Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
FORMAÇÃO DE TRIBUTARISTA -- Planejamento Tributário -- 2012 Módulo V 1 MÓDULO V A ELISÃO FISCAL OU PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 1. ELISÃO FISCAL Surpreendente falta de uniformidade e rigor terminológico, metodológico e estrutural tem causado o estudo fragmentário da elisão e fraude fiscais. Tais questões preliminares devem ser superadas para permitir certeza e segurança nas conclusões finais. O prof. SAMPÁRIO DÓRIA1 se refere à contradição que ocorre na adoção de termo nuclear como evasão ou fraude e na adição de qualificativos contraditórios (legal e ilegal), se aplicados simultaneamente à mesma unidade conceitual. Uma categoria jurídica não pode ser, e não ser, legal. Um ato lícito não se nivela a uma infração, causando a confusão taxonômica, que insinua tal nivelamento, embaraços à própria diferenciação jurídica das espécies em exame (ou seja, entre fraude fraudulenta e fraude não fraudulenta!). Adiante assevera, “De outro lado, a palavra evasão, abstraídos os qualificativos, já vem matizada, em sua acepção moderna de certas conotações que a tornam particularmente inadequada para exprimir um ato legal como é o de evitar, por meios lícitos, ônus tributários. Pois hoje evasão sugere de imediato a fuga ardilosa, dissimulada, sinuosa, furtiva, ilícita em suma, a um dever ou obrigação (ex., evasão de presos).”2 Acrescentar ao termo evasão os adjetivos ilegal e legal seria num caso, pleonástico, e, no outro, incompatível. Portanto, os termos fraude e evasão devem ser utilizados para exprimir a sonegação fiscal, enquanto que elisão 1 In Elisão e Evasão Fiscal, p. 44-45. 2 Ibid., p. 45. Módulo V 2 fiscal deve ser utilizada para denominar as ações legais tendentes a reduzir o montante do tributo. 1.1. DIFERENÇAS ENTRE SONEGAÇÃO FISCAL E ELISÃO FISCAL Durante séculos, juristas e tribunais tentam estabelecer uma discriminação entre diversas combinações fraudulentas utilizadas para lutar contra o fisco. Com relação à fraude, em geral os juristas se mostram freqüentemente menos rigorosos que as autoridades fiscais. Aos olhos deles, existem a evasão legal ou lícita (cuja impropriedade da denominação já foi abordada) e a evasão ou fraude ilegal ou ilícita cuja definição pode ser assim formulada: “a elisão fiscal é reconhecida como tal, quando um contribuinte recorre a uma combinação engenhosa ou que ele efetua uma operação particular se baseando sobre uma convenção não atingida pela legislação fiscal em vigor. Ele usa o texto legal sem o violar: ele sabe utilizar habilmente uma brecha do arsenal fiscal”3 (tradução livre do autor). Em princípio, esta forma de elisão escapa às sanções legais, decorrente do fato que ela é sucedânea de uma regra jurídica centenária segundo a qual os contribuintes que dispõem de vários meios para chegar a um resultado idêntico escolhem aquele que lhes permite pagar o menor imposto possível. A fraude ou sonegação fiscal consiste em utilizar procedimentos que violem diretamente a lei fiscal ou o regulamento fiscal. É uma fraude dificilmente perdoável porque ela é flagrante e também porque o contribuinte se opõe conscientemente à lei. Os juristas a consideram como repreensível. A fraude ilegal ou ilícita que ousa se publicar (se mostrar, anunciar abertamente), deve ser severamente condenada. 3 ANDRÉ MARGAIRAZ in La Fraude Fiscale et Ses Sucédanés, p. 19 Módulo V 3 Os juristas julgam diferentemente a elisão fiscal. Sem ter relação com a fraude propriamente dita, se admite que os contribuintes tenham o direito de recorrer aos seus procedimentos preferidos, autorizados pela lei, mesmo quando este comportamento prejudica o Tesouro. Diversos grupos sociais dão um sentido suficientemente parecido à fraude fiscal ilegal e a elisão fiscal. Pelo menos, se deve reconhecer que a significação global da fraude pode se diferenciar sensivelmente de um país a outro, tendo em vista o fato que a atitude geral com relação ao imposto influi sobre o comportamento de cada contribuinte. Notadamente, na Bélgica, compreende-se por “fraude fiscal” o que é seguidamente apenas um erro e mesmo às vezes a única habilidade de se esquivar do imposto sem transgredir a lei4. Portanto, existem diferenças claras entre essas duas figuras. Ambas são formas de diminuição dos tributos. SONEGAÇÃO FISCAL ELISÃO FISCAL • Ilegal (contrária às leis) • Legal • Passível de sanção penal •Não é passível de sanção (crime de sonegação fiscal) • Medidas adotadas após a ocorrência • Medidas adotadas antes da do fato gerador ocorrência do fato gerador • Deve ser combatida • Deve ser estimulada O extinto Tribunal Federal de Recursos faz esta distinção no seguinte acórdão: “FRAUDE E EVASÃO - CARACTERES DISTINTIVOS. Não se confundem a evasão fiscal e 4 Op. Cit., p. 20. Módulo V 4 a fraude fiscal. Se os atos praticados pelo contribuinte, para evitar, retardar ou reduzir o pagamento de um tributo, foram praticados antes da ocorrência do respectivo fato gerador, trata-se de evasão; se praticados depois, ocorre fraude fiscal. E isto porque, se o contribuinte agiu antes de ocorrer o fato gerador, a obrigação tributária específica ainda não tinha surgido, e, por conseguinte, o fisco nada poderá objetar se um determinado contribuinte consegue, por meios lícitos, evitar a ocorrência de fato gerador. Ao contrário, se o contribuinte agiu depois da ocorrência do fato gerador, já tendo, portanto, surgido a obrigação tributária específica, qualquer atividade que desenvolva ainda que por meios lícitos só poderá visar à modificação ou ocultação de uma situação jurídica já concretizada a favor do fisco, que poderá então legitimamente objetar contra essa violação de seu direito adquirido, mesmo que a obrigação ainda não esteja individualizada contra o contribuinte pelo lançamento, de vez que este é meramente declaratório (TFR, Ac. da 2ª T., publ. Em 19-12-73, Ap. Cív. 32.774-SP, Rel. desig. Ministro Jarbas Nobre).”5 5 Apud Processo Fiscal Federal Anotado, p. 191. Módulo V 5 1.2. CONCEITO DE ELISÃO FISCAL Diva Prestes Marcondes Malerbi6 elenca ao menos cinco diferentes qualificações jurídicas do termo elisão fiscal: a) abstenção da incidência pura e simples; b) elisão em sentido estrito ou via jurídica lícita menos onerosa; c) evasão em sentido estrito ou via jurídica ilícita menos onerosa; d) simulação ou ocultação de fato imponível por meio de forma aparente de legitimidade; e, e) fraude ou ocultação pura e simples de fato imponível ocorrido. A doutrina é discente na configuração do conceito. Há, segundo a Professora7, duas correntes nitidamente distintas: de um lado estão os que consideramo comportamento elisivo como permitido pelo direito positivo, atribuindo-lhe, conseqüentemente, natureza jurídica. De outro lado se agrupam os que entendem tratar-se, a elisão, de mera infração à norma tributária e, nesta quadra, regida pelos princípios que a informam, desfrutando, quando mais, de alguma juridicidade perante o direito privado. Como bem ponderou Genaro Carrió8, "as palavras não têm outro significado ao que lhes é dado (por quem as usa, ou pelas convenções lingüísticas da comunidade). Não há, portanto, significados intrínsecos, verdadeiros ou reais, a margem de toda a estipulação expressa pelo uso lingüístico aceitado." 6 MALERBI, Diva prestes Marcondes. Elisão Tributária. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984, p. 13. 7 MALERBI, op. cit., p. 13. 8 8 CARRIÓ, Genaro R. Derecho e Lenguage. 5ª. reimpressão, Buenos Aires : Abeledo - Perrot, 1973, p. 64. Módulo V 6 Adota-se, neste estudo, como essência do núcleo conceitual, a definição da primeira corrente doutrinária, acompanhando o posicionamento de Sampaio Dória, acolhido in totum por Diva Malerbi9: 'Expressões como evasão, evasão ilícita ou ilegítima ou ilegal, fraude, fraude ilícita ou ilegal, para designar a modalidade dolosa de frustrar a satisfação de um tributo devido, pontilham obras diversas, em vários idiomas. Em contraponto se alinham, para caracterizar a modalidade válida de evitar o surgimento da obrigação tributária, elisão, evasão, evasão lícita ou legítima ou legal, fraude lícita ou legal, ou economia fiscal.' Por tais motivos e numa 'tentativa de neutralização e estabilização desta nomenclatura', propõe o magno autor: 'os termos de fraude e evasão para exprimir a ação tendente a eliminar, reduzir ou retardar o pagamento de tributo devido. E os de elisão ou economia fiscal (o termo economia ou poupança fiscal é preferido pelos doutrinadores de língua alemã, o de elisão particularmente pelos de língua espanhola) para a ação tendente a evitar, minimizar ou adiar a ocorrência do próprio fato gerador.' O marco temporal distintivo da elisão e evasão é a ocorrência do fato gerador (fattispecie, tatbeständ), logo conduta ocorrida antes do fato gerador é elisiva, e após acontecido o mesmo, evasiva. 9 DÓRIA apud MALERBI, op. cit., p. 14. Módulo V 7 A Organização Econômica de Cooperação e Desenvolvimento (OECD), entidade ligada às Nações Unidas, analisando comparativamente as experiências jurídico-tributárias de seus países-membros, anotou três características da elisão, distitivas da evasão10: a) presença de artificialidade negocial, indicando que as transações, atos e negócios componentes do esquema analisado não ocorreriam da mesma forma se não houvesse o intuito de economia fiscal; b) existência de esquemas que buscam obtenção de vantagens através de lacunas da lei ou abuso de formas; e, c) sigilo como componente importante das operações elisivas. Em verdade, a definição da evasão fiscal, enquanto ilícito tributário, em oposição à elisão fiscal, lícita, depende da postura de cada autor perante o planejamento tributário, pois alguns doutrinadores entendem que as condutas são fraudulentas quando realizadas apenas com o intuito de evitar, reduzir ou retardar o pagamento de tributo. Deve, segundo este entendimento, a conduta ter motivação extratributária, ou do contrário será fraudulenta ou abusiva. Sugerem estes autores, entre eles Marco Aurélio Greco11, que a vontade do agente seja aferida por testes pré-elaborados, como o teste da utilidade negocial (business purpose test). Portanto, se o contribuinte pretende diminuir os seus encargos tributários, poderá fazê-lo legal ou ilegalmente. A maneira legal chama-se elisão fiscal12 ou economia legal (planejamento tributário - "TAX PLANNING") e a forma ilegal denomina-se sonegação fiscal. 10 HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e Elisão : rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. São Paulo, Saraiva, 1997, p. 32. 11 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p.78. 12 Relatório da CPI da Sonegação Fiscal do Congresso Nacional: “Entende-se por elisão a evasão lícita, ou seja a decorrente de lacunas e imperfeições da lei, bem como os incentivos ou renúncias fiscais - Módulo V 8 Assim, a elisão fiscal é um conjunto de sistemas legais que visam diminuir o pagamento de tributos. O contribuinte tem o direito de estruturar o seu negócio da maneira que melhor lhe pareça, procurando a diminuição dos custos de seu empreendimento, inclusive dos impostos. Se a forma celebrada é jurídica e lícita, a fazenda pública deve respeitá-la. Duas decisões internacionais validam o entendimento da economia legal de impostos: • Suprema Corte dos EUA: "Qualquer pessoa pode arrumar os seus negócios de tal modo que seu imposto seja o mais reduzido possível; não está ela obrigada a escolher a fórmula mais produtiva para o tesouro público; nem ainda existe o dever patriótico de elevar seus próprios ônus fiscais."13 • Tribunal Federal da Suíça: "Indubitavelmente, toda pessoa é livre para dirigir sua atividade econômica de tal modo que fique sujeita a pagar o menor imposto possível e de escolher, entre as formas jurídicas que se lhe oferecem, aquela que traz a carga fiscal menos onerosa".14 1.3. A INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO DIREITO TRIBUTÁRIO Almir Malkowski15 faz uma análise do tema. Por várias razões, ora jurídicas ora ideológicas, há setores da doutrina que propugnam pela aplicação da consideração econômica do fato gerador, com abstração da forma jurídica subsídios, isenções, reduções de base de cálculo, concessões de crédito presumido, anistias e remissões (CF, art. 150, Par. 6º) - previstos em lei ou em tratados e convenções”. Op. Cit., p.8. 13 Citação de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, in Compêndio de Direito Tributário, 14 Ibid. 15 MALKOWSKI, Almir. Planejamento Tributário e a Questão da Elisão Fiscal. Leme – SP, Editora de Direito, 2000, p. 45/59. Módulo V 9 empregada, o que leva à redução das diferentes configurações jurídico-formais dos ou negócios a uma única “substância econômica”, de modo que, não obstante aquelas diversas formulações, referida “substância” deveria merecer o mesmo tratamento jurídico fiscal, ainda que o legislador tributário tivesse aludido apenas a uma daquelas diferentes configurações formais. Quando não se busca, para isso, fundamento expresso em norma da legislação, invocar-se o princípio da capacidade contributiva e o da igualdade, para sustentar que situações que revelem o mesmo conteúdo econômico devem ter o mesmo tratamento tributário. Essa postura exegética do direito tributário, sustentada por Enno Becker e acolhida por alguns setores da doutrina em vários países, mas fortemente censurada por outros16, leva a desprezar, na referência feita pela lei tributária a um negócio jurídicoregulado pelo direito privado, a forma jurídica por ele revestida, buscando-se seu conteúdo econômico, de modo que, noutros negócios que revelem igual ou análoga substância econômica, a mesma regra de incidência seja aplicada, mesmo que tais negócios não estejam previstos na lei definidora dessa incidência. Entre nós, Amílcar Falcão, ao sustentar a consideração econômica do direito tributário, exemplificou que a menção feita pelo legislador tributário à compra e venda visa ao conteúdo econômico desse negócio, e não à forma jurídica através da qual o ato se exteriorize, o que ensejaria a aplicação de norma atinente à compra e venda para tributar, por exemplo, uma locação cujo aluguel fosse anormal17. Prevalecia a capacidade contributiva evidenciada na operação e não a correspondência formal dessa operação com o previsto na lei de incidência. 16 Sobre a interpretação econômica no direito comparado, v. A súmula de Johnson Barbosa Nogueira (A interpretação econômica no direito tributário, São Paulo-SP: Resenha Tributária, 1988, p. 32 e seguinte). No Brasil, o mesmo autor refere alguns defensores da interpretação econômica, entre os quais Amílcar Falcão (A interpretação..., cit., p. 42/43). 17 FALCÃO, Amílcar. Introdução ao direito tributário, Rio de Janeiro-RJ: Rio, 1976, p. 85/89. Módulo V 10 Gerd Willi Rothmann defendeu a interpretação econômica como instrumento de aplicação do princípio da igualdade (“hipóteses economicamente iguais devem ser tratadas de forma igual”) e de justiça social, “na forma de uma distribuição uniforme de encargos sociais”18. Johnson Barbosa Nogueira registra múltiplas variantes da doutrina da interpretação econômica: ora se busca a substância econômica, com desprezo da forma jurídica; ora se quer a utilização de conceitos próprios pelo direito tributário, com base em sua alegada autonomia; ora se persegue a identidade de efeitos econômicos; ora se quer combater o abuso de formas do direito privado; ora se aplica a teoria do abuso de direito; ora se fala em mera interpretação teleológica; ora se pretende uma valoração dos fatos; e ora se fala em interpretação do fato, por oposição à interpretação da norma19. Alfredo Augusto Becker insurge-se contra essa doutrina, porque, entre outras razões, ela destrói a certeza é a praticabilidade do direito, negando ao direito tributário exatamente o que ele tem de jurídico20. Para refutar a alegação de que duas situações com igual capacidade contributiva devem ambas ser tributadas, ainda que apenas uma esteja prevista na lei, Becker cita o exemplo dado por Berliri: se instituído um tributo sobre cães, a interpretação econômica levaria a tributar também os gatos, dada a circunstância de, em ambas as situações, demonstrar-se análoga capacidade contributiva21. Invocou-se já, como acima referimos, o art. 109 do CTN para justificar a interpretação econômica do direito tributário brasileiro22. Segundo essa perspectiva exegética, o artigo estaria permitindo que os efeitos tributários dos institutos de direito privado pudessem ser pesquisados pelo intérprete sem ater-se à forma jurídica adotada. 18 O princípio..., cit., p. 173. 19 BARBOSA NOGUEIRA, Johnson. A interpretação..., cit., p. 18/24. 20 Teoria..., cit., p. 117/118. 21 Teoria..., cit., p. 461. 22 LOBO TORRES, Ricardo. Normas de interpretação no direito tributário. Rio de Janeiro-RJ: Forense, 1991, p. 77. Módulo V 11 A nosso ver, a interpretação econômica, além de não encontrar respaldo no referido art. 109 do CTN, choca-se com vários outros preceitos, da Constituição ou do próprio Código, como pretendemos demonstrar a seguir. 1.3.1. A Questão da “Autonomia” do Direito Tributário Não cabem, nos limites deste trabalho, referir as extensas discussões sobre a problemática da “autonomia” do direito tributário. Baleeiro, ao prefaciar livro de Amílcar, disse que essa polêmica causava tédio. Porém, as discussões sérias que se põem nessa temática vão além de preocupações meramente acadêmicas que pudessem ater-se à maior ou menor importância da disciplina no contexto das ciências jurídicas. Há duas ordens de problemas a merecer exame; a primeira respeita à possibilidade de a lei tributária modificar conceitos postos noutros ramos do direito; a segunda, atem-se questão da interpretação, para efeitos tributários, das formas ou conceitos vindos de outras províncias do direito. Vejamos em que medida os arts. 109 e 110 do CTN interessam ao debate da matéria, principiando pelo último dispositivo. 1.3.2. Modificação de Conceitos do Direito Privado Pelo Direito Tributário Diz o art. 110 do Código: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Módulo V 12 Esse preceito está mal posicionado no art. 110, entre as regras de interpretação do direito tributário. Com efeito, o artigo não contempla preceito sobre interpretação; trata-se de comando dirigido ao legislador. Não é ao intérprete, mas sim ao legislador que o dispositivo diz que, em tais ou quais circunstâncias, a lei não pode modificar este ou aquele conceito. A matéria, claramente, é de definição de competência, e, a nosso ver, enquadra-se nas atribuições que a Constituição outorga à lei complementar para regular as chamadas “limitações constitucionais do poder de tributar”, que, em última análise, são normas sobre o exercício da competência tributária. Cuida-se de explicitar, em suma, que o legislador não pode expandir o campo de competência tributária que lhe foi atribuído, mediante o artifício de ampliar a definição, o conteúdo ou o alcance de institutos de direito utilizados para definir aquele campo. Cabe observar que o CTN não disse tudo o que deveria (ou poderia) dizer, pois não são apenas os conceitos de direito privado, mas também os de outros ramos do direito, e os próprios conceitos léxicos que, quando usados para definição da competência tributária, não podem ser ampliados pela lei do tributo23. “A contrario sensu”, conceitos jurídicos ou lexicográficos não utilizados para definir a competência tributária podem ser alterados pela lei tributária. Embora não expressamente dito, a lei que institui tributo pode reduzir, para fins de incidência, o alcance do conceito utilizado para definir a 23 Johnson Barbosa Nogueira também vê o art. 110 como “dispositivo dirigido ao legislador, funcionando não como norma geral de Direito Tributário, mas como regulamentação constitucional de limitação ao Poder de Tributar” (A interpretação..., cit., p. 54). Ricardo Lobo Torres, porém, entende que o art. 110 traça regras de interpretação da Constituição, querendo o dispositivo significar que ela deveria ser “interpretada” de acordo com o sentido privatístico dos conceitos que utilizasse para definir a competência tributária, daí extraindo uma série de questionamentos (Normas..., cit., p. 92).Módulo V 13 competência tributária. O que se lhe veda é ampliar seu campo de competência. Isso nada tem a ver com a delimitação de um menor campo de incidência, mediante redução do alcance de um conceito utilizado par definir o espaço (maior) em que poderia exercer a competência tributária. O art. 110 do CTN, em suma não impede que o legislador tributário modifique como lhe aprouver (com as restrições apontadas) a definição, o conteúdo e o alcance de conceitos jurídico-privados. Para tanto, basta que expresse seu desígnio. O que não está autorizado é que o intérprete ou aplicador da lei modifique a forma ou a substância dos atos ou negócios jurídico-privados para fim de atribuir-lhes as mesmas conseqüências tributárias de outro ato ou negócio, este sim referido pela lei tributária como gerador de obrigação fiscal. 1.3.3. O Art. 109 do CTN Reza, por sua vez, o art. 109 do CTN que “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”. Não nos parece que esse dispositivo esteja a autorizar que o intérprete da lei tributária abandone a formulação jurídico-privada adotada e “reconstrua”, tributariamente, o ato ou negócio praticado, tendo em vista seu conteúdo econômico. O preceito refere-se a situações nas quais a norma tributária utiliza um instituto, um conceito ou uma forma jurídica pertinente ao privado, e, a partir desse enunciado, estatui certos efeitos tributários. Estabelece, por exemplo, que, à vista da realização do negócio jurídico “x” (definido pelo direito privado), haverá a conseqüência de tal ou qual partícipe do negócio tornar-se sujeito passivo de determinado tributo. Módulo V 14 Ao dizer que os princípios do direito privado se aplicam para a pesquisa da definição de institutos desse ramo do direito, o dispositivo, obviamente, não está querendo disciplinar a interpretação, no campo do direito privado, dos institutos desse direito. Isso não é matéria cuja regulação incumba ao direito tributário. Assim, o que o CTN pretende dizer é que os institutos de direito privado devem ter sua definição, seu conteúdo e seu alcance pesquisados com o instrumental técnico fornecido pelo direito privado, não para efeitos privados (o que seria óbvio e não precisaria, nem caberia, ser dito num código tributário), mas sim para efeitos tributários. Ora, em que hipóteses isso se daria? É claro que nas hipóteses em que tais institutos sejam referidos pela lei tributária na definição de pressupostos de fato de aplicação de normas tributárias, pois – a conclusão é acaciana – somente em tais situações é que interessa ao direito tributário a pesquisa de institutos de direito privado. Em suma, o instituto de direito privado é “importado” pelo direito tributário com a mesma conformação e o mesmo conteúdo que lhe dá o direito privado, sem deformações, nem transfigurações. A compra e venda, a locação, a prestação de serviço, a doação, a sociedade, a fusão de sociedades, o sócio, o gerente, a sucessão “causa mortis”, o herdeiro, o legatário, o meeiro, o pai, o filho, o interdito, o empregador, o empregado, o salário, etc., etc. – tem conceitos postos no direito privado, que ingressam na cidadela do direito tributário sem mudar de roupa e sem outro passaporte que não o preceito da lei tributária que os “importou”. Como assinala Becker, com apoio em Emílio Betti e Luigi Vittotio Berlini, o direito forma um único sistema, onde os conceitos jurídicos têm o mesmo significado, salvo se a lei tiver expressamente alterado tais conceitos, para efeito de certo setor do direito; assim, exemplifica Becker, não há um “marido” ou uma “hipoteca” no direito tributário diferentes do “marido” e da “hipoteca” no direito civil24. 24 BECKER, Alfredo Augusto. “Teoria..., cit., p. 110. Módulo V 15 A identidade do instituto, no direito privado e no direito tributário, dá-se sempre que o direito tributário não queira modificá-lo para fins fiscais, bastando, para que haja essa identidade, que ele se reporte ao instituto sem ressalvas. Se, porém, o direito tributário quiser determinar alguma modificação, urge que o diga de modo expresso. A lei que institui tributo sofre algumas limitações quanto a essa regra que lhe permite modificar conceitos de direito privado, matéria que examinamos ao tratar do art. 110 do CTN. Inexistindo modificação do instituto de direito privado pela lei tributária, ele ingressa, pois, no campo fiscal com a mesma vestimenta que possuía no território de origem. A locação de coisas continua sendo locação de coisas, sem transformar-se em compra e venda ou em prestação de serviços; sócio continua sendo sócio, sem transfigurar-se em administrador; doação permanece como tal, sem travestir-se de compra e venda, etc. Só quando o queira é que a lei tributária era, de modo expresso, modificar esses institutos ou conceitos (para fins tributários, obviamente). Posto isso, há uma segunda questão: “importado” o instituto de direito privado (com ou sem alterações determinadas pela lei tributária), como se dará a definição dos respectivos efeitos jurídico-tributários? Vale dizer, qual é o efeito tributário decorrente da realização, por exemplo, de uma compra e venda imobiliária? Diz o art. 109, em sua parte final, que os efeitos tributários desse negócio jurídico não deverão ser pesquisados com o emprego de “princípios gerais de direito privado”. O que se dá é que, no direito privado (ou, às vezes, em determinado setor do direito privado), atuam certos princípios, ora visando proteção de uma das partes no negócio, ora fazendo atuar certa presunção, ora indicando critério de interpretação, ora cominando pena de nulidade, ou ensejando anulabilidade; o setor do direito do trabalho é rico de preceitos intuitivos, informados pelo princípio que protege o hipossuficiente e que direciona os Módulo V 16 efeitos das relações trabalhistas. Ora, no direito tributário, não são invocáveis tais princípios para efeito de regular a relação jurídico-tributária entre o fisco e o partícipe da relação privada que seja eleito como sujeito passivo pela lei tributária. Não obstante tais princípios comandem a definição dos efeitos jurídicos privados, as conseqüências tributárias (efeitos jurídicos tributários) são determinadas sem submissão àqueles princípios. Assim, por exemplo, se alguém é o aderente, num contrato de massa, e desfruta, por isso, de uma posição legalmente privilegiada no plano do direito privado, nem por isso goza de qualquer vantagem perante o Fisco, no que respeita à definição dos efeitos tributários oriundos daquele negócio; do mesmo modo, o empregado, hipossuficiente na relação trabalhista, não pode invocar essa condição na relação tributária cujo pólo passivo venha a ocupar. A definição dos efeitos tributários oriundos daquelas situações faz-se com abstração de considerações privatísticas, cuja aplicação se esgota na definição da categoria jurídica de direito privado, não obstante ela seja “importada” pelo direito tributário e venha a irradiar, neste setor, outros efeitos, além dos que possa ter produzido na sua província de origem. O art. 109 do CTN, portanto, estatui que, depois de caracterizado um ato ou negócio jurídico de direito privado (com o empregodos princípios de direito privado-segundo próprio dispositivo determina, imperativamente), devem ser definidos os efeitos tributários desse ato ou negócio, mas: a) nem está dito que os atos ou negócio jurídico-privados devam ser redefinidos, transformados ou “reconteudificados” por princípios ou sortilégios fiscais; b) nem se indicam quais “princípio” ou “intrumentos” tributários devam ser utilizados para essa transformação ou transubstanciação de atos ou negócios jurídico-privados; c) muito menos se diz que os atos ou negócios em questão devam ser avaliados apenas pelo seu conteúdo econômico, com abstração da forma e da substância jurídica que lhes deu o direito privado e que o próprio CTN insiste Módulo V 17 em invocar para a determinação da contextura formal e substancial desses atos ou negócios. Em suma, o art. 109 do CTN reconhece que os institutos de direito privado (quando referidos pela lei tributária, obviamente) não se modificam, isto é, eles devem ter seus contornos determinados de acordo com os princípios de direito privado. Sua definição, conteúdo e alcance – insistia-se - são pesquisados de acordo com os princípios de direito privado. Por isso, uma compra e venda, quando mencionada em lei tributária, é identificada como compra e venda de acordo com os princípios de direito privado; em suma, continua sendo compra e venda também para o direito tributário; e o que não é compra e venda, não passa a sê-lo no campo fiscal. Seria total dislate supor que o dispositivo estivesse obrigando o intérprete da lei tributária a utilizar os princípios do direito privado para pesquisar a definição, o conteúdo e o alcance de certo instituto de direito privado apenas para, concluído esse trabalho, atirá-lo ao lixo. A pesquisa imposta pelo preceito legal, como tarefa do intérprete tributário, seria inútil, se, para apreender os efeitos tributários, o intérprete devesse buscar outra definição, outro conteúdo e outro alcance da compra e venda, que não fossem os que tivessem pesquisado no direito privado, mas sim aqueles que, à vista da manifestação de capacidade contributiva, devessem ser “economicamente” considerados como compra e venda. A identificação do instituto do direito privado deve ser feita à vista dos princípios de direito privado e é assim configurado no seu setor de origem que o instituto adentra o direito tributário. Obviamente, os efeitos tributários, por exemplo, da compra e venda serão determinados pelo direito tributário, e não pelo direito privado. Módulo V 18 Não se nega ao direito tributário a prerrogativa de dar efeitos iguais para outros institutos de direito privado (por exemplo, pode a lei dar, para fins tributários, à doação, ao aporte na integralização de capital, etc., os efeitos da compra e venda). Mas é a lei tributária que (se quiser, e na medida em que puder) deve dá-los. Nunca o intérprete. O intérprete ou o aplicador da lei tributária não tem autoridade nem para transfigurar o instituto de direito privado, nem para substitui-lo por outro, a pretexto de que este produza maiores ou menores efeitos fiscais, o problema é o mesmo. Assim, por exemplo, se a incidência fiscal é menos onerosa na alienação do que na doação ou na transmissão “mortis causa”, o fisco não pode, diante da venda de imóveis pelo pai ao próprio filho, alegar que, para efeitos tributários, a operação deve ser considerada como doação, sob o pretexto de que o pai é idoso e enfermo, e o filho é herdeiro necessário do preço de venda. Nem pode a fiscalização do imposto de renda, caso o pai doe o imóvel ao filho, que, posteriormente, venha a aliená-lo, alegar que o pai é que vendeu o imóvel, doando o produto da venda ao filho (situação que, fiscalmente, seria mais onerosa, sob o ângulo da legislação do imposto de renda), alegando que, economicamente, as duas situações se eqüivalham. Inversamente, também não pode o indivíduo que tenha vendido imóvel ao filho pretender a não incidência do imposto sobre o ganho de capital apurado, sob o argumento de que, sendo o filho herdeiro necessário, a operação deveria, fiscalmente necessário, a operação deveria, fiscalmente, ter o tratamento de uma sucessão “causa mortis”, na qual inexistiria a incidência daquele tributo. Destarte, a consideração do conteúdo econômico subjacente não permite transfigurar o negócio jurídico privado. Caso contrário, seria letra morta a solene afirmação contida no comentado art. 109 do CTN, em sua primeira Módulo V 19 parte, já que o intérprete, embora obrigado a pesquisa, que, nessa perspectiva, teria sido feita por mero deleite. A compra e venda, a locação, o comodato, dentre inúmeros outros institutos, escriturados no direito privado e recepcionados pelo direito tributário, devem ser valorados tal quais foram estruturados no direito privado, não podendo ser interpretados, para efeitos tributários, com abstração da roupagem jurídico-formal que os reveste, e com a atenção desviada para os aspectos econômicos subjacentes ao negócio jurídico-formal que as partes utilizaram. Não há razão para supor que o legislador tributário, quando mencione, por exemplo, o negócio de compra e venda de imóvel, ignore a existência da promessa de compra e venda, da cessão de direitos de promitente comprador, da locação, do comodato, etc. Se ele quiser atingir também algum desses outros negócios jurídicos, basta que (respeitados os limites de sua competência) o faça expressamente, seguindo, aliás, o exemplo da própria Constituição, que, ao estatuir a competência tributária sobre a transmissão de imóveis, refere expressamente a cessão de direitos à sua aquisição. Aliás, essa é a prática de nosso legislador ordinário do imposto de renda, quando prevê a tributação do ganho de capital na venda de bens e na realização de outros contratos que tem o mesmo conteúdo econômico. Mas esses outros contratos são atingidos não por terem igual conteúdo econômico, e sim porque a lei lhes conferiu igual tratamento jurídico. Ademais, se o intérprete pudesse pesquisar o conteúdo econômico deste ou daquele negócio, para, à vista de sua similitude com o conteúdo econômico de outro negócio, estender para o primeiro a regra de incidência do segundo, o fato gerador do tributo deixaria de corresponder à previsão abstrata posta na lei (princípio da reserva de lei); o campo estaria aberto para a criação de tributo por analogia (já que a “razão econômica” seria a mesma nas duas hipóteses), assim como para a aplicação de isenção por analogia (sempre a Módulo V 20 pretexto de que, onde o conteúdo econômico fosse o mesmo, a norma a aplicar seria também a mesma). A interpretação do art. 109 do CTN não pode fazer-se contra a própria letra do dispositivo e com sacrifício do princípio da legalidade, do princípio da segurança certeza do direito aplicável, e, ainda, em contradição com os preceitos do próprio Código, que proclamam (como desdobramentos daqueles princípios) a vedação da tributação e da isenção por analogia. Ora, tributar a situação “B”, a pretexto de que ela revela a mesma capacidade contributiva de “A”, é tributar por analogia, o que é expressamente proibido pelo art. 108, § 1º do CTN. Se o legislador quiser atingir ambas as situações, repita-se, basta fazê-lo de modo expresso25.1.3.4. Igualdade e Capacidade Contributiva Também a invocação do princípio da igualdade e da capacidade contributiva não ampara a consideração econômica. Não se pretenda que a lei instituidora de imposto de transmissão sobre a venda de uma casa deva aplicar também na venda não mercantil de certos bens móveis extremamente valiosos, sob o pretexto de que a operação poderá estar revelando igual ou maior capacidade contributiva. Com efeito, o princípio da igualdade (associado ao da capacidade contributiva) não é ferido quando se veda a tributação (ou a isenção) por analogia. É outra a discussão que se põe: se, entre os fatos “A” e “B”, existir razão legítima para tratamento diferenciado, não há porque equipará-los, por meio de construção exegética; e, por outro lado, se inexistir razão legítima de discrímen, e a lei só tiver tributado o fato “A”, o contribuinte (na situação “A”) é que pode invocar a igualdade para receber tratamento isonômico com o 25 A vedação da tributação por analogia conjuga-se com a proibição de dispensa de tributo por eqüidade e com a interpretação estrita (“literal”, diz, com infelicidade, o CTN) das isenções, que são meros desdobramentos do princípio da reserva legal. Módulo V 21 indivíduo que esteja na situação “B”. Não é o Estado que terá a prerrogativa de invocar a igualdade para (sem lei) tributar também o fato “B”. A mesma ordem de idéias vale para a isenção. Não se esqueça de que o princípio da igualdade é preceito constitucional de proteção do indivíduo, posto entre as limitações do poder de tributar. Não se trata de direito do Estado e sim de direito do indivíduo.
Compartilhar