Baixe o app para aproveitar ainda mais
Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
1 QUESTÃO SOCIAL E HISTORIOGRAFIA NO BRASIL DO PÓS-1980: NOTAS PARA UM DEBATE – ÃNGELA CASTRO GOMES Objetivo do texto: ele deseja sustentar que as pesquisas de história, especialmente as teses e dissertações desenvolvidas no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980, produziram uma inflexão nos modelos interpretativos que tratavam do tema da questão social, no campo das ciências sociais em geral; A importância desses novos estudos, que serão aqui recortados na área de uma história social do trabalho, precisa ser avaliada tendo-se em vista o fato de que enfrentam autores e obras que construíram reflexões sobre o tema da questão social no Brasil em sua dupla e fundamental chave. Ou seja, trata-se de um amplo conjunto de estudos que atinge tanto as formas de pensar as relações entre senhores, escravos, dependentes e o Estado imperial, quer dizer, de pensar o trabalho escravo e o trabalho livre numa sociedade agrária e escravista, quanto as formas de pensar as relações entre classe trabalhadora, patronato e Estado, quer dizer, de pensar o trabalho assalariado e o papel do trabalhador em uma sociedade que se torna na crescentemente urbano-industrial, a partir do século XX. Pág 158 Novos estudos de história do Brasil estão articulados a toda uma “grande transformação” teórica e metodológica da historiografia em nível internacional que, brevemente, pode ser identificada como a chamada renovação da história política e de sua articulação com uma história cultural, que floresceram e chegaram ao Brasil, com mais intensidade, a partir dos anos 1970. Essa também foi a década em que começaram a se expandir e a dar frutos os programas de pós-graduação de várias instituições universitárias, que cresceram em função das políticas do governo do general Geisel (1974-79). Contudo, não excluiu a permanência de procedimentos de repressão dura e violenta. P. 159 No âmbito dos programas de pós de história e ciências sociais, os objetos recortados pelos alunos privilegiam o tema dos movimentos sociais urbanos e rurais, bem como história social do trabalho, na qual os protagonistas eram escravos, libertos, homens livres, camponeses, artesãos, operários e assalariados em geral. Tais escolhas estavam claramente articuladas com preocupações voltadas para o estudo do que se convencionou chamar de pensamento social brasileiro, especialmente em suas formulações autoritárias, abrindo-se caminho para investigações centradas no tema da cidadania e dos direitos, em sua trajetória de transformações na sociedade brasileira. P 159 De uma forma geral, pode-se dizer que tal conjunto retomava o grande tema da questão social, recusando a predominância de um enfoque socioeconômico mais estrutural e passando a privilegiar abordagens que ressaltavam variáveis políticas e culturais, para um melhor entendimento das relações sociais construídas entre dominantes e dominados. Com isso, ao lado de categorias já empregadas e que não são abandonadas, como a de classe social e ideologia, outras são introduzidas e consideradas de eficaz valor explicativo, como é o caso das de etnia, pacto, negociação e cultura política. Vou começar caracterizando o que essa historiografia quer rejeitar, tanto teórica como empiricamente. Essa historiografia não deseja seguir algumas premissas até então muito fortes: A primeira delas é a que consagrava uma análise dos processos sociais caracterizada pela linearidade e previsibilidade, em função da adoção de modelos teóricos de matriz estruturalista, fundamentalmente economicistas, quer fossem de extração marxista, mais comum na história, que fossem marcados pela lógica instrumentalista da ação coletiva, mais presente na ciência política e na sociologia. 2 A proposta dos novos estudos foi afastar a possibilidade de generalizações e formulações dos processos sociais, os quais seriam sempre históricos, isto é, datados e localizados no tempo e no espaço, não podendo ser compreendidos a não se por “dentro”, vale dizer, por meio das ideias e ações daqueles que estavam diretamente envolvidos, o que não permitiria esquemas ou verdades preestabelecidas. Com isso, análise dos processos sociais se “abre” à intervenção dos atores neles presentes, sendo aí crucial uma outra recusa teórica. Ela diz respeito ao abandono de modelos que trabalham com relação de dominação ( no mundo econômico, político e cultural), a partir da premissa de que o dominante é capaz de controlar e anular o dominado, tornando-o uma expressão ou reflexo de si mesmo. Ela significa defender teoricamente que, entre seres humanos, não há controles absolutos e “coisificação” de pessoas, e que, nas relações de dominação, os dominantes não “anulam” os dominados, ainda que haja extremo desequilíbrio de forças entre os dois lados. p. 160 Numa dimensão afirmativa, o que une todos esses estudos que retomam as relações sociais de dominação no mundo do trabalho é o fato de sustentarem que os trabalhadores (todos eles, inclusive os escravos) são sujeitos de sua própria história, abandonando abordagens simplistas, dicotômicas, teleológicas etc. p. 160 Nesse aspecto específico, quer os estudos que priorizam a segunda metade do século XIX e o mundo da escravidão, quer os que se voltam para o início do século XX e para o mundo do trabalho assalariado, se beneficiaram amplamente de uma literatura de história política, cultural e mesmo social do trabalho, inglesa e francesa, em grande parte. Alguns autores citados: Thompson pela contribuição que deu ao retornar o conceito de classe social, questionando sua reificação e toda uma lógica de determinação “em última instância” do político e do social pelo econômico. A afirmação de centralidade dos valores e comportamentos de um grupo social, que se releciona com a posição que ocupa no mercado de trabalho, mas não se esgota nela, foi fundamental para a valorização de questões que abarcavam a etnia, o gênero e as tradições culturais dos trabalhadores, por exemplo. Na mesma direção (a de que os fatores político- culturais são instituintes da realidade social e não simples “derivações”), vêm se agregar os trabalho de Robert Darton, Carlo Ginzburg e Sweel, entre outros. A possibilidade metodológica de se trabalhar com a dimensão social do pensamento e das ideias dos atores, explorando-se fontes que indicam “pistas” e “indícios” de um mundo considerado marginal e insuspeito, foi eficientemente perseguida e alcançada por essa historiografia. O que se tornou conhecido como o paradigma indiciário aproximou os historiadores da antropologia ( principalmente a de Cliford Geertz e de Marshall Sahlins) e de exercícios de crítica interna às fontes mais rigorosos e proveitosos. P 161 Do mesmo modo, foi utilizada a estratégia de redução da escala de observação própria à micro-história, e uma série de estudos de caso e de trajetórias individuais ganhou legitimidade para se conhecer melhor o mundo do trabalho. P. 161 As categorias pensamento, imaginário e cultura política passaram a frequentar os estudos do que se está chamando aqui, com alguma liberdade, de história social do trabalho. P. 161 Não só se politizam várias ações antes destituídas dessa dimensão (festas e práticas cotidianas), como também se entende que, no interior mesmo das relações entre os dominados, existem hierarquias e relações de poder. Uma dinâmica política de alianças e oposições muito mais complexa e sofisticada emerge para a análise historiográfica. Envolvendo “negociações” e produzindo alinhamentos aparentemente inusitados. Tal abordagem, contudo, não deve ser entendida (como as vezes o é) como uma tentativa de eliminar ou minimizar as tensões e oposições sempre existentes nas relações de dominação: mascarando o conflito. P. 162 3 O poder, nessa perspectiva teórica, não é um monopólio dominante, existindo também no espaço dos dominados, o de que não elimina a situação de desigualdade (muitas vezes radical) entre eles. P. 162 O que propõe o texto: *em primeiro lugar , tomar exemplos de uma literatura histórica que se concentrou no exame da sociedade escravista do século XIX, revisitando o tema da transição do trabalho escravo como ator fundamental dos rumos desse processo de “grande transformação”. Em geral, em tais pesquisas, as décadas de 1870 e 1880 recebem atenção privilegiada, por serem identificadas como o período de crise de um modelo de relações de dominação que possuía mais três séculos e alcançava todas as regiões e camadas sociais do país. * Em segundo lugar, serão examinados textos que se voltam para o estudo da sociedade brasileira no século XX, quando o processo de industrialização se estabeleceu e ganhou fôlego, trazendo para o cenário econômico e político as figuras do trabalhador urbano e do operário fabril. Nesses estudos, pode-se indicar a importância da questão da regulamentação do novo mercado de e pelo Estado e o exame do papel que trabalhadores e empresários tiveram no curso do estabelecimento da legislação que a materializou. P.162 ## a história social do trabalho escravo no Brasil oitocentista. P. 163 Os historiadores ( dessa história social do trabalho escravo) investiram contra os mitos, pois tratavam de questionar e demolir visões construídas sobre a sociedade escravista, cujas origens eram quase “inmemoriais”. Isso porque remontavam a uma literatura de viajantes e cronistas, datada do período colonial. E tal fato ocorrera, inclusive, nos trabalhos que se dispunham a denunciar a falsa democracia racial brasileira, apontando para as muitas desigualdades sociais fundadas no preconceito de cor existente no país. P.163 O primeiro desses mitos era o de caráter não-violento da escravidão no Brasil. Na verdade, os argumentos que sustentavam ser a escravidão mais “doce”, sendo o senhor de escravos mais “compreensivo”, em função de uma tradição de escravos domésticos e de uma prática de concessão de alforrias, entre outras, já vinham caindo por terra desde 1960. --- Gilberto Freire – Casa grande e senzala, maior referência para os historiadores. O segundo dos mitos, que pode ser denominado como o do “escravo coisa” era, de fato, o grande inimigo a ser destruído. O escravo se transformara efetivamente em “coisa ou peça”, como na linguagem de seus senhores e contemporâneos livres. A outra face do mito do “escravo coisa”, diretamente complementar à primeira, caracterizava um terceiro ponto a ser combatido: o do perigo do escravo rebelde quer dizer, quando os escravos escapavam do verdadeiro estado de anomia social em que viviam (sem qualquer forma de consciência, organização ou cooperação), só lhes restava um caminho: o da revolta racial. Assim, nessas formulações que buscavam denunciar a democracia racial e defender os direitos da população negra brasileira, o trabalhador escravo oscila entre duas concepções fundamentais: ou era a “peça”, sem autonomia, ou era o rebelde, uma ameaça radical à sociedade. P. 164 De uma maneira geral e muito incisiva, a historiografia que se constrói a partir dos anos 1980 questiona todos esses mitos e modelos. Ela tem como objetivo de fundo defender ideia de que o trabalhador escravo ( e também o liberto e o livre) era um sujeito histórico autônomo na sociedade escravista, sendo capaz de representar seu próprio mundo e nele atuar, naturalmente como dominado. Dessa maneira, tais estudos se propõem a revelar a experiência, no sentido thompsoniano, que esses trabalhadores construíram nas brechas do mundo senhorial. Demonstrando que o escravo era capaz, 4 mesmo sob a mais violenta formal de dominação, de construir redes de relações familiares e de solidariedade grupal; Do mesmo modo que o caráter absoluto da dominação e o caráter passivo dos dominados são negados, rejeita-se sua alternativa complementar: a do escravo como rebelde, visto apenas como um perigo eventual a ser eliminado, e não como um interlocutor constante e atuante. Uma opção teórica que, ao procurar combinar dimensões macro e micro-históricas, torna a análise mais complexa, mas também mais consistente. Um excelente exemplo desse fato é o exame das novas fontes utilizadas por esses estudos. São processos criminais, testamentos, inventários postmortem , escrituras de compra e venda de escravos, ações cíveis de liberdade, processos de compra de alforria, além, naturalmente, de jornais, relatórios oficiais, correspondência, memórias e textos literários, entre outras. P. 165 Comentário sobre os autores dessa temática: João José Reis, dois artigos “ a greve negra de 1857 na Bahia” (1993) e “De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da Abolição” (2000). Ambos os textos estudam um certo grupo de trabalhadores muito numeroso e importante no século XIX, em várias cidades do país, entre as quais Salvador, capital da Bahia. A questão central dos artigos era demonstrar que tais trabalhadores possuíam formas muito bem estruturadas de organização de seu trabalho na rua. P 167 Sidney chalhoub se dedica a um período considerado estratégico para o exame da crise do sistema escravista no Brasil. São os anos que decorrem da chamada Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, até a Lei Aurea, a da definitiva abolição do trabalho escravo, de 13 de maio de 1888. P. 168 *para analisar ele foram usadas “Visões da liberdade: uma hist. das últimas décadas da escravidão na corte” de 1990 e “machado de assis: histórias e história, de 2003. Hebe Mattos (tese do doutorado publicado em livro: “Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (séc XIX)”. A autora quer detectar o tipo de participação dos cativos no processo de destruição da escravidão e sua inserção nos processos sociais imediatamente posteriores ao fim do cativeiro, o que remete a análise para os últimos anos da década de 1880. P. 172 ## a história social do trabalho livre no Brasil do século XX Se uma história social do trabalho escravo teve que enfrentar mitos para se construir, o mesmo ocorreu com uma historiografia sobre a classe trabalhadora brasileira, que, como objeto histórico, começa a ser examinada em seu processo de formação a partir do fim da escravidão. Por via de uma orientação marxista ou de qualquer outra, o que se pode chamar de modelo populista de relações de dominação postula que os dominados podem ser e são, com frequência, praticamente destituídos de autonomia e consciência, quando submetidos a estratégias políticas próprias à sociedade urbano-industrial de massa. O texto da autora Ângela “ a invenção do trabalhismo”(1988), no livro as relações durante o processo de formulação das primeiras leis que regulam o mercado de trabalho livre no Brasil. Um processo que entende ter início na Primeira República e não apenas no pós- 1930, e no qual os trabalhadores tiveram presença fundamental, atuando sempre como interlocutores do Estado, mesmo quando eram duramente reprimidos. P 175
Compartilhar