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1 NATHALIA CAVALIERE DO AMARANTE RIO DE JANEIRO 2014 A QUESTÃO DA DEFICIÊNCIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: POSSIBILIDADES E LIMITES DA INTERVENÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL 2 DEDICATÓRIA Ao meu tio Pedro Gustavo (in memorian) que durante a sua longa jornada nessa vida implantou em mim o desejo pelo meu objeto de pesquisa e aflorou todas as reflexões sobre ser deficiente na sociedade brasileira. Você será eterno no meu coração! 3 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu pai José Eduardo por não medir esforços em me acompanhar na árdua tarefa da vida pessoal e profissional e me apoiar em todos os momentos de decisões. Obrigada por todo o esforço, carinho e amor. Você é meu orgulho, meu herói e minha inspiração! À minha avó e amiga Victoria Amarante por caminhar comigo ao longo da vida, lado a lado, sem pensar duas vezes em como somos iguais e complementares nessa jornada. Aos meus irmãos João Pedro e Guilherme por todas as alegrias que uma casa com crianças pode ter. Por todos os momentos de reflexão e aprendizados que me proporcionaram. Por todo o carinho que nunca hesitaram em me ceder. Amo vocês com todo o coração de irmã que posso ter! À minha mais que madrasta Claudia Magalhães, por toda a compreensão e paciência em todos os dias em que tudo caía sobre a cabeça e os hormônios não me permitiam ser mais atenciosa e menos espontânea do que fui. Ao meu padrinho Evandro Abreu que me proporcionou momentos inigualáveis de crescimento profissional e pessoal. À minha mais que amiga, irmã, Ana Luiza Favilla que com todo o seu amor, carinho e companheirismo acompanhou-me durante quase toda a jornada da minha conturbada vida sem nunca questionar nada que não fosse pertinente, mas sempre me fazendo pensar sobre o que estamos fazendo nessa vida. Amo você e toda a sua/minha família! Aos meus amigos que dividiram momentos mágicos da dança, da vida, do amor, do trabalho, da faculdade e da amizade. Vocês são eternos no meu coração! À minha sempre orientadora e professora, Miriam Guindani, que me proporcionou o reencontro ao meu objeto, fazendo nascer em mim o desejo e o interesse pela pesquisa e renascer o amor pela minha profissão. Que para além de profissional exemplar, será guardada eternamente na memória por ser a pessoa que me fez caminhar com as próprias pernas para onde eu desejei, me orientando e apoiando sempre que necessário. Obrigada por tudo que me fez crescer profissionalmente e pessoalmente. Meu carinho, respeito e admiração por você são imensuráveis! Ao CIEE Rio, que confiou no meu trabalho e me proporcionou realizar um sonho antigo. O meu muito obrigada! Ao meu amor, Leandro Pacheco, que me esperou tempo suficiente para construirmos uma história inesquecível, que nunca hesitou em me apoiar em todas as minhas decisões e que me incentiva sempre a alcançar todos os meus objetivos. Te amo muito, obrigada por tudo! 4 "Os nossos limites estão na dificuldade que encontramos nas relações que travamos com o mundo. Por isso, os nossos limites reais estão na nossa alma. Não existe nada mais deficiente do que um espírito amputado. E para esse espírito não há prótese." João Ribas 5 RESUMO AMARANTE, N. C. A questão da deficiência na sociedade contemporânea: possibilidades e limites da intervenção do Serviço Social. Rio de Janeiro, 2014. O livro apresenta um estudo documental, bibliográfico e empírico a partir de reflexões a respeito das relações sociais travadas pelas pessoas com deficiência ao longo da sua trajetória histórico-conceitual. Além da análise sobre a exclusão e o estigma enquanto construções sociais presentes nas diferentes sociedades, o livro utiliza-se da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência da ONU e dos dados brasileiros a respeito da percepção das pessoas com deficiência na sociedade contemporânea, para apresentar a trajetória histórica e social da educação inclusiva. Através de dados da realidade, a pesquisa analisa os limites e as possibilidades de atuação e propõe maneiras do Serviço Social intervir no campo da pessoa com deficiência e da educação inclusiva. Palavras-chave: Educação Inclusiva; Educação em Direitos Humanos, Direitos Humanos, Pessoa com Deficiência; Serviço Social. 6 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIPD Ano Internacional das Pessoas Deficientes APAE Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais BPC-LOAS Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social CBAS Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais CDPD Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência CENESP Centro Nacional de Educação Especial CFESS Conselho Federal de Serviço Social CGPD Comitê Gestor de Políticas de Inclusão das Pessoas com Deficiência CID Classificação Internacional de Doenças CIEE Centro de Integração Empresa-Escola CIEP Centro Integrado de Educação Pública CIF Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde CORDE Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência CPE Coordenação de Programas Especiais dB Decibéis ECA Estatuto da Criança e do Adolescente ESS Escola de Serviço Social IBDD Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBC Instituto Benjamin Constant INES Instituto Nacional de Educação de Surdos LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Libras Língua Brasileira de Sinais NEDH Núcleo Interdisciplinar de Estudo, Pesquisa e Extensão de Educação em Direitos Humanos NIAC Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização das Nações Unidas SESP Secretaria de Educação Especial SEDH Secretaria de Direitos Humanos UFF Universidade Federal Fluminense UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UPIAS Union of the Physically Impaired Against Segregation USP Universidade de São Paulo 7 SUMÁRIO PREFÁCIO APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO 1 AS RELAÇÕES SOCIAIS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: DA TRAJETÓRIA HISTÓRICO-CONCEITUAL DA DEFICIÊNCIA AO PROCESSO DE EXCLUSÃO 1.1 A TRAJETÓRIA HISTÓRICO-CONCEITUAL DA DEFICIÊNCIA 1.2 A EXCLUSÃO E O ESTIGMA ENQUANTO CONSTRUÇÕES SOCIAIS 2 A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DA ONU E OS DADOS BRASILEIROS 2.1 CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DA ONU 2.2 DADOS BRASILEIROS SOBRE A PESSOA COM DEFICIÊNCIA 3 SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA 3.1 EDUCAÇÃO INCLUSIVA: A TRAJETÓRIA HISTÓRICA E SOCIAL 3.2 SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA: UMA UNIÃO POSSÍVEL 3.3 O SERVIÇO SOCIAL NO CAMPO - PESQUISA EMPÍRICA 3.3.1 O SERVIÇO SOCIAL NA MARÉ 3.3.2 O SERVIÇO SOCIAL NAS INSTITUIÇÕES ESPECIALIZADAS 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS ANEXOS 8 PREFÁCIO O país vive um tempo de mudança que não se pode mais desconhecer. Se na prática ainda falta muita coisa, pelo menos teoricamente estamos devidamente apetrechados – e isso representa um avanço indiscutível. Veja-se a questão da assistência social, hoje alvo de inequívocas demonstrações de interesse por parte do Governo. Há um Ministério criado somente para cuidar do assunto, a que sabiamente se vinculou o combate à fome. No caso, emerge como preocupação igualmente relevante o trato da deficiênciana sociedade contemporânea, objeto do bem elaborado trabalho da especialista Nathalia Cavaliere do Amarante. Nesta obra, densa e oportuna, são levantadas as possibilidades da intervenção do Serviço Social, ao lado dos seus naturais limites. Hoje, o trabalho do Centro de Integração Empresa-Escola, reconhecido oficialmente, presta serviços de convivência e fortalecimento de vínculos dentro da Política de Assistência Social, buscando superar vulnerabilidades e promovendo a necessária vigilância socioassistencial. Não basta capacitar os jovens para o mundo do trabalho, como fazemos para mais de 7 mil deles, na categoria de aprendizes, mas é um esforço muito mais amplo em que estamos todos empenhados. A aprendizagem passou a ter um significado bem mais abrangente. Nesta obra, de evidente valorização da educação inclusiva, busca-se a inserção da pessoa com deficiência na tarefa educacional, como foi visto em experiências vividas na Favela da Maré, no Rio de Janeiro. Desejos e insatisfações são aqui levantados, abrangendo não apenas os que se encontram nas escolas, especialmente públicas, mas também os que se encontram confinados em seus lares, sem quaisquer perspectivas de melhorias das suas condições de vida. Vê-se pela pesquisa que o que mais prejudica os alunos com deficiência é a existência de um grande número de professores sem capacitação, onde temos muito o que conquistar, ao lado de instalações físicas não devidamente adaptadas. É um campo propício ainda a grandes realizações, o que tem inspirado o CIEE a realizar trabalhos que estão na pauta dos seus dirigentes. Aqui são analisados dados da realidade brasileira e o que se tem feito pelas pessoas com deficiência, abrindo-se um campo verdadeiramente fascinante de perspectivas de operação inclusiva. Sem dúvida, um belo trabalho, que o CIEE/RJ se orgulha de editar, a propósito do 50º aniversário. Rio de Janeiro, 4 de setembro de 2014. ARNALDO NISKIER da Academia Brasileira de Letras e presidente do CIEE/RJ 9 10 APRESENTAÇÃO O Caderno CIEE 11 é resultado de uma história que durou 5 anos. Primeiramente, ele foi fruto de um estudo aprofundado na época da graduação (de janeiro de 2010 a janeiro de 2012) com orientação da Profa Dra Miriam Guindani, que gerou o meu trabalho de conclusão de curso da graduação em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e me rendeu a nota máxima na avaliação da banca avaliadora e uma indicação para publicação. Devido a todas as dificuldades que publicar um livro implica, somado a outras demandas da vida, esse sonho ficou guardado para um dia ser colocado em prática. No final de 2013, tomei conhecimento de um site que simula a publicação de livros e faz a venda online de acordo com a demanda. Assim iniciou a realização de um sonho. Simulei como ficaria meu livro e comprei algumas poucas cópias. Em janeiro de 2014, fui selecionada para a vaga de analista de desenvolvimento profissional do CIEE Rio1, onde me encontro atualmente trabalhando diretamente com o Programa Pessoa com Deficiência. Doei uma cópia do meu livro para a biblioteca da Coordenação de Programas Especiais (CPE) do CIEE Rio, área em que me encontro, e minha coordenadora Valéria Moreno pediu para ler e conhecer um pouco mais a minha trajetória da pesquisa e minhas reflexões sobre o assunto da demanda que eu atuo diretamente. Após ter se identificado teoricamente com o livro, Valéria foi uma fada madrinha e articulou a publicação trabalho que você tem em mãos. Estão sendo apresentados aqui o resultado da pesquisa teórica e empírica realizada para o trabalho de conclusão da graduação em Serviço Social em janeiro de 2012, acrescido de contribuições e atualizações mais recentes a respeito da temática que está em constante transformação e merece inúmeras reflexões teóricas e práticas para ser fiel (ou, pelo menos, próximo disso) à sua complexidade e ao que o grupo de pessoas com deficiência representa e demanda da sociedade em termos de reconhecimento social e de políticas públicas. Atualmente, sou mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRJ, na linha Sociedade, Direitos Humanos e Arte. Minha pesquisa encontra-se em fase de desenvolvimento onde me proponho a realizar uma análise comparativa entre as possibilidades de inserção da pessoa com deficiência nos espaços universitários, contrastando a realidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação da Profa Dra Sayonara Grillo e co-orientação da Profa Dra Miriam Guindani. Espero que você aproveite essa viagem na história de um grupo socialmente desvalorizado e que merece todo respeito pelas suas capacidades e não pelas suas diferenças, e que você se apaixone, assim como eu me apaixonei desde a primeira vez que tive contato com esse público. Quem me conhece sabe: meus olhos brilham diariamente quando o assunto é pessoa com deficiência. Seja bem-vindo ao mundo que me fascina! 1 Para maiores informações sobre a instituição, acessar <http://www.ciee.org.br>. 11 INTRODUÇÃO "Olhar para as pessoas com deficiência e enxergar apenas a deficiência é ter a deficiência de não conseguir enxergar a pessoa com todos os elementos que compõem a sua identidade." João Ribas O presente texto discorre sobre as possibilidades e os limites da intervenção do Serviço Social na área da pessoa com deficiência e no campo da educação inclusiva na sociedade contemporânea, a partir de uma reflexão a respeito das significações do "ser" pessoa com deficiência na sociedade ao longo da história - no mundo e no Brasil - e da trajetória histórica da educação inclusiva que conhecemos atualmente. O meu interesse na temática é anterior ao ingresso na Universidade. Primeiro, por ter uma pessoa com deficiência na família e precisar aprender a lidar cotidianamente com esse sujeito amado e com necessidades específicas. Segundo, alguns anos antes da entrada na vida acadêmica, porque tive a oportunidade de me aproximar do tema em um trabalho que participei e desde então a curiosidade e o interesse em conhecer esse mundo - muitas vezes paralelo, no entanto, sempre presente em minha vida – se aguçou. Durante os dois últimos anos (2010 a 2012) da graduação em Serviço Social da UFRJ tive uma experiência de estágio e extensão no Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC) onde pude desenvolver habilidades específicas do Serviço Social, especialmente na área do acesso a direitos e à justiça, e aprimorar minha formação. Já no último ano da graduação (2011) participei da implantação do Núcleo Interdisciplinar de Estudo, Pesquisa e Extensão de Educação em Direitos Humanos (NEDH), fruto de um convênio com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). Estive no Núcleo na condição de pesquisadora e assim pude estudar a área da pessoa com deficiência e as relações com o Serviço Social - desejo que perpassou todo o período da universidade, mas que nunca havia tido espaço para se desenvolver, refletindo a realidade do Serviço Social quando se refere a essa temática, com escassas produções teóricas e discussões nas entidades representativas da categoria. Sendo assim, a presente pesquisa é fruto de um interesse pessoal que foi concretizado, academicamente, em janeiro de 2011, com financiamento da SEDH. A pesquisa inicia-se a partir de um questionamento sobre as possibilidades que o Serviço Social tem para trabalhar com as pessoas com deficiência, especialmente na área educacional. Nesse sentido, apresenta o objetivoprincipal de verificar as possibilidades e os limites da atuação do Serviço Social na temática, e dois objetivos específicos que conduzem a pesquisa ao objetivo geral, que é o mapeamento das experiências sobre pessoa com deficiência no âmbito das escolas da Maré e o mapeamento das experiências do Serviço Social nas instituições especializadas e instituições de ensino especializadas para as pessoas com deficiência. Para tal, foram analisadas cinco entrevistas com assistentes sociais da ONG Redes de Desenvolvimento da Maré2 que trabalham em escolas municipais e em alguns CIEPs localizados no Bairro da Maré mesmo local, e três entrevistas realizadas com duas instituições de 2 Para maiores informações, acessar: <http://www.redesdamare.org.br/>. 12 ensino especializadas e uma instituição especializada no atendimento de pessoas com deficiência. Quanto aos aspectos metodológicos, a pesquisa configura-se enquanto bibliográfica/documental e empírica, sendo quantitativa e qualitativa, com fontes escritas e orais. Sobre suas etapas que aconteceram concomitantemente, foi realizado o levantamento e a análise bibliográfica/documental sobre a pessoa com deficiência e a pessoa com deficiência na educação; um estudo das experiências de assistentes sociais que trabalham com pessoas com deficiência em instituições de ensino especializadas, em instituições especializadas e nas escolas da Maré; e uma análise sobre a relação do Serviço Social e a educação inclusiva, a educação em direitos humanos e a pessoa com deficiência. Diante do trabalho que se segue, vale Torna-se necessário esclarecer algumas escolhas. Quando me refiro às "pessoas com deficiência" devo lembrar que não se trata de uma generalização inconsequente ou sem fundamento. É compreensível que as pessoas que apresentam deficiência se atraiam entre si, formando grupos representativos, por exemplo, o que provoca uma determinada regularidade nas formas de pensar as questões afetam o grupo e culmine em similares modos de lutar por direitos concernentes a esse. Entretanto, é preciso alertar para o fato de não haver uma categoria única e homogênea de pessoas com deficiência. Então quando me refiro ao longo de todo o texto, à(s) pessoa(s) com deficiência(s) faço uma referência a determinado grupo que lutou ou, pelo menos divulgou de diferentes formas a sua luta, em distintos momentos históricos, o que tornou possível toda a pesquisa, análise e reflexão compiladas nesse trabalho. Vale pontuar também que a pesquisa realizada sobre o grupo das pessoas com deficiência supõe uma margem de pessoas com deficiência não contempladas nessa análise, entendendo que existe uma parcela desse segmento que por vezes encontra-se confinada em suas casas, superprotegida ou renegada por suas famílias e amigos, o que torna (praticamente) impossível mensurar seus desejos e insatisfações sobre a sociedade que não a recebe. Portanto, esse grupo não faz parte das "pessoas com deficiência" que me refiro ao longo do trabalho, mas não por uma exclusão minha e sim por um processo de "escolha" deles próprios, de não se fazerem representados nos movimentos sociais da categoria3. Ou seja, é uma cota não representada socialmente. Cabe ressaltar que todo cuidado é pouco quando me refiro ao processo de escolha realizado pelas pessoas com deficiência em manterem-se confinadas em suas casas, porque não se trata de uma escolha inerente a qualquer influência externa. Mas, muito pelo contrário, na maioria dos casos, a opção pela não "inserção" na sociedade deve-se às dificuldades de toda ordem que as pessoas com deficiência se deparam na sociedade. Entretanto, é preciso enfrentar essa problemática entendendo que as pessoas sem deficiência, muitas vezes, não sabem como lidar com as pessoas com deficiência, em grande medida, porque não têm essa demanda; em contrapartida, as pessoas com deficiência não conseguem se inserir socialmente porque encontram diversas 3 Categoria é um conceito que deve ser tratado com cuidado e restrições. Segundo a definição do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, entende-se por categoria uma classe, uma espécie, uma natureza, um grupo ou uma posição social. Quando me refiro a ela, quero indicar um determinado grupo, um segmento que busco representar ou pelo menos entender seus anseios e as restrições que lhes são impostas. 13 dificuldades arquitetônicas e de recursos humanos nessa interação. Ou seja, não se pode definir precisamente qual dificuldade vem primeiro: a das pessoas com deficiência de se inserirem ou a das pessoas sem deficiência de lidarem com a questão. Ao longo de todo o texto utilizarei o termo pessoa com deficiência para indicar aquelas que apresentam alguma "limitação" física, intelectual, sensorial ou múltipla. O uso do termo indica a coerência com o desejo da categoria3 de autodenominação e um posicionamento teórico-político de recusa ao uso de termos como: portadores de deficiência, pessoas portadoras de necessidades especiais, pessoas portadoras de deficiência, dentre outros. Romeu Sassaki (2003), sobre o uso dos diferentes termos explica que “A razão disto reside no fato de que a cada época são utilizados termos cujo significado seja compatível com os valores vigentes em cada sociedade enquanto esta evoluiu em seu relacionamento com as pessoas que possuem este ou aquele tipo de deficiência”. Sendo assim, esclareço a recorrente escrita de outros termos neste trabalho quando me refiro a leis, decretos e citações textuais ao longo dos anos, pois fez parte de uma trajetória histórica o uso de distintas nomenclaturas para denominar a pessoa com deficiência e não cabe modificar o termo na transcrição dos materiais. Ademais, o cerne da questão não está no uso correto ou incorreto dos termos, pois esses se alteram ao longo do tempo, dos espaços e contextos em que se inserem, não havendo um termo válido definitivamente para hoje e toda a história. Mas há um posicionamento fundamentado em uma escolha teórico, política e ideológica daqueles mais interessados no assunto: as próprias pessoas com deficiência. Na Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência, os movimentos sociais que representam a categoria no Brasil e em outros países optaram pelo uso do termo “pessoas com deficiência” para denominar as pessoas que apresentam qualquer deficiência que seja. A opção foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2006 e recebeu valor constitucional no Brasil em 2008. Alguns dos principios básicos para os movimentos representativos da categoria optarem pelo uso do nome "pessoas com deficiência" foram: não esconder ou camuflar a deficiência; não aceitar o consolo da falsa ideia de que todo mundo tem deficiências; mostrar com dignidade a realidade da deficiência; valorizar as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência; combater neologismos que tentam diluir as diferenças, tais como “pessoas com capacidades especiais”, “pessoas com eficiências diferentes”, “pessoas com habilidades diferenciadas”, “pessoas especiais”; defender a igualdade entre as pessoas com deficiência e as demais pessoas em termos de direitos e dignidade, o que exige a equiparação de oportunidades para pessoas com deficiência atendendo às diferenças individuais e necessidades especiais; identificar nas diferenças todos os direitos que lhes são pertinentes e a partir de então encontrar medidas específicas para o Estado e a sociedade diminuírem ou eliminarem as restrições de participação social, ou seja, as dificuldades ou incapacidades causadas pelos recursos humanos, ambientais e físicos contra as pessoas com deficiência. Uma das últimas mudanças de terminologiaaconteceu em 2006/2007, quando a tendência foi de eliminar o uso da palavra “portadora” das pautas sobre pessoas com deficiência. “A condição de ter uma deficiência faz parte da pessoa e esta pessoa não porta sua deficiência. Ela tem uma deficiência. Tanto o verbo 'portar' como o substantivo ou o adjetivo 'portadora' não se aplicam a uma condição inata ou adquirida que faz parte da pessoa”, esclarece Sassaki (2003). Você não diz que uma pessoa porta 14 olhos verdes, cabelos castanhos ou pele morena e sim que ela tem olhos verdes, cabelos castanhos e pele morena. Do mesmo modo que a pessoa possui uma deficiência e não porta a mesma. Ou seja, uma pessoa só porta algo que ela possa, em dado momento, não estar portando, deliberada ou casualmente. Não se pode fazer isto com uma deficiência. Também não é pertinente o uso do termo "pessoa deficiente" porque a pessoa possui uma deficiência e não é a própria deficiência, como o termo sugere, reduzindo a pessoa à deficiência que ela apresenta e também remetendo ao entendimento de que essa pessoa é ineficiente em algum aspecto da vida. Feitas as devidas considerações, pontuo que o trabalho que se segue não pretende oferecer respostas prontas às perguntas que o impulsiona, mas sim refletir sobre uma temática pouco debatida nos espaços acadêmicos e profissionais, além de oferecer um pouco mais da história e do universo da pessoa com deficiência, ainda conhecido por poucos. Sendo assim, mais do que certezas, proponho meios de conduzir pensamentos e problematizações a respeito da temática. 15 1 AS RELAÇÕES SOCIAIS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: DA TRAJETÓRIA HISTÓRICO-CONCEITUAL DA DEFICIÊNCIA AO PROCESSO DE EXCLUSÃO "Eu tenho um grande medo desse negócio de ser normal." John Lennon 1.1 A trajetória histórico-conceitual da deficiência A deficiência pode ser compreendida de duas maneiras4. Uma maneira de entender a deficiência diz respeito à manifestação da diversidade humana, onde um corpo com impedimentos é o de alguém que vivencia limitações de ordem física, intelectual ou sensorial. Entretanto, são as barreiras sociais, ou seja, os efeitos e as reações que essas limitações provocam na sociedade, que, ao ignorar os corpos com impedimentos, ou ainda, ignorar os sujeitos como indivíduos complexos e não apenas reduzidos à sua deficiência, provocam a experiência da desigualdade, e não o próprio impedimento, como se pensa na ordem lógica e direta, que provoca a desigualdade social e suas decorrências. Então, a opressão não é um atributo dos impedimentos corporais, mas resultado de sociedades tidas como não inclusivas. A outra forma de entender a deficiência, a compreende como uma desvantagem natural, e nesse caso, os esforços se deslocam para o reparo dos impedimentos corporais, visando garantir a todas as pessoas um padrão de funcionamento típico à sua espécie, tendo em vista que em nossa sociedade, os impedimentos corporais são classificados como indesejáveis e não simplesmente como uma expressão "neutra" ou natural da diversidade humana - assim como a diversidade étnico-racial, geracional ou de gênero o são. Nesse sentido, o corpo que apresenta impedimentos deve se submeter a alguma transformação (podendo ser reabilitação, genética ou através de práticas educacionais) para enquadrar-se no que é imposto socialmente: o padrão de normalidade. Cabe aqui uma breve observação sobre os conceitos "pessoa com deficiência" e "impedimentos corporais" presentes na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência que anunciam, respectivamente, o caráter político de como os impedimentos corporais são objeto de discriminação e opressão em sociedades pouco inclusivas e descreve as pessoas que habitam corpos ditos com impedimentos; e "impedimentos corporais" referem-se às variações corporais catalogadas pela ótica biomédica como desvantagens naturais. Nesse sentido, a deficiência pode ser entendida como um conceito "guarda-chuva", em dado momento visto como resultado da negociação de significados sobre os corpos com impedimentos, outrora, em outro extremo, como um dos efeitos da cultura do padrão de normalidade que ignora os impedimentos corporais, negligenciando-os. (DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009). Voltemos às duas formas de compreender a pessoa com deficiência. Ainda que as duas análises apresentadas não sejam excludentes entre si, apontam para sentidos distintos no desafio imposto pela deficiência, principalmente no campo dos direitos humanos. Já que a primeira concepção imprime à sociedade a responsabilidade pela reação ao que a deficiência representa para o coletivo e para o indivíduo. Ao passo que a segunda análise insiste no padrão histórico de uma normalidade à qual todos os 4 Baseado no artigo "Deficiência, Direitos Humanos e Justiça", publicado pela Revista Internacional de Direitos Humanos – SUR, nº 11, 2009. 16 sujeitos devem se enquadrar, ou seja, é responsabilidade do indivíduo reparar a sua essência para tornar-se parte do todo, da sociedade. Nesse sentido, o entendimento do que é considerado deficiência, não pode se resumir à catalogação de doenças e lesões a partir de uma perícia biomédica do corpo (DINIZ et al 2009, p. 21 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 21). Deficiência é "um conceito que denuncia a relação de desigualdade imposta por ambientes com barreiras a um corpo com impedimentos." (DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p.65). Atualmente, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) define as pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (ONU, 2006a, artigo 1º apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p.66). Portanto, a deficiência não pode ser entendida apenas a partir do que o olhar médico descreve, pois é principalmente a restrição à participação e interação plena provocada pelas barreiras sociais que condicionam as possibilidades de relacionamentos das pessoas com deficiência na sociedade. No decorrer da história, as pessoas com deficiência já tiveram diversas denominações. No início século XX, o termo usado era “inválidos”, que significava indivíduos sem valor. Até 1960, eram chamados de “indivíduos com capacidade residual”, o que segundo Sassaki (2003), foi um avanço da sociedade, reconhecendo que a pessoa tinha capacidade mesmo que ainda considerada reduzida. Entre 1960 e 1980, outra variação foi o uso dos termos “incapazes” e "excepcionais", que focavam as deficiências e reforçavam o que as pessoas não conseguiam fazer como a maioria. Nos anos 80, por pressão da sociedade civil, a Organização Mundial da Saúde (OMS) 5, lançou a terminologia “pessoas deficientes”. Iniciou-se então uma conscientização já que foi atribuído o valor “pessoas” àqueles que tinham deficiências, igualando-os em direitos a qualquer membro da sociedade. Até os dias atuais, muitos nomes já foram utilizados para denominar as pessoas com deficiência, como "pessoas portadoras de deficiência", "pessoas com necessidades especiais", "pessoas especiais" ou "portadores de direitos especiais" e segundo Sassaki (2003), atualmente todos esses termos são considerados inadequados por representarem valores agregados à pessoa. Mas vale (re)lembrar que o uso dessas expressões estava inserido em contextos sociais pertinentes à época e por isso devem ser valorizados enquanto partícipes de um processo histórico em desenvolvimento. Vale ressaltar que as análises teóricas realizadas sob teorias em torno de polos, apresentadas em oposições binárias, pressupondo haver um vazio entre esses,giram em torno de discussões que deveriam ser ultrapassadas como "ser ou não ser" deficiente, da "adequação ou não" de inseri-los na categoria de necessidades especiais (que pode referir-se a todos aqueles que precisam de um apoio e/ou atendimento diferenciados, como os idosos e as grávidas), da "importância ou não" de diferenciar as necessidades especiais das necessidades educacionais especiais e da diferença entre integração e inclusão. Todas essas análises teórico-metodológicas poderiam deixar de existir se a sociedade reconhecesse a diferença das pessoas com deficiência. Ou seja, se a 5 "A Organização Mundial da Saúde é uma agência especializada da ONU destinada a tratar das questões relativas à saúde, e tem como objetivo garantir o mais alto grau de saúde para todos os seres humanos, entendendo a saúde como um estado completo de bem-estar psicológico, físico, mental e social." (SOUZA, 2008, p. 103). 17 sociedade entender e aceitar a deficiência como um fator natural/comum, que deve ser respeitado, e que nas relações interpessoais deve-se respeitar o "outro" como ele é, livre de comparações classificatórias ou categorizadoras. Em termos legais, o entendimento do conceito "pessoas deficientes" encontra sua origem na Declaração dos Direitos dos Deficientes, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1975. Segundo o artigo 1º da Resolução 3447, "o termo 'pessoas deficientes' refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais." (1975, p. 2). Posteriormente, em 1980, a OMS definiu "deficiência" como sendo qualquer perda ou anormalidade da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica. No Brasil, até 2004, o artigo 3º do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, editado pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, regulamentava a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, e fazia a distinção entre deficiência, deficiência permanente e incapacidade. Sendo deficiência toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano; deficiência permanente aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e incapacidade uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida. Pode-se observar, a partir da análise das concepções acima citadas, que a ótica de leitura da pessoa com deficiência no mundo foi historicamente marcada pela concepção da perda, do não ser normal, do não pertencimento em comparação com o estrutural, o padrão. Em 2004, o então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva editou o Decreto nº 5.296, de 02 de dezembro de 2004, que regulamenta as Leis nº 10.048, de 8 de novembro de 2000 e nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, revogando o Decreto nº 3.298/98, a fim de redefinir o conceito de deficiência e estabelecer os conceitos de deficiência física, deficiência intelectual, deficiência visual, deficiência auditiva, deficiência múltipla e de pessoa com mobilidade reduzida. Já a Lei nº 13.465, de 12 de janeiro de 2000, estabelece o conceito de pessoa portadora de deficiência para fins de concessão de benefícios pelo Estado. A necessidade de compreender as diferentes formas de manifestação das deficiências existentes na sociedade e as suas intensidades, pensando o que cada deficiência impõe enquanto limitação para o sujeito – o que demanda, muitas vezes, uma avaliação individual – é latente, pois reflete diretamente na proposição e na formulação de políticas públicas e legislações diferenciadas para todas as esferas da vida social de cada indivíduo, o que permite mensurar a dificuldade de dar conta de todos os imponderáveis de cada sujeito, fazendo-se necessárias legislações menos rígidas, com possibilidades de avaliações individuais, mas com o cuidado de não criar mecanismos de (possíveis) privilégios entre as pessoas com deficiência e entre essas e as pessoas sem deficiência. 18 Segue uma breve definição conceitual do que o Decreto nº 5.296/04 indica em cada deficiência, de forma geral. Deficiência física é a alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, não abrangendo as deformidades estéticas e as manifestações que não produzam dificuldades para o desempenho de funções. A pessoa com deficiência intelectual tem seu funcionamento intelectual, significativamente, inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: comunicação, cuidado pessoal, habilidades sociais, utilização dos recursos da comunidade, saúde e segurança, habilidades acadêmicas, lazer e trabalho. O deficiente visual – o cego – são todos os indivíduos com acuidade visual6 igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; pessoas com baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual, em ambos os olhos, for igual ou menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores. Entende-se por deficiência auditiva – surdez7 – a perda bilateral (portanto, nos dois ouvidos), parcial ou total de quarenta e um decibéis8 (dB) ou mais, aferida por audiograma9 nas frequências10 de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz. A deficiência múltipla é a associação de duas ou mais deficiências. E a pessoa com mobilidade reduzida é aquela que tem, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se, permanente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção. A partir da análise das (escassas) produções a respeito das pessoas com deficiências ao longo da história da humanidade, é possível perceber que ser uma pessoa com deficiência hoje é, praticamente, o oposto ao que foi na Idade Média. Atualmente, o sentido excludente, negativo e frequentemente pejorativo que a palavra "deficiente" remete, tem relação direta com uma sociedade regida pela eficácia: a sociedade capitalista, portanto existe há não mais de trezentos anos. Nessa sociedade, aquele que não vende sua força de trabalho, mesmo que seja porque o próprio mercado não absorve entendendo que a dificuldade ou deficiência apresentada pode comprometer o produto final do seu trabalho, é excluído da sociedade de produção, da sociedade de consumo, enfim, da sociedade em geral. Ou seja, constitui um grupo à margem, ainda 6 A acuidade visual é a nitidez da visão, a qual varia da visão completa à ausência de visão. Normalmente, a acuidade visual é medida em uma escala que compara a visão da pessoa a 6 metros com a de alguém que possui uma acuidade visual máxima, segundo a Tabela optométrica de Snellen. 7 Se pensarmos a questão da surdez por um viés sócio-antropológico - e não pela ótica clínica/biomédica - é possível entender o discurso da comunidade surda quando configura o sujeito surdo enquanto surdo e não uma pessoa com deficiência como as outras pessoas desse segmento, compreendendo que ser surdo é para além de sernão-ouvinte, pois compreende um mundo com cultura e língua próprias. Por outro lado, essa configuração peculiar e específica implica em um processo recorrente de dupla estigmatização: por apresentar uma deficiência auditiva e por utilizar uma língua própria para se comunicar. 8 Decibéis é a unidade que mede a intensidade de um som. 9 Audiograma é a representação gráfica que mostra as frequências específicas e os níveis de intensidade que a pessoa escuta em cada ouvido. 10 Frequência é uma grandeza física associada a movimentos de ondas. 19 que não externo11, à sociedade, pois não se enquadra nos padrões do sujeito de uma sociedade produtiva. Nesse sentido, o valor da natureza humana e da singularidade individual, é relativizado onde o que vale é uma medida externa, da sociedade, que valora a quantidade de "efeitos" que uma pessoa é capaz de produzir e caso não se produza os "efeitos" esperados pela média social, esse sujeito é chamado de "deficiente", estando externo à civilização da eficiência: a sociedade industrial. Sob uma análise etimológica, o prefixo "de" representa usualmente um sentido negativo. O "deportado", originalmente, era aquele mandado embora do porto. O "desestruturado" é alguém ou algo sem estrutura. Nessa lógica, o "deficiente" seria aquele sujeito não eficiente. O prefixo no último caso tem o sentido de "não", portanto uma negação da própria essência da pessoa humana enquanto pessoa na sociedade, já que essa está sendo avaliada por algo que não é pessoal e sim que se baseia em uma comparação média da sociedade tendo relação com a produção de "efeitos" provocados pelos indivíduos na sociedade. Contudo, nem sempre foi assim. Na Idade Média, uma época marcada pela valorização e dominação das explicações existenciais pela religião na sociedade, a pessoa com deficiência era uma pessoa sagrada. A marca que ela portava era sinal de diferença e nesse sentido, o diferente era assinalado por Deus. Havia algo de sagrado em torno da pessoa com deficiência. O cego era o "adivinho"12, pois não podia ver os episódios presentes mas era sensível aos futuros. Aqueles com deficiência intelectual eram chamados de "simples", eram as pessoas simples da aldeia e sendo assim eram os mais próximos de Deus e das crianças. Anos depois, as pessoas que apresentavam deficiência intelectual passaram a ser chamadas de "excepcionais" e/ou "retardados", comparando-se à figura do bobo da corte, originário no Império Bizantino, que era o responsável por entreter o rei e a rainha, fazendo-os rir. (d´Amaral, 2008). Com esses dois exemplos de deficiência, visual e intelectual, podemos identificar como a pessoa com deficiência era reconhecida no passado de forma positiva. A deficiência era um sinal ou uma marca, era entendida como uma predestinação, e ao invés das pessoas com deficiência serem excluídas da sociedade em que viviam, elas eram protegidas pelas suas comunidades, que as percebiam como "assinaladas" por Deus. Além disso, as pessoas com deficiência ocupavam um papel de representantes das comunidades. Nos últimos anos, a sociedade ocidental vem se relacionando com a pessoa com deficiência de forma a considerá-la alguém "menos humano", mas nem por isso mais divino, como se negasse a primeira parte do termo "pessoa com deficiência", reforçando o entendimento de que a "pessoa" deve ser excluída e mantida à margem da sociedade, não a reconhecendo como sujeito de direitos e deveres e sem proporcionar condições reais de usufruir a sua cidadania. Assim, a diferença é vista como um sinal negativo e não afirmativo, nem tampouco uma determinação natural que deve ser aceita e absorvida pela sociedade como alguém que faz parte integrante dessa. 11 Para uma sociedade ser inclusiva, em alguma medida, ela precisa ser excludente. Entretanto, não há possibilidade de uma "não inserção" do indivíduo na sociedade em que vive, pois, de alguma forma, esse faz parte da manutenção da lógica de reprodução do sistema. 12 Adivinhar vem do latim divinare. O adivinho é àquele que tem o dom divino, o dom da divinação, é próximo do divino e, portanto, de saber o que os humanos comuns não sabem. (Conceito baseado no livro institucional do IBDD, 2008) 20 Nesse sentido, a ideia de deficiência contida no imaginário do senso comum remete a um significado de insuficiência orgânica ou intelectual, um "defeito" que interfere na sua qualidade, reduzindo o valor da pessoa à deficiência. Desta forma, a sociedade ocidental encara a pessoa com deficiência enquanto um sujeito imperfeito, com faltas e lacunas, ou ainda, insuficiente, insatisfatório e medíocre, segundo os significados apresentados pelos dicionários Priberam da Língua Portuguesa13 e Dicionário Online de Português14, respectivamente, para a palavra "deficiente". Entretanto, como a sociedade não é estática nem tampouco homogênea, ao passo que exclui as pessoas com deficiência também se movimenta no sentido de avançar com os instrumentos legais e formais de luta pelos direitos desse segmento – esse panorama será ilustrado adiante. O afastamento da sociedade em relação às pessoas com deficiência, com a ideia do "não-pertencimento", principalmente no decorrer do sistema capitalista, promoveu um sentimento de diferença sobre este grupo, caracterizando o que é chamado de estigma, especialmente colocado por Erving Goffman, no seu texto "Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada" (1963). O estigma é uma marca atribuída a um sujeito ou grupo, decorrente de uma construção social, determinando e influenciando a visão e relação que a sociedade constrói e reproduz, por exemplo, com o segmento das pessoas com deficiência. O estigma é justificado através de processos históricos, não estando, portanto, condenado à estabilidade conceitual. A construção do imaginário15 social a respeito da deficiência é geralmente calcada sobre a concepção de normalidade – mesmo que erroneamente, por nem sabermos exatamente definir o que é ser normal – ou então sobre a oposição binária entre normalidade e deficiência, tal como afirma Skliar (2000) "a deficiência está relacionada com a própria ideia de normalidade e com sua historicidade" (apud CARVALHO, 2004, p.5). Saviani (1998, p. 128 apud CARVALHO, 2004, p. 53) propõe duas formas de pensar essa oposição: pensar a contradição e pensar por contradição. Se pensarmos a contradição entre as pessoas ditas normais e as pessoas com deficiência, estamos baseando-nos no que falta para a pessoa com deficiência, o que o torna diferente e, portanto, incompleto, em comparação aos ditos normais. Sendo assim, o sujeito que não se encaixa na hegemonia da normalidade tem um déficit. Ou, para aqueles superdotados, um superávit, já que a hegemonia não correspondida, provoca indagações a respeito da sua superioridade. No entanto, se a análise for feita pensando por contradição, percebe-se que as pessoas não podem ser enquadradas na condição de serem "isso ou aquilo", pois variam em torno das formas de manifestação e as expectativas dos grupos sociais em torno dos comportamentos humanos. E mais, a importância atribuída às causas da deficiência, principalmente os aspectos orgânicos, gerou uma correlação entre deficiência e doença, obedecendo estereótipos sociais que relacionam normalidade com saúde e deficiência com patologia. E aos superdotados são adotados fatores genéticos ou místicos. A deficiência não deve ser entendida apenas como um conceito biomédico nem tampouco como o resultado de catalogação de doenças e lesões de uma perícia 13 < http://www.priberam.pt/dlpo/>. 14 <http://www.dicio.com.br>. 15 Cabe ressaltar aqui a diferença entre imaginação e percepção.A imaginação é a simbolização involuntária, como em um sonho ou organizada e integrada em um sistema de crenças coletivas. E a percepção é o reconhecimento e a identificação de conteúdos sensíveis. (CARVALHO, 2004, p. 52) 21 biomédica, mas é um conceito que denuncia a relação de desigualdade imposta por ambientes com barreiras a um corpo com impedimentos e está relacionado com a opressão ao corpo que apresenta variações de funcionamento (DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009). Essa redefinição da concepção de deficiência colocou a chamada "normalidade" em cheque, já que ela poderia ser entendida como uma expectativa biomédica de padrão de funcionamento da espécie ou como um preceito moral de produtividade e adequação às normas sociais. Todavia, com a mudança de compreensão, a deficiência passa a traduzir a opressão ao corpo que apresenta impedimentos, ou seja, o conceito de corpo deficiente ou pessoa com deficiência devem ser entendidos em termos político-sociais e não mais estritamente biomédicos. "Essa passagem do corpo com impedimentos como um problema médico para a deficiência como o resultado da opressão é ainda inquietante para a formulação de políticas públicas e sociais" (DINIZ, 2007, p. 11 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 65)16. Nesse sentido, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, que o Brasil ratificou em 2008, indica a necessidade da participação das pessoas com deficiência como parâmetro para formulação de políticas e ações direcionadas a esse público, buscando garantir assim uma legitimidade dos interesses da própria categoria, indicando o tom das políticas e ações sociais. Além disso, a Convenção aponta que um novo conceito de deficiência deve nortear as ações do Estado no dever de garantir os direitos a esse segmento populacional, corroborando para as críticas ao modelo biomédico da deficiência. Segundo dados do Censo 200017, 14,5% dos brasileiros apresentam impedimentos corporais, ou seja, são pessoas com deficiência física, intelectual ou sensorial. Os critérios utilizados pelo Censo 2000 para mapear as pessoas com deficiência na sociedade reproduzem a ótica biomédica e as dificuldades de mensuração do que se entende por "restrição de participação" (indicada nas perguntas do Censo 2000) pela interação do corpo com o ambiente, presentes na elaboração e gestão das políticas públicas direcionadas para esse segmento no Brasil. A Convenção não ignora as especificidades corporais, até por isso menciona "impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial" (ONU, 2006ª, artigo 1º), mas considera que é da interação entre o corpo com impedimentos e as barreiras sociais que se restringe a participação plena e efetiva das pessoas com deficiência na sociedade. 16 Atualmente, no Brasil, ainda é o modelo biomédico que fundamenta as pesquisas populacionais, as ações de assistência e, em grande parte, as políticas de educação e saúde para as pessoas com deficiência (FARIAS; BUCHALLA, 2005, p. 192 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p.71), principalmente devido a ligação do Brasil com a OMS. 17 Esses dados são baseados no Censo 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os resultados do Censo 2010 foram divulgados no momento final da presente pesquisa, por esse motivo, não foi possível analisá-los. Entretanto, é sabido que os movimentos representantes das pessoas com deficiência fazem uma severa crítica ao método utilizado no Censo 2000 - e que se repetiu no Censo 2010 - onde as perguntas relacionadas às pessoas com deficiência aparecem em apenas um de cada dez questionários aplicados, ou seja, são perguntas realizadas pelo método de amostragem, que não permite captar dados confiáveis e satisfatórios para subsidiar a criação de políticas públicas nem tampouco mapear um perfil fiel à realidade da população com deficiência. Além disso, as críticas também se voltam para as perguntas realizadas pelos Censos – e também por outras pesquisas sobre as pessoas com deficiência – por apresentarem uma margem de erro, já que não são precisas quanto à informação que desejam averiguar. Por exemplo, quando perguntam se o respondente tem alguma dificuldade de visão ou deficiência visual, e contabilizam as respostas como se fossem da mesma categoria, unem os usuários de óculos e pessoas cegas na mesma contagem, o que não confere com a realidade, já que dificuldade e deficiência não tem o mesmo significado. 22 O conceito de deficiência, segundo a Convenção, não deve ignorar os impedimentos e suas expressões, mas não se resume a catalogações. Ou seja, essa redefinição do conceito aponta para uma combinação entre a matriz biomédica, que cataloga os impedimentos corporais, e a matriz dos direitos humanos, que denuncia a opressão. Essa criação da ONU revela o debate político e acadêmico internacional (em pauta durante mais de quatro décadas) sobre o modelo social da deficiência e a insuficiência do conceito biomédico para analisar as relações travadas pelas pessoas com deficiência e garantir os direitos dessas, bem como promover a igualdade entre pessoas com e sem deficiências. O modelo biomédico da deficiência sustenta que há uma relação de causalidade e dependência entre os impedimentos corporais e as desvantagens sociais vivenciadas pelas pessoas com deficiência. Em contrapartida, o modelo social da deficiência contesta essa tese, desafiando o poder médico sobre os impedimentos corporais e, principalmente, demonstrando o quanto o corpo não é um destino de exclusão para as pessoas com deficiência (BARNES et al, 2002, p. 9; TREMAIN, 2002, p. 34 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009). Segundo Barnes (2002), os impedimentos são significados como desvantagens naturais por ambientes sociais restritivos à participação plena, o que historicamente traduziu os impedimentos corporais como azar ou tragédia pessoal. Portanto, a teoria do modelo social da deficiência provocou uma redefinição do significado de "habitar um corpo que havia sido considerado, por muito tempo, anormal" (DINIZ, 2007, p. 9 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 65). A nova expressão da opressão ao corpo levou à criação de um neologismo – ainda sem tradução para a língua portuguesa – o disablism (DINIZ, 2007, p. 9 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 65), que é resultado da cultura da normalidade, onde qualquer dificuldade corporal apresentada torna o indivíduo alvo de opressão e discriminação. "Se, no século 19, o discurso biomédico representou uma redenção ao corpo com impedimentos diante da narrativa religiosa do pecado ou da ira divina, hoje, é a autoridade biomédica que se vê contestada pelo modelo social da deficiência." (FOUCALT, 2004, p. 18 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 66). A crítica à medicalização do corpo deficiente sugere a insuficiência do discurso biomédico para a avaliação das restrições de participação impostas por ambientes sociais com barreiras. Por isso, para a Convenção, a desvantagem não é inerente aos contornos do corpo, mas resultado de valores, atitudes e práticas que discriminam o corpo com impedimentos (DINIZ et al, 2009, p. 21 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009). Historicamente, "uma das tentativas iniciais de aproximar a deficiência da cultura dos direitos humanos foi feita na Inglaterra nos anos 1970 (Union of the Physically Impaired Against Segregation [UPIAS], 1976)" (DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 68). A primeira geração de teóricos do modelo social da deficiência tinha forte inspiração no materialismo histórico e buscava explicar a opressão por meio dos valores centrais do capitalismo, tais como as ideias de corpos produtivos e funcionais (DINIZ, 2007, p. 23 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009). Os corpos com impedimentos seriam inúteis à lógicaprodutiva em uma estrutura econômica pouco sensível à diversidade. Já o modelo biomédico afirmava que a experiência de segregação, desemprego, baixa escolaridade, entre tantas outras variações da desigualdade, era causada pela inabilidade do corpo com impedimentos para o trabalho produtivo. 23 Hoje, a centralidade no materialismo histórico e na crítica ao capitalismo é considerada insuficiente para explicar os desafios impostos pela deficiência em ambientes com barreiras, mas se reconhece a originalidade desse primeiro movimento de distanciamento dos corpos com impedimentos dos saberes biomédicos (CORKER; SHAKESPEARE, 2002, p. 3 apud DINIZ, BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 68 e 69). Cabe ressaltar que entendendo os direitos humanos enquanto históricos, fruto de processos históricos e, portanto, receptor de influências de diferentes momentos histórico-temporais, é possível pensarmos que novos direitos ainda podem ser identificados e consolidados na sociedade (BENEVIDES, 2001). Nesse sentido, segundo Benevides (2001), os direitos humanos são aqueles direitos considerados fundamentais a todos os seres humanos, sem quaisquer distinções de sexo, condição de saúde física e/ou intelectual, nacionalidade ou etnia, são direitos naturais e universais por estarem firmemente relacionados à essência do ser humano, independente de atos normativos, valendo para todos os sujeitos. E são interdependentes e indivisíveis por não ser possível separá-los, aceitando apenas os direitos individuais ou os sociais, como aconteceu, por exemplo, no regime soviético que valorizava exclusivamente os direitos sociais em detrimento da liberdade individual. Em contrapartida, para a autora Lynn Hunt (2007), a noção de universalidade dos Direitos Humanos deve ser questionada já que a sociedade é permeada e marcada por um número imensurável de diferenças, sendo quase impossível pensar em um núcleo fixo de direitos humanos efetivamente adequados para a compreensão das diversas realidades culturais e sociais (RESENDE, 2011). A Revolução Francesa, mais do que qualquer outro acontecimento, revelou que os direitos humanos têm uma lógica interna. Quando enfrentaram a necessidade de transformar seus nobres ideais em leis específicas, os deputados desenvolveram uma espécie de escala de conceptibilidade ou discutibilidade. Ninguém sabia de antemão que grupos iam aparecer na discussão, quando surgiriam e qual seria a decisão sobre o seu status. Porém, mais cedo ou mais tarde, tornou-se claro que conceder direitos a alguns grupos (aos protestantes, por exemplo) era mais facilmente imaginável do que concedê- los a outros (as mulheres). (HUNT, 2007, p. 150). Sendo assim, os direitos humanos, com suas pretensões universalistas, não conseguem oferecer respostas para todas as diferentes questões postas na sociedade atual e, provavelmente, "não poderão fornecer respostas caso seja mantida a atual forma majoritária e simplista de se pensar e refletir os direitos humanos" (RESENDE, 2011, p. 22). Uma análise da perspectiva histórica dos Direitos Humanos revela que tanto o conceito de ‘direito’ quanto de ‘humano’ são conceitos construídos em sociedade e que determinam quem é “digno” de possuir quais direitos (COIMBRA et al, 2008). Portanto, essa reflexão pode levar à percepção de que o que consideramos como direitos universais e indivisíveis são muitas vezes afirmações de direitos para uns – os considerados em determinado momento como dignos de serem portadores de direito, ou seja, “humanos” – e a negação reiterada para outros. A possibilidade de se refletir sobre o processo histórico que determina, com base em práticas sociais, as dinâmicas de afirmação dos Direitos Humanos e dos sujeitos desses direitos abre caminho para o trabalho a partir dos paradoxos constitutivos dos Direitos Humanos. (RESENDE, 2011, p. 22 e 23). 24 1.2 A exclusão e o estigma enquanto construções sociais A diversidade social e o seu reconhecimento estão presentes em toda a longa história da humanidade, através de diversas manifestações em diferentes culturas. Para citar apenas um exemplo, toma-se a cultura grega antiga (mais ou menos 1110 anos a.C.) onde, no diálogo mais conhecido de Platão "A República", o filósofo considerou a desigualdade humana natural, passível de contribuir na promoção da harmonia social e do bem comum, atribuindo valor à diferença entre classes sociais e entre homens, como ilustrou no Livro V da obra, na passagem (Platão apud Curso de Especialização para Professores do Ensino Médio do GDF). (...) Pegarão, então, os filhos dos homens superiores e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que moram à parte, num bairro da cidade. Os de homens inferiores e quaisquer dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém. (p. 10). A partir da leitura da passagem acima é possível perceber que a exclusão e a segregação social são marcas na história da humanidade e, seu outro extremo, a inclusão, é um resultado do esforço da sociedade na conquista da igualdade de direito e dignidade a todos. Como exemplo desse esforço tem-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que estabelece o ideal de um direito pluralista e universal, "ordenado precisamente ao redor dos direitos fundamentais de toda pessoa humana" (DELMAS-MARTY, 1999, p. 106 apud Curso de Especialização para Professores do Ensino Médio do GDF). Voltando a "A República", os disformes a que se refere Platão, na passagem do Livro V, são os sujeitos ou grupos marcados por algum sinal físico, intelectual ou comportamental, fator que os colocava na posição de excluídos sociais. O objeto de análise nesse caso é a diferença humana, categorizada segundo a percepção, os valores e os juízos sociais, que tornam marginalizada uma parcela tida como indesejável e improdutiva da sociedade. Nesse sentido, remete-se ao modelo ideal de "perfeição", presente na Antiguidade e o ideal de "normalidade", que prevalece no Mundo Contemporâneo. Em ambos os casos, a diferença significativa18 é assumida e a desigualdade, a exclusão e a marginalidade são legitimadas. Na Antiguidade, o termo "estigma" designava os sinais corporais que davam destaque a algum atributo extraordinário ou negativo à moral de seus portadores. Por esse motivo, sinais marcados no corpo com fogo ou corte, identificam escravos, criminosos ou traidores, podendo esses ser facilmente identificados, remetendo à exclusão social e reduzindo-os às suas marcas, sendo tratados como sujeitos "menores", de menor importância, o que de fato representavam e como eram vistos naquela sociedade. A evolução histórica agregou valores sociais à concepção do estigma, a partir da ressignificação das marcas e do estabelecimento de identidade social, assim novos estigmas foram criados, dentre eles, a categoria "deficiente". O estigma circunscreve o que se pode considerar como identidade reduzida, onde o sujeito ou grupo identitário são percebidos, mas não só, são resumidos e reduzidos à 18 "Diferença significativa" é um termo utilizado por Amaral (1998), que designado aos sujeitos ou a um grupo, relaciona-se com suas características físicas, mentais, sensoriais ou psíquicas que não correspondem a um tipo "ideal" de sujeito. A diferença significativa desdobra-se em três subconceitos: deficiência, incapacidade e desvantagem. (CARVALHO, 2004). 25 "marca" que os caracteriza, como se caracterizar o indivíduo paraplégico19 enquanto pessoa com deficiência fosse suficiente para contemplar a sua inserção na sociedade. Nesse sentido, são construídos os estereótipos sociais, carregados de generalizações, como se todas as pessoas com deficiência fossem iguais e pudessem ser tratadas da mesma forma e como se essas fossemapenas sujeitos com certas implicações (e nada mais) para a sociedade. Entretanto, vale ressaltar, que esse argumento não desconsidera a importante luta pela real efetivação do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que dita que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", mas a reforça, indicando que são todos iguais perante a lei ainda que necessitem de certos olhares diferenciados, também diante dela, para determinadas esferas da vida, devido às diferentes possibilidades de inserção e interação social, como acontece com a Lei nº 8.213/91 que determina que as empresas cumpram uma cota de contratação destinada a pessoas com deficiência e com a Lei nº 8.112/90, que também indica uma cota para a pessoa com deficiência em concursos públicos. No entanto, é importante pontuar que a identidade estigmatizada não é um movimento de mão única, apenas atribuída pelo "outro", como se a pessoa com deficiência fosse mero receptor nesse processo. A "etiqueta" deve ser assumida de alguma forma pelo sujeito estigmatizado, como um sujeito ativo na relação interpessoal dos sujeitos sociais. Essa dinâmica social é demonstrada pela Teoria do Etiquetamento Social, como é denominada a Teoria do Labeling Approach nos estudos criminológicos, que considera que o sujeito estigmatizado, em dado momento da sua vida, corresponde ao estigma projetado sobre ele, o que provoca a reafirmação do "esperado" (BARATTA, 2002). Se transportada ao espectro da vida e da história da pessoa com deficiência, a Teoria do Etiquetamento Social encontra ressonância na prática onde a pessoa com deficiência inicia sua trajetória de excluído, ocupando o lugar social e/ou físico que lhe é destinado, construindo assim a teia da segregação e da exclusão com dificuldades de se opor a imposição externa. Por outro lado, e mais recentemente, pode-se observar um movimento de luta e conscientização sobre a condição de excluído da pessoa com deficiência e todas as implicações e conotações sociais que esse processo produz para os sujeitos em questão e para toda a sociedade. Recentemente, corroborado por uma campanha que, dentre outros locais, foi veiculada na televisão em 2004, chamada "Ser diferente é normal"20, houve a retomada de uma discussão sobre a normalidade e a diferença na sociedade. A campanha incitava, principalmente através de uma propaganda veiculada na televisão, a possibilidade de uma criança com Síndrome de Down viver uma vida feliz e ativa, como a de crianças sem deficiência. A afirmação indicava que a diferença deveria ser aceita socialmente 19 A paraplegia é resultante de uma lesão medular, traduzindo-se na perda de controle e sensibilidade dos membros inferiores. A intensidade e o comprometimento motor do indivíduo paraplégico dependem da altura da sua lesão: quanto mais alta for a lesão medular, maior será a área de impacto e menor as possibilidades de controle e de sensibilidade. 20 A campanha "Ser diferente é normal" foi criada no período de 2003 e 2004, pela agência Giovanni FCB através do Adilson Xavier e da Cristina Amorim, para o Instituto MetaSocial, que atende pessoas com Síndrome de Down. 26 como integrante de uma diversidade natural da existência humana. Retomando assim, o entendimento explícito no início desse capítulo, sobre os limites impostos pelas barreiras sociais às pessoas com deficiência e não propriamente pelas limitações da própria deficiência. Essas são limitações reais, mas se agravam quando a sociedade não permite – em plenitude – a relação interpessoal entre pessoas com e sem deficiência e não aceita as diferenças impostas pela natureza humana – ou, dependendo do caso, por uma deficiência adquirida –, exigindo uma adaptação do indivíduo à sociedade e não o oposto. Em contrapartida, não há nada de tão inusitado nas pessoas com deficiência que mereça ser enaltecido, por isso deve-se tomar cuidado com a exacerbação do melodrama, geralmente visto em reportagens no rádio, na imprensa escrita ou na televisão, quando pessoas com deficiência são apresentadas como heróis e aplaudidas por terem feito algo como as pessoas sem deficiência fazem, mesmo que com adaptações que atendam a determinadas necessidades. Entende-se a dificuldade das pessoas com deficiência se integrarem na sociedade de forma a realizar atividades diversas, ainda mais quando a sociedade não está preparada para receber pessoas com limitações reais, entretanto, o alerta está justamente para o cuidado com o outro extremo do "ser" deficiente, o de se tornar exemplos de vida, mesmo sem desejar. A fim de ilustrar esse extremo, João Ribas (2011) cita um episódio em seu livro "Preconceito contra as pessoas com deficiência: as relações que travamos com o mundo", em que dois jovens estudantes cegos tornam-se notícia na internet por superarem algumas dificuldades na escola. A matéria dizia assim "Cada vez mais gente querendo ajudar foi aparecendo e os exemplos de vida dos jovens não contagiavam mais apenas a comunidade escolar, mas a vizinhança, a cidade". Entende-se a intenção do jornalista em demonstrar que jovens cegos podem superar obstáculos, mas a forma de divulgar a notícia é que pode fazer a população achar que são cegos capazes de suportar exemplarmente uma sorte incomum – a deficiência – e os infortúnios e sofrimentos que dela decorrem. Ou seja, porque as pessoas são paraplégicas, cegas, surdas ou têm uma deficiência intelectual, são ovacionadas pela mídia quando praticam esportes, estudam, namoram, trabalham ou dirigem automóveis, atividades que toda a sociedade realiza, tornando-se pretensos exemplos de vida, sem que elas mesmas queiram. Ainda assim, é preciso reconhecer que inúmeros profissionais da mídia estão atentos para o papel que lhes é devido de construtores do imaginário social. Inclusive com publicações como as edições do Manual da Mídia Legal e o Manual sobre Desarrollo Inclusivo Para los Medios y Profissionales de la Comunicación, editadas pela Escola de Gente Comunicação em Inclusão21, que geraram o texto "Ética da diversidade na abordagem da deficiência" (Revista Radis Comunicação e Saúde, nº 92), que orienta a forma com a qual os profissionais da mídia devem abordar temáticas referentes às pessoas com deficiência. Para finalizar essa discussão, João Ribas (2011) afirma "E, como já dizíamos no início dos anos 80, a forma mais objetiva de mostrar as pessoas com deficiência é não apresentá-las como coitadinhas nem como super-heróis." (2001, p. 87). E mais, "as pessoas com deficiência podem fazer tudo, ou quase tudo, que as outras pessoas fazem, ainda que de forma um pouco diferente." (2001, p. 83). 21 Para maiores informações, acessar o site <www.escoladegente.org.br>. 27 Segundo Goffman (1963), a sociedade utiliza-se de um mecanismo de estabelecimento e imposição de categorias para as pessoas, onde essas últimas apresentam atributos considerados comuns e naturais para cada categoria. Como as relações sociais possibilitam o relacionamento com diferentes pessoas e sem nenhuma atenção ou reflexão especial, quando somos apresentados a alguém, os primeiros aspectos permitem-nos construir a sua "identidade social" ou o seu "status social", com atributos estruturais e valorativos. "Baseando-se nessas preconcepções, nós as transformamos em expectativas normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso" (1963, p. 12), nas quais toda a sociedade deve se enquadrar de alguma forma, ou seja, são os nossos valores impostos a todas as outras pessoas como única possibilidade deestar e colocar-se no mundo e nas relações. As exigências nem sempre são preenchidas, pois são demandas feitas "efetivamente" e imputadas ao outro, ou seja, de fora para dentro, caracterizando-se como a "identidade social virtual" (Goffman, 1963) e, portanto, imposta aos indivíduos em um retrospecto em potencial, através de afirmativas do que o outro sujeito deveria ser. Já a categoria e os atributos que o indivíduo realmente possui constituem o que é chamado de "identidade social real" (Goffman, 1963). Quando a pessoa não corresponde à "identidade social virtual", aquela esperada e imposta pelo outro, é considerada alguém menor, reduzida, menos desejável e pouco importante socialmente e que provoca descrédito alheio, essa caracterização é denominada de "estigma" (Goffman, 1963). O estigma também acontece quando a ideia de defeito, fraqueza e desvantagem são presentes na análise do indivíduo, constituindo uma discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real. Vale observar que não são todos os atributos indesejáveis que estão em questão, apenas aqueles incongruentes com o estereótipo criado para um determinado indivíduo. O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso. (p. 13, 1963). Se para Goffman (1963) o estigma é um tipo especial entre atributo e estereótipo (p. 13), as relações de discriminação das quais os sujeitos com deficiência são submetidos, sempre tem como base as comparações realizadas entre um determinado grupo de atributos, considerados completos e garantidos nas pessoas sem deficiência e ausentes ou defeituosos nas pessoas com deficiência. Sendo assim, se as pessoas se constituem, prioritariamente, no social e as práticas sociais e o pensamento coletivo moldam as oportunidades múltiplas de formas de existir e conviver, então é possível concluir que, se por um lado há um movimento de exclusão e marginalização acompanhando a história e ditando o lugar da pessoa com deficiência na sociedade, existem, em contrapartida e em resposta a esse marco histórico, lutas atuais pela inclusão social da pessoa com deficiência, revelando a inquietação e a tensão que abalam o status quo, promovendo o que se pode chamar de processo de "desautorização do instituído". Tomando como instituído o existente, o dado e posto e, portanto, desautorizá-lo, seria criticar a lógica excludente e marginalizante presente na sociedade e, muitas vezes, reforçada pelas próprias pessoas com deficiência. A fim de ilustrar os argumentos acima expostos, no capítulo 15 do livro de João Ribas (2011), "Preconceito contra as pessoas com deficiência: as relações que travamos com o mundo", o autor relata um episódio ocorrido no inicio dos anos 80 no Brasil que 28 provoca uma reflexão acerca dos extremos que comumente nos atrai quando tentamos escapar do preconceito ou da naturalização no trato com a pessoa com deficiência. Certa vez, Paulo Francis escreveu um artigo que teve vontade de chutar uma pessoa com deficiência que andava por uma rua em Nova York na sua cadeira de rodas e que quase o atropelou. Se bem me lembro, ele batera no seu calcanhar com uma das hastes de ferro que ficam na parte dianteira da cadeira. O dia já não tinha sido muito bom e, ainda por cima, aquele cadeirante22 quase quebra o seu pé!. (RIBAS, 2011, p. 77). O artigo foi publicado na Folha de São Paulo, junto com uma pequena charge em preto e branco, que ilustrava uma cadeira de rodas com um sujeito um tanto desorientado sentado nela, e após levar um chute por um pé calçado com um sapato demasiadamente sinistro, voa pelo ar. À época, no Brasil, as pessoas com deficiência estavam lutando veemente contra o que entendiam ser fruto de discriminação e de preconceito: a ausência de políticas públicas, de transporte adaptado, escolas que negavam matrículas para crianças com deficiência, empresas que não contratavam pessoas com deficiência para o seu quadro, dentre outras conhecidas formas de exclusão social. As pessoas iam às ruas em passeatas, procuravam governantes e parlamentares para reivindicar melhorias no atendimento público e apareciam na mídia exigindo o respeito aos seus direitos inalienáveis. E no meio disso tudo, estava Francis provocando em todos os brasileiros com deficiência, o sentimento de terem sido chutados. Diante do ocorrido, foram todos os brasileiros cadeirantes para a praça pública proclamar aos brados que Francis havia cometido um impropério contra todas as pessoas com deficiência do mundo. Como se já não bastasse o incomensurável grau de opressão social que esse segmento sofria. Entretanto, a crítica à revolta coletiva deve ser feita. Certamente as pessoas com deficiência daquela época (e, permito-me a ousadia de dizer que, de hoje em dia também) se sentiam pessoas suficientemente machucadas pela vida a ponto de, mesmo inadvertidamente, poderem chutar alguém sem que esse possa sequer reclamar. O pensamento pode ser "Ele quase quebrou o meu pé com o ferro da cadeira, mas – coitado! – eu não vou reclamar. Deixa pra lá. Se eu reclamar, vou constrangê-lo porque ele está na cadeira de rodas, é um sofredor, certamente não fez por querer, não vou aborrecê-lo." (RIBAS, 2011, p. 79). Acontece que pensamentos dessa natureza "autorizam" algumas pessoas com deficiência a pensarem a cadeira de rodas como um álibi e uma imunidade para cometer deslizes sem possibilidade de repreensão. Já que se consideram tão drasticamente feridas pela vida, que devem pensar primeiro em si, sem preocupar-se com excessos ou limites do bom senso. Podendo, então, ter privilégios frente às pessoas sem deficiência. Enquanto minoria social, se consideram especiais, por serem vítimas de malformação congênita, do acidente impensável, do acontecimento do destino ou da falha divina. Por isso, poderiam conquistar mais direitos que os outros, mesmo que esses "outros" tivessem igualmente seus direitos feridos. Ribas também relata no seu livro (2011, p. 79) um episódio que ocorreu com ele próprio na época da publicação do artigo de Paulo Francis, que foi revelador de como há uma dificuldade das pessoas sem deficiência lidarem com as pessoas com deficiência e dessas últimas receberem a relação sem pré-conceitos ou concepções pré-definidas como preconceituosas ou discriminadoras. 22 Pessoa que utiliza a cadeira de rodas para se locomover. 29 Uma moça paraplégica ligou para Ribas solicitando uma ajuda para mover uma ação na Justiça contra a empresa que trabalhava, porque essa não permitia que a mulher estacionasse o seu carro no exato local onde ela achava que deveria estacioná-lo. Como o edifício em que ficava a empresa tinha poucas vagas na garagem, parte dos funcionários não podia estacionar seu carro perto do seu trabalho. A empresa, buscando solucionar a questão da moça paraplégica, que por direito, inscrito no artigo 7º da Lei nº 10.098/00, deve estacionar seu carro em uma vaga próxima ao seu local de acesso e circulação, colocou um funcionário à sua disposição. Sendo assim, quando a empregada chegasse ao seu local de trabalho, pararia o carro na porta de entrada no edifício e um funcionário o levaria até o estacionamento mais próximo, fazendo o inverso na hora de sua saída. Essa dinâmica facilitaria a locomoção da empregada, ainda que não garantisse inteiramente seu direito. Nesse sentido, a mulher exigiu um local privilegiado no estacionamento, de modo que ela mesma pudesse estacionar seu veículo sem que o funcionário tivesse que dirigi-lo. Como a empresa não conseguiu oferecer
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