Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 O Conceito de Pulsão em Psicanálise I.Introdução A palavra alemã “trieb” é de uso corrente neste idioma e aparece nas obras de Freud desde 1890, como O Projeto de uma Psicologia Científica, Estudos sobre a Histeria e na Interpretação dos Sonhos. Aparece, porém, parcamente e mal-definida e se confunde com os termos “triebregung” e “triebreiz” trazendo confusão quanto ao seu significado exato. No entanto, mesmo com toda a imprecisão terminológica destes textos, a palavra “trieb” (e suas correlatas) nunca foram confundidas com a palavra, raramente usada por Freud, “instinkt”. A palavra “instinkt aparece apenas 10 vezes em todos os escritos de Freud enquanto a palavra “trieb” surge centenas de vezes. Os estudiosos, em grande maioria, concordam que a tradução realizada por James Strachey da palavra “trieb” por “instinto” foi deliberada para amenizar o impacto do conceito de “trieb” na sociedade da época. De fato, o termo “trieb” é mais contundente que o termo “instinto” e sua tradução mais apropriada é “pulsão” pois este conceito se afasta largamente do conceito usual de instinto e estabelece uma das bases da Psicanálise e de seu modelo de comportamento humano. A pulsão não é mais que um conceito cujo objetivo não é descrever a realidade mas explicá-la. Não foi apreendido a partir de observações ou de dados científicos mas construído como modelo do real. Esta construção é segundo o próprio Freud “a mais “inconclusa da Psicanálise”, no entanto “a mais importante”. Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade o termo pulsão aparece ligado à palavra sexual, pulsão sexual, e refere-se a estímulos 2 endógenos constantes e seus representantes psíquicos. No “Projeto”, Freud diferencia muito bem os estímulos vindos do exterior dos endógenos. Os endógenos são estímulos especiais pois vêm diretamente do organismo e não são atenuados como os que vêm do exterior e que passam pelos sistemas sensitivos. A psique não possui proteção contra intensidades oriundas do próprio organismo e não pode fugir delas. Nisto reside “a mola propulsora do aparelho psíquico”: estar estimulado por estímulos endógenos, os quais não pode atenuar com a ajuda de capas sensitivas protetoras e nem dos quais pode escapar. A pulsão é a ligação entre o somático e o psíquico, a ponte psicossomática, a força de propulsão da vida. O papel da psique é, então, realizar alguma ação específica capaz de descarregar este acúmulo (excesso) de estímulos endógenos que seria prejudicial ao organismo se não descarregado. Observe que a pulsão é um estímulo que vem de fora do aparelho psíquico e que exige do mesmo alguma ação. Sendo assim, no aparelho psíquico não há pulsão, podendo existir uma representação dela mas não ela própria. Basicamente, entendemos por instintos os automatismos que, segundo a etologia, têm caráter de sobrevivência, manutenção da espécie e ainda socializantes. É um comportamento imutável que se transmite com a espécie e visa fins específicos. Portanto, a pulsão não pode ser considerada um instinto, como querem alguns, pois seus fins não são explícitos e não são os mesmos na espécie mas variam com o indivíduo. II. A Pulsão e seus Caminhos O conceito de pulsão foi desenvolvido ao longo de anos na obra de Freud e, como já dito, está, segundo seu próprio criador, 3 inconcluso. Basicamente, Freud afirmou que a pulsão possui quatro elementos, a saber: 1. Pressão – por pressão entende-se uma energia potencial, algo latente à pulsão e que exerce sua força e é, de fato, a sua essência. É por esta energia potencial que o aparato psíquico se movimenta. Esta energia potencial impulsiona a psique. Esta energia é constante, não como a fome ou a sede que podem ser saciadas apesar de serem estímulos endógenos, mas como um potencial energético sempre-presente e insaciável por não estar à serviço de nenhuma função biológica. 2. Alvo – o alvo da pulsão é sua satisfação completa que, segundo Freud, nunca poderá ser satisfeita. O melhor que o organismo e a psique podem conseguir é uma satisfação parcial da pulsão através de sua descarga por objetos. 3. Objeto – o objeto da pulsão pode ser qualquer coisa que permita a descarga parcial da mesma. O objeto da pulsão depende da fantasia e do desejo do indivíduo. O objeto freudiano é semelhante ao objeto de Kant, isto é, os objetos não estão disponíveis no mundo para a compreensão dos indivíduos. Ao contrário, as sensações impressas pelo objeto do mundo exterior sobre o indivíduo se associam formando o que se chama de associações-objeto. Estas associações só passam a representar o objeto a partir do momento que uma palavra (um nome) lhes é concedida. É a palavra que fornece ao objeto a sua identidade, formando na psique o que se chama de representação-objeto. 4. Fonte – a fonte da pulsão é o interior do soma, o interior do corpo. De fato, para Freud a pulsão é a interface entre corpo e mente. 4 Inicialmente, a pulsão era diferenciada em pulsão sexual (libido) e pulsão do eu. Freud definiu estes dois modos pulsionais pois Jung, com suas idéias monistas, ameaçava a teoria pulsional de Freud. Com o posterior conceito de narcisismo, a pulsão do eu se confundia com a pulsão sexual pois, na realidade, a pulsão do eu era apenas a pulsão sexual dirigida a si próprio. Freud postulou, então, a existência uma pulsão de morte contra a qual a pulsão de vida atuaria. A confusão gerada por várias definições de pulsão ao longo da obra de Freud foi iniciada a partir do próprio Freud quando explicitou a idéia de “apoio”: as pulsões surgiram apoiadas nos instintos. Por exemplo, quando um recém-nascido suga o seio da mãe está satisfazendo a necessidade instintual de fome e ao mesmo tempo tendo prazer neste sugar. À medida que cresce, a necessidade instintual da fome é satisfeita por outras formas de alimentação mas o prazer do sugar continua e a criança passa a sugar o dedo, a chupeta ou algum objeto qualquer. O prazer de sugar originou-se no instinto mas ganhou vida própria, autonomia, e tornou-se um prazer auto-erótico. O auto-erotismo é o ponto de separação entre o instintual e o pulsional. A pulsão seria o momento ontogenético onde o ser humano perde o instinto e seu objeto, tornando-se livre para dirigir suas energias para qualquer objeto que o satisfaça, sem nunca satisfazer-se totalmente. Freud afirma que a pulsão possui dois representantes psíquicos: os ideativos e os afetivos. Os ideativos têm como destino a inversão ou transformação no contrário, o retorno ao próprio ego, o recalcamento ou a sublimação. Já o afeto pode seguir o caminho da transformação, no caso da histeria, do deslocamento, no caso das idéias obsessivas, ou da troca de afeto, 5 no caso da neurose de angústia. O afeto é uma intensidade enquanto os representantes ideativos são representações mentais, imagens. Sendo assim, intensidades e imagens sofrem processos diferentes na psique. As intensidades afetivas podem deslocar-se, ligando-se a diferentes representantes ideativos. A transformação no contrário leva ao processo de sadismo-masoquismo, exibicionismo-voyeurismo, amor-ódio, atividade-passividade. Nesta transformação, nunca uma forma deixa de existir totalmente, persistindo sempre a conjugação das duas. Na sublimação, a pulsão muda seu objeto, deixando sua característica sexual e buscando a valorização social. A pulsão sexual encontra sua satisfação parcial na execução de atividades valorizadas socialmente, como a ciência, a arte e as letras, por exemplo. Esta forma de satisfazer a pulsão é menos egoísta, mais socialmente responsável, gerando os movimentossociais, as associações de classe, benfeitorias, filantropias, religiões, entre outras atividades da sociedade. Mesmo assim, a pulsão motora da sublimação não deixa de ser sexual. Em um primeiro momento, a pulsão sexual deixa de dirigir-se aos objetivos sexuais e reverte-se ao próprio ego do indivíduo (narcisismo). Já em um segundo momento, o ego a desvia esta pulsão para um objeto qualquer cuja conotação não seja diretamente sexual. O recalque é a tentativa de tornar inoperante uma pulsão pelo fato de sua descarga ser proibida ou desprazerosa. Se a economia prazer-desprazer implicar que a descarga da pulsão traga muito desprazer a uma instância psíquica, esta pulsão será recalcada, levada para o inconsciente e deverá ser satisfeita de outra forma, quem sabe pela sublimação. 6 III. Uma Nova Teoria da Pulsão A partir de 1920, Freud altera o conceito de pulsão passando a definir um novo dualismo, não mais entre pulsão sexual e pulsão do eu mas entre pulsão de vida e pulsão de morte. Freud, ao estudar o narcisismo, postulou que a pulsão sexual poderia ser dirigida ao próprio ego, sendo, assim, confundida com a pulsão do ego (auto-conservação). Além disto, sempre houve confusão a respeito da pulsão do ego e o instinto de conservação. O dualismo pulsional estaria, então, ameaçado. A solução encontrada por Freud para manter o dualismo do qual nunca abriu mão, foi conceber o dualismo não como algo de sua natureza mas como de seu modo. Desta forma, as pulsões seriam de mesma natureza e a diferença entre elas estaria no modo de representação no aparato psíquico. Assim, concebeu o modo conjuntivo e o disjuntivo da pulsão. Se a pulsão se representa no aparato psíquico como uma força mantenedora de junções, ela é dita pulsão de vida (eros). Já se a pulsão se representa no aparelho psíquico como destruidora de ligações, é dita pulsão de morte (tânatos). A nova teoria da pulsão retira da cena principal do psiquismo o princípio do prazer. Agora, existe uma pulsão de morte além do princípio do prazer, original e anterior a ele. Esta pulsão destrói, leva a vida ao retorno ao inorgânico, existente antes da vida própria ter surgido. Ao destruir, permite a construção 7 de algo novo posterior à destruição. A pulsão de morte promove a desconstrução para possibilitar as novas construções. Freud afirma que eros atua em sintonia com a cultura da humanidade, uma vez que reúne indivíduos em grupos abrangentes, formando associações. Se entendermos o desejo individual como a diferença entre as pessoas, eros estaria, ao formar grupos, conjungando pessoas, diminuindo as diferenças e, como conseqüência, diminuindo este desejo. Já a pulsão de morte como destruidora do que existe e promotara do surgimento do novo, estaria evitando a repetição e seria, de fato, a pulsão criadora. Eros apenas reproduziria o que existe, conservaria a existência e promoveria a repetição. Tânatos, por sua vez, evita a repetição, promove e diferença e a emergência do novo e do criativo. Esta visão bastante dualista e filosófica da nova teoria pulsional de Freud lançou muita controvérsia sobre o conceito de pulsão, como já comentado no início deste texto. IV. Conclusão O conceito de pulsão é repleto de controvérsias desde sua simples tradução que oscila entre a palavra instinto a palavra pulsão em função de explicações epistemológicas, filosóficas, hermenêuticas e até estatísticas. De fato não é um conceito retirado da observação experimental mas apenas um modelo de acesso à realidade, ou modelo explicativo dos processos psíquicos. De forma breve, a pulsão seria uma energia potencial constante, alimentando a psique e vinda do organismo endogenamente e não exogenamente. Por isto, o organismo dela não consegue fugir, precisando descarregá-la segundo várias possibilidades. É a mola propulsora da vida anímica e, inicialmente, dividida em pulsão 8 sexual e pulsão do ego, ou de auto-conservação. Possui 4 elementos básicos que são a pressão, o alvo, o objeto e a fonte. É elástica, podendo alterar seu objeto amplamente, desde que seja descarregada. Não deve ser confundida com o instinto mas pode ser entendida, pelo conceito de apoio, como tendo origem nos instintos e, posteriormente, desviando-se deles. A pulsão pode sofrer processos diversos no aparato psíquico, como a inversão, o retorno ao ego, a sublimação e o recalque. Cada um destes processos possui conseqüências culturais e individuais que acabam por possibilitar o entendimento do comportamento do homem como ser e como espécie. Após alguns anos de definida a primeira teoria das pulsões, Freud definiu uma segunda, na qual a pulsão do ego é absorvida na pulsão de sexual e passa a ser chamada de pulsão de vida. Em contrapartida, surge a pulsão de morte, destinada aos processos de disjunção, destruição e renovação. À pulsão de vida cabe o papel conservador da vida, agregador e socializador. A diversidade de conceitos e teorias que se desdobram a partir dos textos originais freudianos sobre o assunto é enorme. Surgem as mais variadas escolas de pensamento sobre o tema e todas oferecendo visões parciais sobre este conceito fundamental na Teoria Psicanalítica, porém certamente inconcluso. Bibliografia [1] Freud, S., Além do Princípio do Prazer, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1984. [2] Freud, S., Para Introduzir o Narcisismo, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1984. [3] Freud, S., Os Instintos e suas Vicissitudes, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1984. 9 [4] Freud, S., O Inconsciente, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1984. [5] Garcia-Roza, L. A., Introdução à Metapsicologia Freudiana, Vol. III, Jorge Zahar, 1995. [6] Ferraz, J., Pulsão e Libido, Um Estudo Comparativo da Teoria Psicanalítica, Vol. I, Mauad, 2000. Petrópolis, março de 2004 Luís Alfredo Vidal de Carvalho
Compartilhar