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1.3 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS PENAIS E CONSTITUCIONAIS 1.3.1 Princípio da verdade real O princípio da verdade real, também conhecido como princípio da verdade material ou da verdade substancial (terminologia empregada no art. 566 do CPP), significa que, no processo penal, o juiz possui o dever de apurar os fatos com o intuito de descobrir como estes efetivamente ocorreram, de forma a permitir que o jus puniendi seja exercido em relação àquele que praticou ou concorreu para a infração penal e somente contra essa pessoa. Visando a concretizar esse princípio no âmbito do CPP, facultou o legislador ao magistrado, em vários dispositivos, a determinação ex officio das diligências que reputar necessárias para o esclarecimento dos fatos (v.g., arts. 196, 209, 234, 242 etc.). Isto ocorre porque, na esfera penal, a investigação dos fatos trilha caminho bem diverso daquele seguido na esfera civil, em que, vigorando o princípio da verdade formal, deve contentar-se o juiz com o resultado das manifestações formuladas pelas partes, circunscrevendo-se aos fatos por elas debatidos e às provas que tenham produzido. Não obstante, é necessário ter em vista que a procura da verdade real não pode implicar violação de direitos e garantias estabelecidos na legislação. Trata-se, enfim, de uma busca sujeita a limites, mesmo porque não seria razoável que o Estado, para alcançar a Justiça, pudesse sobrepor-se à Constituição e às leis. Destarte, são exemplos de exceções à verdade real a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (art. 5.º, LVI, da CF); o descabimento da revisão criminal contra sentença absolutória transitada em julgado, mesmo diante do surgimento de novas provas contra o réu (art. 621, I, II e III); a vedação ao testemunho de pessoas que tiverem conhecimento do fato em razão de sua profissão, função, ofício ou ministério, salvo se, desobrigadas, quiserem depor (art. 207 do CPP); e a possibilidade de transação penal na hipótese de infração de menor potencial ofensivo, aplicando-se ao autor do fato sanção não privativa da liberdade independentemente da apuração de sua efetiva responsabilidade criminal (arts. 72 e 76 da Lei 9.099/1995). 1.3.2 Princípio ne procedat judex ex officio ou da iniciativa das partes Ne procedat judex ex officio consubstancia o princípio pelo qual o processo penal só pode ser instaurado por meio da iniciativa das partes. Importa dizer que o juiz não poderá iniciar o processo criminal sem que haja provocação do legitimado – o Ministério Público, nos crimes de ação penal pública; o ofendido, nos crimes de ação penal privada (exclusiva ou subsidiária). No âmbito do processo civil, este postulado é conhecido como princípio dispositivo. 1.3.3 Princípio do devido processo legal O devido processo legal, originado da cláusula do due process of law do Direito Anglo-Americano, está consagrado na Constituição Federal no art. 5.º, LIV, estabelecendo que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem que haja um processo prévio, no qual são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Deste princípio decorre para o acusado uma série de direitos, como o de ser ouvido pessoalmente perante o juiz a fim de narrar sua versão dos fatos, de acesso à defesa patrocinada por profissional com capacitação técnica, de motivação das decisões judiciais, de produção probatória, de não ser obrigado à autoincriminação, de ser ouvido pessoalmente perante o juiz a fim de narrar sua versão dos fatos, do duplo grau de jurisdição, de revisão criminal das decisões condenatórias, de observância do rito processual estabelecido por lei para a hipótese concreta etc. O princípio, como se vê, possui abrangência ampla, sendo esta a razão pela qual tem sido utilizado com frequência pelos tribunais visando à nulificação de atos processuais. Entre as hipóteses mais frequentes nas quais se reconhece a sua infringência estão a denúncia ou queixa sem os requisitos do art. 41 do CPP, o recebimento da inicial acusatória pelo juiz sem que haja prova da materialidade do crime, a inobservância do rito processual, o interrogatório do réu sem a presença de defensor, o processo conduzido por juiz suspeito, a ausência de notificação para a prática de atos processuais, a ocorrência de mutatio libelli sem a aplicação prévia das regras do art. 384 do CPP e o decreto de prisão preventiva sem o exame da possibilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão. 1.3.4 Vedação à utilização de provas ilícitas As provas obtidas por meios ilícitos não poderão, em regra, ser utilizadas no processo criminal como fator de convicção do Juiz. Trata-se, enfim, de uma limitação de índole constitucional (art. 5.º, LIV, da CF) e legal (art. 157 do CPP) ao sistema do livre convencimento estabelecido no art. 155 do CPP, segundo o qual o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial. A despeito da vedação constitucionalmente determinada, a doutrina e a jurisprudência majoritárias desde muito tempo vêm considerando possível a utilização das provas ilícitas em favor do réu, quando se trate da única forma de absolvê-lo ou, então, de comprovar um fato importante à sua defesa. Aplica, para tanto, o princípio da proporcionalidade, o qual, partindo da consideração de que “nenhum direito reconhecido na Constituição pode revestir-se de caráter absoluto”,8 possibilita que se analise, na hipótese de colisão de direitos fundamentais, qual deve, efetivamente, ser protegido pelo Estado. Destarte, sob a ótica dos interesses do acusado, imagine-se a hipótese em que, por meio de uma interceptação telefônica realizada sem ordem judicial, venha a ser descoberta a única prova capaz de inocentar o imputado da acusação que lhe foi feita. Neste caso, de um lado há a garantia constitucional da intimidade, violada com a interceptação realizada à revelia dos critérios legais, e, de outro, a garantia constitucional à liberdade, que restaria afrontada com uma condenação injusta. Ora, sopesando-se uma e outra, há a óbvia prevalência da liberdade sobre a intimidade. Afinal, entre a postura de utilizar a prova ilícita e evitar uma condenação injusta e a de não utilizar essa prova e condenar um inocente, é evidente que se deve optar pela primeira solução. E quando a prova ilicitamente obtida ensejar a condenação do réu? Nesta hipótese, é majoritário o entendimento de que tal prova não pode ser utilizada pelo juiz como fator de convencimento. Independentemente desta orientação, há decisões compreendendo que, em se tratando de crimes graves que provoquem intenso mal coletivo (v.g., tráfico de drogas, desvios de verbas públicas, delitos que envolvam corrupção no âmbito dos Poderes Públicos etc.), pode o magistrado utilizar a prova ilícita, desde que não haja, obviamente, outros elementos válidos em que possa se apoiar. No STJ, por exemplo, decidiu-se que não há olvidar que os direitos e garantias fundamentais, por possuírem característica essencial, não podem servir de esteio para impunidade de condutas ilícitas, razão pela qual compete aos operadores do direito, no exercício das atribuições e/ou competência conferida, o dever de consagrar em cada ato processual os princípios basilares que permitem a conclusão justa e legítima de um processo, ainda que para condenar o réu.9 1.3.5 Princípio da presunção de inocência ou de não culpabilidade ou estado de inocência Também chamado de princípio do estado de inocência, trata-se de um desdobramento do princípio do devido processo legal, consagrando-se como um dos mais importantes alicercesdo Estado de Direito. Visando, primordialmente, à tutela da liberdade pessoal, decorre da regra inscrita no art. 5.º, LVII, da Constituição Federal, preconizando que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Na medida em que a Constituição Federal dispõe, expressamente, acerca do princípio em análise, está o ordenamento jurídico infraconstitucional obrigado a torná-lo efetivo. Em razão disso, discussões emergem na doutrina e na jurisprudência sobre a constitucionalidade de certas previsões determinadas pela legislação infraconstitucional. Destacam-se, por exemplo: a) Na dosimetria da pena podem ser considerados registros criminais pertinentes a processos a que responde o acusado sem trânsito em julgado de decisão condenatória? A jurisprudência dos Tribunais Superiores é amplamente majoritária no sentido de que tais referências não podem ser valoradas contra o acusado, em homenagem ao princípio da presunção de inocência. Em razão disso, na esteira da Súmula 444 do STJ, tem-se decidido que os maus antecedentes referentes a inquéritos e processos em andamento, quando utilizados para a exacerbação da pena- base e do regime prisional, violam o princípio constitucional da presunção de inocência. Por maus antecedentes criminais, em virtude do que dispõe o art. 5.º, inciso LVII, da Constituição de República, deve-se entender a condenação transitada em julgado, excluída aquela que configura reincidência.10-11 b) Pode o juiz determinar o recolhimento do réu condenado à prisão, para execução provisória da pena privativa da liberdade, se não houve a decretação de sua prisão preventiva? Na atualidade, é consolidado o entendimento no sentido de que é inconstitucional a execução provisória da pena, salvo por motivo de prisão preventiva decretada ou mantida após a condenação. Isto, na prática, importa em conferir efeito suspensivo indireto a todo e qualquer recurso interposto com o fim de reformar sentença condenatória, inclusive aqueles em relação aos quais a lei for expressa no sentido de que não possuem esse efeito, como é o caso dos recursos extraordinário e especial (art. 27, § 2.º, da Lei 8.038/1990).12 1.3.6 Princípio da obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais A exigência de motivação das decisões judiciais, inscrita no art. 93, IX, da Constituição Federal e no art. 381 do Código de Processo Penal, é atributo que possibilita às partes a impugnação das decisões tomadas no âmbito do Poder Judiciário, conferindo, ainda, à sociedade a garantia de que essas deliberações não resultam de posturas arbitrárias, mas, sim, de um julgamento imparcial, realizado de acordo com a lei. Não há óbice a que se utilizem juízes e tribunais de fundamentação per relationem, isto é, aquela que se caracteriza pela remissão que o ato judicial expressamente faz a outras manifestações ou peças processuais existentes nos autos, mesmo as produzidas pelas partes, pelo Ministério Público ou por autoridades públicas, cujo teor indique os fundamentos de fato e/ou de direito que justifiquem a decisão emanada do Poder Judiciário.13 A adoção dessa técnica de motivação exige que a manifestação a que é feita remissão contenha a fundamentação adequada à natureza da sentença ou do acórdão que a adotou como razão de decidir. Sobre o tema, em reiteradas decisões considerou o STF legítima e plenamente compatível a motivação per relationem com a exigência imposta pelo art. 93, inciso IX, da Constituição da República. Semelhante entendimento é agasalhado no STJ.14 Relativamente à sentença condenatória, a fundamentação não pode ser genérica, vale dizer, com alusão vaga à prova dos autos, dizendo o juiz, por exemplo, que “a prova obtida na fase instrutória afasta a tese da legítima defesa, pois as testemunhas de acusação sustentaram que o ofendido já se retirava do local quando foi lesionado pelo réu”. Sentença nestes termos é nula. É necessário, enfim, que o magistrado explicite cada um dos elementos utilizados para formação de seu convencimento. Observe-se que esse rigor na fundamentação da sentença condenatória não existe apenas em relação ao mérito das teses trazidas pelas partes, mas também ocorre no tocante às etapas do cálculo da pena. Em outras palavras, ao fazer a individualização da reprimenda, incumbe ao julgador examinar com acuidade os elementos que dizem respeito ao fato, obedecidos e sopesados todos os critérios estabelecidos no art. 59 do Código Penal, para aplicar, de forma justa e fundamentada, a cominação que seja, proporcionalmente, necessária e suficiente para reprovação do crime.15 Idêntico formalismo é exigido, mutatis mutandis, relativamente à sentença absolutória, salvo, logicamente, se se fundamentar no art. 386, VII, do CPP, que se refere à absolvição por insuficiência de provas para a condenação, caso em que os elementos aportados ao processo podem ser apreciados de forma conjunta, sem prejuízo da necessidade de o magistrado explicitar as conclusões que extraiu a partir do contexto geral. Outra ordem de manifestação judicial que exige motivação idônea refere- se ao decreto da prisão preventiva. Tratando-se de medida excepcional, cabível somente quando não for possível a sua substituição por outra medida cautelar diversa da prisão (art. 282, § 6.º, do CPP) e desde que atendidos os seus requisitos legais (arts. 311, 312 e 313 do CPP), exige que sejam indicados os elementos concretos que demonstrem a sua efetiva necessidade visando à garantia da ordem pública ou econômica, à conveniência da instrução criminal e à segurança da aplicação da lei penal, sob pena de assumir contornos de antecipação de pena, o que viola o princípio constitucional da presunção de inocência. Sem embargo de tudo isso, é necessário ressaltar que o princípio da obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais não é absoluto, existindo determinadas situações em que resta mitigado, como é o caso do recebimento da denúncia e da queixa. A respeito, inúmeros julgamentos do STF têm considerado que não se exige que o ato de recebimento da denúncia seja fundamentado. Considera-se, para tanto, que o ato judicial que formaliza o recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público não se qualifica nem se equipara, para os fins a que se refere o art. 93, inciso IX, da Constituição, a ato de caráter decisório, razão pela qual não reclama a motivação como condicionante de sua validade.16 1.3.7 Princípio da publicidade O princípio da publicidade traduz o dever do Estado de atribuir transparência aos atos que praticar, bem como fornecer todas as informações que lhe forem solicitadas. Tal princípio reforça as garantias da independência, imparcialidade e responsabilidade do juiz. De um modo geral, são instrumentos constitucionais utilizados para assegurar o recebimento de informações o habeas data (art. 5.º, LXXII, da Constituição Federal) e o Mandado de Segurança, individual ou coletivo (art. 5.º, LXIX e LXX, da Constituição Federal). A publicidade, como regra geral, norteia a atuação estatal, encontrando-se presente em diversos atos e momentos como, por exemplo, na concessão de certidões, na vista dos autos, na contagem de determinados prazos prescricionais (a publicação da sentença condenatória interrompe a prescrição) etc. Não obstante, no âmbito processual penal a publicidade comporta algumas exceções, o que faz inferir não ser absoluto o princípio. Trata-se da chamada publicidade restrita, segundo a qual determinados atos serão públicos apenas para as partes, seus procuradores e um número reduzido de indivíduos. Tal restriçãoestá fundamentada em vários dispositivos, a exemplo: • Art. 5.º, LX, da CF, preconiza que “a lei poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”; • Art. 93, IX, da CF, dispõe que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”; • Art. 201, § 6.º, do CPP, dispõe que o juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação; • Art. 485, § 2.º, do CPP, prevê que o juiz não permitirá que os acusadores ou os defensores perturbem a livre manifestação do conselho e fará retirar da sala aquele que se portar inconvenientemente; • Art. 792, § 1.º, do CPP, reza que se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes; • Art. 1.º da Lei 9.296/1996, estabelece que a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça; • Art. 234-B do Código Penal, alterado pela Lei 12.015/2009, introduz o segredo de justiça na tramitação dos processos por crimes contra a dignidade sexual. 1.3.8 Princípio da imparcialidade do juiz O magistrado, situando-se no vértice da relação processual triangulada entre ele, a acusação e a defesa, deve possuir capacidade objetiva e subjetiva para solucionar a demanda, vale dizer, julgar de forma absolutamente neutra, vinculando-se, ao proferir sua decisão, apenas às regras legais e ao resultado da análise das provas do processo. Aí está o princípio da imparcialidade do juiz. Visando a garantir essa imparcialidade, a Constituição Federal estabelece ao magistrado as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios (art. 95), proibindo, ainda, juízo ou tribunais de exceção (art. 5.º, XXXVII). Em determinados casos, a lei presume a parcialidade do magistrado, impondo-lhe que se afaste da causa. Tal ocorre nas situações de impedimento e suspeição. As causas de impedimento, também consideradas como ensejadoras da incapacidade objetiva do juiz, encontram-se arroladas no art. 252 do Código de Processo Penal. Trata-se de situações específicas e determinadas, que impõem a presunção absoluta (jure et jure) de parcialidade. Já as causas de suspeição, rotuladas também como motivos de incapacidade subjetiva do juiz, estão previstas no art. 254 do Código de Processo Penal. Tanto o impedimento como a suspeição devem ser reconhecidos ex officio pelo juiz, afastando-se ele voluntariamente de oficiar no processo e encaminhando-o ao seu substituto legal. Não o fazendo, o impedimento e a suspeição poderão ser arguidos por qualquer das partes (arts. 112 e 254 do CPP). 1.3.9 Princípio da isonomia processual As partes, em juízo, devem contar com as mesmas oportunidades e ser tratadas de forma igualitária. Tal princípio constitui-se desdobramento da garantia constitucional assegurada no art. 5.º, caput, da Constituição Federal, ao dispor que todas as pessoas serão iguais perante a lei em direitos e obrigações. Não obstante o sistema constitucional vigente ser proibitivo de discriminações, em determinadas hipóteses flexibiliza-se o princípio da igualdade. É o caso do princípio favor rei, segundo o qual o interesse do acusado tem prevalência sobre a pretensão punitiva estatal, que se encontra cristalizado em vários dispositivos do Código de Processo Penal, como, por exemplo, no art. 386, VII, estatuindo a absolvição do réu por insuficiência de provas, e no art. 621, inserindo a possibilidade de o condenado promover revisão criminal dos processos findos quando condenatória a decisão, possibilidade esta inexistente para acusação em relação ao decisum absolutório (revisão pro societate, vedada em nosso ordenamento). E quanto às hipóteses de foro privilegiado, em que o foro especial por prerrogativa de função estabelece, aparentemente, vantagens ao acusado? Segundo a maioria doutrinária, apesar de parecer, à primeira vista, que tal estabelecimento confere condições mais favoráveis a determinados agentes em prol de outros, ferindo, assim, o princípio da igualdade, em verdade isto não ocorre porque a finalidade da Constituição Federal, ao disciplinar o privilégio de foro, não é proteger determinados indivíduos, mas sim a função pública ou o cargo ocupado por estes. Gize-se, entretanto, a existência de posição contrária, compreendendo que o foro privilegiado importa em desigualdade processual, devendo, portanto, ser extinto. Considera-se, nesse caso, que, mesmo que a função ou o cargo tenham sido os destinatários do legislador no estabelecimento do foro privilegiado, o indivíduo que os exerce acaba por se beneficiar pessoalmente, ainda que o seja de modo reflexo. 1.3.10 Princípio do contraditório O princípio do contraditório apresenta-se como um dos mais importantes postulados no sistema acusatório. Trata-se do direito assegurado às partes de serem cientificadas de todos os atos e fatos havidos no curso do processo, podendo manifestar-se a respeito e produzir as provas necessárias antes de ser proferida a decisão jurisdicional. Sob a ótica do réu, guarda este princípio estreita relação com a garantia da ampla defesa. Não é por outra razão que ambos são assegurados no mesmo dispositivo constitucional, qual seja o art. 5.º, LV, dispondo que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Entretanto, comparadas essas duas garantias, o contraditório possui maior abrangência do que a ampla defesa, visto que alcança não apenas o polo defensivo, mas também o lado acusatório, na medida em que a este também deva ser dada ciência e oportunidade de contrariar os atos praticados pela parte ex adversa. Esta dupla face do contraditório, aliás, é verificada em vários dispositivos do Código de Processo Penal, podendo ser citados, como exemplo, o art. 409, ao dispor que, no procedimento do júri, apresentada a defesa, o juiz ouvirá o Ministério Público ou o querelante sobre preliminares e documentos, em cinco dias; e o art. 479, estabelecendo, sem distinção entre acusação e defesa, que durante o julgamento (pelo júri) não será permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias úteis, dando-se ciência à outra parte. Independentemente dessa natureza constitucional do contraditório, este princípio, assim como outros já examinados, é mitigado em determinados casos. Trata-se de situações nas quais ocorre o chamado contraditório diferido ou postergado, que consiste em relegar a momento posterior a ciência e a impugnaçãodo investigado ou do acusado quanto a determinados pronunciamentos judiciais. Em tais casos, a urgência da medida ou a sua natureza exige um provimento imediato e inaudita altera pars, sob pena de prejuízo ao processo ou, no mínimo, de ineficácia da determinação judicial. Exemplos: a) A decretação da prisão preventiva do réu é decisão que pode ser exarada pelo juiz à vista da demonstração quanto à existência de indícios suficientes de autoria, de prova da materialidade do fato e dos pressupostos do art. 312 do CPP. Nessa hipótese, a intimação da defesa deve ocorrer a posteriori, não se facultando manifestação sobre o pedido de segregação provisória inserido na representação do delegado ou no requerimento dos legitimados do art. 31117 antes do pronunciamento judicial. Isto ocorre porque o art. 282, § 3.º, do CPP (incluído pela Lei 12.403/2011), conquanto estabeleça a necessidade de que seja instaurado o contraditório previamente à determinação de medidas cautelares, ressalva desta providência os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida.18 b) Na interceptação das comunicações telefônicas (Lei 9.296/1996), por motivos óbvios, não há ciência prévia ao investigado, ao réu ou ao seu defensor. Destarte, depois de realizado o procedimento, é que, cientificada a defesa, esta poderá questionar a legalidade da medida. Há contraditório no inquérito policial? Em regra não, pois se trata de procedimento inquisitorial, destinado à produção de provas que sustentem o ajuizamento de ação criminal. Como exceção cabe citar o procedimento instaurado pela Polícia Federal, por determinação do Ministro da Justiça, visando à expulsão de estrangeiro, conforme previsão inserida ao art. 70 da Lei 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro) combinado com os arts. 102 a 105 do Decreto 86.715/1981 (Regulamento do Estatuto do Estrangeiro). 1.3.11 Princípio da ampla defesa Consagrada no art. 5.º, LV, da Constituição Federal, a ampla defesa traduz o dever que assiste ao Estado de facultar ao acusado a mais completa defesa quanto à imputação que lhe foi realizada. Este princípio guarda relação com o direito ao contraditório, segundo o qual ninguém pode ser condenado sem antes ter a oportunidade de ser ouvido quanto aos fatos imputados. Desta garantia inserta ao texto constitucional, outras decorrem e estão previstas na própria Carta Magna, como o dever estatal de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados (art. 5.º, LXXIV), ou na legislação infraconstitucional, como a ordem estabelecida para a prática dos atos processuais, garantindo-se à defesa manifestar-se sempre após a acusação (v.g., arts. 402, 403 e 534, todos do CPP). Observe-se, contudo, que a garantia da ampla defesa não significa que esteja o acusado imune às consequências processuais decorrentes da ausência injustificada a audiências, do descumprimento de prazos ou do desatendimento de formas processuais. Na verdade, é necessário verificar caso a caso. Por exemplo, se não observada pelo defensor do réu a regra do art. 479, que contempla o prazo para que sejam acostados aos autos documentos ou objetos que pretenda exibir em sessão de julgamento pelo júri, a consequência será a proibição dessa utilização; se não comparecer o defensor à audiência de instrução sem motivo justificado, outro poderá ser nomeado para acompanhar a solenidade (art. 265, § 2.º); se, ingressado por termo nos autos, recurso cuja interposição exige a formalidade da petição escrita (v.g., recurso especial, recurso extraordinário etc.), muito provavelmente não será a insurgência recebida ou conhecida pelo juízo competente. Em tais hipóteses, portanto, verifica-se que a ampla defesa não socorre o acusado para o fim de isentá-lo das consequências advindas de sua inércia ou de seu advogado. 1.3.12 Princípio do duplo grau de jurisdição O princípio do duplo grau de jurisdição, que se concretiza mediante a interposição de recursos, decorre da necessidade de possibilitar a determinados órgãos do Poder Judiciário a revisão de decisões proferidas por juízes ou tribunais sujeitos à sua jurisdição. Embora inexista previsão expressa deste princípio em seu texto, a Constituição Federal incorpora-o de forma implícita, ao estabelecer, por exemplo, as regras de competência dos órgãos do Poder Judiciário (v.g., arts. 102, II e III, e 105, II e III). Sem embargo, existem determinadas situações que ressalvam a regra geral do duplo grau. É o caso da denegação da suspensão do processo em razão de questão prejudicial (art. 93, § 2.º, do CPP), da admissão ou inadmissão do assistente de acusação (art. 273 do CPP), da improcedência das exceções de incompetência, litispendência, coisa julgada e ilegitimidade de parte (contrario sensu ao art. 581, III, do CPP) e, no âmbito do STF, das decisões acerca da inexistência de repercussão geral dos temas constitucionais abordados em sede de recurso extraordinário, que, conforme se infere dos arts. 102, § 3.º, da CF; 543-A, caput, do CPC/1973 (art. 1.035, caput, do CPC/2015) e 326 do Regimento Interno do STF, são irrecorríveis. O caput do art. 543-A do CPC/1973 corresponde ao caput do art. 1035 do CPC/2015, que assim dispõe: “O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.” 1.3.13 Princípio do Juiz natural Surge da previsão inscrita ao art. 5.º, LIII, da Constituição Federal, dispondo que ninguém será processado e sentenciado senão pelo juiz competente. Com esta disciplina, não visou o legislador constituinte simplesmente assegurar a observância das regras que disciplinam as competências ratione materiae, ratione personae e ratione loci. Pretendeu, também, garantir a todos os indivíduos o direito de serem submetidos a processo e julgamento apenas por órgão do Poder Judiciário, regularmente investido, imparcial e, sobretudo, previamente conhecido segundo regras objetivas de competência estabelecidas anteriormente à prática da infração penal. Veda-se, então, a criação de tribunais ou juízos de exceção (o que não se confunde com jurisdições especializadas, que constituem simples desdobramento da atividade jurisdicional), assim como a designação de magistrado para atuar, especificamente, em um determinado caso, em razão, por exemplo, da importância da pessoa que ocupa o polo passivo da relação processual penal. Ilustre-se: Exemplos de situações em que se considera violado o princípio do juiz natural: a) Processo e julgamento pela Justiça Comum de crime sujeito à competência da Justiça Militar.19 A violação às regras de competência acarreta, nesse caso, natural e lógica ofensa ao princípio do juiz natural. b) Processo e julgamento, por juiz de direito, de quem detenha foro privilegiado nos tribunais. c) Desaforamento da sessão de julgamento pelo júri, quando inocorrentes as hipóteses dos arts. 427 e 428 do CPP. Exemplos de situações em que não se considera violado o princípio do juiz natural: a) Delegação de atos instrutórios a juiz de Primeira Instância nas ações penais originárias movidas contra Prefeito, que tem prerrogativa de foro nos tribunais.20 b) Convocação de juízes de primeiro grau para, nos casos de afastamento eventual do desembargador titular, compor, em segundo grau (julgamento de recursos), o órgão julgador do respectivo Tribunal, desde que observadas as diretrizes legais federais ou estaduais, conforme o caso.21 c) A composição majoritária do órgão julgador de Tribunal por juízes de primeiro grau legalmente convocados.22d) A designação de juiz para atuar, de forma genérica, em uma determinada Vara.23 Observe-se que haveria ofensa ao postulado caso a designação fosse específica para atuar em determinado processo, em razão da gravidade do crime ou da condição específica do réu. Apesar da existência de posições em contrário, predomina a orientação de que, em face da sua natureza, o postulado do juiz natural apenas pode ser invocado em prol do acusado, e não em seu desfavor. Neste sentido: “Somente se admite que este último princípio – Juiz natural – seja invocado em favor do réu, nunca em seu prejuízo. Sob essa ótica, portanto, ainda que a nulidade seja de ordem absoluta (a incompetência), eventual reapreciação da matéria não poderá de modo algum ser prejudicial ao paciente, isto é, à sua liberdade”.24 1.3.14 Princípio do promotor natural O princípio do promotor natural, assim como o do juiz natural, encontra-se previsto no art. 5.º, LIII, da Constituição Federal, ao estabelecer que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Trata-se, hoje, de princípio aceito pela maioria absoluta da doutrina e da jurisprudência pátria, justificando-se na circunstância de que todo acusado tem o direito de saber, com definição antecipada, aquele que personificará o Estado-acusador.25 Em razão desse princípio, veda-se a designação de membro do Ministério Público para atuar em caso específico, quando isso implicar abstração das regras gerais de atribuições estabelecidas anteriormente à prática da infração penal. Nada impede, porém, que seja designado Promotor de Justiça para o exercício de atribuições genéricas, ou seja, aquelas que podem abranger, abstratamente, mais de uma hipótese concreta. Na verdade, a ofensa ao princípio do promotor natural ocorre nas hipóteses que presumem a figura do acusador de exceção, lesionando o exercício pleno e independente das atribuições do Ministério Público. A atuação ministerial pautada pela própria organização interna, com atribuições previamente definidas em Lei Orgânica do Ministério Público estadual, não configura ofensa àquele postulado.26 Outro aspecto importante refere-se à sua abrangência. Trata-se, com efeito, de princípio relacionado ao processo criminal, não alcançando o inquérito.27 Por essa razão, eventuais diligências realizadas na fase das investigações policiais a partir de determinação (requisição) de promotor distinto daquele que seja quem deva atuar não implicam violação ao que dispõe o art. 5.º, LIII, da CF. 1.3.15 Princípio da identidade física do juiz Em sentido estrito, este princípio consiste na vinculação obrigatória do juiz aos processos cuja instrução tenha iniciado, não podendo o processo ser sentenciado por magistrado distinto. Com a alteração introduzida pela Lei 11.719/2008 ao Código de Processo Penal, tal princípio restou consagrado em âmbito infraconstitucional por meio do art. 399, § 2.º, estabelecendo que o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Apesar do caráter cogente aparentemente incorporado a essa norma, é evidente que, sob pena de graves prejuízos à instrução criminal, à celeridade e economia processual e à efetividade do processo penal, deve-se ressalvar de sua incidência situações excepcionais relacionadas à impossibilidade temporária ou definitiva de permanecer o Juiz oficiando no processo, muito especialmente aquelas em que tiver sido ele convocado para atuar junto aos tribunais, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que o seu sucessor assumirá o impulso e julgamento do processo criminal. Mesmo antes da minirreforma do Código de Processo Penal, em 2008, o princípio da identidade física já estava presente no processo criminal em relação aos julgamentos afetos ao tribunal do júri, dado que os jurados que assistirem ao interrogatório do réu e inquirição de testemunhas em plenário deverão ser os mesmos a procederem ao julgamento mediante votação dos quesitos. Destarte, se por algum motivo vier a ser dissolvido o conselho de sentença pelo juiz-presidente do tribunal do júri (v.g., comunicação entre os jurados, deficiência de defesa, manifestação inequívoca de parcialidade dos jurados etc.), outra sessão deverá ser aprazada, para a qual novo corpo de jurados será sorteado. 1.3.16 Princípio do in dubio pro reo ou favor rei Por este princípio, deve-se privilegiar a garantia da liberdade em detrimento da pretensão punitiva do Estado. Apenas diante de certeza quanto à responsabilização penal do acusado pelo fato praticado é que poderá operar-se a condenação. Havendo dúvidas, resolver-se-á esta em favor do acusado. Ao dispor que o juiz absolverá o réu quando não houver provas suficientes para a condenação, o art. 386, VII, do CPP agasalha, implicitamente, tal princípio. Mitiga-se o princípio, a nosso ver, quando se tratar de decisão do Conselho de Sentença por ocasião dos julgamentos pelo júri. É que, em casos tais, os jurados decidem por sua íntima convicção, decorrendo eventual condenação não apenas da prova dos autos, mas, sobretudo, de seu conhecimento pessoal sobre os fatos e elementos, como cultura, costumes locais, realidade social etc. Abstraída a hipótese de condenação, em que a regra, efetivamente, será a incidência do princípio em exame, outras hipóteses existem na legislação, nas quais este resta afastado. É o caso, por exemplo, da decisão de pronúncia, adotando-se, neste momento, o in dubio pro societate. Em síntese, não havendo certeza absoluta quanto ao agir do réu sob o amparo de causas que excluam o crime ou isentem-no de pena, deverá o juiz submetê-lo a julgamento pelo júri, vedando-se a absolvição sumária fulcrada no art. 415 do CPP. O mesmo ocorre em relação ao recebimento da denúncia e decretação da prisão preventiva, decisões estas que, mesmo contrárias ao imputado, podem lastrear-se em indícios de autoria, não se exigindo, pois, juízo de certeza a respeito.
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