços comunitários. A desospitalização é apenas um dos aspectos da desinstitucionalização. Este conceito foi utilizado na prática assistencial nos EUA. • desconstrução – conceito advindo da abordagem da psiquiatria democrática italiana, que tem como proposta repensar os saberes, as práticas e a própria psiquiatria. 3. A Lei Federal 10.216 de 2001 Convém destacar que, durante o período de tramitação do PL, alguns estados brasileiros aprovaram leis baseadas nas propostas do projeto do deputado Paulo Delgado. O movimento social para a aprovação da lei da Reforma Psiquiátrica, de acordo com o projeto do deputado Paulo Delgado, tinha como objetivo central a extinção progressiva dos manicômios, entendidos como instituições de internação psiquiátrica especializada. No entanto, no decorrer do processo, as negociações legislativas juntamente com o jogo de interesses e as forças políticas acabaram fazendo com que houvesse mudanças fundamentais no texto finalda lei. A principal mudança diz respeito ao ponto central do PL, a extinção dos manicômios que não foi mencionada no substitutivo do Senador Sebastião Rocha. O texto do Projeto de Lei 3.657/89 dispunha sobre a 92 extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamentava a internação psiquiátrica compulsória (grifos nossos), apresentando como proposta central a substituição do modelo manicomial. Esta marcante diferença entra as propostas do PL e do texto final da Suzana Vasconcelos MEDXIII lei demonstra o poder dos diversos interesses presentes na elaboração deste regimento legislativo. A Lei 10.216 de 06 de abril de 2001 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. O título da lei apresenta uma proposta de proteção da pessoa portadora de transtorno mental, estabelece os seus direitos e pretende redirecionar o modelo de assistência em saúde mental. A nova lei federal possui dois grandes eixos: a questão da proteção e o redirecionamento do modelo assistencial. Diferentemente do PL, a lei 10.216/01 mantém a estrutura hospitalar. O título da lei apresenta uma mudança inovadora no que se refere à nomenclatura utilizada para definir a pessoa que necessita de cuidados em saúde mental: o termo psicopata da legislação de 1934 é substituído pela expressão portador de transtorno mental, que é adotada atualmente pela psiquiatria. A lei é composta por 13 artigos assim divididos: • Art. 1º e 2º - apresentam os direitos das pessoas com transtorno mental; • Art. 3º - trata da responsabilidade do Estado no desenvolvimento da política de saúde mental, na assistência e na promoção de ações. • Art. 4º ao 10º - definem e regulamentam os tipos de internação; • Art. 11 - trata das pesquisas envolvendo pacientes; • Art. 12 - cria a Comissão Nacional para o acompanhamento da implementação da lei; • Art. 13 – vigora a lei a partir da data de sua publicação. O artigo 4º estabelece um limite para a ocorrência da internação: só deve ser indicada quando os recursos extra- hospitalares se mostrarem insuficientes. Entretanto, não há uma definição para o que seja insuficiente. Os parágrafos do artigo regulamentam a internação e determinam que o tratamento deve primar pela reinserção social do paciente e oferecer assistência integral através de uma equipe multidisciplinar. VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Os tipos de internação são definidos: internação psiquiátrica voluntária (IPV), involuntária (IPI) e compulsória. I - Internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - Internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. Resta, verificar como a IPV e seu término estão sendo realizados na prática diária dos hospitais. Embora a lei estipule este procedimento, não há referência para o que deve ser feito quando a pessoa não adquire sua alta, sobre as condições que impedem a cessação da IPV, nem sobre as conseqüências para o hospital que não cumpre a determinação da lei. A lei “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”, entretanto, nenhum artigo aborda diretamente a questão do modelo assistencial nem menciona a constituição de serviços substitutivos em detrimento ao modelo asilar. Apenas determina que a internação ocorra em estrutura que contenha equipe multidisciplinar (art. 4º § 2º) e que a pessoa seja tratada, preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental (art. 2º- IX). Não há definição do que seja um serviço comunitário e a lei mantém a permanência do modelo hospitalocêntrico. Embora possamos apresentar críticas ao texto desta nova lei federal, ela representa um avanço para o processo de reforma psiquiátrica e para a transformação do modelo de assistência em saúde mental: o portador de transtorno mental foi reconhecido em seus direitos que se tornaram explícitos na lei e as internações psiquiátricas foram diferenciadas e regulamentadas. O parágrafo 1º do artigo 10º tratava da função do Ministério Público no controle das internações involuntárias e autorizava a formação de uma equipe revisora multiprofissional de saúde mental para atuar na fiscalização dessas internações, determinando se as mesmas deveriam prosseguir ou serem terminadas. 4. A Portaria 2.391/02 e seu papel na regulamentação das internações Com o objetivo de regulamentar a comunicação da internação psiquiátrica involuntária foi promulgada em 2002 a Portaria n° 2.391/GM que “regulamenta o controle das internações psiquiátricas involuntárias (IPI) e voluntárias (IPV) de acordo com o disposto na Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, e os procedimentos de notificação da Comunicação das IPI e IPV ao Ministério Público pelos estabelecimentos de saúde, integrantes ou não do SUS”. Como pontos principais da portaria, podem ser destacados: Suzana Vasconcelos MEDXIII • A internação psiquiátrica deve ser o último recurso escolhido como tratamento e durar o mínimo possível (Art. 2° − Contudo, o texto não define o que venha a ser o mínimo possível). • O estabelecimento de quatro modalidades de internação (a Lei 10.216/01 apresenta três modalidades): internação psiquiátrica involuntária, internação psiquiátrica voluntária, internação psiquiátrica voluntária que se torna involuntária (Art 3º § 3º - não prevista na Lei 10.216/01), internação psiquiátrica compulsória (Art.3°). • O estabelecimento das notificações das internações psiquiátricas involuntárias (Arts. 4º e 5°) e voluntárias que se tornam involuntárias (Art. 6º) ao Ministério Público Estadual num prazo de 72 horas; assim como a comunicação da alta hospitalar (quando relacionada à internação psiquiátrica involuntária) de acordo com o modelo de formulário fornecido pela Portaria (Art. 8°). • A constituição de uma Comissão Revisora das Internações Psiquiátricas Involuntárias (Art.10) que realizará a revisão das internações psiquiátricas involuntárias, podendo através de laudo, confirmar ou suspender tal tratamento (Art.12). O modelo de comunicação apresentado pela Portaria traz um ponto bastante pertinente que diz respeito à justificativa de involuntariedade. Quando ocorre uma internação é importante verificar a justificativa de necessidade de tratamento, a necessidade de tratamento em regime de internação e, se for involuntária, a necessidade de internação contra a vontade da pessoa. 5. LEI No 10.708- DE 31 DE JULHO DE 2003 Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações. O auxílio é parte integrante de um programa de ressocialização de pacientes internados em hospitais ou unidades psiquiátricas, denominado "De Volta Para Casa", sob coordenação do Ministério da Saúde. § 1º É fixado o valor do benefício de R$ 240,00 (duzentos e quarenta reais), podendo ser reajustado pelo Poder Executivo de acordo com a disponibilidade orçamentária. § 2º Os valores serão pagos diretamente aos beneficiários, mediante convênio com instituição financeira oficial, salvo na hipótese de incapacidade de exercer pessoalmente os atos da vida civil, quando serão pagos ao representante legal do paciente. § 3º O benefício terá a duração de um ano, podendo ser renovado quando necessário aos propósitos da reintegração social do paciente. Art. 3º São requisitos cumulativos para a obtenção do benefício criado por esta Lei que: I - O paciente seja egresso de internação psiquiátricacuja duração tenha sido, comprovadamente, por um período igual ou superior a dois anos; II - A situação clínica e social do paciente não justifique a permanência em ambiente hospitalar, indique tecnicamente a possibilidade de inclusão em programa de reintegração social e a necessidade de auxílio financeiro; III - haja expresso consentimento do paciente, ou de seu representante legal, em se submeter às regras do programa; IV - Seja garantida ao beneficiado a atenção continuada em saúde mental, na rede de saúde local ou regional. PANORAMA ATUAL DA ASSISTÊNCIA/DESASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA. A REFORMA PSIQUIÁTRICA DEPOIS DA LEI NACIONAL A promulgação da lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. É no contexto da promulgação da lei 10.216 e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, que a política de saúde mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e visibilidade. Linhas específicas de financiamento são criadas pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para a fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país. Neste mesmo período, o processo de desinstitucionalização de pessoas longamente internadas é impulsionado, com a criação do Programa “De Volta para Casa”. Uma política de recursos humanos para a Reforma Psiquiátrica é construída, e é traçada a política para a questão do álcool e de outras drogas, incorporando a estratégia de redução de danos. Realiza-se, em 2004, o primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS. É neste período que a Reforma Psiquiátrica se consolida como política oficial do governo federal. Merece destaque a realização, ao final do ano de 2001, em Brasília, da III Conferência Nacional de Saúde Mental convocada logo após a promulgação da lei 10.216. a III Conferência consolida a Reforma Psiquiátrica como política de governo, confere aos CAPS o valor estratégico para a mudança do modelo de assistência, defende a construção de uma política de saúde mental para os usuários de álcool e outras drogas, e estabelece o controle social como a garantia do avanço da Reforma Psiquiátrica no Brasil. É a III Conferência Nacional de Saúde Mental, com ampla participação dos Suzana Vasconcelos MEDXIII movimentos sociais, de usuários e de seus familiares, que fornece os substratos políticos e teóricos para a política de saúde mental no Brasil. O PROCESSO DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO DA ASSISTÊNCIA HOSPITALAR PSIQUIÁTRICA REDUÇÃO DOS LEITOS O processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos e de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação passa a tornar-se política pública no Brasil a partir dos anos 90, e ganha grande impulso em 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde. O Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH), assim como a instituição do Programa de Volta para Casa e a expansão de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial e as Residências Terapêuticas, vem permitindo a redução de milhares de leitos psiquiátricos no país e o fechamento de vários hospitais psiquiátricos. Embora em ritmos diferenciados, a redução do número de leitos psiquiátricos vem se efetivando em todos os estados brasileiros. Entre os anos de 2003 e 2005 foram reduzidos 6227 leitos. Entre os instrumentos de gestão que permitem as reduções e fechamentos de leitos de hospitais psiquiátricos de forma gradual, pactuada e planejada, está o Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), instituído em 2002, por normatização do Ministério da Saúde. Essencialmente um instrumento de avaliação, o PNASH/Psiquiatria permite aos gestores um diagnóstico da qualidade da assistência dos hospitais psiquiátricos conveniados e públicos existentes em sua rede de saúde, ao mesmo tempo que indica aos prestadores critérios para uma assistência psiquiátrica hospitalar compatível com as normas do SUS, e descredencia aqueles hospitais sem qualquer qualidade na assistência prestada a sua população adscrita. A AVALIAÇÃO ANUAL DOS HOSPITAIS E SEU IMPACTO NA REFORMA É importante ressaltar que a tradição de controle e avaliação anterior ao PNASH-Psiquiatria ancorava-se em dois mecanismos: as supervisões hospitalares, realizadas por supervisores do SUS, de alcance limitado, e as fiscalizações ou auditorias que atendiam a denúncias de mau funcionamento das unidades. É a partir da instituição do PNASH/Psiquiatria que o processo de avaliação da rede hospitalar psiquiátrica pertencente ao Sistema Único de Saúde passa a ser sistemático e anual, e realizado por técnicos de três campos complementares: o técnico-clínico, a vigilância sanitária e o controle normativo. Este instrumento gera uma pontuação que, cruzada com o número de leitos do hospital, permite classificar os hospitais psiquiátricos em quatro grupos diferenciados: aqueles de boa qualidade de assistência; os de qualidade suficiente; aqueles que precisam de adequações e devem sofrer revistoria; e aqueles de baixa qualidade, encaminhados para o descredenciamento pelo Ministério da Saúde, com os cuidados necessários para evitar desassistência à população. AS RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS A implementação e o financiamento de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) surgem neste contexto como componentes decisivos da política de saúde mental do Ministério da Saúde para a concretização das diretrizes de superação do modelo de atenção centrado no hospital psiquiátrico. Assim, os Serviços Residenciais Terapêuticos, residências terapêuticas ou simplesmente moradias, são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, egressas de hospitais psiquiátricos ou não. Embora as residências terapêuticas se configurem como equipamentos da saúde, estas casas, implantadas na cidade, devem ser capazes em primeiro lugar de garantir o direito à moradia das pessoas egressas de hospitais psiquiátricos e de auxiliar o morador em seu processo – às vezes difícil – de reintegração na comunidade. Os direitos de morar e de circular nos espaços da cidade e da comunidade são, de fato, os mais fundamentais direitos que se reconstituem com a implantação nos municípios de Serviços Residenciais Terapêuticos. Uma Residência Terapêutica deve acolher, no máximo, oito moradores. De forma geral, um cuidador é designado para apoiar os moradores nas tarefas, dilemas e conflitos cotidianos do morar, do co-habitar e do circular na cidade, em busca da autonomia do usuário. Cada residência deve estar referenciada a um Centro de Atenção Psicossocial e operar junto à rede de atenção à saúde mental dentro da lógica do território. O PROGRAMA DE VOLTA PARA CASA O Programa de Volta para Casa é um dos instrumentos mais efetivos para a reintegração social das pessoas com longo histórico de hospitalização. Trata-se de uma das estratégias mais potencializadoras da emancipação de pessoas com transtornos mentais e dos processos de desinstitucionalização e redução de leitos nos estados e municípios. Criado pela lei federal 10.708, encaminhada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva ao Congresso, votada e sancionada em 2003, o Programa é a concretização de uma reivindicação histórica do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, tendo sido Suzana Vasconcelos MEDXIII formulado como proposta já à época daII Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1992. O objetivo do Programa é contribuir efetivamente para o processo de inserção social das pessoas com longa história de internações em hospitais psiquiátricos, através do pagamento mensal de um auxílio-reabilitação, no valor de R$240,00 (duzentos e quarenta reais, aproximadamente 110 dólares) aos seus beneficiários. Para receber o auxílio reabilitação do Programa De Volta para Casa, a pessoa deve ser egressa de Hospital Psiquiátrico ou de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, e ter indicação para inclusão em programa municipal de reintegração social. Cada beneficiário do Programa recebe um cartão magnético, com o qual pode sacar e movimentar mensalmente estes recursos. O município de residência do beneficiário deve, para habilitar-se ao Programa, ter assegurada uma estratégia de acompanhamento dos beneficiários e uma rede de atenção à saúde mental capaz de dar uma resposta efetiva às demandas de saúde mental. A cada ano o benefício pode ser renovado, caso o beneficiário e a equipe de saúde que o acompanha entendam ser esta uma estratégia ainda necessária para o processo de reabilitação. Além do esperado desafio da mudança efetiva do modelo de atenção à saúde mental nos estados e municípios, o Programa de Volta para Casa enfrenta uma situação paradigmática, produzida por um longo processo de exclusão social. A grande maioria dos potenciais beneficiários, sendo egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos, não possuem a documentação pessoal mínima para o cadastramento no Programa. Muitos não possuem certidão de nascimento ou carteira de identidade O longo e secular processo de exclusão e isolamento dessas pessoas, além dos modos de funcionamento típicos das instituições totais, implicam muitas vezes na ausência de instrumentos mínimos para o exercício da cidadania. Este é ainda um desafio para a consolidação do Programa, que vem sendo enfrentado através da parceria entre o Ministério da Saúde, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, para restituir o direito fundamental de identificação e garantir o direito destas pessoas ao auxílio-reabilitação do Programa de Volta para Casa. Desta forma, verdadeiros “mutirões da cidadania” vêm se estruturando nos municípios para garantir a identificação tardia destas pessoas, num processo fundamental de inclusão social e garantia dos direitos fundamentais das pessoas com transtornos mentais, desafio primeiro da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A ESTRATÉGIA DE REDUÇÃO PROGRESSIVA A PARTIR DOS HOSPITAIS DE GRANDE PORTE O Ministério da Saúde aprova em 2004 o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar no SUS (PRH). A principal estratégia do Programa é promover a redução progressiva e pactuada de leitos a partir dos macro hospitais (acima de 600 leitos, muitas vezes hospitais-cidade, com mais de mil leitos) e hospitais de grande porte (com 240 a 600 leitos psiquiátricos). Assim, são componentes fundamentais do programa a redução do peso assistencial dos hospitais de maior porte, e a pactuação entre os gestores do SUS – os hospitais e as instâncias de controle social – da redução planejada de leitos, evitando a desassistência. Para tanto, são definidos no Programa os limites máximos e mínimos de redução anual de leitos para cada classe de hospitais (definidas pelo número de leitos existentes, contratados pelo SUS). Assim, todos os hospitais com mais de 200 leitos devem reduzir no mínimo, a cada ano, 40 leitos. Os hospitais entre 320 e 440 leitos podem chegar a reduzir 80 leitos ao ano (mínimo: 40), e os hospitais com mais de 440 leitos podem chegar a reduzir, no máximo, 120 leitos ao ano. Desta forma, busca-se a redução progressiva do porte hospitalar, de modo a situarem-se os hospitais, ao longo do tempo, em classes de menor porte (idealmente, até 160 leitos). Ao mesmo tempo, garante-se que as reduções de leitos se efetivem de forma planejada, de modo a não provocar desassistência nas regiões onde o hospital psiquiátrico ainda tem grande peso na assistência às pessoas com transtornos mentais. Este processo, com ritmo pactuado entre os gestores do município e do estado, hospitais e controle social, deve incluir o aumento progressivo dos equipamentos e das ações para a desinstitucionalização, tais como CAPS, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência e a habilitação do município no Programa de Volta para Casa. Na mesma direção estratégica, o Programa recompõe as diárias hospitalares em psiquiatria. Assim, a partir do Programa, passam a vigorar diárias hospitalares compostas e diferenciadas para os hospitais, levando-se em conta o seu porte (classe), a qualidade do atendimento avaliada anualmente pelo PNASH/Psiquiatria e a redução de leitos efetivada. Desta forma, recebem incentivos financeiros, através de novos valores de diárias hospitalares, aqueles hospitais que efetivam a redução de leitos, reduzindo o seu porte, e qualificam o atendimento prestado, verificado pelo PNASH/Psiquiatria. Assim, passam a ser melhor remunerados pelo SUS todos os hospitais que reduzem leitos e que melhoram a qualidade de atendimento, aferida pelo PNASH/Psiquiatria. A partir do Programa, a recomposição das diárias hospitalares passa a ser uma ferramenta da política de redução racional dos leitos e qualificação do atendimento em psiquiatria no SUS. Suzana Vasconcelos MEDXIII O Programa também busca garantir que os recursos que deixem de ser utilizados nos hospitais, com a progressiva redução de leitos, permaneçam no campo das ações de saúde mental e sejam direcionados para os equipamentos da Reforma Psiquiátrica. MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS: UM DESAFIO PARA A REFORMA Estes hospitais, não sendo geridos pelo Sistema Único de Saúde, mas por órgãos da Justiça, não estão submetidos às normas gerais de funcionamento do SUS, ao PNASH/Psiquiatria (com única exceção dos Hospitais de Custódia do Rio de Janeiro), ou ao Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica. São frequentes as denúncias de maus tratos e os óbitos nestes estabelecimentos. No ordenamento jurídico brasileiro, as pessoas com transtornos mentais que cometem crimes são consideradas inimputáveis, isto é, isentas de pena. Estas pessoas são submetidas, no entanto, à medida de segurança, espécie de tratamento compulsório, cuja principal consequência é a segregação perpétua ou por longo período, através da internação, da pessoa acometida de transtornos mentais que cometeu um crime ou uma infração. A publicação da lei 10.216, assim como as resoluções da III Conferência Nacional de Saúde Mental, vêm fomentando, no entanto, de forma inequívoca, a mudança das práticas na assistência ao louco infrator. O Ministério da Saúde desde então vem apoiando experiências interinstitucionais extremamente bem sucedidas, que buscam tratar o louco infrator fora do manicômio judiciário, na rede SUS extra-hospitalar de atenção à saúde mental, especialmente nos Centros de Atenção Psicossocial. PROGRAMA DE INCLUSÃO SOCIAL PELO TRABALHO Um dos principais desafios da Reforma Psiquiátrica - processo amplo de inclusão social e promoção da cidadania das pessoas com transtornos mentais - é a potencialização do trabalho como instrumento de inclusão social dos usuários dos serviços. Embora os diversos serviços da rede de atenção à saúde mental fomentem a criação de cooperativas e associações e realizem oficinas de geração de renda, estas experiências, mesmo que com ótimos resultados, caracterizam-se ainda por sua frágil sustentação institucional e financeira. Neste contexto, o marco da Economia Solidária, como movimento de luta contra a exclusão social e econômica,surge como parceiro natural para a discussão da exclusão das pessoas com transtornos mentais do mercado de trabalho. De fato, os movimentos da Reforma Psiquiátrica e da Economia Solidária compartilham princípios fundamentais quando fazem a opção ética, política e ideológica por uma sociedade marcada pela solidariedade. É somente no ano de 2004, no entanto, que estes movimentos passam a se encontrar, a se reconhecer e a dialogar, iniciando uma colaboração permanente entre estes campos e entre os integrantes dos movimentos sociais correspondentes, tendo como desafio a reinserção social de egressos de manicômios por meio da construção de empreendimentos solidários e autogestionários. A Economia Solidária, hoje política oficial do Ministério do Trabalho e Emprego, é um movimento organizado de resposta à exclusão por gênero, raça, idade, estilo de vida e instrução, entre outros fatores, das pessoas do campo do trabalho. É através de um diálogo permanente entre os campos da saúde mental e da economia solidária que o Programa de Inclusão Social pelo Trabalho das pessoas com transtornos mentais e transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas começa a ser delineado. A realização do Encontro Nacional de Centros de Atenção Psicossocial e a promoção conjunta, pelos Ministérios da Saúde e do Trabalho e Emprego, da primeira Oficina Nacional de Experiências de Geração de Renda de Usuários de Saúde Mental, ainda em 2004, possibilitou o primeiro contato com iniciativas de geração de renda em todo o país, e a construção das bases para um diálogo produtivo entre as políticas de saúde mental e economia solidária. É no ano de 2005, no entanto, que a criação de um Grupo de Trabalho composto pelos Ministérios da Saúde e do Trabalho e Emprego, gestores do SUS, representantes das iniciativas de geração de renda e representantes de usuários, possibilita uma discussão mais sistematizada, ainda em andamento, em torno dos temas da saúde mental e da economia solidária e a inclusão destes temas nas agendas sociais do governo federal, dos estados e dos municípios. Em julho de 2005, o Ministério da Saúde implementa uma linha específica de incentivo financeiro para os municípios que desenvolvem atividades de inclusão social pelo trabalho para pessoas com transtornos mentais ou com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Pela primeira vez, estas iniciativas passam a receber recursos federais. REDE DE CUIDADOS A rede de atenção à saúde mental, composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência, Ambulatórios de Saúde Mental e Hospitais Gerais, caracteriza-se por ser essencialmente pública, de base municipal e com um controle social fiscalizador e gestor no processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica. O papel dos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde, assim como das Conferências de Saúde Mental, é por excelência garantir a participação dos trabalhadores, usuários de saúde mental e seus familiares nos processos de gestão do SUS, favorecendo assim o protagonismo dos usuários na construção de uma rede de atenção à saúde mental. De fato, são as Conferências Suzana Vasconcelos MEDXIII Nacionais de Saúde Mental, e em especial a III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001, que consolidam a Reforma Psiquiátrica como política oficial do SUS e propõem a conformação de uma rede articulada e comunitária de cuidados para as pessoas com transtornos mentais. O papel estratégico dos CAPS Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), entre todos os dispositivos de atenção à saúde mental, têm valor estratégico para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. É o surgimento destes serviços que passa a demonstrar a possibilidade de organização de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país. É função dos CAPS prestar atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando assim as internações em hospitais psiquiátricos; promover a inserção social das pessoas com transtornos mentais através de ações intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde mental na rede básica. É função, portanto, e por excelência, dos CAPS organizar a rede de atenção às pessoas com transtornos mentais nos municípios. Os CAPS devem ser substitutivos, e não complementares ao hospital psiquiátrico. Cabe aos CAPS o acolhimento e a atenção às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços sociais do usuário em seu território. Os Centros de Atenção Psicossocial começaram a surgir nas cidades brasileiras na década de 80 e passaram a receber uma linha específica de financiamento do Ministério da Saúde a partir do ano de 2002, momento no qual estes serviços experimentam grande expansão. São serviços de saúde municipais, abertos, comunitários, que oferecem atendimento diário às pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social destas pessoas através do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Os CAPS se diferenciam pelo porte, capacidade de atendimento, clientela atendida e organizam-se no país de acordo com o perfil populacional dos municípios brasileiros. Assim, estes serviços diferenciam-se como CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPSad • Os CAPS I são os Centros de Atenção Psicossocial de menor porte, capazes de oferecer uma resposta efetiva às demandas de saúde mental em municípios com população entre 20.000 e 50.000 habitantes. Estes serviços têm equipe mínima de 9 profissionais, entre profissionais de nível médio e nível superior, e têm como clientela adultos com transtornos mentais severos e persistentes e transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Funcionam durante os cinco dias úteis da semana, e têm capacidade para o acompanhamento de cerca de 240 pessoas por mês. • Os CAPS II são serviços de médio porte, e dão cobertura a municípios com mais de 50.000 habitantes. A clientela típica destes serviços é de adultos com transtornos mentais severos e persistentes. Os CAPS II têm equipe mínima de 12 profissionais, entre profissionais de nível médio e nível superior, e capacidade para o acompanhamento de cerca de 360 pessoas por mês. Funcionam durante os cinco dias úteis da semana. • Os CAPS III são os serviços de maior porte da rede CAPS. Previstos para dar cobertura aos municípios com mais de 200.000 habitantes. Os CAPS III são serviços de grande complexidade, uma vez que funcionam durante 24 horas em todos os dias da semana e em feriados. Com no máximo cinco leitos, o CAPS III realiza, quando necessário, acolhimento noturno (internações curtas, de algumas horas a no máximo 7 dias). A equipe mínima para estes serviços deve contar com 16 profissionais, entre os profissionais de nível médio e superior, além de equipe noturna e de final de semana. Estes serviços têm capacidade para realizar o acompanhamento de cerca de 450 pessoas por mês. • Os CAPSi, especializados no atendimento de crianças e adolescentes com transtornos mentais, são equipamentos geralmente necessários para dar resposta à demanda em saúde mental em municípios com mais de 200.000 habitantes. Funcionam durante os cinco dias úteis da semana, e têm capacidade para realizar o acompanhamento de cerca de 180 crianças e adolescentes por mês. A equipe mínima para estes serviços é de 11 profissionais de nível médio e superior. • Os CAPSad, especializados no atendimento de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, são equipamentos previstos para cidades com mais de 200.000 habitantes, ou cidades que, por sua localizaçãogeográfica (municípios de fronteira, ou parte de rota de tráfico de drogas) ou cenários epidemiológicos importantes, necessitem deste serviço para dar resposta efetiva às demandas de saúde mental. Funcionam durante os cinco dias úteis da semana, e têm capacidade para realizar o acompanhamento de cerca de 240 pessoas por mês. A equipe mínima prevista para os CAPSad é composta por 13 profissionais de nível médio e superior. O perfil populacional dos municípios é sem dúvida um dos principais critérios para o planejamento da rede de atenção à saúde mental nas cidades, e para a implantação de Centros de Atenção Psicossocial. O critério populacional, no entanto, deve ser compreendido apenas como um orientador para o planejamento das ações de saúde. Saúde Mental na atenção primária: articulação com o programa de saúde da família Suzana Vasconcelos MEDXIII Por sua proximidade com famílias e comunidades, as equipes da Atenção Básica se apresentam como um recurso estratégico para o enfrentamento de importantes problemas de saúde pública, como os agravos vinculados ao uso abusivo de álcool, drogas e diversas outras formas de sofrimento psíquico. Existe um componente de sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença, às vezes atuando como entrave à adesão a práticas preventivas ou de vida mais saudáveis. Poderíamos dizer que todo problema de saúde é também – e sempre – de saúde mental, e que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde. Nesse sentido, será sempre importante e necessária a articulação da saúde mental com a Atenção Básica. Contudo, nem sempre a Atenção Básica apresenta condições para dar conta desta importante tarefa. Por esta razão, o Ministério da Saúde vem estimulando ativamente, nas políticas de expansão, formulação e avaliação da Atenção Básica, diretrizes que incluam a dimensão subjetiva dos usuários e os problemas mais frequentes de saúde mental. Afinal, grande parte das pessoas com transtornos mentais leves ou severos está sendo efetivamente atendida pelas equipes de Atenção Básica nos grandes e pequenos municípios. Assumir este compromisso é uma forma de responsabilização em relação à produção da saúde, à busca da eficácia das práticas e à promoção de equidade, da integralidade e da cidadania num sentido mais amplo, especialmente em relação aos pequenos municípios (grande maioria dos municípios brasileiros), onde não é necessária a implantação de Centros de Atenção Psicossocial. Assim, o Ministério da Saúde vem construindo nos últimos anos as diretrizes e condições para que nos municípios com menos de 20.000 habitantes a rede de cuidados em saúde mental estruture-se a partir da Atenção Básica. Nestes municípios, pequenas equipes de saúde mental, que podem estar lotadas em ambulatórios (ou CAPS de municípios vizinhos), por exemplo, passam a dar apoio matricial às equipes de Atenção Básica. A responsabilização compartilhada dos casos exclui a lógica do encaminhamento, pois visa aumentar a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe local. No caso de municípios maiores, onde estão implantados CAPS ou outros equipamentos da rede de atenção à saúde mental, a lógica do apoio matricial é a mesma: a equipe do CAPS, juntamente com membros das equipes dos outros equipamentos, apóiam as diferentes equipes de Atenção Básica através de ações de supervisão, atendimento conjunto e específico e capacitação. Em todos os cenários, as equipes matriciais de saúde mental e da Atenção Básica compartilham os casos e constroem coletivamente as estratégias para a abordagem de problemas vinculados à violência, ao abuso de álcool e outras drogas, as estratégias para redução de danos, o fomento de ações para a diminuição da segregação pela loucura e combate ao estigma, e o desenvolvimento de ações de mobilização dos recursos comunitários para a reabilitação psicossocial. A partir de 2011, a portaria 3088/2011 institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que reorienta o cuidado em diferentes níveis de assistência. Na Atenção Básica, propõe o atendimento a partir dos serviços na Unidade Básica em saúde, Equipes de Saúde da Família, Consultório na Rua, Serviços de Atenção Residencial de Caráter Transitório e seus serviços de apoio, Centros de Convivência e Cultura. Já em Atenção Secundária temos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em suas diferentes modalidades. Compõem a Atenção de Urgência e Emergência: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), Sala de estabilização, Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que funciona 24 horas, hospitais gerais com leitos. O tripé composto pelos Serviços de residenciais terapêuticos (SRT), pelo Programa de volta para Casa (PVC) e pelo Programa de Redução de Leitos Hospitalares de Longa Permanência articula a desinstitucionalização de pacientes longamente internados. Finalmente, Iniciativas de Trabalho e Renda com empreendimentos solidários e cooperativas sociais são previstas na Portaria 1169/2005. Embora a portaria 3088/2011 habilite todos os níveis de atenção do SUS a atuar em saúde mental, situa apenas o Consultório na Rua, a Atenção Residencial de Caráter Transitório e os Centros de Convivência como serviços voltados à saúde mental na atenção básica, sendo os dois primeiros mais direcionados à população residente na rua. Na atenção secundária, a portaria 3088/2011 institui apenas os CAPS como serviço especializado, omitindo outros dispositivos voltados à população em sofrimento existencial grave, porém sem crise aguda, tais como hospitais dia, acompanhantes terapêuticos, serviços de readaptação laboral e dispositivos de atendimento comunitário intensivo. Assim, usuários que não se adaptem à proposta institucional, ao ambiente relacional ou aos serviços oferecidos no CAPS de sua região têm dificuldades de acolhimento nesse nível de atenção. OS PRINCIPAIS DESAFIOS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Algumas considerações devem ser feitas a respeito destes dois desafios cruciais da Reforma, que são também os desafios do SUS. • Estima-se que 3% da população necessitam cuidados contínuos em saúde mental, em função de transtornos severos e persistentes (psicoses, neuroses graves, transtornos de humor graves, deficiência mental com grave dificuldade de adaptação). A magnitude do problema (no Brasil, cerca de 5 milhões de pessoas) exige uma rede de cuidados densa, diversificada e efetiva. • Cerca de 10 a 12% da população não sofrem transtornos severos, mas precisam de cuidados em saúde mental, na forma Suzana Vasconcelos MEDXIII de consulta médico-psicológica, aconselhamento, grupos de orientação e outras formas de abordagem. • O modelo hospitalocêntrico (e também o dos ambulatórios de especialidades), por ser concentrador de recursos e de baixa cobertura, é incompatível com a garantia da acessibilidade. • Sem a potencialização da rede básica ou atenção primária de saúde, para a abordagem das situações de saúde mental, não é possível desenhar respostas efetivas para o desafio da acessibilidade. • Transtornos graves associados ao consumo de álcool e outras drogas (exceto tabaco) atingem pelo 12% da população acima de 12 anos, sendo o impacto do álcool dez vezes maior que o do conjunto das drogas ilícitas. A criminalização do consumo agrava a vulnerabilidade dos usuários de drogas, exigindo uma articulação efetiva e inventiva entre a rede de cuidados e outras políticas setoriais, como justiça, segurança pública, trabalho, educação, ação social. Sem esta articulação e cooperação intersetorial, um acesso efetivo à prevenção e ao tratamento não está assegurado. • A qualidade do atendimento deve ser garantida em todas as regiões do país, mesmo as mais carentes e distantes dos centros universitários, e pode ser assegurada através de um forte programa de capacitação,supervisão e formação de multiplicadores. O distanciamento entre as instituições de formação e pesquisa e a saúde pública, no Brasil, agrava as carências de formação e qualificação de profissionais. Formação de Recursos Humanos Um dos principais desafios para o processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira é a formação de recursos humanos capazes de superar o paradigma da tutela do louco e da loucura. O processo da Reforma psiquiátrica exige cada vez mais da formação técnica e teórica dos trabalhadores, muitas vezes desmotivados por baixas remunerações ou contratos precários de trabalho. Ainda, várias localidades do país têm muitas dificuldades para o recrutamento de determinadas categorias profissionais, geralmente formadas e residentes nos grandes centros urbanos. Por esta razão, desde o ano de 2002 o Ministério da Saúde desenvolve o Programa Permanente de Formação de Recursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica, que incentiva, apóia e financia a implantação de núcleos de formação em saúde mental para a Reforma Psiquiátrica, através de convênios estabelecidos com a participação de instituições formadoras ( especialmente universidades federais ), municípios e estados. A partir de 2003, o Ministério instituiu uma estrutura organizativa mais ampla, a Secretaria Nacional de Gestão do Trabalho em Saúde (SGESTES), para enfrentar as necessidades qualitativas e quantitativas de recursos humanos para o SUS. No campo da saúde mental, existem hoje 21 núcleos regionais em funcionamento, realizando cursos de especialização e atualização para trabalhadores da atenção básica e dos CAPS, e beneficiando profissionais de 15 estados. CONHECER O MODELO E A REDE DO ATENDIMENTO PSIQUIÁTRICO NO ESTADO DO AMAPÁ. Nos casos de pacientes em crise ou surto, o primeiro atendimento acontece no Hospital de Emergência (HE), em Macapá, que oferta 24 horas serviços de atendimento psicológico para casos de urgência e emergência, como crises de ansiedade, depressão, abuso ou qualquer tipo de violência e traumas psicológicos, além de tentativas de suicídio. O paciente pode ficar internado na unidade por até 72 horas ou até ser estabilizado. Caso ele necessite continuar internado ele será encaminhado para a Enfermaria Psiquiátrica do complexo do Hospital de Clinicas Alberto Lima (HCAL). Cada paciente recebe um plano de cuidados individualizado de acordo com o seu histórico clínico e psiquiátrico, que pode incluir a participação em atividades de terapia ocupacional, pintura, dança, música, desportivas, recreativas e jogos de inteligência. Durante sua permanência, os familiares são acompanhados pelo serviço social e recebem acompanhamento psicológico, uma vez que o transtorno afeta também fortemente os familiares. Além destes cuidados, os pacientes são acompanhados por odontólogos, clínicos gerais, nutricionista, equipe de enfermagem entre outros profissionais. No complexo do Hcal funciona ainda o Ambulatório de Saúde Mental, serviço especializado que acompanha de forma ambulatorial o tratamento de pessoas com transtornos metais e de humor como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, estresse, de comportamento e personalidade, sono e alimentares. Atualmente o Ambulatório possui quase 16 mil usuários cadastrados, o que o torna, dentro da rede de atenção em saúde mental, o dispositivo de maior demanda dos usuários no estado. O paciente também pode ser inserido nas redes de serviço como os Centros de Apoio Psíquico Social (Caps), onde poderá receber maior suporte para o tratamento de possíveis transtornos psicológicos. O Caps Casa da Gentileza (CAPS III) é a referência no atendimento e tratamento à pessoa com sofrimento mental severo e persistente. O trabalho é voltado para estimular a Suzana Vasconcelos MEDXIII integração social e familiar através de atendimento médico e psicossocial. O Caps Álcool e Drogas (AD) é destinado ao atendimento diário à população adulta com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, como álcool e outras drogas. Também existe o CAPS Infantojuvenil (IJ) no município de Santana, para crianças e jovens até 17 anos que apresentam transtornos mentais ou decorrentes do uso de drogas.
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