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A origem destrutiva do capitalismo

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A origem destrutiva do capitalismo 
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs300303.htm 
 
Modernidade econômica encontra 
suas origens no armamentismo 
militar 
 
ROBERT KURZ 
especial para a Folha 
 
Há inúmeras versões do nascimento da era moderna. Nem mesmo quanto à data os 
historiadores se põem de acordo. Uns fazem a modernidade ter início já nos séculos 15 e 
16, com o chamado Renascimento (um conceito que só foi inventado no século 19 por 
Jules Michelet, como demonstrou o historiador francês Lucien Febvre). Outros vêem a 
verdadeira ruptura, o decolar da modernidade, só no século 18, quando a filosofia do 
Iluminismo, a Revolução Francesa e o início da industrialização abalaram o mundo. 
Mas qualquer que seja a data preferida pelos historiadores e filósofos modernos para o 
nascimento de seu próprio mundo, numa coisa eles concordam: quase sempre 
conquistas positivas são tomadas como os impulsos originais. 
Consideram-se razões proeminentes para a ascensão da modernidade tanto as inovações 
artísticas e científicas do Renascimento italiano quanto as grandes viagens de 
descobrimento desde Colombo, a idéia protestante e calvinista da responsabilidade 
específica do indivíduo, a libertação iluminista das crenças irracionais e o surgimento da 
democracia moderna na França e nos Estados Unidos. No âmbito técnico-industrial, 
também é lembrada a invenção da máquina a vapor e do tear mecânico como ``tiro de 
largada'' do desenvolvimento social moderno. 
Esta última explicação foi ressaltada sobretudo pelo marxismo, pelo fato de se 
harmonizar com a doutrina filosófica do ``materialismo histórico''. O verdadeiro motor 
da história, afirma essa doutrina, é o desenvolvimento das ``forças produtivas'' 
materiais, que repetidamente entram em conflito com as ``relações de produção" 
tornadas muito restritas e obrigam a uma nova forma de sociedade. Por isso, a viravolta 
na industrialização é o ponto decisivo para o marxismo: a máquina a vapor, assim diz a 
fórmula simplificada, teria sido a primeira a romper as ``correntes das antigas relações 
feudais de produção''. 
Aqui salta aos olhos uma contradição gritante no argumento marxista. Pois no famoso 
capítulo sobre a ``acumulação primitiva do capital'', Marx ocupa-se em sua obra magna 
de períodos que remontam a séculos antes da máquina a vapor. Não será isso uma auto-
refutação do ``materialismo histórico''? Se a ``acumulação primitiva'' e a invenção da 
máquina a vapor acham-se tão afastadas em termos históricos, as forças produtivas da 
indústria não poderiam ter sido a causa decisiva para o nascimento do capitalismo 
moderno. É verdade que o modo de produção capitalista só se impôs em definitivo com 
a industrialização do século 19, mas, se buscarmos pelas raízes desse desenvolvimento, 
teremos de cavar mais fundo. 
Também é lógico que o primeiro germe da modernidade, ou o ``big bang'' de sua 
dinâmica, tivesse de surgir de um meio ainda em boa parte pré-moderno, pois de outro 
modo não poderia ser uma ``origem'' no sentido rigoroso da palavra. Assim, a ``primeira 
causa'' muito precoce e a ``consolidação plena'' muito tardia não representam uma 
contradição. Se também é verdade que para muitas regiões do mundo e para muitos 
grupos sociais o início da modernização prolonga-se até o presente, é igualmente certo 
que o primeiríssimo impulso há de ter ocorrido num passado remoto, caso se considere 
a enorme extensão temporal (da perspectiva da vida de uma geração ou mesmo de uma 
pessoa isolada) dos processos sociais. 
O que era afinal, num passado relativamente distante, o novo, que na sequência 
engendrou de forma inevitável a história da modernização? Pode-se conceder 
plenamente ao materialismo histórico que a maior e principal relevância não coube à 
simples mudança de idéias e mentalidades, mas ao desenvolvimento no plano dos fatos 
materiais concretos. Não foi porém a força produtiva, mas pelo contrário uma 
retumbante força destrutiva que abriu caminho à modernização, a saber, a invenção das 
armas de fogo. Embora essa correlação há muito seja conhecida, nas mais célebres e 
consequentes teorias da modernização (inclusive o marxismo) ela permaneceu de todo 
subestimada. 
Foi o historiador da economia alemão Werner Sombart que, de forma picante, pouco 
antes da Primeira Guerra Mundial, em seu estudo ``Guerra e Capitalismo'' (1913), 
abordou com minúcias essa questão. Só nos últimos anos as origens técnico-
armamentistas e bélico-econômicas do capitalismo voltaram à berlinda, como no livro 
``Canhões e Peste'' (1989), do economista alemão Karl Georg Zinn, e no trabalho ``A 
Revolução Militar'' (1990), do historiador norte-americano Geoffrey Parker. Mas 
tampouco estas investigações encontraram a repercussão que mereciam. Como é 
evidente, o mundo ocidental moderno e seus ideólogos só a custo aceitam a visão de 
que o fundamento histórico último de seu sagrado conceito de ``liberdade'' e 
``progresso'' há de ser encontrado na invenção do diabólico instrumento mortal da 
história humana. E essa relação vale também para a democracia moderna, pois a 
``revolução militar'' permaneceu até hoje um motivo secreto da modernização. A 
própria bomba atômica foi uma invenção democrática do Ocidente. 
A inovação das armas de fogo destruiu as formas de dominação pré-capitalistas, visto 
que tornou militarmente ridícula a cavalaria feudal. Já antes do invento das armas de 
fogo pressentira-se a consequência social das armas de alcance, pois o Segundo 
Concílio Lateranense proibiu no ano de 1129 o uso de balestras contra cristãos. Não por 
acaso, a balestra importada de culturas não-européias para a Europa por volta do ano 
1000 era tida como a arma especial dos salteadores, foras-da-lei e rebeldes. Quando 
entraram em voga as armas de cano, muito mais eficazes, foi selado o destino dos 
exércitos montados e trajados de armadura. 
Contudo, a arma de fogo não estava mais nas mãos de uma oposição ``de baixo'' que 
fazia frente ao domínio feudal, mas conduziu antes a uma ``revolução de cima'' com a 
ajuda de príncipes e reis. Pois a produção e a mobilização dos novos sistemas de armas 
não eram possíveis no plano de estruturas locais e descentralizadas, na forma como até 
então haviam marcado a reprodução social, mas exigiam uma organização inteiramente 
nova da sociedade, em diversos planos. 
As armas de fogo, sobretudo os grandes canhões, não podiam mais ser produzidos em 
pequenas oficinas como as armas brancas ou de arremesso. Por isso desenvolveu-se 
uma indústria de armamentos específica, que produzia canhões e mosquetes em grandes 
fábricas. Ao mesmo tempo, surgiu uma nova arquitetura militar de defesa, na figura de 
gigantescos baluartes que deveriam resistir às canhonadas. Chegou-se a uma disputa 
inovadora entre armas ofensivas e defensivas e a uma corrida armamentista entre os 
Estados, que persiste até os dias de hoje. 
Por obra das armas de fogo, alterou-se profundamente a estrutura dos exércitos. Os 
beligerantes não podiam mais se equipar por si próprios e tinham de ser providos de 
armas por um poder social centralizado. Por isso a organização militar da sociedade 
separou-se da civil. Em lugar dos cidadãos mobilizados caso a caso para as campanhas 
ou dos senhores locais com as suas famílias armadas surgiram os ``exércitos 
permanentes'': nasceram ``as forças armadas'' como grupo social específico, e o exército 
tornou-se um corpo estranho na sociedade. O oficialato transformou-se de um dever 
pessoal de cidadãos ricos numa ``profissão'' moderna. A par dessa nova organização 
militar e das novas técnicas bélicas, também o contingente dos exércitos cresceu 
vertiginosamente: ``As tropas armadas, entre 1500 e 1700, quase decuplicaram''(Geoffrey Parker). 
Indústria armamentista, corrida armamentista e manutenção de exércitos 
permanentemente organizados, divorciados da sociedade civil e ao mesmo tempo com 
forte crescimento conduziram necessariamente a uma subversão radical da economia. O 
grande complexo militar desvinculado da sociedade exigia uma ``permanente economia 
de guerra''. Essa nova economia da morte estendeu-se como uma mortalha sobre as 
estruturas agrárias das antigas sociedades. 
Como os armamentos e o exército não podiam mais se amparar na reprodução agrária 
local, mas tinham de ser abastecidos com recursos de envergadura e em relações 
anônimas, eles passaram a depender da mediação do dinheiro. Produção de mercadorias 
e economia monetária como elementos básicos do capitalismo ganharam impulso no 
início da era moderna por meio da liberação da economia militar e armamentista. 
Esse desenvolvimento produziu e favoreceu a subjetividade capitalista e a sua 
mentalidade do ``fazer-mais'' abstrato. A permanente carência financeira da economia 
de guerra conduziu, na sociedade civil, ao aumento dos capitalistas usurários e 
comerciais, dos grandes poupadores e dos financiadores de guerra. Mas também a nova 
organização do próprio exército criou a mentalidade capitalista. 
Os antigos beligerantes agrários transformaram-se em ``soldados'', ou seja, em pessoas 
que recebem o ``soldo''. Eles foram os primeiros ``assalariados'' modernos que tinham 
de reproduzir sua vida exclusivamente pela renda monetária e pelo consumo de 
mercadorias. E por isso eles não lutaram mais por objetivos idealistas, mas somente por 
dinheiro. A eles era indiferente quem matar, pois o soldo ``interessava''; com isso eles se 
tornaram os primeiros representantes do ``trabalho abstrato'' (Marx) no moderno sistema 
produtor de mercadorias. 
Aos chefes e comandantes dos ``soldados'' interessava angariar recursos por meio de 
butins e convertê-los em dinheiro. Para tanto a renda dos butins tinha de ser maior do 
que os custos com a guerra. Eis a origem da racionalidade econômico-empresarial 
moderna. A maioria dos generais e comandantes do exército do início da era moderna 
investia com ganho o produto de seus butins e tornava-se sócios do capital monetário e 
comercial. 
Não foram portanto o pacífico vendedor, o diligente poupador e o produtor cheio de 
idéias que marcaram o início do capitalismo, muito pelo contrário: do mesmo modo que 
os ``soldados'', como artesãos sanguinários da arma de fogo, foram os protótipos do 
assalariado moderno, assim também os comandantes de exército e ``condottieri'' 
``multiplicadores de dinheiro'' foram os protótipos do empresariado moderno e de sua 
``prontidão ao risco''. 
Como livres empresários da morte, os ``condottieri'' dependiam porém das grandes 
guerras dos poderes estatais centralizados e de sua capacidade de financiamento. A 
relação moderna de reciprocidade entre mercado e Estado tem aqui a sua origem. Para 
poder financiar as indústrias de armamentos e os baluartes, os gigantescos exércitos e a 
guerra, os Estados tinham de extorquir até o sangue de sua população e isso, em 
correspondência à matéria, numa forma igualmente nova: no lugar dos antigos impostos 
em espécie, a tributação monetária. As pessoas foram assim obrigadas a ``ganhar 
dinheiro'' para poder pagar seus impostos ao Estado. Desse modo, a economia de guerra 
forçou não apenas de forma direta, mas também indireta, o sistema da economia de 
mercado. Entre os séculos 16 e 18, a tributação do povo nos países europeus cresceu em 
até 2.000%. 
Obviamente, as pessoas não se deixaram introduzir de forma voluntária na nova 
economia monetária e armamentista. Elas só puderam ser forçadas a tanto por 
intermédio de uma sangrenta opressão. A permanente economia de guerra das armas de 
fogo ensejou durante séculos a permanente insurreição popular e, na sua esteira, a 
guerra permanente. A fim de poder extorquir os monstruosos tributos, os poderes 
estatais centralizados tiveram de construir um aparato monstruoso de polícia e 
administração. Todos os aparatos estatais modernos são procedentes dessa história do 
início da era moderna. A auto-administração local foi substituída pela administração 
centralizada e hierárquica, a cargo de uma burocracia cujo núcleo foi formado com o 
respaldo na tributação e na opressão interna. 
As próprias conquistas positivas da modernização trouxeram sempre o estigma dessas 
origens. A industrialização do século 19, tanto no aspecto tecnológico quanto no traço 
histórico das organizações e das mentalidades, foi uma herdeira das armas de fogo, da 
produção de armamentos no início da modernidade e do processo social que a seguiu. 
Nesse sentido, pouco admira que o vertiginoso desenvolvimento capitalista das forças 
produtivas desde a Primeira Revolução Industrial pudesse ocorrer senão de forma 
destrutiva, apesar das inovações técnicas aparentemente inocentes. 
A moderna democracia do Ocidente é incapaz de ocultar o fato de ser herdeira da 
ditadura militar e armamentista do início da modernidade -e isso não só na esfera 
tecnológica, mas também em sua estrutura social. Sob a fina superfície dos rituais de 
votação e dos discursos políticos, encontramos o monstro de um aparato que administra 
e disciplina de forma continuada o cidadão aparentemente livre do Estado em nome da 
economia monetária total e da economia de guerra a ela vinculada até hoje. Em 
nenhuma sociedade da história houve tão grande percentual de funcionários públicos e 
administradores de recursos humanos, soldados e policiais; nenhuma jamais desbaratou 
uma parcela tão grande de seus recursos em armamentos e exército. 
As ditaduras burocráticas da ``modernização tardia'' no leste e no sul, com seus aparatos 
centralizadores, não foram os antípodas, mas os imitadores da economia de guerra da 
história ocidental, sem contudo poderem alcançá-la. As sociedades mais burocratizadas 
e militarizadas são ainda, do ponto de vista estrutural, as democracias ocidentais. 
Também o neoliberalismo é um filho temporão dos canhões, como demonstraram o 
gigantesco armamentismo da ``Reaganomics'' e a história dos anos 90. A economia da 
morte permanecerá o inquietante legado da sociedade moderna fundada na economia de 
mercado até que o capitalismo-camicase destrua a si próprio. 
 
Robert Kurz é sociólogo alemão; publicou no Brasil ``O Colapso da Modernização'' e 
``A Volta do Potenkim''; é co-editor da revista ``Krisis''. Escreve uma vez por mês na 
série ``Autores''. Tradução de José Marcos Macedo.

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