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ser gente criando o futuro Presidente do Conselho de Administração Janguiê Diniz Diretor-presidente Jânyo Diniz Diretoria Executiva de Ensino Adriano Azevedo Diretoria Executiva de Serviços Corporativos Joaldo D1mz Diretoria de Ensino a Distância Enzo Moreira Autoria Sofia Rafaela Oliveira de Aquino Projeto Gráfico e Capa DP Content DADOS DO FORNECEDOR Análise de Qualidade, Edição de Texto, Design lnstrucional, Edição de Arte, Diagramação, Design Gráfico e Revisão. © Ser Educacional 2021 Rua Treze de Maio, nº 254, Santo Amaro Recife-PE - CEP 50100-160 *Todos os gráficos. tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência . Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. Avlolação dos direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. o Imagens de ícones/capa: © Shutterstock 1 ASSISTA Indicação de filmes, vídeos ou similares que trazem informações comple- mentares ou aprofundadas sobre o conteúdo estudado. 1 CITANDO Dados essenciais e pertinentes sobre a vida de uma determinada pessoa relevante para o estudo do conteúdo abordado. 1 CONTEXTUALIZANDO Dados que retratam onde e quando aconteceu determinado fato; demonstra-se a situação histórica do assunto. 1 CURIOSIDADE Informação que revela algo desconhecido e interessante sobre o assunto \ 1 tratado. 1 DICA Um detalhe específico da informação, um breve conselho, um alerta, uma informação privilegiada sobre o conteúdo trabalhado. 1 EXEMPLIFICANDO Informação que retrata de forma objetiva determinado assunto. 1 EXPLICANDO Explicação, elucidação sobre uma palavra ou expressão específica da área de conhec imento trabalhada. Unidade 1 - Deficiência: histórico e contextualização Objetivos da unidade ........................................................................................................... 12 Evolução histórica do conceito de deficiência ......................................... .................... 13 Construindo um novo paradigma .............. ...................................................... .............. 18 Aspectos históricos da deficiência .................................................................................. 20 Precisamos falar sobre o capacitismo ........................................................................ 21 Capacitismo e a eugenia ............................................................................................... 22 A pessoa com deficiência e os Direitos Humanos ................................................... 25 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências e outros marcos ................................................................................................................ 26 Questões relacionadas à classificação das doenças .................................................. 28 Conhecendo a CID e a CIF ............................................................................................. 31 Integração X inclusão .......................................................................................................... 33 O que é integrar? ............................................................................................................ 34 O que é incluir? ............................ ................................................................................... 35 Sintetizando ........................................................................................................................... 38 Referências bibliográficas ................................................................................................. 39 Unidade 2 - Psicologia e a pessoa com deficiência: conceito, tipos e inclusão no contexto educacional Objetivos da unidade ........................................................................................................... 42 Deficiência: conceituação contemporânea .................................................................... 43 Conceituação da deficiência ......................................................................................... 44 Capacitismo, estigma e preconceito ............................................................................ 45 Deficiência e educação formal ......................................................................................... 48 A importância da inclusão no ambiente escolar ...................................... ................. 49 Tecnologias assistivas .................................................................................................... 52 Família e escola: rede de apoio .................................................................................... 56 Os tipos de deficiência ........................................................................................................ 58 Deficiência sensorial: visual e auditiva ....................................................................... 59 Deficiência física ...................................... ....................................................................... 64 Deficiência intelectual .................................................................................................... 66 Deficiências múltiplas .................................................................................................... 67 Deficiências específicas .................................................................................................... 68 Sintetizando ........................................................................................................................... 72 Referências bibliográficas .............. ................................................................................... 74 z / Unidade 3 - Psicologia e a pessoa com deficiência: saúde mental, transtornos e cuidado interdisciplinar Objetivos da unidade ....................................... .................................................................... 78 Distúrbios de comportamento, cognitivo e de linguagem ........................................... 79 Distúrbios do comportamento ...................................................................................... 79 Distúrbios cognitivos ...................................................................................................... 81 Distúrbios de linguagem ................................................................................................. 82 Diferença entre deficiência e transtorno mental ........................................................... 87 Implantação do SUS e da RAPS: garantindo direitos ............................................... 88 Aproximações e separações: deficiência intelectual e transtorno mental .......... 93 Definição de transtorno invasivo do desenvolvimento (TIO) ....................................... 94 Síndrome de Williams .................................................................................................... 95 Síndrome de Rett ............................................................................................................ 96 Transtorno desintegrativo da infância (TDI) ............................................................... 97 Transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação .................. 97 A importância do atendimento multidisciplinar à pessoa com deficiência ............. 99 Equipe de trabalho: conjunto de agentes ou equipe integrada ............................. 100 Ações conjuntas e particulares ................................................ .................................. 101 Sintetizando .........................................................................................................................105 Referências bibliográficas ............................................................................................... 106 Unidade 4 - A prática psicológica frente à deficiência e aos transtornos mentais Objetivos da unidade ......................................................................................................... 110 A prática psicológica com pessoas com deficiência e transtornos ........................ 111 Histórico do cuidado ............................................................................ ........................ 113 As diferenças na prática .............................................................................................. 115 O trabalho com pessoas com defic iências físicas e sensoriais ........................... 117 O trabalho com pessoas com deficiência intelectual. ............................................ 118 O trabalho com pessoas com transtornos mentais ................................................. 118 A Inclusão Social da pessoa com deficiência ............................................................. 124 Tipos de barreiras ......................................................................................................... 125 Desenho universal e adaptação razoável ................................................................ 127 Os novos direitos da pessoa com deficiência .............................................................. 129 Decla ração de Salamanca .......................................................................................... 130 As formas de tratamento e intervenção das instituições, particulares e públicas, com relação às pessoas com deficiência .................................................................... 131 Psicoterapia e psicoeducação ................................................................................... 132 Habilitação e reabilitação ............................................................................................ 132 Sintetizando ........................................ ................................................................................. 134 Referências bibliográficas ............................................................................................... 136 Nesta disciplina, vamos nos aprofundar na relação entre a Psicologia e as pessoas com deficiência. Para isso, iremos embarcar na história e conhecer as diversas práticas e concepções direcionadas às deficiências ao longo do tempo, bem como as teorias que baseiam hoje a percepção desses fenômenos. Ainda iremos compreender a deficiência a partir do contexto social, familiar, legal e subjetivo. Será abordado o que é a deficiência, quais os seus tipos e a diferenciação desse conceito de outros relacionados, como doença, transtorno ou distúrbio. Também falaremos sobre qual o lugar da psicologia no cuidado integral e multidisciplinar à pessoa com deficiência e como essa classe profis- sional atua na promoção da inclusão. Serão abordados, ainda, os direitos da pessoa com deficiência, as principais teorias e práticas, bem como as formas de intervenção psicológica e promoção de saúde junto à PCD nas mais diversas instituições. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • A professora Sofia Rafaela Oliveira de Aquino é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Per- nambuco - UFPE (2019) e fez especia- lização em Psicopedagogia pela Fa- culdade Frassinetti do Recife - FAFIRE (2021). Realiza estudos e pesquisas no campo da educação, incluindo temas transversais como aprendizagem, in- clusão, evasão escolar, experiência de escolarização da população negra e metacognição. Atua como psicólo- ga escolar, prestando acolhimento, orientação e desenvolvimento de es- tratégias em contexto multidisciplinar para estudantes da Educação Infantil ao Ensino Médio. Currículo Lattes: http://lattes.cn pq. br/5237488321343520 Dedico esse trabalho a Deus, grata pelo presente que é aprender e ensinar. A meus pais, meu noivo e meus amigos, pela força compartilhada e confiança depositada. Dedico a todas as pessoas com deficiência e a todos e todas que se comprometem com a inclusão e o respeito à diversidade humana. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • UNIDADE 1 ser educacional Objetivos da unidade Conhecer as concepções de deficiência desenvolvidas ao longo da história, bem como seu impacto nas práticas atuais; Entender os princípios e concepções teóricas que sustentam a visão contemporânea acerca da pessoa com deficiência; Apresentar os principais eventos históricos relacionados às pessoas com deficiência e seu impacto na sociedade atual; Entender como a deficiência é conceituada, quais as suas diferenças em relação ao conceito de doença e como se dá essa classificação; Diferenciar os conceitos de integração e inclusão a partir de sua concepção teórica e de suas práticas, a fim de promover a inclusão e a igualdade de oportunidades à pessoa com deficiência. de deficiência Construindo um novo paradigma Aspectos históricos da deficiência Precisamos falar sobre o capacitismo Capacitismo e a eugenia A pessoa com deficiência e os Direitos Humanos A Convenção Internacional so- bre os Direitos das Pessoas com Deficiências e outros marcos ficação das doenças Conhecendo a CID e a CIF Integração X inclusão O que é integrar? O que é incluir? PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • •• A evolução histórica do conceito de deficiência A deficiência nem sempre foi compreendida tal como é na atualidade. Na ver- dade, a percepção conceituai e as práticas relacionadas ao fenômeno da defi- ciência não são estáticas, mas variam ao longo do tempo. Essa variação acontece naturalmente, pois à medida que o tempo passa, os aspectos culturais e ideoló- gicos de determinadas épocas afetam nossa percepção de tudo ao nosso redor. Assim, para compreendermos de fato o que é a deficiência, precisamos en- tender as percepções ao longo da história sobre ela, quais as limitações dessas ideias e como cada uma delas impacta diretamente as ações direcionadas às pessoas com deficiência. Lowenfeld (1977 apud SANCHES, 1995), considerando isso, propõe que a his- tória da relação e da atitude coletiva em relação à pessoa com deficiência (PCD), especialmente no contexto ocidental, pode ser organizada e analisada em qua- tro períodos ou paradigmas. o primeiro paradigma identificado na relação das sociedades com a deficiên- cia é o da separação ou segregação, e remete ao período que vai desde a Anti- guidade até a Idade Média. Nesse período, a cultura e as relações sofriam forte influência mística, mitológica e religiosa, sendo estas as principais lentes pelas quais se enxergavam os fenômenos. E com a deficiência não era diferente; esta, trazendo diferença evidente, era alvo de diversas hipóteses místicas acerca de sua natureza e origem. Em alguns contextos, a deficiência suscitava medo e repulsa, sendo associa- da ao que era mau, à ira das divindades ou mesmo a algo demoníaco. Ter um filho portador de deficiência era, para sociedades como a da Roma Antiga, sinô- nimo de castigo divino e, por isso, a pessoa com deficiência era excluída, isolada, abandonada ou até morta. Na Idade Média, a desumanização dessas pessoas persistia, sendo evidenciada na figura, por exemplo, do Bobo da Corte, que mui- tas vezes consistia na exploração de pessoas portadoras de deficiência - fosse física ou intelectual - como forma de entretenimento. Essas práticas podem ser associadas tanto ao pensamento mítico predomi- nante nesses oeríodos auanto à extrema militarizacão dessas sociedades. aue consideravam o status social e importância dos indivíduos - especialmente ho- mens - com base também em sua utilidade militar. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Apesar de ter sido combatida no campo teórico, jurídico e até mesmo religioso, essa compreensãoainda deixa marcas na forma como nos rela- cionamos com a PCD. O modelo de separação é evidenciado, por exemplo, no estigma de criminalização e marginalização das pessoas com deficiência intelectual e transtornos mentais, que, frequentemente, são tratadas como perigosas e violentas. Após esse paradigma, emergiu um novo: o da proteção. Sob influência da expansão da Igreja Católica, iniciou-se um movimento de atenção a essas pessoas que tinham sido tão despreza- das. Foram criadas instituições, como hospitais e hospícios, a fim de oferecer abrigo e condições de sobrevivência para as PCDs, inaugurando uma pers- pectiva de caridade e assistencialismo. Essas novas práticas baseavam-se nos numerosos relatos de curas e milagres contidos nos evangelhos, sagrados para os cristãos. A Igreja passou a assumir, então, o cuidado às pessoas com deficiência e a outros grupos marginalizados como uma missão. Vale ressaltar que essas instituições, geralmente mantidas pela Igreja e coordenadas por freiras e gru- pos religiosos, não se tratavam de um direito desses indivíduos, mas de obras de caridade mantidas por doações. Na Figura 1, é possível observar um dos exemplos de como as práticas de proteção eram experienciadas: a chamada Roda dos Expostos. Tratava-se de um local onde mães que não podiam ou queriam criar seus filhos os deixavam aos cuidados da Igreja, geralmente à noite e de forma anônima. Não se tratava de uma prática exclusiva para lidar com crianças nascidas com deficiência, mas esse grupo era especialmente deixado nesses espaços, fosse pela ausência de recursos das famílias para cuidar dessas crianças ou mesmo por rejeição. Cruz (2012) caracteriza o uso desses espaços da seguinte forma: PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • A Roda dos Expostos foi um instrumento criado pela Igreja Católica, no final da Idade Média, com a finalidade de salvaguardar e proteger as crianças abandonadas, de forma que se evitasse, primeiramente, u 11 lldi IULIUIU uu u dUdi IUUi IU t:I i l Lji,Jd l l.jUt:J IULdl t:i l i iU ~u 4ut= .::>t: ~4u1- pararia, tendo em vista que aumentava a vulnerabilidade da criança frente aos an imais e ao clima) através da garantia do anonimato para o expositor, para que, assim estimulado, não deixasse a criança a esmo, com risco de morrer sem que lhe fosse dado sequer o batis- mo. A garantia do bat ismo representa a iniciação na vida cristã e sem o qual não se obtinha a salvação da alma, que passaria a penar no limbo sem jamais ter a visão de Deus (CRUZ, 2012, p. 13). Figura 1 Imagem 1lustrat1va da Roda dos Expostos. Fonte: CRUZ. 2012, p. '4. Dito isso, fica claro que essas instituições de proteção promovidas pela Igre- ja não funcionavam como garantia de direito ou política estatal de proteção a crianças ou pessoas com deficiência. Ao contrário, tratava-se de uma forma caridosa de lidar com a lógica vigente nesse período: a de que essas pessoas podiam ser descartadas. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Um dos motivos da adesão a essas práticas por parte das instituições reli- giosas era a ideia de que as PCDs, especialmente as crianças e as pessoas com deficiência intelectual, não têm pecado, e ajudá-las seria uma demonstração de virtude e misericórdia. Nesse mesmo período, iniciaram-se as primeiras ten- tativas de inserção das PCDs no contexto do trabalho, considerando-as como possíveis fontes de renda e utilidade. Figura 2 Instituto dos surdos-mudos, criado em 1889. Fonte CABRAL, 2019. Vale ressaltar que a perspectiva da proteção é uma das mais influentes nas práticas e discursos atuais. acarretando em políticas públicas assistencialistas e na infantilização da PCD. Esta é, então, tratada como permanentemente ino- cente e dependente, que deve ser cuidada e protegida, mas que é incapaz de tomar decisões e gerir sua existência com autonomia. o \ CURIOSIDADE A categorização da proteção objetiva ajudar a entender as diferentes visões acerca da deficiência. Isso não significa que, ao emergir uma visão, a outra foi abolida por completo. Exemplo disso é que, durante a Reforma Protestan- te, a visão de pessoas com deficiência como diabólicas voltou a ganhar ex- pressividade, sendo defendida, por exemplo, por Martinho Lutero. Até hoje, essas diferentes visões circulam e conflitam entre si no imaginário social. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • O paradigma da emancipação vem a seguir, constituído sob influência de um mundo pós-Revolução Industrial e em constante desenvolvimento científi- co. Nesses anos, a ciência passou a ser priorizada em detrimento dos discursos religiosos ou filosóficos, e os fenômenos passaram a ser ressignificados a par- tir do que a ciência até então constituída afirmava sobre eles. É nesse contexto que a Med icina tomou o protagonismo da discussão sobre a deficiência, segui- da pela Psicologia e Pedagogia, tal qual conhecemos hoje. Com a ascensão do método científico, rejeita-se a associação das defi- ciências a causas espirituais e passa-se a buscar suas causas orgânicas. O behaviorismo e o determinismo cultural emergem, com práticas experimen- tais que visam "curar" os indivíduos e mostrar a capacidade do estímulo do meio em superar as características inatas. Ou seja, nesse processo, o obje- tivo é de "normalizar" e "normatizar" a PCD, tornando-a o mais semelhante possível às pessoas sem deficiência. Nessa busca por tornar as pessoas com deficiência "funcionais", adaptadas ao mundo, foram desenvolvidas práticas relevantes, como a oralização de surdos, a assistência médica e a escolariza- ção de pessoas com deficiência. Esse paradigma sofre influência da demanda capitalista por produtividade, em que a utilidade e dignidade de uma pessoa se mede a partir da sua capa- cidade de produzir. Apesar de significativas contribuições para a introdução de pessoas com deficiência em diversos contextos, observa-se, nesse modelo, que não há uma busca por tornar os espaços e a estrutura social mais inclusiva para as pessoas com deficiência, mas, sim, mudá-las para que se enquadrem às demandas sociais projetadas para pessoas típicas. De certa forma, as práti- cas emancipatórias eram também segregadoras e excludentes. Posteriormente, a partir do desenvolvimento dessa perspectiva, emergiu o t,Jt:1 IUUU Ud li llt:1:,1 d',-dU. 1..UI 11 d LUI 1:,u11Ud',-dU Ud CUULd',-dU c:,t,Jt:Lldl t:: LUI 11 UI l ld maior clareza da possibilidade de introduzir pessoas com deficiência no contexto educacional e do trabalho, tanto as organizações civis quanto, a partir delas, as entidades políticas e científicas passaram a demandar que as pessoas com deficiên- cia tenham oportunidades e direitos estabelecidos, principalmente com a finalidade de evitar violações e violências normalizadas dos períodos anteriores. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Nessa fase também é ampliado o conceito de deficiente - como até então se nomeava -, passando a englobar for- malmente mais categorias de deficiên- cia intelectual, física e sensorial. Foi nesse período que os principais mar- cos legais, nacionais e internacionais, para os direitos da pessoa com defi- ciência foram implementados. Apesar de sua significativa relevância para as práticas de atenção à PCD e para a ga- rantia de seus direitos, atualmente, o paradigma da emancipação, marcado por práticas de integração, tem sido questionado, a fim de se abrir espaço para uma compreensão da deficiência mais coerente e cada vez menos capacitista, como veremos a seguir. Construindo um novo paradigma •• Mas e na atualidade, como podemos compreender a deficiência, a pessoa com deficiência e a relação da sociedade com essa pessoa? Veja o conceito de pessoa com deficiência a seguir, apresentado na Lei Nacional nº 13.146/2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que cemimpe- dimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2015). Observe que esse conceito muda por completo a perspectiva que temos da pessoa com deficiência (PCD). Agora, o foco não está no impedimento, mas na barreira. Ou seja, pela primeira vez, compreende-se que o problema - se a deficiência é encarada como um - não está na pessoa em si, mas no fato de que seus impedimentos encontram, na vida cotidiana, barreiras, obstáculos e dificuldades, que limitam sua participação social de forma igualitária. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • Nos períodos anteriores, o foco estava sobre o impedimento. Considera- va-se que, se alguém tem uma deficiência, o problema está localizado nessa pessoa. Nessa perspectiva, a estrutura social não tem a obrigação de se adap- tar ou incluir esse grupo, já que este foge à norma. Agora, porém, fica evidente que a desigualdade não é inerente à pessoa com deficiência nem decorre de seu impedimento. Ela surge em decorrência do encontro dos impedimentos da PCD com as barreiras presentes na sociedade (sejam elas barreiras físicas, institucionais, atitudinais, entre outras). Podemos resumir como: impedimento + barreira = desigualdade de condições = deficiência. Essa nova visão demanda não mais a simples integração da PCD nos diver- sos espaços sociais, mas, sim, a sua inclusão. Apesar de esses conceitos pare- cerem falar da mesma coisa, a ideia de inclusão propõe novas práticas frente à questão da deficiência, como veremos mais adiante. EXEMPLIFICANDO Quer entender melhor o conceito de deficiência? Pense no seguinte exem- plo: Isa bela é uma jovem com miopia. Ela precisa usar óculos para realizar suas atividades cotidianas. Em outras palavras, podemos dizer que ela tem um impedimento sensorial de longo prazo. Entretanto, com os seus óculos, lsabela consegue estudar, trabalhar e viver coletivamente sem enfrentar nenhuma barreira, seja ela física ou mesmo referente à atitude das pesso- as. Por isso, concluímos que, mesmo havendo um impedimento orgânico, não há deficiência. Dito isso, conseguimos entender que a visão atual do que é a deficiência, de quem são as pessoas com deficiência e de qual o seu lugar social é. na verdade fruto de uma constante construção e desconstrução de ideias e práticas. Essa síntese carrega influência de diversos paradigmas anteriores, inclu- sive daqueles que já foram superados do ponto de vista teórico. Por isso, para que seja desenvolvida uma atuação pro- fissional coerente e inclusiva, é essencial compreen- der essa linha do tempo, evitando, assim, que prá- ticas capacitistas do passado se repitam no tempo presente. O Diagrama 1 resume o conteúdo estuda- do acerca do histórico da deficiência. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • DIAGRAMA 1. SÍNTESE DOS PARADIGMAS DE COMPREENSÃO E AÇÃO FRENTE À DEFICIÊNCIA ~ História da deficiênt r ... u compreensão e ação ,,. ........... ........... , e f ........ • .... ,fD ......... •• Aspectos históricos da deficiência Ao nos aprofundarmos no estudo da deficiência ao longo do tempo, fica nítido que ocorreu uma evolução, não apenas no aspecto da compreensão e conceituação da questão, mas também nos direitos, ferramentas de assistên- cia e no conhecimento técnico e científico - das mais diversas áreas de saber - aplicados ao cuidado com esse grupo. Por isso, esse olhar histórico é essencial. Ele evidencia que os direitos e as práticas que conhecemos hoje não são universais e nem surgiram ao acaso, mas foram fruto de lutas, reivindicações e pesqui- sas por parte de cientistas, lideranças políticas e sociedade civil. Mais do que isso, esse olhar con- textualizado nos ajuda a lembrar que há sem- pre mais possibilidades de evolução e aperfeiçoa- mento e que é necessário quebrar as barreiras que ainda existem e atrapalham a qualidade de vida das pessoas com deficiência. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Uma vez que já compreendemos os tipos de pensamento e conceituação da deficiência, agora nos aprofundaremos em alguns eventos históricos específi- cos relacionados à percepção e às vivências da PCD. Vale ressaltar que, apesar de uma pessoa com deficiência não se limitar ao seu histórico de sofrimento e exclusões, é impossível ignorar que, ao longo de toda a história humana, pre- senciamos os mais diversos tipos de capacitismo, e é por ele que começaremos . •• Precisamos falar sobre o capacitismo O que é, então, o capacitismo? Esse é o nome, em língua portuguesa, utili- zado para referir-se a toda e qualquer diferenciação de caráter discriminatório, pejorativo, preconceituoso ou desigual para com pessoas com deficiência. De acordo com a Convenção sobre os Direitos da Pessoa Com Deficiência, da ONU, essa discriminação se descreve: [ ... ] como qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de opor- tunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de d iscri- minação, inclusive a recusa de adaptação razoável (BRASIL, 2009). A partir disso, compreendemos que o capacitismo é um fator estrutural na nossa sociedade atual, presente tanto em atitudes intencionalmente discrimi- natórias quanto em aspectos básicos, como, por exemplo, a falta de acessibili- dade em espaços públicos e privados. Mas como será que todo esse capacitismo chegou até nós? Como dito, o capacitismo têm se reinven- tado e resistido às mais diversas intervenções ao longo da história humana, emaranhado no pen- samento religioso, cultural e até mesmo científico. Vimos que, na Idade Média, com a veemente influên- cia da Igreja, os discursos sobre as deficiências eram imersos em misticismo. A associação com o mal ou com o pecado atrelaram a pessoa com deficiência a um lugar de desumanização. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • Outras hipóteses, porém, se apresentavam. Para o Papa Inocêncio 111, as defi- ciências - ou, como chamavam, as "monstruosidades" - eram advindas do con- tato de uma criança com sangue menstrual, associando tanto o corpo da PCD quanto o das mulheres a algo impuro, tóxico, degradado (DIAS, 2013). Observamos que, apesar do grande peso histórico da influência dessa visão capacitista de alguns discursos religiosos - não todos -, o discurso que pode ser descrito como a maior influência na perpetuação do capacitismo na con- temporaneidade é o do projeto eugenista que ascendeu no século XIX . • Capacitismo e a eugenia Se você está familiarizado com a palavra eugenia, deve saber que essa ideia é quase diretamente associada ao nazismo, porém, de acordo com Dias (2013), ela é anterior a este. O marco histórico tido como precursor da eugenia é a ascensão de uma aplicação divergente do darwinismo. Enquanto Charles Darwin desenvolveu uma teoria de hierarquização de espécies por meio de sua adaptabilidade, seu primo, Sir Francis Galton, fez a inferência de que era possível alcançar uma descendência perfeita, uma espécie humana superior, mais evoluída e capaz. Para isso, era necessário combinar pares sexuais de boa qualidade, evitando relações degradantes à espécie. Em outras palavras, o que Galton defendia era que os frutos dessa chamada seleção artificial seriam superiores, mais adaptáveis e, dessa forma, a salvação da espécie humana. De forma pouco surpreendente, as pessoas consideradas desejáveis eram as brancas, de classe social alta e sem deficiências. As pessoas com deficiência e as negras eram tidas, então, como indesejáveis e inferiores. Apesar de hojese mostrar grande uma aberração científica, esse discurso encontrou muitos adeptos, corroborando com práticas elitistas, racistas e, cla- ro, capacitistas. Sua disseminação na sociedade norte-americana foi expressiva, como uma forma de proteger a nação do impacto social trazido pela imigração e avanço de populações mais po- bres para os grandes centros. A eugenia foi tratada como uma estratégia de segurança para o país, im- ..... 1:- ........ ...J .... : ..... -1. , .-: •. ,.. ---- .._ ..... ..J:..J ... - ...J ......... - ....... -:1: ___ ::::; .... ...J ..... pessoas com deficiência (DIAS, 2013). PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • A naturalização da eugenia nos Estados Unidos foi tão ampla e fervorosa que, em 1927, a esterilização para tais fins foi considerada, além de legal, cons- titucional na nação. A decisão teve como objeto de estudo o direito ou não à reprodução de uma jovem descrita como "débil mental", e essas práticas não apenas se assemelham, mas serviram, posteriormente, como exemplo para o projeto de sociedade nazista de Adolf Hitler. Para Hitler, o plano eugenista saiu do campo ideológico para tomar forma de leis e ações estatais, de forma semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos. Em 1933, foi instituída a chamada Lei GezVeN (Gesetz zur Verhütung erbkranken Nachwuchses, em português, Lei para a prevenção contra uma descendência here- ditariamente doente), que obrigava um grupo significativo de pessoas a serem esterilizadas, a fim de impedir sua procriação. Entre essas pessoas, estavam aquelas que apresentavam as chamadas condições congênitas, que incluíam deficiências físicas, sensoriais, intelectuais e transtornos mentais (DIAS, 2013). Figura 3. Castelo Harthe1m, utilizado durante o regime nazista como centro de extermínio por eutanásia. Fonte: Enciclopédia do Holocausto, 2019. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • A esterilização foi apenas um dos passos nesse projeto de tentativa de ex- tinção das deficiências. O passo seguinte foi, em 1939, a autorização do programa T4, que realizava a "eutanásia" de pessoas com deficiência, que, na verdade, referia-se ao extermínio de crian- ças e adultos com deficiência. O projeto nazista justificava essas mortes sob o argumento de que essas pessoas eram inúteis à nação e ameaçavam o projeto de desenvolvimento da raça ariana. Apesar do genocídio promovido pelo nazismo ser associado principalmente aos judeus, esse não foi o único grupo. Estima-se que, em virtude do pro- grama T4, mais de 260 mil pessoas com deficiência tenham sido assassinadas na Alemanha, além do impacto do discurso nazista que refletiu em ações similares em outros países. A Lei GezVeN perpetuou-se mesmo após o fim do regime nazista, sendo condenada como lei nazista apenas em 1988, e finalmente revogada no ano de 2007. Não podemos pensar que o Brasil ficou ileso quanto à eugenia. No início do século XX, tais ideias começaram a ser divulgadas no País, especialmente se posicionando contra a miscigenação. Entendia-se que a mistura de raças re- sultava em degradação genética e, consequentemente, social. As pessoas com deficiência também foram alvo de esterilização, além de diversas legislações passarem a regular e, por fim, proibir a entrada de estrangeiros com deficiência no país (DIAS, 2013). Apenas em 2009 essas legislações excludentes foram limitadas por comple- to, com a promulgação local da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, de 2007. Relembrando outros pactos e convenções internacionais, o texto estabelece como princípios gerais o respeito à dignidade humana, à autonomia individual e às diferenças, preconizando a não discri- minação e a aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana. Portanto, o documento revela a mudança de perspectiva em relação ao deficiente, seja estrangeiro ou nato, do final do século XX até o século XXI (RIBEIRO, 2019, p. 219). PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • Esses eventos evidenciam que, ao longo da história, frequentemente tanto o poder estatal quanto o saber médico e científico se propõem a criar e imple- mentar práticas capacitistas, excludentes e discriminatórias. Mais do que isso, mostram que, mesmo quando um governo não promove essas práticas, ele pode perpetuar o capacitismo e a desumanização da PCD, quando se omite em combater e reconhecer sua responsabilidade sobre essas práticas. A ciência e o Estado, por terem sido vetores de perpetuação do capacitismo, devem ago- ra, não apenas parar de fazê-lo, pois seu papel é de enfrentar diretamente as consequências das práticas anteriores e assumir-se como defensores ativos da inclusão. Por isso, é essencial conhecer a história da deficiência; apenas conhe- cendo o passado é possível compreender o fenômeno presente e promover ações futuras adequadas (DIAS, 2013). •• A pessoa com deficiência e os Direitos Humanos ta, que, a princípio, parecia apenas uma teoria científica questionável, reve- lou-se como base e gatilho para a realização de uma série de atrocidades e violências contra diversos grupos humanos e contra a humanidade como um todo. Em outras palavras, o nazismo expôs a vulnerabilidade da civilização hu- mana a discursos que desumanizam a diferença. Evidenciou também que essas ideias e práticas precisam ser combatidas de forma direta, evitando que se repitam. Nesse sentido, o valor da dignidade humana precisa ser en- fatizado no âmbito da educação, das relações interpessoais e também nas construções legais, políticas e diplomáticas, a nível local e global. Por isso, no ano de 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial, tendo como propó- sito evitar outros conflitos dessa dimensão e promover relações diplomáti- cas entre as nações, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU). A Carta das Nações Unidas, que oficializou a criação da ONU, foi, inicialmente, assinada por 50 países como forma coletiva de reconhecimento de que to- das as violências e destruição decorrentes da Segunda Guerra e de conflitos anteriores eram nocivos aos grupos a que atingiram, mas também à huma- nidade como um todo. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Um dos principais marcos históricos no avanço dos direitos da pessoa hu- mana se deu em 1948, quando a ONU elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Essa declaração, que ouvimos hoje como tema de debate na mídia, na educação e nos mais diversos espaços, pode ser compreen- dida como o principal documento histórico de combate às desigualdades. De acordo com a declaração, "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em rela- ção uns aos outros com espírito de fraternidade" (ONU, 1948). Perceba que, apesar de tratar de di- reitos comuns a todos os seres huma- nos, a DUDH passou a incluir grupos que anteriormente não acessavam es- sas garantias. Ou seja, a dignidade, a li - berdade, o reconhecimento da razão e da consciência humanas não são mais tratados de forma condicional por pertencimento a um grupo. Em outras passaram, então, a ser oficialmente possuidoras de direitos individuais, sociais e coletivos, e ter sua dignidade humana reconhecida. •• A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências e outros marcos Apesar de seu valor formal e discursivo ao direcionar e restringir práticas aos seus Estados-membros, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um documento de cunho geral, não se debruçando em discutir grupos ou demandas específicos. A fim de caminhar no aprofundamento das demandas específicas das pessoas com deficiência, a ONU promoveu a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências. No ano de 2007, o texto da Con- venção foi formalizado, representando um importante avanço dos direi tose das novas concepções acerca da deficiência. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • O texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências apresenta conceitos e definições, obrigações dos Estados-mem- bros e diversas outras restrições e proposições, considerando temáticas como a saúde e a educação da PCD, o papel da conscientização e da acessi- bilidade para a inclusão, os direitos individuais da pessoa com deficiência, o seu direito à liberdade, participação social e política e a inclusão no trabalho e emprego. Também apresenta discussões acerca da intersecção entre a de- ficiência e outros fatores referentes à socialização humana, como a classe, o gênero e a idade. O Diagrama 2 lista os princípios desse documento. DIAGRAMA 2. CONJUNTO DE PRINCÍPIOS DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Não diuriminaç..io Plena e efetiva participação e inclusão na sociedade Respeito ~ difmnça • aceitação da diversidade lgualdad• de oportunidades Princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências RO!p•ito p•I• dignidad•. autonomia. liberdade e independência Resp•ito pelo desenvolvimento • 1d•ntldad• das crianças com deficiência Igualdade entro o homem • a mulher Amslbilidade Outro aspecto relevante no texto da Convenção foi a substituição dos di- versos termos utilizados anteriormente pelo atual: pessoa com deficiência. Essa decisão objet ivou superar o estigma da limitação contido em palavras como deficiente, portador de deficiência ou especial. A proposta passa, en- tão, a ressaltar a dignidade das pessoas com deficiência enquanto pessoa, indivíduo, sujeito da sua própria história, e compreender a deficiência como uma característica, não como todo, mas como uma parte de suas vidas. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • No Brasil, o texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pes- soas com Deficiências passou a ter status de emenda constitucional, tendo sido promulgado em 2009, por meio do Decreto nº 6.949/2009. Anos depois, em 2015, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Defi- ciência. Essas leis têm um papel essencial na defesa e na garantia de direitos para as pessoas com de- ficiência no território local, permitindo que esses direitos possam ser reivindicados em todo o terri- tório nacional. Essas construções legais, teóricas e práticas visam a alcançar a tão buscada igualda- de de oportunidades, valorizar a diversidade humana e permitir o desenvolvimento amplo, integral e saudável de todos, a despeito da presença ou não de deficiências. Questões relacionadas à classificação das doenças •• Alguma vez você já ouviu uma PCD ser chamada de doente devido à sua de- ficiência? A ideia de que as pessoas com deficiência convivem com uma doença é um equívoco comum no pensamento coletivo. Por vezes, as deficiências são compreendidas como se fossem um tipo de doença mais grave. Entretanto, é essencial entendermos que essas duas categorias, apesar de poderem se relacionar, descrevem coisas diferentes. Deficiência não é doença, bem como doença não é deficiência A doença e a deficiência: diferenças e semelhanças Essa diferenciação, bem como a definição dessas duas categorias, não se dá tão facilmente. De fato, encontrar um conceito de doença que englobe todas as categorias possíveis desse fenômeno é desafiador. Como podemos definir de forma que as doenças crônicas, as transmissíveis, as mórbidas, enfim, as de qualquer tipo sejam contempladas? O mesmo questionamento vale para as deficiências. No campo da Medicina, a conceituação de doença é ambígua e divergente devido a essa dificuldade de englobar tantos fenômenos diferentes em uma única categoria. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Para Georges Canguilhem (2002), referência nos estudos da Psicologia da Saúde, a relação entre saúde e doença diz respeito à existência da norma, isto é, ao que se espera e se experiencia com mais frequência. As normas que esta- belecem o que é saúde e o que é doença se baseiam na média e nas variações tidas como aceitáveis entre elas, de forma que aquilo que torna-se discrepan- te extrapola a norma e é considerado doença. Porém, é possível imaginar que, dada a inconstância e a variabilidade humana, em todos os seus níveis, nenhu- ma norma é estática. E "se o normal não tem a rigidez de um fato coercitivo coletivo, e sim a flexibilidade de uma norma que se transforma em sua relação com condições individuais, é claro que o limite entre o normal e o patológico torna-se ImprecISO" lLANl:JUILH tlVI, LUUL, p. :>::IJ. Em síntese, Canguilhem entende que "não há distúrbio patológico em si, o anormal só pode ser apreciado em uma relação" (2002, p. 61). Apenas em comparação ao outro, e apenas a partir dos parâmetros estabelecidos pela existência de um outro, é que torna-se possível estabelecer os conceitos de saúde e doença. Isso não significa que o adoecimento é ficcional. Na verdade, podemos compreender a doença mais facilmente como um fenômeno, agudo ou crô- nico, que desestabiliza o funcionamento normal de um organismo. Porém, o que compreendemos aqui é que a definição de doença não decorre unica- mente do fator orgânico, mas, sim, da convenção de normas, já que mesmo esse fator só pode ser observado a partir de pactos sociais como a medicina e a pesquisa científica. Quanto à deficiência, como já vimos, compreende-se que se trata de um "impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou senso- rial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua partici- pação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas" (BRASIL, 2015). A presença de doença não é critério para que haja deficiência. A deficiência é um conceito princi- palmente de ordem social, definido a partir de quais implicações um determinado impedimento gera na funcionalidade e na socialização da pessoa, e não necessariamente decorre de um fenômeno deses- tabilizador do organismo, como no caso da doença. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • Isso significa que doenças e deficiências não têm nenhuma relação? De ma- neira alguma. Quando se trata da saúde, é importante ter um olhar para a in- tegralidade do sujeito e o modo como cada parte dele se relaciona com esse todo. Vale lembrar que existem as deficiências inatas e as adquiridas, que podem decorrer de doenças. Pense no seguinte exemplo: José tem o diagnós- tico de diabetes, e convive com a doença há alguns anos. Porém, devido a uma complicação causada por ela, o paciente perdeu a visão. Nesse caso, José tem deficiência visual adquirida em decorrência de uma doença. Por outro lado, as barreiras e a falta de acesso a recursos de qualidade enfrentadas por pessoas com deficiência podem gerar sofrimento psíquico e físico, levando ao adoecimento. Um exemplo disso é o aumento do risco de de- pressão em pessoas com deficiência física quando associados a fatores como a presença de dor, apoio social insuficiente, baixa qualidade de vida e falta de acesso a serviços de saúde (ALMEIDA; SILVA; NASCIMENTO, 2018). Por isso, no contexto da saúde, o cuidado integral é essencial tanto na pre- venção de deficiências decorrentes de doenças quanto na prevenção ao adoe- cimento de PCDs. EXPLICANDO No campo das ciências da saúde, os conceitos de inato e adquirido são especialmente importantes e utilizados para explicar a origem de fenô- menos. Inato é aquilo que nasce com o indivíduo, geralmente de origem 1 yt:llt:lll..cJ . J(l U ouyu111uu t: U IOLUI yut: t: Ut:;)t:IIVUIVIUU cJU 1u11yu UCI VIU<l, JJUI meio da experiência. As deficiências também podem ser categorizadas dessa forma. Para definir claramente se um indivíduo possui alguma deficiência, é neces-sário um olhar integral e multidisciplinar sobre o contexto. Isso porque, como vimos, a deficiência não se limita ao impedimento, mas à decorrência de barrei- ras na interação desses impedimentos com a sociedade. As doenças, . na atualidade, também precisam ser enxergadas de forma integral. Doença é um conceito social e coletivo, de forma que até mesmo os nomes, critérios diagnósticos e tratamentos vão se transformando ao longo do tempo, a fim de se en- contrar uma definição mais coerente com a realidade. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Para isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) dispõe de dois documen- tos que servem de referência para todos os profissionais da saúde na descri- ção, definição e diagnóstico: a Classificação Internacional de Doenças (CID) e a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) . •• Conhecendo a CID e a CIF A CID é uma ferramenta mais antiga, que permite o estabelecimento mais claro dos conceitos de cada doença humana conhecida. Essa classificação é de tamanha importância que, periodicamente, é revisada para fins de atualização e aperfeiçoamento. Foi nesse contexto de revisão e compreensão das deman- das sociais frente à classificação que se percebeu a limitação da CID para lidar com as pessoas com deficiência. Segundo Oi Nubila e Buchalla: A falta de uma definição clara de "deficiência ou incapacidade" tem sido apresentada como um impedimento para a promoção da saúde de pessoas com deficiência. A vigilância e a intervenção depende- riam da capacidade para identificar as pessoas que deveriam ser incluídas nesta definição (2008, p. 325). O que isso significa? Como dito anteriormente, o diagnóstico de deficiência, no Brasil, é feito de forma multidisciplinar, a partir da contribuição de vários campos de saber. Porém, sem uma definição clara do ponto de vista da saúde, como podemos saber se um médico, por exemplo, fez uma avaliação justa? Além disso, como garantir que uma pessoa com deficiência que vive em um país será reconhecida como tal e terá seus direitos garantidos se viajar para outro? Ou seja, é inquestionável que a falta de diagnóstico da deficiência compro- mete significativamente a promoção da saúde e a construção de políticas para esse grupo. Foi por isso que a OMS, no ano de 2001, passou a publicar a CIF. O objectivo geral da classificação é proporcionar uma linguagem uni- ficada e padronizada assim como uma estrutura de trabalho para a descrição da saúde e de estados relacionados com a saúde. A classi- ficação define os componentes da saúde e alguns componentes do bem-estar relacionados com a saúde (tais como educação e t raba- lho) (OMS, 2001, p. 02). PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • A CIF, vale ressaltar, não trata diretamente de deficiências, mas, sim, de três conceitos - apresentados no próprio nome - que as circundam: a funcionalida- de, a incapacidade e a saúde. Tratando de funcionalidade e incapacidade, consideramos dois elementos- -base, considerando a CIF (OMS, 2001 ): · O corpo: esse fator diz respeito ao maior objeto de enfoque da discussão sobre a deficiência e a funcionalidade. Isso porque, evidentemente, essas expe- riências se localizam e são vivenciadas por via do corpo. Por isso, os profissio- nais de saúde devem considerar as funções dos sistemas orgânicos do corpo e também sua composição estrutural. De forma mais prática, nos interessa quais as partes desse corpo e como elas interagem entre si; • Atividades e participação: a funcionalidade do corpo não tem a ver ape- nas com os seus sistemas internos, mas também com o lugar que ele ocupa nos sistemas externos, ou seja, na sociedade. O conceito de funcional parte, por- tanto, tanto da perspectiva individual quanto da social. O Diagrama 3 ilustra os domínios que são considerados para compreender a funcionalidade a partir das atividades e da participação. DIAGRAMA 3. FATORES CONSIDERADOS NA AVALIAÇÃO DE ATIVIDADES E PARTICIPAÇÃO PARA A DESCRIÇÃO DE FUNCIONALIDADE OU INCAPACIDADE, DE ACORDO COM A CIF Comunicação Mobilidade Aprendizagens e aplicação dos conhecimentos Autocuidados Vida doméstica Vida comunitária, social e cívica 1 nterações e relacionamentos interpessoais PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • Já ao tratarmos dos fatores contextuais, consideramos outros componen- tes. São eles os componentes ambientais. A CIF lista diversos elementos que podem ser identificados no contexto em que o indivíduo está envolto. Esses componentes ambientais têm um impacto significativo na manifestação de in- capacidade ou de funcionalidade. Vale ressaltar, porém, que o contexto é am- pio e nem todos os seus elementos têm o mesmo impacto. Por isso, a classificação propõe que se avalie partindo do ambiente mais imediato (família, grupos de socialização secundária, comunidade) e, posterior- mente, siga para o ambiente menos imediato (características do país, cultura da sociedade, geração etc). Aqui, fatores pessoais também são considerados e é necessário manter a abertura para entender que os elementos de impacto na saúde de alguém são tão múltiplos quanto a própria diversidade humana (OMS, 2001). A CIF pode ser usada tanto para a identificação de contextos problemáticos - casos de "incapacidade, limitação de actividade ou restrição de participação designadas pelo termo genérico deficiência" (OMS, 2001, p. 07) - quanto para contextos não problemáticos, quando não se observa restrição, denominados casos de funcionalidade. Aqui, vale lembrarmos, a saúde e a incapacidade não são percebidas como polos contrários, pois podem coexistir. Vale ressaltar que a CIF tem um objetivo mais descritivo que diagnóstico. Ela não visa a limitar a pessoa às suas características funcionais, tampouco a uma possível deficiência. Seu objetivo é fazer uma síntese biopsicossocial que permita promover a saúde da pessoa de forma integral, ampla e contextuali- zada. É essencial o conhecimento tanto da CID quanto da CIF nos contextos de atenção à pessoa com deficiência, a fim de que as classificações ocorram de forma adequada. •• Integração X inclusão Ao longo do tempo, vemos que, mesmo na busca por igualdade de condi - ções, existem contradições e diferenças quanto ao modo como isso deve ser colocado em prática. É o que observamos na atualidade, quando se busca superar práticas chamadas de integrativas, a fim de se instituir o paradig- ma da inclusão. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Quando se fala em integrar ou incluir uma pessoa com deficiência à socie- dade, podemos achar que trata-se de uma mesma ideia. Porém, não é isso que se compreende do ponto de vista teórico. Observe que, no Quadro 1, apesar de conectadas, essas duas perspectivas têm diferenças significativas para a com- preensão da deficiência e para implementação de ações direcionadas. QUADRO 1. DIFERENÇAS ENTRE INTEGRAÇÃO E INCLUSÃO ~ •• O que é integrar? As práticas integrativas junto às pessoas com deficiência têm como princi- pal objetivo a inserção da PCD nos espaços e práticas sociais. Em contraste com o paradigma da segregação, a integração entende que o sujeito com deficiência deve conviver socialmente. Entretanto, podemos observar uma centralidade do saber médico nessas práticas, que acaba tratando a deficiência como uma doença a ser curada, superada ou, pelo menos, tratada. Busca-se minimizar a expressão da deficiência - seja ela funcional ou até estética -, a fim de que a PCD seja "normalizada". PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • No modelo integrativo, a PCD é vista como capaz de superar os obstácu- los que vivencia em virtude de sua deficiência. Porém, essa superação é de- mandada no âmbito individual ou privado. É o próprio indivíduo, bem como sua família, que precisa promover as adaptações que se fazem necessárias. No contexto educacional, por exemplo, consolida-se a EducaçãoEspecial, com espaços voltados apenas para pessoas com deficiência. Como mostra a ima- gem, as PCDs tornam-se um subgrupo e, mesmo que tenham direito a serem inseridas, não necessariamente serão consideradas como parte. Uma das principais influências desse movimento é a política neoliberal, dada essa visão de mundo individualizada. Nela, "a mediação se organiza em torno do corpo normal e de sua busca por individualidade e auto-sustentação (sic) e nunca por uma coletividade" (DIAS, 2013, p. 11), não havendo, portanto, transformações estruturais nos espaços e contextos em que a pessoa com de- ficiência passa a integrar. A qualidade da integração, aqui, é medida de acordo com a adequação funcional do indivíduo às demandas de uma sociedade pau- tada na produção. •• O que é incluir? A inclusão pode ser resumida como a busca por reduzir ou eliminar barrei- ras, permitindo que as pessoas com deficiência tenham igualdade de oportuni- dades, a despeito de seus impedimentos de qualquer ordem. Para a perspec- tiva inclusiva, as pessoas com deficiência não devem precisar ser modificadas ou "normalizadas" para integrarem os espaços coletivos. Ao contrário disso, são esses espaços que devem buscar fornecer, por meio de um novo desenho de funcionamento, tecnologias assistivas e mudanças metodológicas e atitudi- nais, uma experiência acessível e igualitária para as pessoas com deficiência. Incluir significa, também, oferecer as ferramentas necessárias para que a pessoa com deficiência desenvolva seu potencial físico, cognitivo e social. No contexto escolar, por exemplo, a integração de estudantes com deficiência pode ser vista na simples possibilidade de ingresso na escola regular. Já a inclusão é efetivada quando o aluno tem, nesse contexto, igualdade de con- dições em relação aos seus colegas, mesmo que seja necessário o uso de tecnologias assistivas. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Um dos fatores mais relevantes da inclusão é a percepção da pessoa com deficiência como um indivíduo singular, e não apenas como parte de um grupo. Mesmo que as pessoas com deficiência componham um grupo com deman- das e lutas similares, cada uma tem as suas próprias demandas, de forma que não há um modelo rígido de inclusão. Se voltarmos ao nosso exemplo, perce- beremos que, para incluir, essas particularidades precisam ser consideradas. Enquanto um estudante com deficiência física precisará, por exemplo, de adap- tações referentes à sua locomoção, desenvolvimento de habilidades corporais e circu lação no espaço escolar, o estudante com deficiência visual poderá pre- cisar de materiais didáticos em áudio ou em Braile. Integração Inclusão ... : ••••• ••• Figura 4. Esquema expl,cauvo sobre a diferença entre 1ntegraç~o e ,nclusJo. Ao integrar sem incluir, pode-se até mesmo trazer danos ao indivíduo ao invés de benefícios. Isso porque, ao simplesmente introduzir uma pessoa com deficiência em um espaço sem garantir essa igualdade de oportunidades, o sujeito fica mais vulnerável ao sofrimento psíquico, à fragilização da autoesti- ma e à dificuldade de estabelecer bons vínculos com o grupo. Ou seja, integrar sem incluir limita a autonomia e relega a pessoa com deficiência a um nível inferior em relação aos demais. Já a inclusão promove a horizontalidade das relações, considerando as diferenças sem hierarquizá-las. Ela promove a auto- nomia e garante o respeito à dignidade da pessoa. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • CURIOSIDADE Você sabia que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as pessoas com deficiência correspondem a aproximadamente 15% da população mundial? Já no Brasil, esse grupo corresponde a 24% da po- pulação, porter uma ou mais deficiências (CENSO, 2010). Em contraste a esse valor, apenas 1% das PCDs brasileiras ocupam empregos formais, o que evidencia a necessidade de políticas e ações inclusivas. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • Sintetizando • Nessa unidade, aprendemos sobre a evolução histórica do conceito de defi- ciência. Vimos que as pessoas com deficiência já foram percebidas e, consequen- temente, tratadas de diversas formas ao longo da história humana. Essas formas de percepção sobre a deficiência são chamadas de paradigmas, os quais podem ser categorizados, nesse contexto, em paradigmas da segregação, da proteção, da integração e da inclusão. Vimos, também, que o paradigma da inclusão, o qual se busca implementar na atualidade, compreende a deficiência como um fenômeno social, uma vez que os impedimentos de ordem individual interagem com o meio e encontram barreiras que impedem a igualdade de oportunidades. Vimos que essa desigualdade e discriminação contra a pessoa com deficiência é nomeada como capacitismo, e que esse fenômeno teve grande influência do pensamento eugenista, muito influente no século XX. A eugenia defendia a cons- trução de uma raça humana superior, excluindo aquelas pessoas consideradas indesejadas, como eram tratadas as pessoas com deficiência e outros grupos hu- manos. A eugenia implicou em práticas degradantes, como a esterilização compul- sória de pessoas com deficiência e até mesmo sua morte. Assim, a fim de evitar a repetição dessas violações e com o objetivo de garan- tir o respeito à dignidade humana, foram instituídas a Organização das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo estabelecimento é considerado pontapé inicial para a produção de uma série de diretrizes de defesa à pessoa com deficiência. Uma delas é a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências, que tem peso de emenda constitucional no Brasil. Ainda vimos que, apesar de apresentarem conceitos complexos, doença e de- ficiência são duas coisas diferentes. Enquanto a doença diz respeito a uma deses- tabilização crônica ou aguda do organismo, a deficiência é a associação de um ou mais impedimentos de longo prazo com barreiras sociais. Vimos que as classifica- ções CID e CIF visam a compreender, classificar e descrever doenças e deficiências a partir de um olhar integral. Por fim, entendemos o conceito de inclusão da pessoa com deficiência, dife- renciando-se da integração, bem como as características de práticas interativas e inclusivas, e quais os focos de cada perspectiva. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Referências bibliográficas • ALMEIDA, C. L.; SI LVA, A. J.; NASCIMENTO, O. Fatores de risco para depressão em pessoas com deficiência física: uma revisão de literatura. Revista Brasi- leira de Saúde Funcional, v. 1, n. 1, p. 16, 2018. BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Convenção sobre os Di- reitos das Pessoas com Deficiência. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Poder Executivo, 26 ago. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 23 jul. 2021. BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Poder Executivo, 07 jul. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ cciviI_03/_ato2015-2018/2015/lei/I13146.htm>. 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' ' ..... ._ ..... ...,, _, ..... ,, ' ...,, .... ...,, I "'-b' ._, - ..., '-· - +.J t""..., • • 'V._' ._'... - ' ....... ,.... ,,J • • ' ' ..... ' ' ' .......... ' ' b,J. br/handle/10183/67207>. Acesso em: 23 jul. 2021. DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal à narrativa capacitista social. ln: Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência, 2., 2013, São Paulo. Anais ... São Paulo: SEDPcD; Diversitas; USP Legal, 2013. Disponível em: <http://www.memorialdainclusao.sp.gov.br/ebook/Textos/ Adriana_Dias.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2021. OI NUBILA, H. B. V.; BUCHALLA, C. M. O papel das Classificações da OMS: CID e CIF nas definições de deficiência e incapacidade. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 324-335, 2008. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbepid/a/gsPFtVn byDzptD 5BkzrT9 D b>. Acesso em: 03jul.2021. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • ENCICLOPEDIA DO HOLOCAUSTO. O extermínio dos deficientes. 03 out. 2019. 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U IDADE ~ ~ PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • ser educacional Objetivos da unidade Entender como a deficiência é conceituada na contemporaneidade; Correlacionar os conceitos de estigma e preconceito à experiência das pessoas com deficiência; Compreender o papel da rede de apoio no processo de inclusão educacional; Aprender o que são e quais as tecnologias assistivas utilizadas para a inclusão de pessoas com deficiência; Estudar a importância da inclusão no contexto educativo formal; Conceituar e diferenciar os diversos tipos de deficiência: física, sensorial e intelectual; Conhecer o conceito de deficiências múltiplas e suas implicações; Identificar semelhanças e diferenças entre a síndrome de Down, o transtorno do espectro autista e a deficiência. Tópicos de estudo Deficiência: conceituação contemporânea Conceituação da deficiência Capacitismo, estigma e preconceito Deficiência e educação formal A importância da inclusão no ambiente escolar Tecnologias assistivas Família e escola: rede de apoio Os tipos de deficiência Deficiência sensorial: visual e auditiva Deficiência física Deficiência intelectual Deficiências múltiplas Deficiências específicas PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • Deficiência: conceituação contemporânea Antes de apresentar a conceituação de deficiência, é importante ressaltar que todo fenômeno está situado em seu processo histórico e sofre diversas modificações em relação às suas con- cepções ao longo do tempo. Estudar infância, idade adulta, velhice, loucura, saúde, doença, maternidade e diversos •• outros fenômenos implica em estudar e entender o processo histórico e a rede de significados atribuídos ao fenômeno. Estudar a deficiência não é diferente. Scliar, ao estudar a evolução histórica da concepção de saúde, afirma que ela sempre reflete a concepção econômica e política e o contexto social na qual está inserida. Assim, segundo o autor, "saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social. Depen- derá de valores individuais, dependerá de concepções científicas, religiosas, filosóficas" (2007, p. 30). Embora nosso foco de estudo seja a deficiência, e di- ferencie-se do fenômeno estudado por ele, ela também recebe todas essas influências em suas concepções. É importante destacar também que as concepções não estão desalinha- das com as práticas. Pelo contrário: o ser humano busca criar teorias (mesmo que fundamentadas no senso comum), concepções e ideias que servem para nortear suas práticas sociais. Assim, a forma que o indivíduo enxerga e pensa um fenômeno como a deficiência orienta e direciona suas atitudes e compor- tamentos frente a ele. Um exemplo de como as doenças refletem as concepções sociais é a história de Samuel Cartwright, um médico do séc. XIX do estado da Louisiana, conheci- do por ser um dos mais escravagistas dos Estados Unidos. Ele diagnosticou a drapetomania, evidenciada pelo desejo dos escravos de fugir e também criou o diagnóstico da disestesia etiópica, que explicava a falta de motivação para o trabalho entre os escravos. Para ambas as situações, o tratamento médico recomendado por Cartwright era o açoite. Essa situação notabiliza a relação entre período histórico, concepções e práticas. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • •• Conceituação da deficiência Pensando no que foi apresentado, como é possível compreender a deficiên- cia na atualidade? Primeiramente, vale ressaltar que o conceito que direcio- na as práticas, ações e legislações na atualidade não é o único existente. Isso porque, ao longo da história, constrói-se uma perspectiva hegemônica sobre o fenômeno; mas as visões anteriores e as críticas que vão propor uma nova visão no futuro continuam coexistindo, visto que nenhum conceito é absoluto. Dito isso, pode-se afirmar que a perspectiva contemporânea de deficiência rompe com o discurso biomédico e o mítico-religioso por entender que o ser humano é um ser integral, que se constitui biologicamente, socialmente, psico- logicamente e espiritualmente. Dessa forma, não se pode pensar em nenhum fenômeno que perpassa a humanidade sem considerar todas as nuances for- mativas do indivíduo, o que também vale para a deficiência. De acordo com o Decreto n. 3.956/2001, que promulga a Convenção lnte- ramericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, a deficiência é "uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agra- vada pelo ambiente econômico e social" (BRASIL, 2001a, n.p.). Nessa perspectiva, é possível afirmar que a deficiência é um fenômeno que surge necessariamente do encontro entre restrições da estrutura fisiológica e/ ou psíquica com a forma de funcionamento do meio socioeconômico. Em outras palavras, a deficiência não é algo que está na pessoa, um "problema" indivi- dual e de ordem biológica; tampouco é uma característica unicamente social, que não encontra evidência no corpo. A rl1>firi,=.nri;:i rnnfio11r;:i_,., rl1> fatn rnmn um fenômeno decorrente da intera- ção, uma vez que o próprio ser huma- no, seus ideais, parâmetros de saúde e funcionalidade, práticas e crenças tam- bém decorrem dessa interação. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • •• Capacitismo, estigma e preconceito Para discutir a forma como se constroem preconceitos acerca do fenôme- no da deficiência, é necessário discorrer sobre a temáticade capacitismo e de estigma e a cultura. Para início de conversa, é importante estudar a teoria de cultura do sociólogo clássico Sorokin e a maneira como ele acreditava que essa influencia os indivíduos e os faz compartilhar preconceitos. Para o autor, toda or- ganização social adota o que ele chama de cultura ideológica, a qual consiste na: [ ... ) tota lidade dos va lores e normas adotados por indivíduos e grupos interagentes, o que consolida o aspecto cu ltu ral da interação significativa. As ações e reações significativas, por meio das quais os conteúdos da 'cultura ideológica' são obje- tivados e socializados, constituem sua 'cultura comportamen- tal' e, num tercei ro nível, a 'cultura material', significando to- dos os demais objetos, veículos e energias materiais por meio dos quais a 'cultura ideológica' se manifesta, se socializa e se consolida (MAZZOTTA; D'ANTINO, 2011, p. 379). Assim, como forma de entender a si mesmo, aos outros e à estrutura social, o indivíduo utiliza-se das ações coletivas, manifestações verbais, símbolos, tex- tos e construções materiais. Isso posto, a cultura ideológica é constituída pela forma como o ser humano se comporta e reage aos materiais que existem em determinada sociedade. O ser humano sempre discriminou de maneira positiva ou negativa fenô- menos específicos, fazendo com que, de maneira simbólica, houvesse uma segregação de diferentes grupos ao longo da história. Ao longo da história hu- mana, todos os indivíduos que apresentavam uma diferença muito acentua- da do padrão eram tratados de forma segregadora, além de serem vítimas de violência simbólica. É possível entender a violência simbólica como uma ação estratégica que atua como maneira "de impedir outros indivíduos ou grupos de defender os seus próprios interesses" (FREITAG; ROUANET, 1993, p. 112). Embora a lista de grupos sociais que sofreram e sofrem com essa violência simbólica seja extensa, nosso objetivo aqui é apresentar de que maneira as pessoas com deficiência, seja ela física, mental ou múltipla, sofrem por meio de uma cultura de violência simbólica que os colocam como sujeitos da diferença. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • Lonrorme 01scuuao, a cu1cura poae ser 1merprecaaa como um conJumo ae formas simbólicas impregnadas nas pessoas e nos grupos estruturados que se exteriorizam nos comportamentos e nos recursos materiais" (MAZZOTTA; D'ANTINO, 2011, p. 379). Assim, toda expressão de preconceito é construída e alimentada por esse ciclo. Uma das formas que têm alimentado esse ciclo de violência simbólica é o capacitismo. É importante entender que o capacitismo, tal qual outros tipos de desigual- dades, não se dá apenas por meio de ofensas e segregação voluntárias. Ao contrário: muitas pessoas, mesmo conscientes da importância da inclusão, continuam perpetuando discursos e práticas capacitistas. Por que isso aconte- ce? Porque, como dito anteriormente, nós tendemos a reproduzir os valores de nossa cultura por meio da fala, de símbolos e de comportamentos. E, como a cultura na qual estamos inseridos é pautada em padrões, além de supervalori- zar a produtividade dentro desses padrões, o capacitismo é uma das violências que podem ser reproduzidas de forma involuntária. Outro sociólogo que auxilia a compreender o processo psíquicosocial que ocorre com a deficiência é Erving Goffman. Por meio do estudo de populações marginalizadas, ele apresentou uma série de contribuições que se somam ao estudo das sociedades humanas. Em seu trajeto acadêmico, teve contato com o interacionismo simbólico, que defende que o "eu" individual é formado principalmente por meio das relações sociais que o ser humano estabelece com os outros. Por influência do interacionismo simbólico, em seus trabalhos Goffman es- tudou profundamente as relações humanas e as dinâmicas interpessoais des- sas relações. Seu trabalho discorre sobre como, nas relações dos indivíduos, há uma troca de significados, simbolismos e como se dão essas relações sociais em diferentes grupos, especialmente em grupos minoritários. Em sua obra Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1981), ele apresenta uma leitura bastante completa das relações humanas. A palavra estigma existe desde a Grécia Antiga e referia-se a uma marca no corpo dos escravos, feita para que a sociedade fosse capaz de identificar o sujeito e diferenciar-se dele. O estigma servia para que a sociedade em geral reconhe- cesse os escravos e os retirassem de todo e qualquer convívio social que os demais cidadãos possuíam. PSICOLOGIA E A PESSOA COM O EFICIÊNCIA • O que Goffman apresenta enquanto novidade em sua teoria é que o estigma é uma característica de todas as sociedades. O estigma seria um desvio do padrão de conduta esperado e imposto a determinados grupos e indivíduos. Em sua obra A representação do eu na vida cotidiana (2002), Goffman evidencia a presença de papéis sociais que todo sujeito exerce ao participar de um grupo. Assim, a variân- cia desse papel pode tornar o sujeito vítima de alguma forma de estigma. Existem três tipos de estigma, segundo Goffman. O primeiro deles seriam as abominações do corpo, as quais podem ser visualizadas de maneira mais físico-corpórea. Qualquer sujeito que possui um sinal ou marca visível em seu corpo que apresente qualquer característica destoante do padrão social esta- belecido seria vítima desse estigma. Neste grupo encontram-se os sujeitos com alguma deficiência física e sujeitos acima ou abaixo do peso padrão estabeleci- do, entre outros. Goffman acreditava que toda e qualquer característica física que denote um desvio do padrão social estabelecido caracteriza o sujeito como estigmati- zado. Esse estigma demarca um aspecto da identidade social: a alteridade. Ao excluirmos o outro, ele é colocado em um patamar de diferenciação. Assim, so- mente podemos tratar alguém de maneira diferente se ele é diferente de mim. Goffman ainda preconiza dois tipos de estigma, que não possuem tanta rela- ção com a deficiência como o primeiro. O segundo estigma consiste nas culpas de caráter, sendo destinado para indivíduos como prostitutas, ladrões e homos- sexuais, entre outros. Diferentemente do primeiro, este grupo recebe o estigma por ter condutas consideradas imorais e, por isso, também são vítimas de exclu- são. No terceiro, encontram-se os estigmas de marcas tribais, raciais ou religio- sas. Essas marcas denotam o pertencimento social dos indivíduos a tais grupos. Independentemente do tipo, o mesmo fenômeno empregado com os escra- vos na Grécia Antiga se repete, agora com novas roupagens: a exclusão. E, para que haja exclusão, é preciso tratar a vít ima de estigma como alguém diferente do padrão, deteriorando assim a identidade do outro. Ao tratar o outro como alguém sem identidade, ainda retira-se dele toda e qualquer dignidade: o ou- tro não é digno de ser humano, de receber compaixão ou de direitos. Por esse motivo, ao longo de vários anos, as pessoas com deficiência, junto ao grupo de pessoas com transtornos mentais, sofreram uma série de maus tratos em diversos hospitais psiquiátricos espalhados pelo Brasil. PSICOLOGIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA • ASSISTA Para compreender melhor a história da institucionalização de pessoas com deficiência e com transtornos mentais no Brasil, assista ao docu- mentário Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex. Ele mostra o sofrimen- to desse público e o tratamento desumanizado que os indivíduos sofriam antes da reforma psiquiátrica. Goffman afirmava que os estigmas variam a depender do contexto. So- bre isso, já foi discutido como todo fenômeno está inserido no conjunto de concepções histórico-políticas de seu tempo. É por esse mot ivo que é tão importante que a deficiência seja discutida nos mais variados cenários: aca- dêmico, político, senso comum. À medida que diferentes pessoas dialogam, há
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