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daniel sarmento cotas 2

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DANIFL SARMFNI'O 
em determinados casos, a ofensa à igualdade poderia ocultar-se em um texto 
normativo aparentemente neutro. Daí passou-se a atribuir grande importância à 
análise do impacto da medida sobre grupos estigmatizados. 
O leading case nesta questão foi o caso Griggs v. Duke Power Co., julgado 
pela Suprema Corte norte-americana em 1970. Tratava-se de ação proposta por 
várias pessoas negras que questionavam uma prática adotada pela empresa Duke 
Power Co., que, como condição para promoção dos seus funcionários, os subme-
tia a "testes de inteligência". Os autores alegavam que aquela medida não era 
necessária para o bom desempenho das funções dos empregados, e que ela tinha 
um impacto negativo desproporcional sobre os trabalhadores negros, já que estes, 
na sua imensa maioria, haviam estudado em escolas segregadas, em que o nível 
do ensino era muito inferior, o que os impedia de concorrer naqueles testes, com 
igualdade de condições, com os empregados brancos. Assim, uma exigência apa-
rentemente neutra funcionava, na prática, como mecanismo de perpetuação do 
status quo, levando a que os trabalhadores afro-americanos continuassem exer-
cendo na firma apenas funções subalternas. No julgamento em questão, a Supre-
ma Corte estaduuidense, baseando-se não na Constituição, mas no Civil Rights 
Act de 1964, afirmou que" ... as práticas, procedimentos ou testes, facialmente 
neutros, não podem ser mantidos se eles operam no sentido de 'congelar' o 
status quo de práticas empregatfcias discriminatórias do passado"1 .. 20 • 
A Corte Européia de Justiça também tem usado a teoria do impacto despro-
porcional, para coibir as discriminações indiretas no campo da igualdade de gêne-
ro. O primeiro precedente ocorreu no julgamento do Caso 170/84, Bilka-Kaufhaus 
·v. Von Hartz, em que se discutia a validade de um sistema privado de pensão 
(cont.) 
que o fator de desequiparação adotado foi talhado esbitamente para a promoção de um interesse estatal 
de excepcional relevincia. É muito raro que uma. norma legal sobreviva a este standJJrd' mais rigoroso de 
controle judicial, que 6 o empregaC:Io para as discrim.inaç:ões malignas fundadas em crit6rios raciais (a 
questão das disc:riminaçõc: beoignas no Direito americano será examinada à frente). Veja-se; a propósito, 
Jollb E. Nowak e Ronal D. Rotunda, op. cit. pp. ~ .• e, na doutrina brasileira. Roger Raupp Rios. 
O Princfplo da Igualdade t! a Discrindnação por Orit!ntaçllo SauaL São Paulo: RT, 2002, pp. 71-91. 
"19. A decisão integral, devidamente traduzida para o português, encontrn-se em Joaquim Barbosa 
Gomes, op. cU .• pp.333-343. 
20. Contudo, em Washington v. Davis, julgado em 1976, a Suprema Corte norte-americana afirmou 
que nilo bastava a proVa do impacto desproporcional de uma medida sobre a população negra. indepen-
dentemente ~e qualquer análise sobre o seu propósito discriminatório, para que reconhecesse a sua 
incoostitocionalidade. Tratava-se de caso em que se discutia a validade da aplicação de prova de babilida· 
de verbal, leitura e compreeDSio, na admissão de policiiÜs no Distrito de Columbia. Descartou-se a 
inconstitucionalidade alegada, porque embora a medida tivesse impacto maior sobre os afro-americanos, 
nio ficou evidenciado nenhum propósito discriminatório na sua utilização. Veja-se, a propósito, Walther 
F. Murpby, "James E. Fleming &: Sotirios A. Barber. American Constitucional Interprt!tation. 2nd. ed., 
Westbury: Tbe Foundation Press, 1995, pp. 931-933. 
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A IoUAIDADE ÉTNico-RACIAL NO DIREITO CoNSTITUCIONAL :BRASILEIRo: DiscRIMINAÇÃo ... 
mantido por empresa germânica, o qual negava o ,benefício a empregados que 
trabalhassem em r~gime de tempo parcial, à luz do !ut. 119 do Tratado de Roma, 
que garante a igualdade entre mulheres e homens em relação ao trabalho. Embo-
ra não houvesse ali explícita discriminação de gêne~, a Corte entendeu que seria 
inválido o sistema, porque afetaria de forma muitol mais intensa as mulheres do 
que os homens, já que são elas as que, na grande roaforia dos casos, trabalham em 
regime parcial21 • 
Na verdade, no campo da igualdade étuico-racial, há fortes razões para a 
. I 
incorporação da análise da discriminação indireta. :t:~esta linha, Charles Laurence 
lli, jurista norte-americano especialista em questõe$ raciais, buscou fundamentar 
em argumentos da psicologia freudiana o uso da teqria do impacto desproporcio-
nal, descartando a necessidade de prova de intençãq discriminatória"' . De acordo 
com ele, o racismo nos Estados Unidos tem raízes muito profundas -e o mesmo 
poderíamos dizer em relação ao Brasil - sendo os americanos socializados num 
contexto que os toma naturalmente preconceituosos em relação ao negro. Con-
' tudo, no momento atual, em que o racismo pasSOU! a ser considerado imoral, há 
uma tendência de que o Ego de cada indivíduo -i dimensão consciente da sua 
personalidade - disfarce de alguma maneira os imp]llsos racistas provenientes do 
seu ld (inconsciente). Isto leva as pessoas a praticarem comportamentos racistas, 
sem sequer se aperceberem disso, e a racionalizar~m estes comportamentos em 
termos que lhes pareçam moralmente mais aceiiáveis. Daí porque, seguudo ele, 
considerando o caráter inconsciente de muitos atos de natureza racista, a busca 
da intenção discriminatória como pressuposto para a afirmação da ilegitimidade 
da conduta não parece solução adequada. 
Ora, também no Brasil, a intemalização da naltlralidade da subordinação do 
afrodescendente compromete a capacidade de visualização da opressão racial. E 
. este fenômeno não ocorre apenas no ãmbito das consciências individuais, mas 
também no espaço das interações sociais23 , sendo agravado entre nós pela per-
sistência do mito nacional da democracia racial. Assim, .~discriminação. toma-se 
opaca, e a prova da intenção discriminatória dificílima de ser produzida Por isso, 
muito mais eficaz para o combate à estigmatização dos negros é a análise dos 
21. C f. Bany Fitzpabick. "Gender for Equality: A Move Towards na 'Bquality Ethos' Model". In: 
Ângela Hegarty & Siobhan Leonard. Hunu:m Rights: An Agenda. for lhe 2lsL Cenhlry. London: Cavendish 
Publishing Lim.ited, 1999, pp. 126-127. 
22. Charles R. Laurence UI. "'Tbc 1d, The Ego, and Equal Pr0tection: Reckoning with Unconscious 
Racism". In: JohD Garvey & Alexander Aleinikoff. Modem Constiturional Theory: A Reader. 4tb. ed.., SL 
Paul: West Group. 1999, pp. 513-
23. Cf. Gisele Cittadino. "Invisibilidade, Estado de Direi'o e PoUtica de Reconhecimento". In: 
Antonio Cavalcanti Maia, Carolina de Campos Melo, Gisele Cittadino e ~y ProgrebinscbL Penpectvas 
Atuais da Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Lumeo Juris, 2005, pp. 153-166. 
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