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Capítulo 1 O DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ANTONIO CARLOS WOLKMER 1 SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Formação do direito nas sociedades primitivas 3. Características e fontes do direito arcaico 4. Funções e fundamentos do direito na sociedade primitiva 5. Conclusão 6. Referências bibliográficas. 1. INTRODUÇÃO Toda cultura tem um aspecto normativo, cabendo-lhe delimitar a existencialidade de padrões, regras e valores que institucionalizam modelos de conduta. Cada sociedade esforça-se para assegurar uma determinada ordem social, instrumentalizando normas de regulamentação essenciais, capazes de atuar como sistema eficaz de controle social. Constata- se que, na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão do grupo social. Certamente que cada povo e cada organização social dispõe de um sistema jurídico que traduz a especialidade de um grau de evolução e complexidade. Falar, portanto, de um direito arcaico ou primitivo implica ter presente não só uma diferenciação da pré- história e da história do direito, como, sobretudo, nos horizontes de diversas civilizações, precisar o surgimento dos primeiros textos jurídicos com o aparecimento da escrita. Não só subsiste um certo mistério, como falta uma explicação cientificamente correta e respostas conclusivas acerta das origens de grande parte das instituições jurídicas no período pré-histórico. Entretanto, ainda que prevaleça uma consensualidade sobre o fato de 1 Professor Titular de História das Instituições Jurídicas da UFSC. Doutor em Direito e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ). É pesquisador integrante do CNPq, CONPEDI e da Fondazione Cassamarca (Treviso – Itália). Professor visitante dos cursos: Mestrado e Doutorado em História Ibero-Americana (UNISINOS-RS); Pós-Graduação em Direito Processual do IBEJ (Curitiba-PR) Mestrado em Criminologia e Direito Penal da Universidade Cândido Mendes (RJ); Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo na Universidad Pablo de Olavide (Sevilha - Espanha). Autor e organizador de inúmeros livros, dentre os quais: Direito e justiça na América indígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998; História do direito no Brasil. 3. ed, Rio de Janeiro: Forense, 2003; Introdução à História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; Humanismo e Cultura Jurídica no Brasil. Florianóplis: Fundação Boiteux, 2003; Direitos Humanos e Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004; Fundamentos do Humanismo Jurídico no Ocidente. São Paulo: Manole, 2005. que os primeiros textos jurídicos estejam associados ao aparecimento da escrita, não se pode considerar a presença de um direito entre povos que possuíam formas de organização social e política primitivas sem o conhecimento da escrita. Autores como John Gilissen questionam a própria expressão “direito primitivo”, aludindo que o termo “direito arcaico” tem um alcance mais abrangente para contemplar múltiplas sociedades que passaram por uma evolução social, política e jurídica bem avançada, mas que não chegaram a dominar a técnica da escrita. Assim sendo, as inúmeras investigações científicas têm apurado que as práticas legais de sociedades sem escrita assumem características, por vezes, primitivas, por outras, expressam um certo nível de desenvolvimento. Certamente que a pesquisa dos sistemas legais das populações sem escrita não se reduz meramente à explicação dos primórdios históricos do direito, mas evidencia, sobretudo, um enorme interesse em curso, porquanto “milhares de homens vivem ainda atualmente, na segunda metade do século XX, de acordo com direitos a que chamamos „arcaicos‟ ou „primitivos‟. As civilizações mais arcaicas continuam a ser as dos aborígenes da Austrália ou da Nova Guiné, dos povos da Papuásia ou de Bornéu, de certos povos índios da Amazônia no Brasil”.2 Não parece haver dúvida de que o processo contemporâneo de colonização gerou um surto de pluralismo jurídico, representado pela convivência e dualismo concomitante, de um direito “europeu (common law nas colônias inglesas e americanas, direitos romanistas nas outras colônias) para os não indígenas e, por vezes, para os indígenas evoluídos; e outro, do tipo arcaico para as populações autóctones”.3 Tendo em conta estas asserções iniciais, cabe pontualizar alguns aspectos do direito nas sociedades primitivas como a formação, caracterização, fontes e funções. 2. FORMAÇÃO DO DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS A dificuldade de se impor uma causa primeira e única para explicar as origens do direito arcaico deve-se em muito ao amplo quadro de hipóteses possíveis e proposições explicativas distintas. O direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade pré-histórica fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais natural do que considerar que a base geradora do jurídico encontra-se primeiramente, nos laços de consangüinidade, nas práticas de convívio familiar de um mesmo 2 GILISSEN, John. Introdução histórica do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 33. 3 GILISSEN, John. Op. cit., p. 34. 1 grupo social, unido por crenças e tradições. 4 É neste sentido que a lei primitiva da propriedade e das sucessões teve em grande parte sua origem na família e nos procedimentos que a circunscreveram, como as crenças, os sacrifícios e o culto aos mortos. Ninguém melhor que Fustel de Coulanges para escrever que o direito antigo não é resultante de uma única pessoa, pois se impôs a qualquer tipo de legislador. Nasceu espontânea e inteiramente nos antigos princípios que constituíram a família, derivando “das crenças religiosas, universalmente admitidas na idade primitiva desses povos e exercendo domínio sobre as inteligências e sobre as vontades”. 5 Posteriormente, num tempo em que inexistiam legislações escritas, códigos formais, as práticas primárias de controle são transmitidas oralmente, marcadas por revelações sagradas e divinas. Distintivamente da ênfase atribuída à família feita por Fustel de Coulanges, H. Summer Maine entende que esse caráter religioso do direito arcaico, imbuído de sanções rigorosas e repressoras, permitiria que os sacerdotes-legisladores acabassem por ser os primeiros intérpretes e executores das leis. O receio da vingança dos deuses, pelo desrespeito aos seus ditames, fazia com que o direito fosse respeitado religiosamente, Daí que, em sua maioria, os legisladores antigos (reis sacerdotes) 6 anunciaram ter recebido as suas leis do deus da cidade. De qualquer forma, o ilícito se confundia com a quebra da tradição e com a infração ao que a divindade havia proclamado. Neste aspecto, nas manifestações mais antigas do direito, as sanções legais estão profundamente associadas às sanções rituais. A sanção assume um caráter tanto repressivo quanto restritivo, na medida em que é aplicado um castigo ao responsável pelo dano e uma reparação à pessoa injuriada. 7 Para além do formalismo e do ritualismo, o direito arcaico manifesta-se não por um conteúdo, mas pelas repetições de fórmulas, através dos atos simbólicos, das palavras sagradas, dos gestos solenes e da força dos rituais desejados. Os efeitos jurídicos são determinados por atos e procedimentos que, envolvidos pela magia e pela solenidade das palavras, transformam-se num jogoconstante de ritualismos. Entretanto, o direito primitivo de matriz sagrada e revelado pelos reis-legisladores (ou chefes religioso-legisladores) avança, historicamente, para o período em que se impõe a força e a repetição dos costumes. Daí que, no dizer de H. Summer Maine, o direito antigo compreende, 4 LUHMANN. Niklas, Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 75, 1983, v. I, p. 182-184. 5 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Hemus, 1975, p. 68-150. 6 Sobre o papel dos antigos reis-sacerdotes, consultar: FRAZER, Sir James George. O ramo de ouro. São Paulo: Círculo do Livro, [s/d], p. 32-33. 7 Cf. RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. O direito primitivo. In: Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 262-263, 269. claramente, três grandes estágios de evolução: o direito que provém dos deuses, o direito con- fundido com os costumes e, finalmente, o direito identificado com a lei. Nas sociedades antigas, tanto as leis quanto os códigos foram expressões da vontade divina, revelada mediante a imposição de legislador-administradores, que dispunham de privilégios dinásticos e de uma legitimidade garantida pela casa sacerdotal. Escreve H. Summer Maine que algumas experiências societárias, ao permitirem o declínio do poder real e o enfraquecimento de monarcas hereditários, acabaram por favorecer a emergência de aristocracias, depositárias da produção legislativa, com capacidade de julgar e de resolver conflitos. 8 Mas este momento inicial de um direito sagrado e ritualizado, expressão das divindades, desenvolve-se na direção de práticas normativas consuetudinárias. Certamente que ainda não se trata de um direito escrito, porém de um conjunto disperso de usos, práticas e costumes, reiterados por um longo período de tempo e publicamente aceitos. É a época do direito consuetudinário, largo período em que não se conheceu a invenção da escrita, em que uma casta, ou aristocracia, “investida do poder judicial era o único meio que poderia conservar, com algum rigor, os costumes da raça ou da tribo”.9 O costume aparece como expressão da legalidade, de forma lenta e espontânea, instrumentalizada pela repetição de atos, usos e práticas. Por ser objeto de respeito e veneração, e ser assegurado por sanções sobrenaturais, dificilmente o homem primitivo questionava sua validez e sua aplicabilidade. A inversão e a difusão da técnica da escritura, somada à compilação de costumes tradicionais, proporcionam os primeiros códigos da Antigüidade, como o de Hamurábi, o de Manu, o de Sólon e a Lei das XII Tábuas. Constatam-se, destarte, que os textos legislados e escritos “eram melhores depositários do direito e meios mais eficazes para conservá-lo que a memória de certo número de pessoas, por mais força que tivessem em função de seu constante exercício”.10 Esse direito antigo, tanto no Oriente quanto no Ocidente, na explicação de H. Summer Maine, não diferenciava, na essência, a mescla de prescrições civis, religiosas e morais. Somente em tempos mais avançados da civilização é que se começa a distinguir o direito da moral e a religião do direito. 11 Certamente, de todos os povos antigos, foi com os romanos que o direito avançou para uma autonomia diante da religião e da moral. Pode-se dizer, por fim, que outra regularidade desse processo normativo foi a 8 Cf. SUMMER MAINE, Henry. EI derecho antiguo: parte general. Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p. 18-19. 9 SUMMER MAINE, Henry. Op. cit., p. 20. 10 SUMMER MAINE, Henry. EI derecho antiguo: parte general. Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p. 22. 11 SUMMER MAINE, Henry. Op. cit. 2 longa e progressiva evolução das obrigações e dos deveres jurídicos da condição de status (as obrigações são fixadas na sociedade, de acordo com o status que ocupam seus membros), inerentes ao direito primitivo, para o da relação contratual dependente da vontade e autonomia das partes, características já do direito legislativo e formal. 3. CARACTERÍSTICAS E FONTES DO DIREITO ARCAICO Pode-se distinguir, segundo as lições de John Gilissen, algumas características do direito nas sociedades arcaicas. Primeiramente, o direito primitivo não era legislado, as populações não conheciam a escritura formal e suas regras de regulamentação mantinham-se e conservavam-se pela tradição. Um segundo fator de conhecimento é que cada organização social possuía um direito único, que não se confundia com o de outras formas de associação. Cada comunidade tinha suas próprias regras, vivendo com autonomia e tendo pouco contato com outros povos, a não ser em condições de beligerância. Um terceiro aspecto a considerar é a diversidade dos direitos não escritos. Trata-se da multiplicidade de direitos diante de uma gama de sociedades atuantes, advinda, de um lado, da especificidade para cada um dos costumes jurídicos concomitantes, de outro, de possíveis e inúmeras semelhanças ou aproximações de um para outro sistema primitivo. Além de apontar a inexistência de uma legalidade não escrita, de uma certa unicidade de jurídico para cada comunidade e, por fim, a pluralidade dos direitos não escritos, Gilissen reconhece também que o direito arcaico está profundamente contaminado pela prática religiosa. 12 Tal é a influência da religião sobre a sociedade e sobre as leis, que se toma intento pouco fácil estabelecer uma distinção entre o preceito sobrenatural e o preceito de natureza jurídica. Na verdade, o direito estava totalmente subordinado à imposição de crenças dos antepassados, ao ritualismo simbólico e à força das divindades. Um secretismo nebuloso mesclava e integrava, no religioso, as regras de cunho social, moral e jurídico. 13 Por último, Gilissen chama atenção para o fato de que os direitos primitivos são “direitos em nascimento”, ou seja, ainda não ocorre uma diferenciação efetiva entre o que é jurídico do que não é jurídico. Assinala-se, no entanto, que as regras de controle podem variar no tempo e no espaço. Os critérios que permitem auferir, na sociedade moderna, o que é jurídico podem não ser aplicados às comunidades da pré-história. Admite-se, assim, que um costume de épocas arcaicas assume em caráter jurídico na medida em que, constrangendo, 12 Cf. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 35. 13 GILISSEN, John. Op. cit. garante o cumprimento das normas de comportamento. 14 Ainda, seguindo as incursões históricas do erudito pesquisador belga, cabe mencionar urna breve passagem pela questão das fontes do direito entre as sociedades sem escrita. Do pouco que se sabe e que, com certeza, pode-se apontar, é que as fontes jurídicas primitivas são poucas, resumindo-se, na maioria das vezes, aos costumes, aos preceitos verbais, às decisões pela tradição, etc. No que concerne aos costumes, há de se reconhecer corno a fonte mais importante e mais antiga do direito, manifestação que se comprova por ser a expressão direta, cotidiana e habitual dos membros de um dado grupo social. Novamente, aqui, a religião aparece corno fenômeno determinante, na medida em que o receio e a ameaça permanente dos poderes sobrenaturais é que garante o rígido cumprimento dos costumes. 15 Neste quadro, colocam-se, igualmente, certos preceitos verbais, não escritos proferidos por chefes de tribos ou de clãs, que se impõem pela autoridade e pelo respeito que desfrutam. Trata-se de verdadeiras leis ainda que não escritas, repousando no prestígio daqueles que detêm o poder e o conhecimento. Por fim, parecesignificativo mencionar, corno fonte criadora de preceituações jurídicas nas sociedades arcaicas, certas decisões reiteradas utilizadas pelos chefes ou anciãos das comunidades autóctones para resolver conflitos do mesmo tipo. Conjuntamente ao que designa de “precedente judiciário”, Gilissen acrescenta também os procedimentos orais propagados por gerações corno os “provérbios e adágios”.16 4. FUNÇÕES E FUNDAMENTOS DO DIREITO NA SOCIEDADE PRIMITIVA Algumas reflexões mais genéricas sobre a formação, características e fontes do direito primitivo, toma-se relevante destacar um pouco mais as funções e os fundamentos das formas de controle social em sociedades ainda não possuidoras do domínio técnico da escrita. Para urna outra leitura da natureza e das funções do direito arcaico, tomar-se-á em conta as investigações pioneiras e clássicas de Bronislaw Malinowski (1884-1942), feitas empiricamente com populações das Ilhas Trobriand, ao nordeste da Nova Guiné, e que resultaram em 1926, na obra Crime e costume na sociedade selvagem. Inicialmente, constata-se que em cada cultura humana desenvolve-se um corpo de 14 GILISSEN, John. John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. 15 GILISSEN, John. Op. cit., p. 37. 16 GILISSEN, John. Op. cit., p. 37-38. 3 obrigações, proibições e leis que devem ser cumpridas por motivos práticos, morais ou emocionais. Há que se considerar, para Malinowski, que, além das regras jurídicas sancionadas por um aparato social com poderosa força coagente, subexistem outros tipos diferenciados de normas tradicionais gerados por motivos psicológicos. Naturalmente, a base de toda investigação do direito primitivo está na imposição rígida e automática aos costumes da tribo. 17 A importância da interpretação de Malinowski está no fato de que, ainda que priorize a criminalidade, as formas de castigo e a recomposição da ordem, acaba tratando, igualmente, dos conflitos entre sistemas jurídicos (penal e civil), do direito matrimonial, da vida econômica, dos costumes religiosos, do desenvolvimento do comunismo primitivo e do princípio da reciprocidade corno base de toda a estrutura social. É necessário reconhecer o significado de algumas de suas premissas enquanto primeira tentativa de análise antropológica da lei primitiva. Um primeiro aspecto que chama a atenção, na proposta de Malinowski, está na tentativa de desmistificar a lei criminal entendida como núcleo exclusivo de todo e qualquer direito primitivo, pressuposto que se tornou entre alguns antropólogos do direito. Acertadamente, a regra jurídica primitiva não se reduz tão-somente a imposições, “nem tampouco a lei dos selvagens é somente lei criminal. Não se pode pretender que, com mera descrição do crime e do castigo, o tema do direito se esgote no que concerne à comunidade primitiva”.18 Com decorrência desse processo, o autor dos Argonautos do Pacífico Ocidental apontou corno segundo aspecto a inconsistência da tese de que não haveria um direito civil entre as sociedades aborígines. Assim, divergindo da posição de muitos antropólogos de sua época que insistiam na base religiosa e no teor exclusivamente criminal da jurisprudência primitiva, Malinowski introduz o argumento de que existia um direito civil consensualmente aceito e respeitado. 19 As regras de direito civil caracterizadas por uma certa flexibilidade e abrangência, enquanto ordenação positiva regulamentadora dos diversos momentos da organização tribal, compreendiam um conjunto de “obrigações impositivas consideradas como justas por uns e reconhecidas como um dever pelos outros, cujo cumprimento se assegura por um mecanismo específico de reciprocidade e publicidade inerentes à estrutura da sociedade”.20 A lei civil primitiva não tem apenas um aspecto negativo no sentido de que todo o descumprimento resulta num castigo, mas assume um caráter positivo através da recompen- sa para os que cumprem e respeitam as regras de convivência. 17 Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona: Ariel, 1978, p, 26, 69 e 70. 18 MALINOWSKI, Bronislaw. Op. cit., p. 71. 19 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 73-74. 20 MALINOWSKI, B. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona: Ariel, 1978, p. 74. Um terceiro aspecto é apontar a particularidade de que o direito não funciona por si mesmo, pois é parte integrante da dinâmica de uma estrutura. Torna-se desnecessária uma maior constatação, para Malinowski, porquanto as manifestações legais e os diversos fenôme- nos de tipo jurídico encontrados na Melanésia não “constituem instituições independentes. O direito é mais um aspecto da vida tribal, ou seja, um aspecto de sua estrutura do que propriamente um sistema independente, socialmente completo em si mesmo”.21 Ao fazer uma crítica à teoria antropológica do direito, Malinowski avança no exame dos aspectos práticos de determinadas funções do direito, bem como à explicitação dos princípios legais que regem as relações sociais do grupo. Seu questionamento é feito basicamente contra a falsa perspectiva criada pela antropologia tradicional de que inexiste um direito civil e que toda lei é expressão dos próprios costumes autóctones, sendo obedecidos automaticamente por pura inércia. 22 Ora, as normas de controle social que impõem obediência ao homem primitivo são afetadas por necessidades sociais e por motivações psicológicas. 23 É neste contexto que se deve interpretar o direito primitivo. A função principal do direito é, para Malinowski, liminar certas inclinações comuns, “canalizar e dirigir os instintos humanos e impor uma conduta obrigatória não espontânea (...)”, assegurando um modo “de cooperação baseada em concessões mútuas e em sacrifícios orientados para um fim comum. Uma força nova, diferente das inclinações inatas e espontâneas, deve estar presente para que esta tarefa seja concluída.”24 Este fator novo que se distingue das imposições religiosas e das forças naturais vem a ser revelado pelo conjunto prático de regras jurídicas civil que, enquanto instrumento integrador, é caracterizado pelos fatores da “reciprocidade, incidência sistemática, publicidade e ambição”.25 Assim, o papel do direito é fundamental como elemento que regula, em grande parte, os múltiplos ângulos da vida dos grupos na Melanésia e “as relações pessoais entre parentes, membros do mesmo clã e da mesma tribo, fixando as relações econômicas, o exercício do poder e da magia, o estado legal do marido e da mulher, etc”.26 Esta modalidade de regras civis distingue-se das regras fundamentais penais que protegem “a vida, a propriedade e a personalidade” e que instituem-se pela sansão do castigo tribal. Mas se não há sanção religiosa e tampouco castigo penal, quais são as forças poderosas que fazem cumprir 21 MALINOWSKI, B. Op. cit. 22 MALINOWSKI, B. Op. cit., p.78. 23 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 78-79. 24 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 79-80. 25 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 83. 26 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 82. 4 estas regras de direito civil? Para Malinowski esta fundamentação há de se buscar na concatenação das obrigações, que “estão ordenadas em cadeia de serviços mútuos, seja, um dar e tomar que se estende sobre longos períodos de tempo, cumprindo ambos aspectos de interesses e atividades (...)”. Por conseqüência, a força compulsiva destas regras “procede da tendência psicológica natural pelo interesse pessoal (...) posta em jogo por um mecanismo social especial, dentro do qual se demarcamestas ações obrigatórias”.27 Parece claro aqui uma das teses nucleares que explicita e fundamenta a presença do legal nas sociedades autóctones: o direito não é exercido de forma arbitrária e unilateral, mas produto de acordo “com regras bem definidas e dispostas em cadeia de serviços recíprocos bem compensados”.28 Em suma, de todos os sistemas de regras legais das sociedades primitivas, o destaque maior é atribuído ao direito matrimonial. Não só é o mais abrangente sistema legal, como o fundamento essencial dos costumes e das instituições. A força do direito matriarcal define que o parentesco só se transmite através das mulheres e que todos os privilégios sociais seguem a linha materna. 29 Daí decorre a rigidez da lei primitiva com relação ao comércio sexual dentro do clã, fundamentalmente, no que se refere ao crime de incesto (principalmente com a irmã) que gera práticas de punição mais severas. 5. CONCLUSÃO Resta, no final, levantar alguns questionamentos críticos sobre interpretações elaboradas por antropólogos acerca das origens do direito em sociedades primitivas. Certamente uma primeira ponderação, respaldada nos elementos trazidos pela etimologia jurídica atual, aponta para a fragilidade das teses evolucionistas que dão conta de que o direito primitivo passou por uma longa progressão constituída pela comunhão de grupos, pelo matriarcado, patriarcado, clã e tribo, Tal evolução sistemática é, no dizer de John Gilissen, por demais simplista e sobejamente lógica para ser correta. Não há comprovações científicas de que a legalidade acompanhou e refletiu os diversos estágios das sociedades primitivas de acordo com a premissa evolucionista. Não existe certeza se o matriarcado realmente ocorreu e se foi, posteriormente, sucedido pelo patriarcado. 30 Com relação à obra de H. Summer Maine, um dos fundadores da antropologia jurídica moderna, apesar de sua inegável importância, não deixou de compartilhar com um 27 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 82-83. 28 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 61. 29 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 99, 100 e 128. 30 Cf. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito, p. 38. certo evolucionismo darwinista. Sua concepção societária parte de uma lenta evolução cujo processo permitiu que o direito transpusesse o período antigo do status para a fase moderna do “contrato”. Naturalmente transpareceu, em sua clássica e erudita investigação, a superioridade da cultura jurídica européia moderna sobre a ingenuidade e o primarismo normativo das sociedades arcaicas. 31 Por último, cabe elencar algumas críticas às concepções jurídicas de B. Malinowski, autor que foi privilegiado em boa parte deste artigo. Para isso, seguem-se as considerações de Norbert Rouland, para quem as teses jurídicas de Malinowski não gozam mais do grande prestígio que alcançaram no passado. Trabalhos de antropologia jurídica mais recentes apontam certas inverdades sujeitas a comprovação. Um dos erros é conceber que, nas sociedades primitivas, o direito civil não podia ser violado. Por outro lado, o direito seria objeto de consenso, sendo muito mais respeitado entre os autóctones do que na sociedade moderna. Escreve Norbert Rouland que algumas investigações etnográficas mostram o contrário, pois o indivíduo, pensando que há menos vantagem do que inconveniência em respeitar a lei, acaba muitas vezes violando-a. 32 Em suma, foi pertinente começar a longa trajetória histórica das instituições jurídicas através de uma breve reflexão sobre as formas, natureza e características da legalidade nas sociedades primitivas. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Hemus, 1975. FRAZER, Sir James George. O ramo de ouro. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. GIUSSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. LUHMANN, Nilkas. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 75, 1983,v.I MAUNOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvage. Barcelona: Ariel, 1978. RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópo1is: Vozes, 1973. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: PUF, 1988. SUMMER MAINE, Henry. El derecho antiguo: parte general. Madrid: Alfredo Alonso, 1893. 31 Cf. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: PUF, 1988, p. 50. 32 ROULAND, Norbert. Op. cit., p. 101. 5
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