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VII SOBERANIA 1. Conceito. 2. Fonte do poder soberano. 3. Teoria da soberania absoluta do rei. 4. Teoria da soberania popular. 5. Teoria da soberania nacional. 6. Teoria da soberania do Estado. 7. Escolas alemã e austríaca. 8. Teoria negativista da soberania. 9. Teoria realista ou institucionalista. 10. Limitações. 1. CONCEITO A exata compreensão do conceito de soberania é pressuposto necessário para o entendimento do fenômeno estatal, visto que não há Estado perfeito sem soberania. Daí haver Sampaio Dória dado ao Estado a definição simplista de organização da soberania. Como vimos no capítulo anterior, aos três elementos constitutivos do Estado — população, território e governo — alguns autores pretenderam a inclusão da soberania como quarto elemento. Sem razão, porém, visto que a soberania se compreende no exato conceito de Estado. Estado não soberano ou semissoberano não é Estado. Até mesmo o Canadá e a Austrália, com amplo poder de autogoverno, se classificam como “Colônias Autônomas”, por se subordinarem à Coroa Britânica. Soberania é uma autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder. Ressalta logo à evidência que não são soberanos os Estados membros de uma Federação. O próprio qualificativo de membro afasta a ideia de soberania. O poder supremo é investido no órgão federal. Conseguintemente, convencionou-se na própria Constituinte de Filadélfia, onde se instituiu o regime federalista, que as unidades estatais integrantes da União se denominariam Estados-Membros, com autonomia de direito público interno, sendo privativo da União o poder de soberania interna e internacional. Aliás, é mais apropriada a denominação de Província, para as unidades federadas. Alguns teóricos do federalismo norte-americano atribuem aos Estados-Membros soberania de direito interno... o que é rematada incongruência. A soberania é uma só, una, integral e universal. Não pode sofrer restrições de qualquer tipo, salvo, naturalmente, as que decorrem dos imperativos de convivência pacífica das nações soberanas no plano do direito internacional. Soberania relativa ou condicionada por um poder normativo dominante não é soberania. Deve ser posta em termos de autonomia, no contexto geral do Direito. Denominava-se o poder de soberania, entre os romanos, suprema potestas. Era o poder supremo do Estado na ordem política e administrativa. Posteriormente, passaram a denominá-lo poder de imperium, com amplitude internacional. Etimologicamente, o termo soberania provém de superanus, supremitas, ou super omnia, configurando-se definitivamente através da formação francesa souveraineté, que expressava, no conceito de Bodin, “o poder absoluto e perpétuo de uma República”. Historicamente, é bastante variável a formulação do conceito de soberania, no tempo e no espaço. No Estado grego antigo, como se nota na obra de Aristóteles, falava-se em autarquia, significando um poder moral e econômico, de auto suficiência do Estado. Já entre os romanos, o poder de imperium era um poder político transcendente que se refletia na majestade imperial incontrastável. Nas monarquias medievais era o poder de suserania de fundamento carismático e intocável. No absolutismo monárquico, que teve o seu climax em Luiz XIV, a soberania passou a ser o poder pessoal exclusivo dos monarcas, sob a crença generalizada da origem divina do poder de Estado. Finalmente, no Estado moderno, a partir da Revolução Francesa, firmou-se o conceito de poder político e jurídico, emanado da vontade geral da nação. Segundo o magistério superior de Miguel Reale, a soberania é “uma espécie de fenômeno genérico do poder. Uma forma histórica do poder que apresenta configurações especialíssimas que se não encontram senão em esboços nos corpos políticos antigos e medievos”. O Prof. Pinto Ferreira nos dá um conceito normativo ético-jurídico: é a capacidade de impor a vontade própria, em última instância, para a realização do direito justo. No mesmo sentido é o conceito de Clóvis Beviláqua: por soberania nacional entendemos a autoridade superior, que sintetiza, politicamente, e segundo os preceitos de direito , a energia coativa do agregado nacional. 2. FONTE DO PODER SOBERANO Problema dominante, neste tema, é o que diz respeito à fonte do poder de soberania e, consequentemente, o problema da sua titularidade. Para as teorias carismáticas do direito divino (sobrenatural ou providencial) dos reis, o poder vem de Deus e se concentra na pessoa sagrada do soberano. Para as correntes de fundo democrático, a soberania provém da vontade do povo (teoria da soberania popular) ou da nação propriamente dita (teoria da soberania nacional). Para as escolas alemã e vienense, a soberania provém do Estado, como entidade jurídica dotada de vontade própria (teoria da soberania estatal). Desdobram-se estes troncos doutrinários em várias ramificações, formando uma variedade imensa de escolas e doutrinas, de modo que não seria possível focalizar todas elas no âmbito restrito do programa escolar a que nos cingimos. Daremos, a seguir, uma súmula de cada corrente principal, remetendo os estudiosos às obras dos grandes mestres brasileiros, que esgotam o assunto, como Miguel Reale e Pinto Ferreira, especialmente à esplêndida monografia de Machado Paupério — O conceito polêmico de soberania. 3. TEORIA DA SOBERANIA ABSOLUTA DO REI A teoria da soberania absoluta do rei começou a ser sistematizada na França, no século XVI, tendo como um dos seus mais destacados teóricos Jean Bodin, que sustentava: a soberania do rei é originária, ilimitada, absoluta, perpétua e irresponsável em face de qualquer outro poder temporal ou espiritual. Esta teoria é de fundamento histórico e lança suas raízes nas monarquias antigas fundadas no direito divino dos reis. Eram os monarcas acreditados como representantes de Deus na ordem temporal, e na sua pessoa se concentravam todos os poderes. O poder de soberania era o poder pessoal do rei e não admitia limitações. Firmou-se esta doutrina da soberania absoluta do rei nas monarquias medievais, consolidando-se nas monarquias absolutistas e alcançando a sua culminância na doutrina de Maquiavel. Os monarcas da França, apoiados na doutrinação de Richelieu, Fénelon, Bossuet e outros, levaram o absolutismo às suas últimas consequências, identificando na pessoa sagrada do rei o próprio Estado, a soberania e a lei. Reunia-se na pessoa do rei o conceito de senhoriagem, trazido do mundo feudal, que se desmoronava, e a ideia de imperium, exumada das ruínas do cesarismo romano que ressurgia, exuberante, na onipotência das monarquias absolutistas. Todavia, o próprio Jean Bodin, teórico eminente do absolutismo monárquico, como observou Touchard, não se livrou de contradições, quando admitia a limitação do poder de soberania pelos princípios inelutáveis do direito natural. 4. TEORIA DA SOBERANIA POPULAR A teoria da soberania popular teve como precursores Altuzio, Marsilio de Padua, Francisco de Vitoria, Soto, Molina, Mariana, Suarez e outros teólogos e canonistas da chamada Escola Espanhola. Reformulando a doutrina do direito divino sobrenatural, criaram eles o que denominaram teoria do direito divino providencial : o poder público vem de Deus, sua causa eficiente, que infunde a inclusão social do homem e a consequente necessidade de governo na ordem temporal. Mas os reis não recebem o poder por ato de manifestação sobrenatural da vontade de Deus, senão por uma determinação providencial da onipotência divina. O poder civil corresponde com a vontade de Deus, mas promana da vontade popular — omnis potestas a Deo per populum libere consentientem —, conforme com a doutrinação do Apóstolo São Paulo e de São Tomás de Aquino. Sustentou Suarez a limitação da autoridade e o direito de resistência do povo, fundamentos do ideal democrático. E Molina, embora reconhecendo o poder real como soberania constituída, ressaltou a existência de um poder maior, exercido pelo povo, que denominou soberania constituinte. 5. TEORIA DA SOBERANIA NACIONAL A teoria da soberanianacional ganhou corpo com as ideias político-filosóficas que fomentaram o liberalismo e inspiraram a Revolução Francesa: ao símbolo da Coroa opuseram os revolucionários liberais o símbolo da Nação. Como frisou Renard, a Coroa não pertence ao Rei; o Rei é que pertence à Coroa. Esta é um princípio, é uma tradição, de que o Rei é depositário, não proprietário. A este entendimento, aliás, se deveu a convivência entre a Coroa e o Parlamento, em alguns Estados liberais. Pertence a Teoria da Soberania Nacional à Escola Clássica Francesa, da qual foi Rousseau o mais destacado expoente. Desenvolveram-na Esmein, Hauriou, Paul Duez, Villey, Berthélemy e outros, sustentando que a nação é a fonte única do poder de soberania. O órgão governamental só o exerce legitimamente mediante o consentimento nacional. Esta teoria é radicalmente nacionalista: a soberania é originária da nação, no sentido estrito de população nacional (ou povo nacional), não do povo em sentido amplo. Exercem os direitos de soberania apenas os nacionais ou nacionalizados, no gozo dos direitos de cidadania, na forma da lei. Não há que confundir com a “teoria da soberania popular”, que amplia o exercício do poder soberano aos alienígenas residentes no país. A soberania, no conceito da Escola Clássica, é UNA, INDIVISÍVEL, INALIENÁVEL e IMPRESCRITÍVEL. UNA porque não pode existir mais de uma autoridade soberana em um mesmo território. Se repartida, haveria mais de uma soberania, quando é inadmissível a coexistência de poderes iguais na mesma área de validez das normas jurídicas. INDIVISÍVEL é a soberania, segundo a mesma linha de raciocínio que justifica a sua unidade. O poder soberano delega atribuições, reparte competências, mas não divide a soberania. Nem mesmo a clássica divisão do poder em Executivo, Legislativo e Judiciário importa em divisão da soberania. Pelos três órgãos formalmente distintos se manifesta o poder uno e indivisível, sendo que cada um deles exerce a totalidade do poder soberano na esfera da sua competência. INALIENÁVEL é a soberania, por sua própria natureza. A vontade é personalíssima: não se aliena, não se transfere a outrem. O corpo social é uma entidade coletiva dotada de vontade própria, constituída pela soma das vontades individuais. Os delegados e representantes eleitos hão de exercer o poder de soberania segundo a vontade do corpo social consubstanciada na Constituição e nas Leis. IMPRESCRITÍVEL é ainda a soberania no sentido de que não pode sofrer limitação no tempo. Uma nação, ao se organizar em Estado soberano, o faz em caráter definitivo e eterno. Não se concebe soberania temporária, ou seja, por tempo determinado. A esta teoria daremos maior desenvoltura no capítulo do Contrato Social de Rousseau. 6. TEORIA DA SOBERANIA DO ESTADO A teoria da soberania do Estado pertence às escolas alemã e austríaca, as quais divergem fundamentalmente da Escola Clássica Francesa. Seu expoente máximo, Jellinek, parte do princípio de que a soberania é a capacidade de autodeterminação do Estado por direito próprio e exclusivo. Desenvolve esse autor o pensamento filosófico de Von Ihering, segundo o qual a soberania é, em síntese, apenas uma qualidade do poder do Estado, ou seja, uma qualidade do Estado perfeito. O Estado é anterior ao direito e sua fonte única. O direito é feito pelo Estado e para o Estado; não o Estado para o direito. A soberania é um poder jurídico, um poder de direito, e, assim como todo e qualquer direito, ela tem a sua fonte e a sua justificativa na vontade do próprio Estado. Dentro dessa linha de pensamento se desenvolvem as inúmeras teorias estadísticas, que serviram de fomento doutrinário aos Estados totalitários de após guerra. 7. ESCOLAS ALEMÃ E AUSTRÍACA Para as escolas alemã e austríaca, lideradas, respectivamente, por Jellinek e Kelsen, que sustentam a estatalidade integral do Direito, a soberania é de natureza estritamente jurídica, é um direito do Estado e é de caráter absoluto, isto é, sem limitação de qualquer espécie, nem mesmo do direito natural cuja existência é negada. Sustentam que só existe o direito estatal, elaborado e promulgado pelo Estado, já que a vida do direito está na força coativa que lhe empresta o Estado, e não há que falar em direito sem sanção estatal. Negam a existência do direito natural e de toda e qualquer normatividade jurídica destituída da força de coação que só o poder público pode dar. Daí a conclusão de Austin, com base na doutrina do mestre vienense, de que não existe direito internacional por falta de sanção coercitiva. Portanto, se a soberania é um poder de direito e todo direito provém do Estado, o tecnicismo jurídico alemão e o normativismo kelseniano levam à conclusão lógica de que o poder de soberania é ilimitado e absoluto. Logo, toda forma de coação estatal é legítima, porque tende a realizar o direito como expressão da vontade soberana do Estado. Realmente, em face desse princípio da estatalidade do direito, princípio pan-estadístico, não se concede limitação alguma ao poder do Estado. É certo que Jellinek chegou a esboçar a doutrina da autolimitação do poder estatal, porém, sem nenhuma significação prática. Com efeito, se todo direito emana do Estado e este se coloca acima do direito, ressalta à evidência que a limitação do poder estatal por regras que dele próprio derivam não passa de mera ficção. O próprio Luiz XIV não seria um monarca absolutista, a levar-se em conta a sua faculdade pessoal de autolimitação. Nem o próprio Deus seria absoluto... Em verdade, porém, a primeira e inarredável limitação ao poder soberano dos governos decorre dos princípios incontingentes e imprescritíveis do direito natural. A ordem natural é anterior e superior ao Estado, e sua observância constitui mesmo uma condição de legitimidade do direito e de qualquer ato estatal. Outra limitação, também imperiosa, é a que decorre das regras de convivência social e internacional. O Estado não pode criar arbitrariamente o direito; ele cria a lei, o direito escrito, que é apenas uma categoria do direito no seu sentido amplo. Como acentua Pontes de Miranda, o Estado é apenas um meio perfectível, não exclusivo, de revelação das normas jurídicas. A lei que dele emana há de corporificar o direito justo como condição de legitimidade. Sobretudo, o Estado não é um fim em si mesmo, mas um meio pelo qual o homem tende a realizar o seu fim próprio, o seu destino transcendental, como o demonstram as teorias liberais e humanistas. As teorias da soberania absoluta do Estado, malgrado o seu caráter absolutista e totalitário, tiveram ampla repercussão no pensamento político universal, inclusive na própria França com Carré de Malberg e Louis Le Fur. Justificaram os Estados nazista, fascista e todos os totalitarismos, que conflagraram o mundo por duas vezes mas foram contidos pela força superior do humanismo liberal. 8. TEORIA NEGATIVISTA DA SOBERANIA A teoria negativista da soberania é da mesma natureza absolutista. Formulou-a Léon Duguit, desenvolvendo o pensamento de Ludwig Gumplowicz: A soberania é uma ideia abstrata. Não existe concretamente. O que existe é apenas a crença na soberania. Estado, nação, direito e governo são uma só e única realidade. Não há direito natural nem qualquer outra fonte de normatividade jurídica que não seja o próprio Estado. E este conceitua-se como organização da força a serviço do direito. Ao conceito metafísico de soberania nacional opõe Duguit o conceito simplista de regra de direito como norma de direção social. Assim, a soberania resume-se em mera noção de serviço público. A teoria negativista de Duguit, considerando a soberania “um princípio ao mesmo tempo indemonstrado, indemonstrável e inútil”, suscitou sempre as mais acirradas polêmicas no mundo da ciência política, destacando-se entre os seus mais fortes opositores Bigne de Villeneuve e Jean Dabin. A negação da soberania, acentuou Esmein, só pode levar a um resultado claro: afirmar o reino da força. Com efeito, o conceito de soberania, tal como predomina entre os povos democráticos,lança raízes na filosofia aristotélico-tomista: soberana, em última análise, é a lei, e esta encontra sua legitimidade no direito natural, que preside e limita o direito estatal. Vale lembrar aqui as palavras com que os constituintes argentinos de 1853 encerraram seus trabalhos — os homens se dignificam prostrando-se perante a lei, porque assim se livram de ajoelhar-se perante tiranos. 9. TEORIA REALISTA OU INSTITUCIONALISTA A teoria realista ou institucionalista, modernamente, vem ganhando terreno em face das novas realidades mundiais. É forçoso admitir que a soberania é originária da Nação, mas só adquire expressão concreta e objetiva quando se institucionaliza no órgão estatal, recebendo através deste o seu ordenamento jurídico-formal dinâmico. Impõe-se afastar a confusão oriunda do voluntarismo radical entre os dois momentos distintos da formação do poder soberano: o momento social ou genético, e o momento jurídico ou funcional. A soberania é originariamente da Nação (quanto à fonte do poder), mas, juridicamente, do Estado (quanto ao seu exercício). Patenteia-se então irrelevante, em última análise, a polêmica entre os dois grandes grupos doutrinários que disputam a primazia no tocante à titularidade do poder e suas consequências: a escola francesa da soberania nacional e a corrente germânica da soberania do Estado. Se é certo que Nação e Estado são realidades distintas, uma sociológica e outra jurídica, certo é também que ambas compõem uma só personalidade no campo do Direito Público Internacional. E neste campo não se projeta a soberania como vontade do povo, senão como vontade do Estado, que é a Nação politicamente organizada, segundo a definição que nos vem da própria escola clássica francesa. Este entendimento, evidentemente, não exclui a possibilidade de retomar a Nação o seu poder originário, sempre que o órgão estatal se desviar dos seus fins legítimos, conflitando abertamente com os fatores reais do poder. O eminente Prof. Machado Paupério, em sua magnífica monografia O conceito polêmico de soberania, tira a conclusão de que “soberania não é propriamente um poder, mas, sim, a qualidade desse poder; a qualidade de supremacia que, em determinada esfera, cabe a qualquer poder”. É, pois, um atributo de que se reveste o poder de auto-organização nacional, e de autodeterminação, uma vez institucionalizado no órgão estatal. Caberia acrescentar, como inarredável verdade, que todas as correntes doutrinárias da soberania se resumem, afinal, numa afirmação dogmática da onipotência do Estado. Fora da teoria anarquista, o Estado é sempre a racionalização do poder supremo na ordem temporal, armado de força coativa irredutível, autoridade, unidade e rapidez de ação, para fazer face, de imediato, aos impactos e arremetidas das forças dissolventes que tentem subverter a paz e a segurança da vida social. Portanto, embora seja poder essencialmente nacional, quanto à sua origem, sua expressão concreta e funcional resulta da sua institucionalização no órgão estatal. Passado o momento genético de sua manifestação na organização da ordem constitucional, concretiza-se a soberania no Estado, que passa a exercê-la em nome e no interesse da Nação. Este entendimento não se confunde com as teorias absolutistas do Estado nem com o radicalismo voluntarista da soberania nacional defendido pela escola clássica francesa. Conduz à conceituação da soberania como poder relativo, sujeito a limitações como a seguir se ressalta. 10. LIMITAÇÕES A soberania é limitada pelos princípios de direito natural, pelo direito grupal, isto é, pelos direitos dos grupos particulares que compõem o Estado (grupos biológicos, pedagógicos, econômicos, políticos, espirituais etc.), bem como pelos imperativos da coexistência pacífica dos povos na órbita internacional. O Estado — proclamou Jefferson — existe para servir ao povo e não o povo para servir ao Estado. O governo há de ser um governo de leis, não a expressão da soberania nacional, simplesmente. As leis definem e limitam o poder. E a este conceito, brilhantemente desenvolvido por Mathews, acrescentou Krabbe esta afirmação eloquente: a autoridade do direito é maior do que a autoridade do Estado. Limitam a soberania os princípios de Direito Natural, porque o Estado é apenas instrumento de coordenação do direito, e porque o direito positivo, que do Estado emana, só encontra legitimidade quando se conforma com as leis eternas e imutáveis da natureza. Como afirmou São Tomás de Aquino, uma lei humana não é verdadeiramente lei senão enquanto deriva da lei natural; se, em certo ponto, se afasta da lei natural, não é mais lei e sim uma violação da lei. E acrescenta que nem mesmo Deus pode alterar a lei natural sem alterar a matéria — Neque ipse Deus dispensare potest a lege naturali, nisi mutando materiam. Ergo lex naturalis est immutabilis seu proprio mutari omnino non potest. Limita a soberania o direito grupal, porque sendo o fim do Estado a segurança do bem comum, compete-lhe coordenar a atividade e respeitar a natureza de cada um dos grupos menores que integram a sociedade civil. A família, a escola, a corporação econômica ou sindicato profissional, o município ou a comuna e a igreja são grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado, alguns anteriores ao Estado, como é a família, todos eles com sua finalidade própria e um direito natural à existência e aos meios necessários para a realização dos seus fins. Assim, o poder de soberania exercido pelo Estado encontra fronteiras não só nos direitos da pessoa humana como também nos direitos dos grupos e associações, tanto no domínio interno como na órbita internacional. Notadamente no plano internacional, a soberania é limitada pelos imperativos da coexistência de Estados soberanos, não podendo invadir a esfera de ação das outras soberanias. Uma vez não contrariando as normas de direito nem ultrapassando os limites naturais da competência estatal, a soberania é imperiosa, incontrastável. Sem ser arbítrio nem onipotência, acentuou Mouskheli, é poder absoluto, encontrando, porém, sua limitação natural na própria finalidade que lhe é essencial. Assim, no plano internacional limita a soberania o princípio da coexistência pacífica das soberanias. Atualmente, as nações integram uma ordem continental, e, dentro dessa ordem superior, o poder de autodeterminação de cada uma limita-se pelos imperativos da preservação e da sobrevivência das demais soberanias. Na ordem internacional, essas limitações decorrem das participações dos Estados em organizações internacionais, são justificadas pelas necessidades de coexistência pacífica, segurança e desenvolvimento e são alavancadas pela globalização, merecendo, pela relevância dos temas, o tratamento específico, constante do capítulo seguinte.
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