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FACULDADE DE DIREITO DE SOROCABA – FADI Ciência Política e Teoria Geral do Estado – 2018 Professor Jorge Marum Resumo 8 – Elementos do Estado Moderno – Soberania “O direito e o poder são as duas faces de uma mesma moeda: só o poder pode criar o direito e só o direito pode limitar o poder” (Norberto Bobbio) Introdução. Da mesma forma que qualquer sociedade, o Estado tem, como um dos seus elementos essenciais, o poder. Entretanto, o poder do Estado possui características exclusivas que o diferenciam do poder das demais sociedades. A principal dessas características, típica do Estado Moderno, é a soberania. Por isso, a soberania é elemento essencial do Estado Moderno.1 Isso significa que, atualmente, não pode haver Estado propriamente dito sem soberania. Soberania é um dos conceitos mais importantes e polêmicos em Ciência Política e Teoria do Estado. A palavra vem do latim super omnia – superanus (supremo, superior a todos). Para a maioria dos autores, a soberania é uma característica essencial e exclusiva do poder do Estado. Por isso, trataremos de poder e soberania no mesmo capítulo, começando pelo poder. Poder do Estado. Como já mencionado em capítulo anterior, Max Weber define poder como “toda possibilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Além disso, sabemos que toda sociedade possui um poder. É importante, agora, saber o que diferencia o poder do Estado do poder das demais sociedades. Quem realiza muito bem essa distinção é Jellinek. Espécies de Poder. Segundo Jellinek, há dois tipos de poder nas sociedades em geral: o poder dominante e o poder não-dominante. O primeiro é específico do Estado, ao passo que o segundo é próprio das demais sociedades. O poder dominante, exclusivo do Estado, dispõe de força para, com seus próprios meios, obrigar à obediência de suas ordens (coação), o que não ocorre com os poderes não- dominantes.2 Assim, se uma sociedade particular ou mesmo uma pessoa pode, eventualmente, usar a força, ela o faz porque está autorizada pelo Estado. Como exemplo de poder não-dominante temos aquele exercido pelas igrejas, que podem ditar regras de comportamento a seus adeptos, mas não podem obrigá-los, pela 1 Alguns autores mencionam poder ou governo como elemento essencial do Estado. Preferimos, no entanto, soberania, porque esta é um traço específico do Estado Moderno e já envolve as noções de poder e governo, bem como a de ordem jurídica. 2 Teoría General del Estado, p. 534. força, a cumpri-las. É importante observar que não era assim nas formas históricas anteriores de Estado. Na Roma antiga, por exemplo, o pater famílias tinha poder dominante sobre a família e os agregados, e na Idade Média a Igreja e os senhores feudais tinham poder dominante sobre seus súditos. Já no Estado Moderno, o poder dominante se tornou atributo exclusivo (monopólio) do Estado. Poder Dominante. O poder dominante, exclusivo do Estado na modernidade, possui as seguintes características: é originário, porque não depende de nenhum outro poder e dá sustentação a todos os demais poderes; e é irresistível, ou seja, dotado de coação, da qual ninguém pode se subtrair. É importante frisar que, num Estado democrático de Direito, o poder deve ser dotado de coação legal, ou seja, o uso da força deve ser regulado e limitado pelo Direito. Poder legítimo. Outra questão importante relativamente ao poder do Estado é a sua legitimidade. Poder legítimo é aquele aceito pelo consenso social e não imposto à sociedade pela força. Nesse sentido, Rousseau destaca que até mesmo os piores governantes buscam a legitimação do seu poder, pois “o mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever”.3 Max Weber. Muitos autores trataram da legitimação do poder. Dentre eles, destaca-se Max Weber, para quem o Estado é o detentor do monopólio do uso legítimo da força. Segundo Weber, o poder, quando legítimo, deixa de ser mera imposição e se transforma em autoridade. Essa legitimação pode decorrer de três fundamentos: tradição, carisma e racionalidade. O poder legítimo segundo Max Weber. Quando se estuda o poder, é imprescindível conhecer o pensamento do grande sociólogo e cientista político alemão Maximilian Karl Emil Weber (1864- 1920). Conhecido como o “Marx burguês” (na verdade um anti-Marx), Max Weber se contrapôs à doutrina marxista de que as relações materiais (infraestrutura) originam a organização social e as leis (superestrutura). Na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (1905), por exemplo, Weber defende que o capitalismo floresceu a partir da ética protestante do trabalho, segundo a qual, ao contrário do que pregava o pensamento cristão medieval, o lucro não é pecado e a riqueza obtida pelo 3 Rousseau, Do contrato social. trabalho árduo e honesto é uma dádiva de Deus. 4 Segundo essa visão, portanto, foram as idéias que deram origem a um sistema econômico, e não o contrário, como pensava Marx. Tratando do poder, como vimos acima, Weber o define como “toda possibilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Percebe-se que essa definição, tipicamente sociológica, não se preocupa em buscar um fundamento legítimo para o poder. Ao tratar do poder estatal, no entanto, Weber diz que o Estado detém o monopólio do uso legítimo da força. É a legitimidade que transforma o simples poder em autoridade. Como, então, reconhecer o exercício legítimo do poder pelo Estado? Em lição que se tornou clássica, Max Weber considera que existem três formas de poder legítimo, ou seja, existem três fundamentos legítimos para o poder. São eles: a tradição, o carisma e a racionalidade legal. 5 São, portanto, formas de poder legítimo (autoridade) segundo Max Weber: Tradicional: não depende da lei formal, legitimando-se por uma antiga tradição, sendo próprio das monarquias. Exemplos de poder tradicional são as antigas monarquias europeias, como a britânica, a sueca, a dinamarquesa etc. “O contrato social é entre os que estão vivos, os que estão mortos e os que ainda vão nascer” (Edmund Burke) Carismático: baseado nas qualidades excepcionais do líder (carisma), que procura ligação direta com o povo, muitas vezes acima ou mesmo contra a lei. São exemplos de líderes carismáticos Júlio César, Napoleão Bonaparte, Hitler e Hugo Chávez. Racional ou burocrático: autoridade impessoal, derivada da lei, única forma em que poder e direito necessariamente coincidem. Exemplos de poder racional ou burocrático são as modernas democracias liberais, como EUA, Alemanha etc. É interessante destacar que, para Weber, a burocracia é um dado essencial para entender o Estado Moderno, representando um componente técnico e impessoal do poder estatal. Essa burocracia deve ser baseada no mérito, composta por técnicos de alto nível, selecionados por concurso público, bem remunerados, com estabilidade no emprego e garantia de aposentadoria especial e inspirados por valores como honra, dignidade e senso de dever para com a comunidade. É importante assinalar que essas três formas ideais de poder legítimo dificilmente ocorrem isoladamente, sendo mais comum que se apresentem de forma combinada. Isso ocorreu, por exemplo, com Hitler na Alemanha e com Hugo Chávez na Venezuela: ambos chegaram ao poder legalmente e depois procuram ampliar seus poderes com base no carisma. Racionalização do Poder. Outra abordagem interessante acerca da legitimaçãodo poder pela razão é a apresentada pelo professor francês Georges Burdeau. Para esse autor, o poder do Estado deriva da própria força da ideia representada pelos objetivos fundamentais de uma sociedade (bem comum). Burdeau considera que o Estado foi criado para que as pessoas não obedecessem a outras pessoas, mas sim a um ente impessoal e abstrato. O Estado, assim, é uma forma de poder que enobrece a obediência, pois a relação entre governantes e governados deixa de ser baseada na força ou na vontade arbitrária dos governantes, passando a fundamentar-se no ideal de bem comum. Esse poder é abstrato, pois independe das pessoas que o exercem transitoriamente.6 A isso se denomina racionalização do poder. 4 Cf. ADAMS, Ian e Dyson, R. W. 50 pensadores políticos essenciais – Max Weber. 5 “A política como vocação”, in Ciência e política – duas vocações. 6 O Estado, Cap. I. “Se procurarmos o que é permanente no poder enquanto passam as figuras que exercem seus atributos, vemos que ele não é tanto uma força exterior que viria pôr-se a serviço de uma idéia quanto a própria força dessa idéia” (Georges Burdeau). 7 A Soberania. Além de dominante (originário e irresistível), atualmente se considera essencial que o poder do Estado seja soberano. A soberania é, assim, uma característica essencial do poder do Estado de tipo moderno. Na modernidade, só o poder do Estado é soberano e não há Estado propriamente dito sem poder soberano. Soberania é a qualidade que torna o poder do Estado supremo internamente e igual e independente em relação aos demais Estados no âmbito internacional. Histórico. O conceito moderno de soberania não era conhecido na Antiguidade nem na Idade Média, pois, segundo Jellinek, faltava, então, a noção da oposição entre o poder do Estado e os demais poderes, tanto interna como externamente.8 De fato, como já vimos anteriormente, o Estado de tipo Antigo dominava tudo em seu interior, porém não reconhecia que outros Estados pudessem dispor de igual poder. Na Grécia, era fundamental que a pólis gozasse de autarquia e autonomia, que significava o poder de governar a si próprias e fazer as próprias leis, sem interferências externas. Tratava- se de uma afirmação de independência, sem que necessariamente fosse reconhecido igual atributo a outros Estados. No Estado Romano, falava-se apenas no poder de Roma (potestas, maiestas), sempre num sentido de superioridade em relação aos demais povos. Na Idade Média, havia o conceito de “dupla soberania”, que seriam os poderes do rei e do povo, os quais, porém, na maioria das vezes, competiam com outros poderes (Igreja, senhores feudais etc.). Conceito moderno. A noção atual de soberania surge apenas no Estado Moderno, como conseqüência da afirmação do poder exclusivo e supremo do monarca sobre um território e um povo, em oposição aos senhores feudais, à Igreja, ao imperador e às cidades livres. Isso também significava independência no plano internacional, na medida em que não se admitia interferências externas e era reconhecido igual poder aos demais Estados. Deve-se a Jean Bodin a formulação do conceito moderno de soberania, ainda sob a ótica do absolutismo. A teoria de Jean Bodin. O primeiro teórico a tratar da soberania como característica exclusiva do poder do Estado foi o jurista francês Jean Bodin, na obra Os seis livros da República (1576). A obra foi escrita em defesa da monarquia absoluta, em oposição a teorias de origem protestante, que defendiam o chamado “governo misto”, inspirado na República romana, na qual o poder era distribuído entre os cônsules, o Senado e o povo. 9 Bodin definiu o Estado como o “reto governo de muitas famílias e do que lhes é comum, com poder soberano”. E a soberania, 7 Idem, p. 5. 8 Teoría General del Estado, p. 549. 9 Sobre a obra de Bodin, vide Jean-Jacques Chevallier, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, cap. II. segundo Bodin, seria o “poder absoluto e perpétuo numa república”.10 Buscando reforçar o poder monárquico no contexto do absolutismo, Bodin afirma que o poder soberano pertence exclusivamente ao rei e tem origem divina. Segundo Bodin, o soberano é legibus solutus (imune à lei) e superiorem non recognoscens (não reconhece poderes superiores). As únicas limitações ao poder soberano seriam as leis divinas e naturais, as quais ninguém, nem mesmo os reis, pode contrariar. É um poder perpétuo, no sentido de que não é exercido por prazo certo, sendo transmitido hereditariamente. E é também um poder de fato, no sentido de não depender do ordenamento jurídico. É importante assinalar que Bodin não defendia um poder tirânico, pois a soberania deveria respeitar as “leis naturais” (Direito Natural), dentre as quais a liberdade e a propriedade dos súditos. Jean Bodin Ainda conforme Bodin, a soberania conferia ao rei as seguintes prerrogativas: Legislar Decidir sobre a paz e a guerra Nomear altos funcionários Fazer justiça em última instância Exigir fidelidade e obediência dos súditos Conceder graça (perdão a criminosos) Emitir moeda Criar e aumentar impostos 11 A contribuição do contratualismo. Com o contratualismo, doutrina que surge no século XVII a partir das obras de Hobbes (1588-1679), o poder soberano passa a ser visto como derivado da ordem jurídica, sendo produto de um pacto realizado pelo povo. É o povo, portanto, quem concede ao soberano o direito de governar. Transita-se, 10 Bodin usa o termo República como sinônimo de Estado (res publica – coisa pública), e não como forma de governo, referindo-se inclusive à França da época, que era uma monarquia absolutista e não uma república. 11 Apud: Jellinek, ob. cit., p. 574. assim, de um fundamento de fato (força, dominação) para um fundamento jurídico da soberania. Rousseau e a soberania. Igualmente de grande na compreensão da soberania foi a obra de Rousseau. No Contrato Social (1762), Rousseau afirma que a soberania pertence ao povo e não ao rei, devendo expressar a vontade geral. Na mesma obra Rousseau escreve que a soberania é una (apenas uma soberania pode vigorar num Estado), indivisível (não se divide, admitindo-se apenas a distribuição de funções), inalienável (não pode ser delegada pelo povo), imprescritível (não tem prazo de duração). É também absoluta, no sentido de suprema, mas não deve impor obrigações inúteis aos cidadãos e tratar a todos com igualdade. Fundamento da soberania. Como visto acima, quando da formação dos Estados Modernos a concepção de soberania se baseava num fundamento exclusivamente político, ou seja, era uma questão de fato. O que valia era a força e a vontade do soberano. Essa concepção evoluiu ao longo dos séculos para uma justificativa jurídica, ou seja, baseada no Direito. Atualmente, predomina uma síntese dos dois fundamentos, sendo a soberania considerada pela maioria dos estudiosos como um conceito ao mesmo tempo político e jurídico. Veremos a seguir como essa evolução ocorreu. Rudolf Von Ihering Concepção Política de Soberania. Segundo uma concepção puramente política, poder é força e dominação. O que importa é que produza resultados, ou seja, tenha eficácia. É, portanto, uma questão puramente de fato. Para Ihering, por exemplo, só a força produz o Direito.12 Foi o que ocorreu, por exemplo, na formação dos primeiros Estados Modernos, quando os reis tornaram-se soberanos num território mediante a conquista pela força, impondo-se à Igreja, ao Império, aos senhores feudais e às cidades livres. Segundo essa concepção, a soberania pode ser definidacomo o poder incontrastável de mando, ou seja, o poder de querer coercitivamente e de fixar competências. Verifica-se, aqui, uma preocupação com a plena eficácia do poder.13 12 Rudolf von Ihering (1818- 1892), jurista alemão, autor do célebre opúsculo A luta pelo direito. 13 Cf. Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 80. Concepção jurídica de soberania. Segundo uma concepção puramente jurídica (normativista, positivista), o poder é criado pelo Direito. Hans Kelsen (1881-1973), por exemplo, sustenta em sua Teoria Pura do Direito que a ordem jurídica (direito posto, positivo) é escalonada como uma pirâmide em que as normas superiores são o fundamento de validade das inferiores. O ápice dessa pirâmide é a norma suprema ou fundamental, que é a Constituição do Estado. É ela que fornece fundamento de validade às normas inferiores, como leis e decretos, até as sentenças judiciais e os contratos, que são normas particulares (relativas a casos concretos). Hans Kelsen O fundamento de validade desse sistema seria uma norma hipotética, que não é posta, mas simplesmente suposta, ou seja, é um pressuposto lógico para a construção do sistema e inexistente no campo dos fatos.14 Kelsen não esclarece bem qual seria o conteúdo dessa norma hipotética. Alguns intérpretes do seu pensamento sustentam que esse conteúdo seria a própria ideia de justiça, enquanto outros afirmam que seria a obrigação de obedecer a tudo que está na Constituição.15 Os críticos apontam que esse seria o ponto fraco da doutrina de Kelsen, pois o fundamento da soberania fica sem sustentação no mundo dos fatos. 14 H. Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 163. 15 Cf. Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, Malheiros, 20ª ed., p. 20. De qualquer modo, segundo essa concepção jurídica a soberania é o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, ou seja, poder soberano é aquele que dá a última palavra sobre qual é a norma válida num Estado. Há, assim, uma preocupação com a eficácia do Direito.16 “O poder do Estado ao qual o povo está sujeito nada mais é que a validade e a eficácia da ordem jurídica, de cuja unidade resultam a unidade do território e a do povo” (Hans Kelsen). 17 Nos Estados Democráticos de Direito as funções da soberania estão distribuídas por vários órgãos, de modo que, dependendo do caso, um desses órgãos é quem dá a palavra final sobre a atributividade das normas. Em matéria de interpretação da Constituição, por exemplo, quem dá a palavra final no Brasil é o Supremo Tribunal Federal. Já em matéria de extradição de estrangeiros condenados no exterior pela prática de crimes, a última palavra cabe ao presidente da República. Miguel Reale e a concepção culturalista de soberania. O grande jurista brasileiro Miguel Reale (1910-2006), observando que tanto a concepção política como a jurídica de soberania são parciais e não explicam satisfatoriamente o fenômeno, faz uma síntese das duas concepções, expondo a sua concepção culturalista de soberania. Esse conceito decorre da Teoria Tridimensional do Direito, também da autoria de Reale, segundo a qual, assim como o Direito, o Estado é, ao mesmo tempo, um fenômeno social (fato), político (valor) e jurídico (norma). O poder é substancialmente político, mas não há organização social sem direito (ubi societas, ibi jus; ubi jus, ibi societas). O que há são graus de juridicidade, ou seja, a presença do Direito vai de um mínimo (a força ordenadamente exercida) até um máximo (força empregada exclusivamente como um meio de realização do Direito). O grau de juridicidade varia conforme o grau de desenvolvimento cultural de uma sociedade – daí a qualificação de culturalista dada a essa teoria. Segundo essa concepção culturalista ou jurídico-política de soberania, a sociedade, para organizar-se, necessita do poder, mas esse poder é sempre exercido segundo uma norma, ainda que primitiva. À medida que a sociedade evolui, o poder vai sendo cada vez mais exercido conforme os valores sociais, expressados pelo Direito. 16 Cf. Dallari, ob. e loc. cit. 17 H. Kelsen, ob. cit., p. 364. Miguel Reale, estudante de Direito Dessa forma, na visão de Reale soberania pode ser definida como a capacidade de um povo de organizar-se juridicamente e de fazer valer, dentro de seu território, a universalidade de suas decisões, nos limites dos fins éticos da convivência humana.18 Justificação da soberania. A soberania possui duas linhas doutrinárias de justificação pela origem: a doutrina teocrática (origem divina) e a doutrina democrática (origem humana). Pela primeira, o poder vem de Deus, sendo por este transmitido ao monarca ou ao povo. As monarquias absolutistas, por exemplo, abonadas por obras de autores como Filmer e Bossuet, afirmavam um direito divino dos reis de governar o seu povo. Já segundo a doutrina democrática, a fonte do poder soberano é o próprio povo, sendo por ele exercido diretamente ou por meio de representantes. Esse movimento veio contrapor-se ao absolutismo, afirmando que, ao direito divino da realeza, opunha-se a realeza divina do direito. Essa é a doutrina que predomina atualmente, sendo comum nas Constituições modernas a afirmação de que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Titular da Soberania. O titular da soberania é aquele que de fato exerce o poder soberano. Para Bodin, o titular da soberania era o monarca (absolutismo). Para Rousseau, esse titular seria o povo, que deveria exercer o poder diretamente (democracia direta). Para o Abade de Sieyés e outros teóricos da Revolução Francesa, o titular seria a nação, por meio de seus representantes (democracia representativa). Segundo Jellinek e outros adeptos da doutrina alemã da personalidade jurídica do Estado, o titular da soberania é o próprio Estado. Esta é a teoria mais aceita atualmente, sem excluir, contudo, o povo como fonte do poder, dado que o povo é elemento essencial do Estado e este é formado pelo povo. Objeto e significação. A soberania, como atributo essencial do Estado, tem reflexos no âmbito interno e nas relações internacionais. Internamente, ou seja, em relação ao povo do Estado e a quem se encontre em seu território, a soberania é o poder 18 Cf. M. Reale, Teoria do Direito e do Estado, p. 116 e segs. supremo, não podendo haver outro que com ele rivalize. Esse poder, contudo, não é absoluto, pois deve ser regulado e limitado pela ordem jurídica. Externamente, isto é, em relação aos outros Estados, a soberania significa igualdade e independência entre todos os Estados. Embora na ordem internacional existam Estados fortes e fracos, não existem Estados mais nem menos soberanos: todos são igualmente soberanos. Um Estado não pode interferir nos negócios internos nem violar a soberania de outro sem autorização da ONU, sob pena de sofrer sanções internacionais. Jellinek, no entanto, ressalva que a igualdade e a independência decorrentes da soberania são jurídicas, mas nem sempre reais.19 Relativização da Soberania. Segundo o jurista italiano contemporâneo Luigi Farrajoli, a soberania, que já foi considerada absoluta, atualmente é relativizada, tanto interna como externamente. Internamente, embora ainda seja o grau máximo de poder, ela é abrandada pelo Estado de Direito, pela separação de Poderes, pelos grupos de pressão, pelo mercado financeiro etc. Externamente, ela é atenuada pela ONU, por tratados internacionais, blocos econômicos etc. Existe ainda a teoria da negação da soberania: segundoo “anarquista de cátedra” Duguit, por exemplo, ela não existe de fato; o que existe é apenas a crença na soberania. Conclusões. Soberania não é o poder, mas sim uma qualidade essencial e exclusiva do poder no Estado Moderno. É expressão do poder máximo, mas não do poder absoluto, pois tem regras e limites para o seu exercício, seja interna, seja externamente. Seu titular é o Estado, mas sua fonte é o povo. É elemento essencial do Estado, pois sem soberania não pode existir Estado propriamente dito. 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CCoomm oo tteemmppoo,, ooss mmeemmbbrrooss ddoo IIrrgguunn ddeeiixxaarraamm aa ccllaannddeessttiinniiddaaddee ee oo pprróópprriioo BBeeggiinn vviirriiaa aa ttoorrnnaarr--ssee pprriimmeeiirroo--mmiinniissttrroo ddee IIssrraaeell,, rreecceebbeennddoo oo pprrêêmmiioo NNoobbeell ddaa ppaazz eemm 11997788 ppeelloo ttrraattaaddoo ddee ppaazz ffiirrmmaaddoo ccoomm oo EEggiittoo.. 2200 Para discussão: 20 Cf. Martin Gilbert, História de Israel, cap. 12. Considerando que Michel Temer não foi eleito para ser presidente da República, seu poder é legítimo conforme a doutrina de Max Weber? As invasões do Afeganistão e do Iraque por coalizões lideradas pelos EUA podem ser consideradas violações à soberania daqueles Estados? Seria justificável intervir na Venezuela para restaurar a democracia? Bibliografia Leitura essencial: DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 31 a 38 e 53 a 56. Leituras complementares: ADAMS, Ian e Dyson, R. W. 50 pensadores políticos essenciais – Max Weber. CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, cap. II. BURDEAU, Georges. O Estado, Cap. I. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. GILBERT, Martin. História de Israel, cap. 12. JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, Livro III, cap. 13, item II. KELSEN, Hans. Teoria Geral doDireito e do Estado, segunda parte, cap. II. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, cap. IV, itens 92 a 94.
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