Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA Professor Me. Rui Bragado Sousa GRADUAÇÃO Unicesumar C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância; SOUSA, Rui Bragado. História Contemporânea. Rui Bragado Sousa. Maringá-Pr.: UniCesumar, 2016. Reimpresso em 2020. 245 p. “Graduação - EaD”. 1. História. 2. Contemporânea. 3. EaD. I. Título. ISBN 978-85-459-0206-5 CDD - 22 ed. 901 CIP - NBR 12899 - AACR/2 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Impresso por: Reitor Wilson de Matos Silva Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de EAD Willian Victor Kendrick de Matos Silva Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi NEAD - Núcleo de Educação a Distância Direção Operacional de Ensino Kátia Coelho Direção de Planejamento de Ensino Fabrício Lazilha Direção de Operações Chrystiano Mincoff Direção de Mercado Hilton Pereira Direção de Polos Próprios James Prestes Direção de Desenvolvimento Dayane Almeida Direção de Relacionamento Alessandra Baron Head de Produção de Conteúdos Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli Gerência de Produção de Conteúdos Gabriel Araújo Supervisão do Núcleo de Produção de Materiais Nádila de Almeida Toledo Supervisão de Projetos Especiais Daniel F. Hey Coordenador de Conteúdo Priscilla Campiolo Manesco Design Educacional Yasminn Zagonel Iconografia Amanda Peçanha dos Santos Ana Carolina Martins Prado Projeto Gráfico Jaime de Marchi Junior José Jhonny Coelho Arte Capa Arthur Cantareli Silva Editoração Robson Yuiti Saito Revisão Textual Keren Pardini Ilustração André Luís Onishi Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande desafio para todos os cidadãos. A busca por tecnologia, informação, conhecimento de qualidade, novas habilidades para liderança e so- lução de problemas com eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência no mundo do trabalho. Cada um de nós tem uma grande responsabilida- de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos- sos farão grande diferença no futuro. Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar assume o compromisso de democratizar o conhe- cimento por meio de alta tecnologia e contribuir para o futuro dos brasileiros. No cumprimento de sua missão – “promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhecimento, formando profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi- tário Cesumar busca a integração do ensino-pes- quisa-extensão com as demandas institucionais e sociais; a realização de uma prática acadêmica que contribua para o desenvolvimento da consci- ência social e política e, por fim, a democratização do conhecimento acadêmico com a articulação e a integração com a sociedade. Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al- meja ser reconhecido como uma instituição uni- versitária de referência regional e nacional pela qualidade e compromisso do corpo docente; aquisição de competências institucionais para o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con- solidação da extensão universitária; qualidade da oferta dos ensinos presencial e a distância; bem-estar e satisfação da comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica e administrati- va; compromisso social de inclusão; processos de cooperação e parceria com o mundo do trabalho, como também pelo compromisso e relaciona- mento permanente com os egressos, incentivan- do a educação continuada. Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está iniciando um processo de transformação, pois quan- do investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou profissional, nos transformamos e, consequente- mente, transformamos também a sociedade na qual estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capa- zes de alcançar um nível de desenvolvimento compa- tível com os desafios que surgem no mundo contem- porâneo. O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Os materiais produzidos oferecem linguagem dialó- gica e encontram-se integrados à proposta pedagó- gica, contribuindo no processo educacional, comple- mentando sua formação profissional, desenvolvendo competências e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de maneira a inse- ri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal objetivo “provocar uma aproxi- mação entre você e o conteúdo”, desta forma possi- bilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos conhecimentos necessários para a sua formação pes- soal e profissional. Portanto, nossa distância nesse processo de cres- cimento e construção do conhecimento deve ser apenas geográfica. Utilize os diversos recursos peda- gógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possi- bilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e en- quetes, assista às aulas ao vivo e participe das discus- sões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de professores e tutores que se encontra disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui- lidade e segurança sua trajetória acadêmica. Professor Me. Rui Bragado Sousa Possui graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (2011), especialização em Filosofia e mestrado em História Social (2014) pela mesma instituição. Tem experiência no ensino de História com ênfase em História Contemporânea e História das Religiões. Atua na rede pública do estado do Paraná como professor de História e no Ensino Superior, modalidade a distância, pelo Centro Universitário Cesumar - Unicesumar. A U TO R SEJA BEM-VINDO(A)! Estimado(a) aluno(a), é uma satisfação e ao mesmo tempo uma responsabilidade ofere- cer a você um manual didático de História Contemporânea, seguramente um dos perí- odos mais complexos, em que a humanidade evoluiu tecnologicamente, militarmente, cientificamente; mas, concomitante à evolução da técnica, houve retrocessos inima- gináveis, guerras que elevaram ao absurdo o número de vítimas militares e civis. Um tempo que trouxe consigo o paradoxo evidente entre evolução econômica e retrocesso social. Eric Hobsbawm definiu bem o século XX como a “Era dos extremos”, mas a deno- minação poderia ser aplicada a toda contemporaneidade (cronologicamente abordada de 1789 até o 11 de setembro de 2001). A partir dessa visão não linear da História é necessário estabelecer um método de análi- se que interligue as cinco unidades do livro, um roteiro didático para organizar critérios de avaliação e estudo do período. Em síntese, vale a máxima de Walter Benjamin (1994), de que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. A evolução da técnica traz consigo um índice reverso, o retrocesso da sociedade. É nesse ponto que o Positivismo fracassa como metodologia histórica (a ilusão de conhecer o passado “como de fato foi”), porque, na evolução da técnica, o positivismo só foi capaz de reco- nhecer os progressos da técnica, não os retrocessos da sociedade. A estética social de Benjamin, crítico da modernidade, será o pressuposto para analisar o período em ter- mos dialéticos e culturais, seguindo a tendência dos grandes centros e da intelligentsia antropofágica brasileira, que em outros tempos consumiu Lukács e Gramsci e, nos anos noventa, Edward Palmer Thompson. Assim, acreditamos estar levando ao(à) aluno(a) da Unicesumar o que está em destaque na historiografia nacional, aliado, é claro, à didática necessária. Partindo das premissas da história cultural e de uma citação magnífica de Hobsbawm (1998, p. 87), de que “o historiador das ideias pode não dar o mínimo para economia, e o historiador econômico desprezar Shakespeare, mas o historiador social que negligenciaum dos dois não irá muito longe”, busca-se compreender as questões materiais, as lutas, as revoluções, as guerras, a fome como a produção cultural da era contemporânea, co- nhecida também como o mundo das superestruturas. Na apreensão da História Social (econômica e cultural), a concepção dos historiadores da Nova Esquerda Inglesa (Hobsbawm, Thompson, George Rudé, Raymond Williams) fornece conceitos valiosos. Tal como descrito por Harvey Kaye (1989), essa escola resga- ta a memória dos chamados vencidos em uma perspectiva “de baixo para cima”, isso é de vital importância para a compreensão de que os grandes protagonistas da História são as classes trabalhadoras, em um sentido etimológico da palavra “classes”, enquanto coletividade, como relações e processos históricos. Nesse sentido, as classes baixas tor- nam-se ativas na formação da História, como sujeito e objeto histórico, mais que meras vítimas passivas, protagonistas no sentido de “fazer-se”, de Thompson (1987). Espera-se que assim surjam – nas palavras de George Rudé (1991) – os rostos na multidão, gente de carne e osso, e não apenas os termos teóricos e metodológicos, ou grandes reis, mi- litares e sacerdotes, como na metodologia positivista. APRESENTAÇÃO HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA Na análise da cultura moderna, os conceitos de Edward Said (1995), em Cultura e Im- perialismo, têm afinidade com a metodologia utilizada nesse trabalho. “Cultura de- signa todas as práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante os campos econômico, social e político, e que amiúde existem sob formas estéticas” (SAID, 1995, p. 13). A cultura, nesse sentido, é uma forma de identidade, “uma espécie de teatro em que várias causas políticas e ideológicas se empenham mutuamente”. Concebida dessa maneira, a cultura “pode se tornar uma cerca de proteção: deixa a política na porta antes de entrar” (SAID, 1995, p. 13-14). O conceito de “circularidade cultural” formulado por Mikhail Bakhtin e consolida- do por Carlo Ginzburg permite compreender a influência mútua entre as esferas econômicas e culturais e assim verificar o desenvolvimento moderno por meio do mito do Fausto, por exemplo. O Fausto representa, expressa e dramatiza o processo pelo qual, no fim do século XVIII e início do seguinte, um sistema mundial especi- ficamente moderno vem à luz, diz Marshall Berman (1994). De forma semelhante, os poemas de Charles Baudelaire denunciam o caos e a desordem e consolidam a expressão le modernité. Nesse processo, é importante verificar a marcha das utopias e o seu revés, o cientificismo da segunda metade do século XIX, assim como a dege- neração do darwinismo no esclerosado darwinismo social. No século XX, o cinema e as novas formas estéticas modernas também serão abordados em sintonia com os grandes eventos históricos, como a Primeira Grande guerra, a Revolução Russa, os fascismos e o holocausto. Para um leitor mais cético e crítico quanto a essa metodologia, podem-suscitar ain- da os exemplos de Hiroshima e Auschwitz, maior e mais destacado campo de con- centração nazista, como contrapontos à evolução natural e linear da história. A his- tória progrediu? Caberá ao leitor e futuro(a) professor(a) a resposta a essa questão dúbia e espinhosa. Boa leitura! APRESENTAÇÃO SUMÁRIO 09 UNIDADE I A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) 15 Introdução 16 A Revolução Industrial 22 Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária 36 Revolução Francesa 47 A Era Napoleônica e o Congresso de Viena (1814-1815) 51 Considerações Finais UNIDADE II MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900) 63 Introdução 64 1848 – Da Primavera dos Povos ao Golpe 18 Brumário de Luís Bonaparte (A História se Repete?) 73 Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientítico: do Manifesto Comunista à Comuna de Paris (1848-1871) 87 Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo 100 Da Revolução Industrial ao Imperialismo 106 Considerações Finais SUMÁRIO UNIDADE III DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA 115 Introdução 116 Das Luzes à Escuridão: Origem e Causas da Primeira Guerra Mundial (1900-1914) 124 A Primeira Grande Guerra: O Teatro de Operações (1914-1918) 131 “A Revolução que Abalou O Mundo”: A Revolução Russa (1917) 140 Formação da União Soviética, do Socialismo E Suas Consequências 145 Considerações Finais UNIDADE IV TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945) 155 Introdução 156 Da Reconstrução ao Caos: O Pós-Guerra até a Crise de 1929 163 Ascensão do Fascismo: Autoritarismo e Totalitarismo 168 Nazismo: Hitler e o Grotesco Terceiro Reich 176 A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) 185 Considerações Finais SUMÁRIO 11 UNIDADE V DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001) 195 Introdução 196 A Guerra Fria e o Isolamento da URSS 205 A Guerra Fria no Terceiro Mundo 212 A Guerra Fria na América Latina 215 Globalização, Descolonização e Neoliberalismo 222 A Queda do Muro de Berlim e o Fim do Socialismo Real 230 Considerações Finais 237 CONCLUSÃO 239 REFERÊNCIAS 245 GABARITO U N ID A D E I Professor Me. Rui Bragado Sousa A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789- 1848) Objetivos de Aprendizagem ■ Analisar a profunda transformação qualitativa na transição do século XVIII para o XIX. ■ Avaliar os avanços e retrocessos da Revolução Industrial e Francesa. ■ Compreender a motivação dos motins populares e a formação da classe operária moderna. ■ Verificar a ascensão da burguesia como classe dominante e os novos valores da modernidade. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ Revolução Industrial ■ Os trabalhadores e a formação da classe operária ■ Revolução Francesa ■ A Era Napoleônica e o Congresso de Viena (1814-1815) INTRODUÇÃO Nesta unidade, estudaremos, em termos cronológicos, a primeira metade do século XIX. Em termos históricos, denomina-se História Contemporânea o perí- odo marcado pelas formas de produção capitalistas (consolidado com a Revolução Industrial, no setor econômico, e com a Revolução Francesa, em termos polí- ticos) que prevalecem até os dias atuais. O título é claramente uma paráfrase do clássico de Hobsbawm que abre a coleção das “Eras” (Revoluções, Capital, Impérios, Extremos). O que não significa que o único referencial será esse his- toriador e sua metodologia. Pelo contrário, nosso foco visa estabelecer diálogo e discussão com as demais vertentes historiográficas e, sempre que possível, per- mitir que o leitor retire suas próprias conclusões, com embasamento referencial. Ainda, a título de introdução, é necessário definir o moderno conceito de Revolução. Nesse quesito, a chamada “história dos conceitos”, que tem no ale- mão Reinhart Koselleck seu maior nome, é bastante relevante. Há, em geral, uma imprecisão conceitual da expressão por se tratar de um produto linguístico da modernidade. Escreve Koselleck (2006, p. 62): O conceito semântico de “revolução” varia desde os movimentos de deposição e/ou golpes políticos e sociais até inovações científicas deci- sivas, podendo significar tudo ao mesmo tempo, ou apenas um desses sentidos exclusivamente. Revolução significa, etimologicamente, o retorno ou mudança de trajetória, um movimento cíclico para os antigos. Com Copérnico e sua obra sobre as revolu- ções dos corpos celestes, o termo torna-se um conceito físico-político. A partir de Condorcet (teórico e político francês), o conceito passa da ciência para a polí- tica, com a obra da Revolução Francesa. Para Karl Marx (2010, p 146), há um nível de coincidência e interdependên- cia entre revolução política e social: “toda revolução desfaz a velha sociedade; nesse sentido, ela é social. Toda revolução derruba o velho poder; nesse sentido, ela é política”. Mas WalterBenjamin (2012, p 129), o crítico da noção de pro- gresso, inverte as premissas meramente evolucionistas do termo: “Marx disse que as revoluções eram as locomotivas da história. Mas talvez elas sejam um pouco diferente. Talvez as revoluções sejam a mão da espécie humana que viaja nesse Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 15 A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E16 trem puxando os freios de emergência”. Ou seja, parar um desenvolvimento catastrófico também não deixa de ser uma revolução. Trata-se evidentemente de um conceito variável, mas, quanto aos obje- tivos desta unidade, basta compreendê-lo como uma alteração, rompimento com as antigas formas de produção econômica (Revolução Industrial) e polí- tica (Revolução Francesa). A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL O período de 1770 a 1848 marca uma transição, uma mudança súbita no padrão da evolução social e política. Descreve Geoge Rudé (1991, p. 3): Para mencionar apenas algumas inovações, as fábricas urbanas, as ferrovias, os sindicatos estáveis, um movimento trabalhista, as ideias socialistas, bem como a nova Lei dos Pobres e uma força policial na Inglaterra, eram indícios de que uma nova era, longe de estar sendo criada, já havia surgido. No campo econômico, toda essa transformação, no que se convencionou chamar de “modernidade” ou era contemporânea, deve-se aos impactos da Revolução Industrial. A definição conceitual de Revolução Industrial varia de acordo com a concepção de cada intérprete do tema. Mas, em linhas gerais, seguindo os passos de Paul Mantoux (1994) em obra clássica sobre o evento supracitado, tra- ta-se de uma mudança radical na forma de produção de mercado- rias, mudança esta que acarreta uma série de alterações na cadeia A Revolução Industrial Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 17 produtiva, nos modos de produção e de trocas. A primeira revolução indus- trial abarca o período de meados da segunda metade do século XVIII, de 1770 até 1830. Essa fase restringe-se, em um primeiro momento, ao mercado têxtil, à produção de tecido que, na Inglaterra, funcionava como uma espécie de mola para o desenvolvimento da indústria moderna. A segunda fase da revolução eleva as invenções da primeira em âmbito mundial, não estará mais restrita à Grã-Bretanha e diverge também pela diversidade da produção, no mercado de transporte, ferrovias, navios a vapor, na indústria bioquímica e física, na medi- cina, nos motores à combustão e, enfim, ao desenvolvimento dos combustíveis fósseis, o petróleo. No século XX, há o que alguns autores chamam de Terceira Revolução Industrial, no ramo bélico, nas telecomunicações e na informática. Mas, para os limites deste livro, analisaremos como tudo começou, isto é, por- que ocorreu na Inglaterra e em meados do século XVIII. Paul Mantoux (1994) caracteriza a moderna indústria pelo fato de substi- tuir a força muscular (manufatura) por forças motrizes inanimadas. A produção deixa de ser privilégio da mão humana (daí o termo manu-fatura), dos mestres de ofício e artesãos medievais e passa para as máquinas. As consequências que essa mudança traz ao corpo e à consciência humana são notáveis e é o objetivo geral desta unidade compreender esse processo no decorrer de dois séculos. Na segunda unidade, analisaremos conceitos como o “fetichismo da mercadoria” e a “coisificação do trabalhador”, em que as funções são tecnicamente invertidas. Mas, por hora, basta dizer que tal mudança brusca levou no máximo um século para ser consolidada, rompendo com a produção manual e o saber humano em uma tradição de milhares de anos que vem desde o homo faber e as toscas fer- ramentas de pedra do período paleolítico. Essa mudança radical ocorreu primordialmente no mercado de tecidos. Mantoux (1994) afirma que falar em Revolução Industrial é falar em algodão. Eric Hobsbawm, em Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo, afirma que, de 1750 a 1770, houve aumento de 76% das exportações de algodão, perí- odo que o autor descreve como “a pista da decolagem industrial”. Enquanto o mercado interno proporcionava a fogueira, o comércio exterior ateou fogo à cen- telha da industrialização. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E18 A origem da Revolução Industrial e os problemas a serem elucidados no decorrer desta unidade são: por que ter sido a Grã-Bretanha a primeira “oficina mecânica do mundo” e o motivo pelo qual essa revolução ocorreu em fins do século XVIII e não antes ou depois? A Inglaterra ingressou preparada na indus- trialização, na segunda metade do século XVIII. Nesse período, já era um país desenvolvido, com acúmulo de capital e já havia feito a “reforma agrária” (o cer- camento das terras comunais). A Inglaterra estava atrelada ao comércio marítimo mundial, configurando aquilo que Hobsbawm (1994, p. 48) descreveu como “um sistema de fluxos econômicos”, de comércio internacional, transferências de capi- tal em nível mundial. “O capital para o desenvolvimento industrial foi fornecido, direta ou indiretamente, por mercadores, traficantes de escravos e piratas, cujas fortunas tinham sido acumuladas no ultramar”, afirma Christopher Hill (2003, p. 285), historiador das revoluções inglesas e contemporâneo de Hobsbawm. Por “Cercamento dos campos” compreende-se o processo pelo qual as ter- ras comunais, de uso comum na Idade Média, passam a ser ocupadas pela “gentry” (nobres) e pelos “yeomen” (classe rica de pequenos proprietários). Os novos proprietários que surgiram após a Revolução Gloriosa (1688) ex- pulsaram os camponeses dos campos, criando ao mesmo tempo um valor de produção para a terra e uma massa urbana utilizada pelos burgueses du- rante a Revolução Industrial. Fonte: o autor. A Revolução Industrial Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 19 Convém lembrar que a supremacia inglesa nos mares deve-se aos famo- sos “Atos de Navegação”, de Oliver Cromwell, publicado em 1651. Essa foi uma medida claramente protecionista, pois estabelecia que todos os navios a atra- carem nos portos ingleses deveriam ser britânicos. A intervenção do Estado britânico fortaleceu a iniciativa privada e o desenvolvimento da burguesia daquele país; antes atrasado e suplantado pela Espanha e Holanda, doravante esses atos tomaram a dianteira do comércio marítimo mundial. Essa medida causou atri- tos com países como a Holanda, que tentou inutilmente revogá-la por meio da guerra, sendo derrotada em 1654. A Inglaterra tornava-se soberana dos mares e, com isso, do comércio marítimo. Segundo a visão de Hobsbawm (1994, p. 46), o governo britânico estava disposto a “subordinar toda a política externa a objetivos econômicos”. Quanto às causas naturais, fatores climáticos, geográficos e matérias-primas (como o carvão mineral), Hobsbawm (1994, p. 52) afirma que tais fatores “não atuam por si sós, mas apenas dentro de um dado quadro econômico, social e ins- titucional”. O autor também ignora as questões exógenas (de fora para dentro), como, por exemplo, o ouro das Minas Gerais, utilizado largamente por Portugal para sanar as dívidas obtidas pelo intransigente acordo de Panos e Vinhos, o famoso Tratado de Methuen, de 1703. O desastroso acordo da compra de tecidos exclusivamente da Inglaterra em troca da venda de seus vinhos causou o faleci- mento de sua já incipiente manufatura e a impossibilidade de industrialização. Uma questão instigante é que Hobsbawmnão aceita a Reforma Protestante como impulso para o desenvolvimento da Revolução Industrial. Ele discorda radicalmente da tese de Max Weber e de sua famosa obra A ética protestante e o espírito do capitalismo. Embora não cite o sociólogo alemão, Hobsbawm traz argumentos razoáveis para negá-lo. Trata-se de uma visão materialista (de que a base econômica ou material sobrepõe-se sobre o desenvolvimento cultu- ral, a matéria influencia – ainda que não determine – a produção imaterial) em detrimento do mundo das ideias de Weber (de que o “espírito do capitalismo surgiu anteriormente ao desenvolvimento material”). Trata-se de uma eterna dialética da história, a tese materialista versus a antítese idealista, ou vice-versa. No final da unidade, há um texto indicado como leitura complementar que dis- corre sobre essa complexa questão. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E20 Para Hobsbawm (1994, p. 42), as pré-condições para a industrialização já existiam na Grã-Bretanha setecentista, ou podiam ser criadas facilmente. Eram condições como o acúmulo de capitais e a abundância de mão de obra e um mercado interno forte que resistiu à independência dos EUA e às guerras Napoleônicas e seu “bloqueio continental”. “O enigma está entre a obtenção do lucro e a inovação tecnológica”, ele completa. Certamente as inovações tecnológi- cas contribuíram para a obtenção de lucros, e os lucros, obviamente, fomentaram novas inovações. É consenso entre os especialistas que a produção têxtil deu o impulso necessário para a revolução tecnológica, primeiro com o acúmulo de capitais e, depois, com o desenvolvimento de novos métodos mecânicos. Mas a passagem da manufatura para a indústria deve-se, também, à produção de fari- nha de trigo e de cerveja, importantes pioneiros da modernização. A invenção da tiragem de cerveja sobre pressão foi um dos primeiros triunfos de Henry Maudslay, pioneiro da engenharia industrial. As inovações e invenções foram, assim, o pano de fundo da industrialização. Invenções na manufatura têxtil forneceram o impulso econômico e tecnológico da Revolução. A antiquada roca de fiar foi suplantada pela lançadeira volante (flying shuttle), criada em meados de 1730; o filatório (spinning Jenny) de 1760 permitia ao artesão trabalhar com vários fios de uma só vez; em seguida veio o tear movido à força hidráulica (water frame), de 1769; finalmente, a “mula”, patenteada por Arkwright na década de 1780, funcionando com água ou vapor. A máquina a vapor de James Watt (1769) consolidou o ciclo de inovações e per- mitiu que as indústrias fossem instaladas em qualquer localidade e não apenas próximo aos rios, para aproveitar sua energia hidráulica. Naturalmente as grandes reservas de carvão mineral na Inglaterra contribuíram para acelerar o processo. Vimos, portanto, que apenas na Inglaterra havia as condições propícias ao desenvolvimento tecnológico, permitindo que esse pequeno país em território se tornasse “a oficina mecânica do mundo” e elevasse a Grã-Bretanha ao status de maior império marítimo e comercial dos oitocentos; processo decorrente da ampliação das trocas, da divisão do trabalho (ou racionalização do trabalho que, posteriormente, ocasionou a linha de montagem, onde cada trabalhador faz ape- nas uma ínfima parcela do produto final) e da adoção de novas técnicas. Essa é a visão geral de Paul Mantoux (1994). A Revolução Industrial Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 21 CONSEQUÊNCIAS DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL Uma vez compreendidas as causas desse processo, podemos enumerar as conse- quências da Revolução Industrial: 1) Divisão do trabalho entre a população ativa de empregadores capitalistas, os donos dos meios de produção, e trabalhado- res que nada possuíam senão sua força de trabalho, que a vendiam em troca de salários, ou proletários na descrição de Marx. 2) Os atos mecanizados e repeti- tivos dos trabalhadores, a mistura de homem e máquina reduz o homem à mera condição de “autômato”. Voltaremos a essa questão do autômato na unidade III, sobre a ascensão do fascismo por meio da leitura do filósofo e historiador da cul- tura Walter Benjamin. Por hora, basta lembrarmos do filme “Tempos Modernos”, de Charlie Chaplin, que traz uma crítica descritiva e satírica da transformação do homem em autômato. 3) Dominação de toda a economia, de toda a vida, pela procura e acumulação do lucro por parte dos capitalistas. 4) Transição do campo para a cidade. Mas qual o impacto dessa mudança brusca na mentalidade dos homens? Como foi a adaptação da classe trabalhadora às inovações técnicas? A transfor- mação dos modos de produção e consumo acarretou também numa mudança cultural, na alteração da própria noção de tempo histórico, de temporalidade, de experiência de vida. Basta pensarmos na transição do campo para a cidade, da população vivendo de acordo com o tempo da natureza, no ritmo de trabalho necessário apenas para a manutenção de seu sustento, daí em diante, condiciona- dos ao ritmo da fábrica, na disciplina do relógio em vez do badalar dos sinos ou do canto do galo. Enfim, as consequências foram brutais e escapam da compre- ensão de Paul Mantoux, que viu a exploração do trabalho infantil, as jornadas de doze horas ou mais como exploração pelos subordinados industriais “e não pelos capitalistas”. Como veremos, tal processo é um tanto mais complexo e carece de uma apreensão mais detalhada para ser compreendido. Figura 1: O trabalho de mineração é característico de regiões industriais na Inglaterra durante a Revolução Industrial A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E22 OS TRABALHADORES E A FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA OS TRABALHADORES E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE Em artigo debatendo as obras e os críticos da obra de Thompson, Sidnei Munhoz (1993, p. 163) acredita que sua tese principal é que o processo de constituição de classe trabalhadora se dá “em decorrência do fato de as pessoas estabelece- rem, em seu cotidiano, identidades e diferenças, sentindo-se como integrantes de um mesmo grupo ou de grupos antagônicos”. Em suma, a consciência que se produz no desenrolar da ação humana, em suas lutas e batalhas, propicia a for- mação da classe, dotando-a de uma consciência, mesmo que embrionária, como Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 23 sentimento de “pertencimento” a uma determinada classe distinta e antagônica daquela dominante. Essa “experiência coletiva” é melhor analisada no clássico A formação da classe operária inglesa, também de Edward Thompson, bem como o papel de movimentos como o cartismo e o ludismo ou os “destruido- res de máquinas”. No processo de formação de uma “consciência de classe” que diferenciava os trabalhadores urbanos da burguesia e da nobreza, esses motins tiveram uma função efetiva e simbólica. Na tentativa de manutenção dos direitos tradicio- nais, destaca-se um movimento que ficou conhecido como Ludismo e os motins “Rebeca e Swing” [oscilação, balanço]. Rebeca e suas “filhas” vêm do livro de Gênesis 24.61: “E abençoaram Rebeca e disseram-lhe: que a tua semente possua a porta dos seus inimigos”. Os motins Rebeca no País de Gales, como os motins nos condados meridionais na Inglaterra, foram originados por várias causas, todas, porém, ligadas à dissolução dos velhos laços da aldeia. À medida que a indústria e a agricultura capitalista se desenvolviam, tanto o camponês como o tecelão do tear manual estavam inevitavelmente condenados. Os nomes dos heróislendários, Rebeca, Ned Ludd (daí decorre a denominação Ludismo) e mesmo o Capitão Swing, viveriam e cresceriam, como Robin Hood, no folclore. Seus efeitos, porém, não se repetiriam e não teriam maior futuro do que as classes cujos protestos expressaram por um breve momento (RUDÉ, 1991, p. 161-178). Uma contribuição significativa de Hobsbawm está relacionada à tentativa de apreensão de como ocorreu o progresso político da consciência de classe. Nesse aspecto, a obra Os Trabalhadores, especificamente o capítulo intitulado “Os destruidores de máquinas”, é de vital pertinência. Nesse estudo, o autor rechaça mais uma vez a ortodoxia marxista que insistia em ver nos protestos de enfren- tamento e quebra de máquinas uma rebelião desorganizada, sem liderança e que refletia a ignorância da multidão frente à mecanização inevitável. Hobsbawm (1981, p. 21-22) demonstra que, inversamente à opinião convencional, “é evi- dente que a luta deles não foi uma simples luta contra o progresso técnico com tal”, mas sim uma tentativa coletiva de fazer pressão aos empregadores, traba- lhadores extras e furadores de greve, além de garantir a solidariedade essencial entre os trabalhares. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E24 A organização dos motins e protestos, ainda que clandestina, pois os líde- res, se descobertos, eram frequentemente condenados ao degredo ou mesmo à morte, teve como desdobramento maior a organização da classe operária em forma de partido, no movimento denominado Cartismo, derivado da Carta dos Povos (People’s Charter). Por volta de 1830 havia instituições de classe soli- damente fundadas, como sindicatos, sociedades de auxílio mútuo, movimentos religiosos, organizações políticas, periódicos. A esse processo, Thompson cha- mou de “fazer-se da classe operária” (making of). Apenas em 1824 os trabalhadores conquistaram o direito de livre associa- ção. A partir daí as chamadas trade-unions se estenderam por toda a Inglaterra e a união trouxe as armas da luta necessária, como a greve ou breves paralisações do trabalho (turn-out). Mas, em geral, essas associações eram constantemente derrotadas pelos fura-greves e pela “lei de oferta e procura de homens”, isto é, a massa de desempregados substituía os grevistas. Concomitante ao enfrentamento aberto, ao incêndio de fábricas, aos motins, a classe trabalhadora organizou-se em termos políticos, por meio da “Carta do Povo”, que reivindicara ao Parlamento (Câmara dos Comuns) sua participação democrática. Em 1838, uma comissão da Associação dos Operários de Londres, tendo à frente William Lovett, definiu a Carta do Povo em seis pontos principais (THOMPSON, 1987): 1. Sufrágio universal para todos os homens adultos sadios e não condena- dos por crimes. 2. Renovação anual do Parlamento. 3. Fixação de uma remuneração parlamentar a fim de que os próprios tra- balhadores sem recursos fossem eleitos. 4. Eleições por voto secreto, para evitar a corrupção e intimidação pela burguesia. 5. Circunscrições eleitorais para assegurar as representações equitativas. 6. Abolição da lei que permitia a eleição apenas por renda àqueles que tinham propriedades de terras no valor de pelo menos 300 libras. Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 25 Naturalmente, esses direitos poderiam pôr em desordem a estrutura da então democracia inglesa. Uma frágil aliança com a burguesia – que se aproveitou de uma insurreição cartista em 1842 para fazer aprovar a revogação da Lei dos Cereais, uma tarifa alfandegária sobre a importação de cereais – causou o revés do movimento. Mas sob o lema “O nosso meio é o poder político; a nossa finalidade é a felicidade social”, o Cartismo persistiu na luta pela participação democrá- tica, redução das jornadas (para 10 horas diárias) e manutenção dos salários e empregos em tempos de crise. “Em suma, embora o Cartismo refletisse os seto- res mortais de uma sociedade agonizante, foi ainda mais a expressão das dores do parto de uma nova sociedade”, conclui George Rudé (1991, p. 207). Ainda hoje, passados mais de duzentos anos dos primórdios da Revolução Industrial, há uma controvérsia acadêmica acerca dos impactos e da explora- ção sofrida pelos operários. Por outro lado, há diversos historiadores otimistas e conservadores que afirmam que houve melhorias nas condições gerais dos trabalhadores com a industrialização. Eles defendem essa tese sob o argumento verídico de que a população praticamente duplicou em 50 anos nas cidades industriais (Manchester, Birminghan, Yorkshire) e, posteriormente, em toda a Inglaterra, bem como o padrão de vida do operário. Outros autores, como Thompson e Engels, no entanto, afirmam justamente o inverso, pautados nas jornadas de quatorze horas, no trabalho infantil e na ausência de qualquer direito político, a não ser aqueles conquistados à força. Engels compara o moderno trabalhador com o mito grego de Sífiso, a maldição do trabalho repetitivo, do eterno retorno. Na mitologia grega, Sífiso foi conde- nado, por toda a eternidade, a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida. Marx afirmou que o trabalhador tornou-se um mero “instrumento” ou uma cifra qualquer. Veja a citação de Thompson (1987, p. 25) e reflita sobre as reais condições de trabalho durante a Revolução Industrial: A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E26 O escravo negro das Índias Ocidentais, mesmo trabalhando sob um sol tórrido, tem provavelmente uma brisa suave que às vezes o refresca, um pedaço de terra e tempo para cultivá-lo. O escravo fiandeiro inglês não desfruta do céu aberto e das brisas. Enclausurado em fábricas de oito andares ele não tem descanso até as máquinas pararem, e então retorna à sua casa, a fim de se recuperar para o dia seguinte. MULTIDÃO, MOTINS E CULTURA POPULAR NA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL “A cultura popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes” (Edward Thompson, Costumes em Comum, 1998, p. 308). A historiografia dos movimentos sociais evoluiu positivamente a partir das publi- cações de autores anglo-saxões como Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Perry Anderson, Edward Thompson, Raymond Williams e do canadense George Rudé, que, em meados da década de 1950, com a criação de revistas como a Past and Present e, depois, a New Left Review,rompem com a ortodoxia marxista (vulgar) baseada no determinismo econômico sem, no entanto, perder a “luta de classes” de vista. Nas palavras de Ronaldo Vainfas (1997, p. 155), trata-se “de uma visão marxista da história cultural”. De acordo com esse historiador, o campo teórico da cultura popular em Thompson valoriza a resistência social e a luta de classes em conexão com as tradições, os ritos e o cotidiano das classes populares, em um contexto histórico de transformação. São inter-relações recíprocas entre os dois universos culturais que, de certo modo, escreve Vainfas, aproximam-se do conceito de circularidade formulado por Ginzburg. “Pois não existe desenvolvi- mento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento ou mudança de uma cultura” (THOMPSON, 1998, p. 304). Em Costumes em comum, ao analisar os motins populares do século XVIII, Thompson (1998) afasta-se de interpretações tradicionais, nas quais as revoltas da “multidão” ou da “turba” seriam manifestações inconsequentes e niveladoras da “falta de consciência” da classe operária em formação. Defende a tese de que “a consciência e os usos costumeiros eram particularmentefortes no século XVIII”. Na verdade, alguns desses “costumes” eram de criação recente e representavam Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 27 as reivindicações dos novos “direitos” (THOMPSON, 1998, p. 13). Nesse processo de transição para a economia capitalista de mercado, a ênfase da transformação recai sobre toda a cultura, a resistência à mudança e sua aceita- ção também nasce da cultura, dos costumes tradicionais. “Essa cultura expressa os sistemas de poder, as relações de propriedade, as instituições religiosas etc., e não atentar para esses fatores simplesmente produz uma visão pouco profunda dos fenômenos e torna a análise trivial” (THOMPSON, 1998, p. 288-289). Thompson veria o século XVIII como um período de crescente confrontação entre a economia de mercado inovadora fruto da Revolução Industrial, baseada no Laissez-faire (conceito liberal que estudaremos ao final desta unidade), e uma economia moral das plebes, fundamentada na tradição paternalista e no direito consuetudinário. “O modelo paternalista existia no corpo da lei estatuária, bem como no direito consuetudinário e no costume” (THOMPSON, 1998, p. 152). É possível detectar em quase toda ação popular do século XVIII uma noção legitimadora (...) defendendo direitos tradicionais; e de que, em geral tinham o apoio e o consenso mais amplo da comunidade. De vez em quando esse consenso era endossado por alguma autorização concedida pela comunidade (THOMPSON, 1998, p. 152-155). Esses motins ou rebeliões não tinham como objetivo a destruição de bens mate- riais (como ocorre posteriormente com o Ludismo), eram um movimento coletivo, pouco organizado, em que a ação principal não era o saque de celeiros nem o furto de grãos de farinha, mas fixar o preço. Esse processo estava enraizado na mentalidade das massas graças a uma construção histórica de longa duração, baseada no Book of Orders, que, desde o reinado de Elizabeth, garantia o abaste- cimento mínimo de cereais à população por meio de magistrados que regulavam a distribuição, os estoques e até o preço dos grãos. Era, de fato, a intervenção e o controle do abastecimento por parte do Estado. As ordens de 1630 não autorizavam explicitamente os juízes a fixar o preço, mas mandavam-nos cuidar do mercado e assegurar que os po- bres fossem ‘abastecidos de cereais necessários [...] pelos preços mais razoáveis que se pudesse obter por meio da persuasão honesta aos juí- zes’. O poder de fixar o preço dos grãos e de farinha ficava, numa emer- gência, a meio caminho entre a imposição e a persuasão (THOMP- SON, 1998, p. 177). A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E28 No entanto esse modelo econômico baseado na regulamentação e no abasteci- mento direto do produtor ao consumidor, sem a presença do intermediário ou do atravessador, foi paulatinamente suprimido no decorrer da segunda metade do século XVIII, concomitantemente à Revolução Industrial. O modelo pater- nalista estava se rompendo em muitos pontos e a legislação contra a compra de mercadorias antecipadas fora revogada em 1772. Nesse período, o modelo paternalista tinha uma experiência real fragmentaria. Nos anos de boa colheita e preços moderados, as autoridades caíam no esquecimento. Mas se os preços subiam e os pobres se tornavam turbulentos, o modelo era ressusci- tado, pelo menos para produzir um efeito simbólico (THOMPSON, 1998, p. 160). Esse debate que culminou com a revogação da legislação contra as compras antecipadas assinalou uma vitória do laissez-faire, pois a liberdade ilimitada e irrestrita do comércio dos cereais era também o que Adam Smith pleiteava. Para Thompson (1998, p. 161), esse novo modelo econômico trazia consigo uma des- moralização da teoria do comércio e do consumo: Por ‘desmoralização’ não se sugere que Smith e seus colegas sejam imorais, ou que não se preocupassem com o bem público. O que se quer dizer é, antes, que a nova economia política havia sido limpa de imperativos morais inoportunos (...). A operação natural da oferta e da demanda maximizaria a satisfação de todos os grupos e estabeleceria o bem comum. O mercado nunca era mais bem regulado do que quando deixavam que se regulasse por si mesmo (grifo nosso). Seguindo o mesmo raciocínio: Em alguns aspectos, o modelo de Smith se adaptava mais acuradamen- te às realidades do século XVIII do que o modelo paternalista; e, em simetria e alcance de construção intelectual, era superior. Mas não se deve deixar de perceber o ar ilusório de validação empírica que o mo- delo contém. Enquanto o primeiro apela a uma norma moral – ao que devem ser as obrigações recíprocas dos homens – o segundo parece dizer “é assim que as coisas funcionam, ou funcionariam se o Estado não interferisse” (THOMPSON, 1998, p. 162). E prossegue Thompson (1998, p. 164) ainda no mesmo tom: “não apresentamos esses comentários para refutar Adam Smith, mas simplesmente para assinalar Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 29 pontos em que se deve ter cautela (...). Do modelo do laissez-faire, devemos dizer apenas que não é comprovado empiricamente”. Dessa maneira, a partir da análise cultural das mudanças estruturais e qua- litativas que ocorreram na passagem do século XVIII ao XIX, ou da sociedade agrária, paternalista, manufatureira para a sociedade industrial com economia de mercado, pode-se compreender o entrechoque dialético que ocorreu no inte- rior daquela cultura em transformação. De um lado, os valores morais, religiosos, paternalistas, tradicionais embasados no costume de longa duração; de outro, uma cultura em rápida transformação. A “economia moral” tinha como fundamento uma visão consistente e tra- dicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, às quais, consideradas em conjunto, podem dizer que constituem a economia moral dos pobres. Ou, dito de outra maneira, por economia moral entende-se a série de relações de trocas entre grupos sociais e entre pessoas, nas quais o bem-estar e o mérito de ambos os interessados tem procedência sobre outras considerações como o lucro de um ou de outro. Em síntese, Thompson nega a associação vulgar e primária de que os motins foram ocasionados unicamente pela fome ou falta de alimentos como o pão. Não se trata de uma mera associação entre fome e revolta, falta de alimentos e revoluções; relação meramente espasmódica e instintiva. Trata-se, antes, da luta pela manu- tenção dos costumes tradicionais e resistência aos novos ares da modernidade. Com os trabalhos do canadense George Rudé, houve um avanço teórico na abordagem da multidão na história, da turba, enquanto organização consciente das massas e extremamente eficaz na busca de seus objetivos imediatos. Em A multidão na história, Rudé (1991) afirma que esses movimentos de massa são uma transição entre a jacquerie camponesa e os movimentos milenaristas do passado e a greve do futuro. Para Rudé (1991, p. 207), a forma específica de protesto foi o motim da fome, uma “expressão das dores do parto de uma nova sociedade”. Em suma, O que vimos foi uma rica variedade de motivos e crenças, através dos quais as questões econômicas e os apelos aos direitos consuetudinários existiam, lado a lado com novas concepções do lugar do homem na sociedade e a busca do milênio (RUDÉ, 1991, p. 252). A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E30 O motim, portanto, é aforma característica e frequente do protesto popular que, ocasionalmente, se transforma em rebelião ou revolução. Tanto na França como na Inglaterra, a velha prática da intervenção oficial para proteger os pobres contra a alta dos preços e da fome tinha sido abandonada recentemente e estava ainda presente na memória popular – e muitas autorida- des ainda defendiam os velhos métodos. Narra George Rude (1991, p. 50): Em 1768, quando, entre a multidão que cercou a Câmara dos Lordes, havia pessoas que gritavam ‘que o pão e a cerveja estavam caros demais e que tanto valia morrer na forca como de fome’. Isso, porém, ocorreu num ano de greves e perturbações gerais, nas quais os fatores políticos tiveram um papel tão grande quanto a preocupação com o preço do pão [...]. Muitos assados, muito pudim de ameixas e cerveja forte, com 3 horas de diárias de trabalho. Essas eram as necessidades básicas pelas quais o povo lutava. Friedrich Engels descreve ainda uma grande revolta contra o aumento do preço da cerveja na região da Bavária, que durou quatro dias e obrigou o rei a revogar o aumento. O objetivo era realmente fixar o preço do alimento, do pão, da cerveja e até do dízimo. “Em muitas paróquias, o primeiro lugar visitado foi a casa do pároco, onde o ocupante era solicitado com cortesia, mas com firmeza, a reduzir os dízimos”. Em Sussex, os dízimos foram baixados de 1400 libras para 400 libras. “Párocos da Igreja Anglicana foram advertidos para que abrissem mão de seus dízimos” (RUDÉ, 1991, p. 174). Se Thompson cunhou o termo “economia moral”, pode-se dizer que Raymond Williams trabalha na “fronteira da moral”, entre o campo e a cidade, o contraste entre a urbes e o rústico. A moral aqui apresentada está embasada no contexto da cultura, na série de valores e costumes que perpassam as mudanças históri- cas e demoram para se adaptarem aos novos horizontes culturais e/ou religiosos. Contudo, ainda há em Williams um engajamento que o leva a ver as transfor- mações abruptas do século XVIII com certo estranhamento, tendo em vista sua origem em uma Grã-Bretanha rural. É o olhar do observador surpreso e às vezes pasmo de que lembra Friedrich Engels em “A situação da classe trabalha- dora na Inglaterra”. Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 31 Por meio da metodologia que Williams chama de “retrospecção” ou escada rolante, ele compara diversas épocas literárias, de Homero a Aldoux Huxley, sem, todavia, perder o século XVIII de vista. Ele discorda da interpretação de autores (mesmo os socialistas) que caem no que ele denomina de “idealização do indus- trialismo”. “A polidez do melhoramento tem como contraponto necessário a dura realidade do poder econômico, e uma ênfase moral diferente torna-se inevitá- vel” (WILLIAMS, 1989, p. 231). Nesse sentido, é licito aceitar o termo “fronteira cultural” entre o campo e a cidade: A canção da terra, a canção do trabalho rural, a canção do amor por tantas formas de vida com as quais todos nós partilhamos nosso uni- verso físico, é importante demais, comovente demais, para que abra- mos mão dela sem resistência, numa traição odiosa, e a entreguemos à arrogância dos inimigos de todas as formas significativas e concretas de independência e renovação (WILLIAMS, 1989, p. 365). No capítulo sobre os “Patrícios e Plebeus”, Edward Thompson (1998) examina as relações entre a gentry (nobres) e os trabalhadores pobres no século XVIII inglês e relativiza o termo “paternalismo”. De acordo com Thompson (1998, p. 42), aquele século testemunhou uma mudança qualitativa nas relações de trabalho (...) ficando todo o seu modo de vida menos marcado por uma posição de dependência do que tinha sido até então ou do que viria a ser nas primeiras décadas da disciplina da fábrica e do relógio [...] tinham es- capado dos controles sociais da aldeia senhorial e ainda não estavam sujeitos à disciplina do trabalho fabril. Em suma, foi uma fase de transição, uma fase predatória do capitalismo agrá- rio e comercial, “e o próprio Estado estava entre os principais objetos da rapina” (THOMPSON, 1998, p. 42). A tese central de Thompson (1998) é – compartilhando a opinião de Marcos Antônio Lopes e Sidnei Munhoz (2010) – de que o controle da classe dominante no século XVIII se localizava primordialmente em uma “hegemonia cultural” e apenas secundariamente em uma expressão de poder econômico ou físico (mili- tar). A resistência da populaça inglesa daquele período estava fundada em uma complexa trama que Thompson (1998) chamou de “reciprocidades paternalistas”, por intermédio da qual a gentry exercia o controle e a subordinação das plebes ao mesmo tempo em que as classes trabalhadoras impunham à aristocracia a A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E32 permanência dos costumes tradicionais. Assim, “longe de uma sociedade patriar- cal segura de si, o que o século XVIII presencia é o velho paternalismo prestes a entrar em crise” (THOMPSON, 1998, p. 45). Outro ponto fundamental trabalhado por Thompson em “Patrícios e Plebeus” é a contraposição teórica e metodológica de que o século XVIII representava um momento relativamente pacífico, sem contradições e lutas declaradas entre a plebe e a gentry. A cultura plebeia não era certamente revolucionária, nem sequer uma cultura proto-revolucionária (no sentido de fomentar objetivos ulte- riores que questionassem a ordem social). Contudo, tampouco deve descrevê-la como uma cultura deferente. Fomentava motins, mas não rebeliões; ações diretas, mas não organizações democráticas (THOMP- SON, 1998, p. 62). Nesse sentido, a insubordinação da plebe era uma inconveniência, não uma ameaça. O autor (1998, p. 68) não apresenta a Inglaterra do século XVIII como um teatro de terror cotidiano, mas adverte que “os historiadores mal começaram a avaliar o volume de violência anônima, normalmente acompanhada de cartas anônimas ameaçadoras”. Para Thompson (1998, p. 68), a tradição anônima, o teatro e contrateatro das classes antagônicas e, finalmente, a ação rápida e fugaz da multidão indicam que “no século XVIII, a resistência é menos articulada, embora frequentemente muito específica, direta e turbulenta”, considerando “a noção de reciprocidade gentry-multidão, de equilíbrio paternalismo-deferência”. TEMPO NATURAL E DISCIPLINA INDUSTRIAL Por fim, resta analisar a mais profunda e sutil mudança atrelada à Revolução Industrial, a alteração da própria noção de temporalidade histórica. A crescente racionalização do mundo moderno – Renascimento, Reforma, Contrarreforma, Iluminismo – levou ao processo que o sociólogo Max Weber (1983) chamou de “desencantamento de mundo”. O tempo profano veio desa- fiar o tempo sagrado cristão. Uma história desse mundo veio desafiar e conviver com a história universal sagrada. Deus não seria abandonado, mas não reinaria mais sozinho e de modo absoluto. O êxtase material desafia o êxtase religioso. Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 33 A rejeição da metafísica do mundo é revogada. A historicidade não mais é vista como um fardo, uma prova, uma pena. Emerge um novo personagem na his- tória: o homem da cidade, o burguês, o comerciante, que avança pelos oceanos na conquista desse mundo. “Aquele diálogo bíblico entre Jesus e o demônio, em que este promete a Jesus todas as riquezas deste mundo em troca de sua alma e submissão, ganha uma nova versão” (REIS, 2006, p. 21-23). É provável que José Carlos Reis refira-se ao mito do Fausto nessa passagem. A superação do tempo natural, presente desde o início da literatura, éanali- sada por Edward Thompson no capítulo sobre “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”, em Costumes em Comum. A investigação de Thompson pressupõe uma distinção clara na concepção de tempo entre camponeses, peque- nos artesãos e a ética do trabalho industrial, pois “o tempo agora é moeda, ninguém passa o tempo, e sim o gasta” (THOMPSON, 1998, p. 272). Antes da Revolução Industrial os sinos das igrejas davam o tom, mas a par- tir de 1790 ocorreu uma difusão geral de relógios portáteis no exato momento em que a Revolução Industrial requeria maior sincronização do trabalho. Dessa forma, “o tempo sideral, com um único passo abandonou os céus para entrar nos lares” (THOMPSON, 1998, p. 268). Esse processo que impôs uma nova disci- plina de tempo está situado na evolução da ética protestante, puritana, que teve no Metodismo operário um equivalente da teoria da predestinação, de Calvino; nesse ponto, Thompson aproxima-se de Weber de A ética protestante e o espí- rito do capitalismo. Sua tese é que a Revolução Industrial consolidou uma nova experiência com a noção de tempo; por meio da ascese metodista e da disciplina da fábrica institui-se um novo ritmo de trabalho e de lazer. Todos perceberam que tempo é dinheiro. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E34 José Carlos Reis (1994) afirma que, na Revolução Industrial, houve uma “revo- lução epistemológica” quanto ao conceito de tempo histórico, uma mudança substancial. A primeira grande mudança na noção de “tempo” foi produzida pela religião ao romper com o mito – a religião opôs a profecia ao ritual, a sal- vação futura contra a salvação na origem (na antiguidade). A segunda mudança foi realizada pela filosofia do século XVIII, ao romper com a religião, a filosofia opôs a utopia à escatologia, a demonstração racional à fé em uma profecia, um futuro humano, temporal, histórico, ao futuro divino, meta-histórico, eterno. Na perspectiva de José Carlos Reis (2006, p. 30), êxtase profano (utopia) venceu o êxtase religioso (parusia) da outra vida eterna. O futuro não é mais o fim do mundo. Agora, a espera é outra: a realização da história, do progresso, como obra dos homens, que se tornaram competidores de Deus na criação do mundo. Dessa maneira, a “utopia substitui a profecia. No ‘fim da história’, a espera é outra: não mais o apocalipse, mas uma sociedade moral e racional” (REIS, 1994, p. 11). Portanto, a perspectiva teológica do tempo histórico foi uma primeira revolução epistemológica: rompeu-se com a a-historicidade do mito, com circularidade supralunar grega e aceitou-se o tempo como irre- versibilidade, singularidade, linearidade, sentido e finalidade. (...) Para Koselleck, a história era impensável, antes da Revolução Francesa, como podendo ser feita pelos homens. Fazer a história era uma ideia nova, moderna. Foi, portanto, uma segunda revolução epistemológica na compreensão do tempo e da história (REIS, 1994, p. 11). A característica do “Metodismo” é o caráter sistemático, metódico da condu- ta no sentido da obtenção da graça. “A teologia do metodismo, em virtude de seu oportunismo inescrupuloso, estava melhor preparada do que qual- quer outra para servir de religião a um proletariado que não tinha qualquer razão para se sentir ‘eleito’, em função de sua experiência pessoal. Na sua teologia, Wesley parece ter dispensado os melhores elementos do Puritanis- mo e selecionado, sem hesitação, os piores”. Fonte: Thompson (1987, p. 240). Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 35 O Iluminismo trouxe o pressuposto da disponibilidade da história à ação e ao homem, que seria então Deus sobre a Terra, livre, consciente e potente para rea- lizar o futuro que ele desejasse. No capítulo sobre “O tempo de Deus e tempo dos homens”, Ivan Manoel (2004, p. 47) afirma que, na tradição católica, o tempo não pertencia ao homem, “o tempo trazia inscrito, como inerente a si, a marca da sacralidade. Por isso sua cadência era marcada pelo repicar dos sinos e pelo cantochão gregoriano. Dito de outra forma, “o reino de Deus era a bússola dos homens no tempo”. O pressuposto da Igreja era de que “o tempo de Deus e da natureza fora suplantado pelo relógio de bolso” (MANOEL, 2004, p. 47). Esse impacto temporal foi obra da Revolução Industrial. “Antes dos relógios existirem, todos tinham tempo. Hoje todos têm relógios”. Fonte: Eno T. Wanke. Figura 2: “A Liberdade guiando o povo”, Eugène Delacroix, 1830. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E36 REVOLUÇÃO FRANCESA “A crença de que a sociedade tradicional seja estática e imutável é um mito da ciência social vulgar. Não obstante, até um certo ponto de mu- dança, ela pode permanecer ‘tradicional’: o modelo do passado continua a modelar o presente, ou assim se imagina” (Hobsbawm, Sobre História, 1998, p. 57). A escolha da epígrafe que abre este tópico sobre a Revolução Francesa não é de uma obra específica sobre tal evento, mas denota a possibilidade de mudança histórica, da transformação feita pelos homens. Como vimos anteriormente, na discussão sobre o tempo histórico, antes da Revolução Francesa, a História (com “H” mai- úsculo) era impensável como obra dos homens. “A Revolução Francesa devolveu à terra a fé no impossível”, disse Edgar Quinet. A tradição cristã (sobretudo com Santo Agostinho, no século IV d.C.) consolidou o que pode ser denominado de “transcendência histórica”, o que ultrapassa os limites da experiência possível. Todavia, o declarado anticlericalismo dos franceses e, posteriormente, as dou- trinas materialistas devolveram à História sua materialidade. Ainda, nas revoluções inglesas de 1742 e 1788, havia forte conotação religiosa. Revolução Francesa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 37 Christopher Hill, seguramente o mais influente pesquisador da Revolução Gloriosa, tem uma tese polêmica e monumental sobre as representações, ora subversivas, ora conservadoras, da Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Hill (2003, p. 264) demonstra que, mesmo na esfera secular, não havia separabilidade entre política e religião: eu questionei se a Bíblia poderia ter sido, para a Revolução Inglesa, um equivalente de Rousseau para a Revolução Francesa ou de Marx para a Russa, isto é, uma fonte de estímulos intelectuais e de novas ideias críticas quanto às instituições existentes. Todavia, a Bíblia não produziu nenhuma filosofia política consensual. Ela foi usada como uma espécie de bagagem de citações que poderiam justificar qualquer coisa que um determinado indivíduo ou grupo desejasse. Nas palavras de Karl Marx (apud HILL, 2003, p. 61): “Cromwell e o povo inglês tomaram seus discursos, paixões e ilusões do Antigo Testamento (...). Quando a transformação burguesa foi consumada, Locke suplantou Habacuque [profeta hebraico]”. A sólida argumentação de Hill não deixa dúvidas quanto à utiliza- ção bíblica como representação, mesmo na esfera secular, em Hobbes, Locke, Milton, Newton, e, é claro, Oliver Cromwell. O próprio conceito de revolução social, segundo Hill, também surgiu nos anos 40 e 50 do século XVII, nasce em expressões bíblicas, tais como: “O mundo virado de ponta-cabeça” e na frase “derrubem, derrubem, derrubem” (Ezequiel 21.27). Essa introdução é importante para se pensar a racionalização da história que se segue à Revolução Francesa e devida também aos pensadores iluministas. O conceito de que a história é feita pelos homens de acordo com as circunstânciasque encontram (Marx) superou a doutrina do “espírito puro” de Hegel, (o mundo das ideias agindo na História independentemente da ação humana). Mas o pen- samento idealista ainda se faria sentir nos pensadores do século XIX como Alexis de Tocqueville [1805-1859], em obra monumental sobre a grande Revolução, mas que em determinado momento afirma que “a Revolução resolveu repentina- mente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precauções, sem deferências, o que ter-se-ia realizado sozinho” (TOCQUEVILLE,1997, p. 68, grifo nosso). Tocqueville refere-se à queda do Antigo Regime, do poder aristocrático do Clero e Nobreza, que, como veremos, permaneceu em maior ou menor grau até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), em países como Rússia, Alemanha, A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E38 Áustria, Império Otomano. Sem embargo, a História não se faz “sozinha”. O saudoso filósofo Leandro Konder (2009) certa vez pensou em elucidar essa questão com uma metáfora engenhosa. Ele comparou a História à escada rolante, pois certamente ela tem um sentido, um ritmo, uma direção determi- nada. Mas cabe ao homem ou à humanidade o processo de estacionar na escada rolante, descer ou acelerar o passo. A Revolução Francesa acelerou o processo de decadência do Ancien Régime em pelo menos um século. Hobsbawm (1995, p. 110) é categórico ao falar dessa dinâmica revolucionária: A revolução Francesa e os feitos de Napoleão abriram os olhos do mun- do. Antes as nações não sabiam de nada, e as pessoas pensavam que os reis eram deuses sobre a terra e que tinham que dizer que tudo que eles faziam era bem feito. Devido a esta mudança, agora é mais difícil dominar o povo. A análise política feita por Tocqueville em meados do século XIX ainda perma- nece atual, mas não pode ser referência única na análise do fato marcante que dividiu a história. Soma-se ao político francês o denso trabalho de seu contem- porâneo, o historiador Jules Michelet, e dos recentes estudos de François Furet, que o tornaram referência no tema. Enquanto Tocqueville aborda a obra polí- tica da Revolução no clássico O Antigo Regime e a Revolução, Michelet foca um grupo social até então marginalizado em meados dos oitocentos, o povo. François Furet, por sua vez, ocupa-se em relativizar a oposição entre a burguesia ascen- dente (o terceiro Estado) e a nobreza. Na sua interpretação, o conflito era, pois, entre a sociedade civil e contra o Estado. Com a entrada das massas (novos agentes históricos), a elite perdeu o controle sobre a Revolução, ao menos na fase jacobina, radical. Nesse sentido, a Revolução não seria uma luta de classes, mas uma competição de discursos pela apropriação da legitimidade. Em síntese, François Furet critica a tese quase consolidada da Revolução Francesa como uma revolução burguesa, a tomada do poder político da aristocracia pela burguesia em ascensão. A tese inversa, isto é, a da revolução como obra da burguesia e da luta de classes, Furet desqualifica como “vulgata marxista” que explica tudo a partir da ótica econômica. Revolução Francesa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 39 Para compreender essa trincheira de ideias, é preciso antes entender as diver- sas fases da Revolução, a alternância de poderes entre radicais e conservadores, não apenas até o golpe do 18 brumário de Napoleão (9 de novembro de 1799), mas a reação absolutista em 1815 (A Sagrada Aliança) e a elevação de Carlos X ao trono, as novas ondas revolucionárias de 1830 e 1848 até a proclamação da terceira República em 1870. Mesmo sob o signo da Revolução durante todo o século XIX, pode-se dizer que a França, sobretudo, Paris, tornou-se a capital daquele século. Vejamos no Quadro 1 a cronologia dos fatos para depois inter- pretar cada etapa desse movimento: CRONOLOGIA DA REVOLUÇÃO FRANCESA 1789 Convocação dos “Estados Gerais”. 1789 Revolta do Terceiro Estado e tomada da Bastilha. 1789 a 1791 Período de Monarquia Constitucional. Elaboração da Constituição em 1791 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, baseado em três prin- cípios: liberdade, igualdade e fraternidade (Liberté, Egalité, Fraternité). 1791 Fuga do rei Luís XVI. 1792 a 1795 Convenção Nacional ou período Jacobino com a ascensão de Robespierre ao poder. Intervalo mais conturbado da Revolução, em que a personagem principal foi a Guilhotina, denominando o que alguns teóricos chamaram de “Terror”. Mas foi também um ínterim revolucionário em termos de direitos: voto universal masculino, abolição da escravidão etc. Hobsbawm não aceita o termo “terror”, ele vê essa fase como “heroica”. 1794 Deposição de Robespierre. 1795 a 1799 Reação Termidoriana ou Diretório e a terceira Constituição. 1799 Consulado e o golpe do 18 de brumário de Napoleão. Quadro 1: Cronologia da Revolução Francesa Fonte: o autor. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E40 As causas imediatas da Grande Revolução já são bem conhecidas: fome, insatis- fação popular, uma corte parasitária e, sobretudo, o Terceiro Estado (burguesia) desejoso de participar do jogo político. Mas essas condições já existiam, em maior ou menor grau, desde os setecentos. Assim como diversos pensadores teólogos tentaram reformar a Igreja antes de Lutero em 1517 (Jan Huss, John Wycliffe, Thomas Münzer) e acabaram queimados – à exceção de Wycliffe, que sobreviveu graças à proteção de nobres, mas seus restos mortais foram exumados e queima- dos – os predecessores de Robespierre, assim como de Lutero, ainda sobreviviam dentro da lógica do Antigo Regime. Em 1789, porém, as condições tornaram-se insuportáveis, tanto em termos econômicos (a aristocracia tornou-se anacrônica, retrógrada) quanto culturais e políticos (foi necessário um século de bombar- deios iluministas para abalar os pilares da aristocracia e do clero). Mas o moribundo Antigo Regime não morreria sem lutar, muito menos de causas naturais, como sustentou Tocqueville. Como vimos na introdução desta unidade, o que caracteriza o conceito de Revolução é acelerar determinado acon- tecimento, rompendo com o anterior. Nesse sentido, é válida a observação de Tocqueville (1997, p. 44), quando afirma que a Revolução teve dois períodos dis- tintos: “o primeira durante o qual os franceses parecem abolir tudo que pertenceu ao passado; e o segundo, onde nele vão retornar uma parte do que deixaram”. De fato a criação de um novo calendário, rompendo com a contagem de tempo a.C e d.C e a total supressão do clero foi paulatinamente relevada e restringiu ape- nas a subordiná-lo ao Estado, como Henrique VIII já o fizera na Inglaterra em 1534 nos Atos de supremacia. No entanto, sobre o novo calendário, Walter Benjamin (1994, p. 230) faz uma análise mais detalhada: A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador his- tórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias de reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo como os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica [...]. Revolução Francesa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 41 A QUEDA DA BASTILHA (1789) A queda da Bastilha em 14 de julho de 1789 marca o rompimento e a aceleração histórica, uma revolução de fato, e ainda é um feriado nacional dos franceses. A tomada da Bastilha não representou apenas uma mudança histórica no Estado francês, mas também na história da vida humana sob o Estado de direito.A queda da Bastilha foi interpretada por Walter Benjamin (2015) no recente livro intitulado “A hora das crianças”, uma coletânea de temas históricos desti- nados ao público infantil e narrados pelo próprio filósofo na rádio, durante a República de Weimar na Alemanha. Mais que um exemplo pedagógico e primor didático, o estilo benjaminiano é uma aula de como lecionar História. Ele inicia a narrativa mostrando a importância da Bastilha para os interesses da aristocra- cia, pois era uma prisão política, destinada aos inimigos do regime, aos crimes contra a segurança do Estado, conspirações e não um mero presídio para crimi- nosos comuns. A Bastilha foi construída entre 1369 e 1383. Seus muros tinham mais de 400 anos quando a revolução os levou abaixo. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E42 A narrativa de Benjamin ganha um ar de mistério (e cativa o leitor) quando demonstra como funcionava a Bastilha, por meio da lenda (possivelmente verí- dica) do homem da máscara de ferro. Um prisioneiro de origem nobre que trazia no rosto uma máscara negra e havia ordem para executá-lo imediatamente caso revelasse quem era. Tanto suspense levou inúmeros pesquisadores a buscar a ori- gem do suposto nobre e alguns chegaram à hipótese de se tratar de James Scott, o duque de Monmouth, filho de Carlos II e inimigo de James II, então rei da Inglaterra. Derrotado em 1685 e acusado de conspiração, foi executado naquele mesmo ano. Mas logo correu o boato de que o homem executado era na ver- dade um oficial do duque de Monmouth que havia dado a vida para salvar a do seu senhor. O verdadeiro duque teria escapado para a França, porém ali teria sido detido por Luis XIV e enclausurado na Bastilha. Havia ordens para que o prisioneiro fosse imediatamente morto caso revelasse sua identidade e, quando finalmente pereceu, sua cabeça foi separada do corpo e seu rosto desfigurado, além de todo o cuidado para queimar toda sua roupa de cama e eliminação de qualquer vestígio da cela onde havia habitado. Não havia qualquer direito político ou civil aos prisioneiros da Bastilha, mui- tos eram presos na calada da noite e só após anos saberiam ou não do motivo de sua prisão. Os poucos que saíam ainda com vida do local assinavam um termo de compromisso que os proibia de revelar uma palavra sequer do que tinham visto e ouvido ali dentro. Em um local onde todo contato era proibido, os pri- sioneiros se desdobravam para inventar formas de comunicação entre si. Alguns prisioneiros criaram uma forma de alfabeto através de pancadas na parede, outros ensinaram um cão a levar e trazer bilhetes escritos entre os corredores. “Todas essas coisas demonstram o quanto a Bastilha era uma ferramenta do poder, e o quanto ela não era um instrumento do direito”, conclui Benjamin (2015, p. 169). Portanto, o que caiu, no histórico 14 de julho de 1789, não foi meramente uma prisão secular, um depósito de armas ou os muros de uma for- taleza, mais que isso, foi uma instituição que ruiu como um castelo de cartas, bastando derrubar a primeira peça. Daí em diante, novos intendentes foram esco- lhidos, a nova Constituição aboliu os privilégios feudais, as terras da Igreja foram confiscadas pelo Estado e os clérigos subordinados à França e não mais a Roma. Revolução Francesa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 43 A FASE RADICAL: OS JACOBINOS (1791-1794) Em 1792, a ameaça de invasão externa das monarquias absolutistas como Prússia e Áustria e a situação desoladora pela fome dos sans-culottes (literalmente “sem calças” ou maltrapilhos) tornaram a revolução mais radical. O grupo liderado por Marat, Danton e Robespierre assumiu o controle, eram chamados de jacobinos. A origem da palavra “jacobino” deve-se ao fato de seus representantes reu- nirem-se no convento de São Tiago, dos dominicanos. Tiago em latim é Jacob, daí a denominação que é ao mesmo tempo uma ideologia e um poder, um sis- tema de representações que denota a ala mais radical da baixa burguesia. Decorre desse período a clássica separação entre direita e esquerda na política, enquanto os radicais sentavam-se à esquerda do Parlamento, em oposição aos Girondinos, ala conservadora da burguesia que ficava à direita. No mesmo ano, o rei Luís XVI foi condenado por traição à Revolução, acu- sado de conspiração com a Áustria, e a personagem característica do período Jacobino entrou em ação: a guilhotina. Em 21 de janeiro de 1793, o rei foi exe- cutado e sua famosa rainha Maria Antonieta – que ficou eternizada pelo desdém aos pobres na conhecida frase “se não tem pão que comam brioches” – teve o mesmo destino. Robespierre, agora na dianteira da Revolução, enfrentaria dois fortes adversários, a ala radical de Danton e Marat (guilhotinados) e a contrarre- volução conservadora dos camponeses da região de Vendeia (partidários ainda da monarquia) e da alta burguesia. Ele acabou isolado, mesmo vencendo as ame- aças de invasão externa. A República Jacobina (1792-1794) foi a etapa mais radical e popular da Revolução. Para malograr o apoio do campesinato, diversas leis foram aprovadas para suprimir os direitos feudais, sem indenização. Nas cidades, para garantir o apoio dos sans-culottes, o preço dos alimentos foi tabelado e foram aprovadas leis rigorosas contra os especuladores. No campo político, houve nova Declaração dos direitos do homem e do cidadão, mais radical que em 1789. A nova Constituição de julho de 1793 reforçou o poder Legislativo, eleito pelo sufrágio universal, além da abolição da escravidão nas colônias. Por esses fatos, é lícito aceitar o termo de Hobsbawm, o “período heroico”, como contraponto ao senso-comum, o “terror”. A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848) Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E44 Alguns historiadores, como Hannah Arendt, afirmam que, na fase do “terror” jacobino, a Revolução Francesa desviou-se do ideal libertário no plano político para tornar-se uma revolução social, ao assumir o movimento de libertação das massas. Veja-se o discurso do próprio Robespierre em sua “Teoria do governo revolucionário”, de 1793 (ROBESPIERRE, online): O princípio do governo constitucional é conservar a República; a do governo revolucionário é fundá-la. O governo constitucional se ocupa principalmente da liberdade civil; o governo revolucionário da liberda- de pública. Sob o regime constitucional é suficiente proteger os indiví- duos dos abusos do poder público; sob o regime revolucionário, o pró- prio poder público está obrigado a defender-se contra todas as facções que o ataquem. O governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; aos inimigos do povo não lhes deve senão a morte. A FASE CONSERVADORA: O DIRETÓRIO (1795-1799) Em 1794, o golpe do 9 Termidor, pelo novo calendário francês (ou 27 de julho), marcou a reviravolta conservadora dos girondinos e a deposição de Robespierre. Uma nova Constituição foi elaborada com voto censitário, por renda, a escravidão foi retomada, marginalizando novamente as classes baixas. O período conser- vador ou Diretório (1795-1799) consolidou a alta burguesia como nova classe dominante, barrou a tentativa de radicalização pelos remanescentes jacobinos liderados por Graco Babeuf na chamada “Conspiração dos Iguais”. Babeuf foi denunciado antes mesmo da eclosão da revolta, sem apoio popular acabou na guilhotina após tentativa falha de suicídio. Suas ideias socialistas, porém, continu- aram vivas durante todo o século seguinte. Em vez de radicalização, despotismo (pouco esclarecido) de Napoleão Bonaparte. Bonaparte domou o gênio da Revolução, escreveu Tocqueville (1997). O gênio militar de Napoleão é evidente, assim
Compartilhar