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Fundamentos Teórico- Metodológicos Contemporâneos I Arno Vorpagel Scheunemann Fundamentos Teórico- Metodológicos Contemporâneos I ISBN: 978-85-5639-158-2 O Serviço Social da Universidade Luterana do Brasil entende que é im-portante ampliar, renovar, reconstruir os referenciais de formação e intervenção, incluindo, permanentemente, novos conceitos e categorias, haja vista o pluralismo defendido na profissão. Partindo desse entendi- mento, julga por bem incorporar conceitos e categorias sistêmicos em sua fundamentação teórico-metodológica. Por isso, a disciplina Fundamentos Teórico-metodológicos Contemporâneos I e este livro. Para abordar o referencial sistêmico, analiso, no Capítulo 1, a relação ser humano-mundo no ocidente: do Ego Cogito à vivência perceptiva. Essa análise está subdividida em: Da unidade “ser-humano-mundo” à dicoto- mização do Ego Cogito; Da dicotomização do Ego Cogito à unidade da vivência perceptiva. No Capítulo 2, busco apresentar elementos da trajetória de superação do raciocínio lógico-racional em direção ao sistêmico. Destaco quatro con- tribuições: processos circulares e a retroalimentação; a retroalimentação positiva; as estruturas dissipativas, a ordem por meio do ruído e a autorre- ferência; observação e linguagem não são neutras. No Capítulo 3, sob a forma de quatro subtemas, apresento a Teo- ria Sistêmica de Primeira Ordem. No primeiro, abordo a teoria sistêmica como estratégia de superação dos reducionismos. No segundo, apresento algumas tipologias de sistemas. No terceiro, abordo a origem da teoria sistêmica e destaco alguns pressupostos e conceitos. No quarto capítulo, abordo a Teoria Sistêmica de Segunda Ordem. Começo apresentando elementos da concepção de “vida” e “mundo” que possibilitaram a identificação das mudanças de segunda ordem. Na se- Introdução Introdução quência, foco os principais conceitos e categorias da Teoria Sistêmica de Segunda Ordem. No Capítulo 5, reflito o trabalho profissional do assistente social em perspectiva sistêmica. Na primeira parte, destaco contribuições da teoria sistêmica para a compreensão das relações dos sistemas e do ambiente. Na sequência, destaco sinalizadores para o trabalho profissional na pers- pectiva sistêmica de primeira ordem e de segunda ordem. Por fim, diferen- cio trabalho profissional sistêmico funcionalista, dialético e complexo. No Capítulo 6, abordo a Teoria Sistêmica e a Análise Institucional, apresentando conceitos e categorias. Para desenvolver essa temática, começo apresentando a origem e elementos da trajetória do Movimen- to Institucionalista e suas três primeiras práticas: Psicoterapia Institucional; Pedagogia Institucional e Análise Institucional. Na sequência, apresento os principais conceitos e categorias da Analise Institucional. No Capítulo 7, apresento uma proposta de roteiro para a análise or- ganizacional. Na primeira parte, destaco alguns desafios que se colocam quando se fala em análise organizacional no contexto do trabalho profis- sional em Serviço Social. Na segunda, apresento um roteiro para análise organizacional. Esse roteiro compreende: Identificação da organização; Constituição histórica da organização; Demandas e dinâmica da organiza- ção; Tipificação da organização; Análise da constituição e do histórico da organização; Análise das relações da organização com o ambiente; Análi- se da estrutura e dinâmica internas da organização; Análise da liderança e do poder da organização; Análise do Serviço Social na organização. Introdução No oitavo capítulo, “Teoria Sistêmica e abordagem narrativa: con- ceitos e categorias”, no primeiro momento, apresento algumas razões para a incorporação de conceitos e categorias sistêmico-narrativas no referencial do Serviço Social. No segundo, destaco conceitos e catego- rias sistêmico-narrativas importantes no universo do Serviço Social: Poder ascendente; História dominante; Histórias alternativas; Acontecimentos extraordinários; Estrutura da história; Paisagem da ação; Paisagem da consciência; Conversações internalizantes; Conversações externalizantes; Reautoração de vidas. No capítulo nove, “Teoria Sistêmica e abordagem narrativa: um méto- do, técnicas e procedimentos”, apresento o método sistêmico-narrativo da Reautoração de Vidas. Esse método compreende grandes momentos (ou fases), cujas partes podem acontecer simultaneamente ou em sequência cronológica: a externalização e a reautoração. A externalização compreen- de um contar e dois processos de “recontar”. A reautoração compreende: nomear, mapear os efeitos, avaliar, justificar, identificar desejos. Ressalto que, ao final de cada capítulo, apresento um “recapitulando” e uma atividade objetiva como estratégia de retomada e apreensão dos respectivos conceitos e categorias. Capítulo 1 - A relação ser humano-mundo no ocidente: do Ego Cogito à vivência perceptiva .................................................7 Capítulo 2 - Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico ................30 Capítulo 3 - Teoria Sistêmica de 1ª ordem ...................................48 Capítulo 4 - Teoria Sistêmica de 2ª ordem ...................................70 Capítulo 5 - Trabalho profissional do assistente social em perspectiva sistêmica ............................................................................96 Capítulo 6 - Teoria Sistêmica e Análise Institucional: conceitos e categorias ........................................................................116 Capítulo 7 - Análise organizacional sistêmica: uma proposta de roteiro ..............................................................................139 Capítulo 8 - Teoria Sistêmica e abordagem narrativa: conceitos e categorias ........................................................................166 Capítulo 9 - Teoria Sistêmica e abordagem narrativa: um método, técnicas e procedimentos ..................................................188 Sumário A relação ser humano- mundo no ocidente: do Ego Cogito à vivência perceptiva ÂÂ Conhecer a realidade e produzir conhecimentos são dois processos que dependem diretamente da manei- ra como é concebida a relação do ser humano com o mundo. As diferentes concepções da relação ser humano- -mundo podem ser classificadas em dois grandes grupos: as que priorizam o pensamento (razão, raciocínio, consci- ência, mente, reflexão objetiva); as que priorizam a vivên- cia cotidiana (corpo, percepção, intuição...). No primeiro Arno Vorpagel Scheunemann Capítulo 1 8 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I grupo, entende-se que o ser humano domina o mundo e o conhece a partir da razão. No mundo ocidental, a principal formulação dessa forma de conhecer é o Racio- nalismo Cartesiano (do filósofo francês René Descartes), cuja máxima é “Ego cogito, ergo sum” (Eu penso, logo existo). No segundo grupo, entende-se que a experiência corpórea (a vivência cotidiana) detém todas as dimensões da existência, logo, a base para compreender a realidade e produzir conhecimentos deve ser essa experiência cor- pórea que acontece de forma pré-reflexiva, ou seja, antes que o ser humano reflita sobre a realidade, seu corpo (e mente) a vivencia sentindo, percebendo, intuindo etc. O Serviço Social é uma profissão que, no seu fazer profissional, necessariamente há que conhecer a reali- dade e produzir conhecimentos. Neste capítulo, veremos pressupostos para fazê-lo priorizando o pensar ou, prio- rizando o viver. Não há como abordar toda a trajetória dessas duas maneiras de conhecer a realidade e produ- zir conhecimentos, por isso, destacarei alguns autores a partir dos quais será possível identificar os pressupostos de ambas. Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 9 1.1 Da unidade “ser-humano-mundo” à dicotomização do EgoCogito Desde a sua origem, o ser humano registrou sua vida a par- tir de suas criações: sinais, desenhos, pinturas, sinais gráficos etc. Além disso, apreendia a realidade e a vida, trazia sentido, compreendia seu existir por meio das lendas e dos mitos. Ao contrário da maioria das leituras ocidentais, os mitos aqui são vistos como criações do ser humano na busca de compreender-se a si mesmo, em uma relação estreita com a sua vivência. No e a partir do mito, o ser humano estabelecia sua proximidade com o real e formula regras para seu pensar e agir. O mito, para o ser humano primitivo, é a própria rea- lidade, pois não dicotomiza o mundo real e o mítico. Ambos estavam imbricados mutuamente. Nesse sentido, a consciência mítica jamais pode ser confundida com uma simbolização que o homem primitivo faria de si mesmo; o mito é sua própria vida. Uma dicotomização entre o simbólico e o real, que é um exercício de reflexão, significa um esva- ziamento da vida; o mito, por sua vez, é um pensa- mento encarnado.1 O desenvolvimento da temporalidade histórica fez o ser humano se situar em termos de presente, passado e futuro. O tempo e o espaço passaram a ser encarados como possibili- 1 Nilton Juliano FARIA. A tragédia da consciência, p. 17. 10 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I dades possíveis, não mais como possibilidades dadas (como nos mitos). A reflexão trouxe liberdade e autonomia ao ser humano em relação à sua história, mas dissociou-o de si mesmo e da natureza. O que antes era indissociável passou a ser refletido em uma relação sujeito-objeto. Sob o Racionalismo, essa dissociação se intensificou a pon- to de conferir à razão humana a capacidade de constituir e atribuir sentido à natureza, a toda a existência. A razão passou a ser o caminho para o ser humano se constituir como senhor e sujeito na sua relação com os outros e com a natureza. Em contrapartida, a alma, as paixões, os sentimentos e as sen- sações passaram a ser conhecidos e dominados pela e sob a égide da razão. Uma vez que realizasse esse domínio o ser humano se tornaria humano. O Ego cogito2 passou ser a medida de todas as coisas, in- clusive da existência humana. A racionalidade – a res cogitans (coisa pensante) – foi colocada acima do corpo – a res extensa (coisa exterior – aquilo que se estende ao redor da coisa pen- sante) – como possibilidade de saber, de apreensão do mundo e da vida. Conhecer, constituir e dar sentido a tudo passou a ser prerrogativa do espírito. A matéria precisava ser dominada para que não atrapalhasse a empresa do espírito. 2 Eu penso Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 11 Em Descartes, o Cogito foi exaltado ao máximo.3 Seu ob- jetivo era construir um caminho para se chegar à consciência clara e distinta a respeito das coisas, do mundo, da vida. Para tal, era preciso por em dúvida – a dúvida hiperbólica – tudo o que existe, inclusive a própria existência. Só há uma coisa que é certa, que é indubitável: se penso, está claro que existo – co- gito, ergo sum. Assim, tudo o que não é ideia ou pensamento fica em segundo plano quando se trata de descobrir a essência dos seres e fenômenos, pois o pensamento é mais certo que a existência corporal. As coisas exteriores (instituições, organizações, natureza etc.) são racionais em si mesmas. Isto é, apresentam uma ló- gica racional na sua constituição, organização e dinâmica. Cabe ao intelecto do sujeito apreender/decifrar essa lógica e representá-la em ideias. A realidade é racional e pode ser cap- tada pelas ideias, pois “a natureza, como é um sistema orde- nado de causas e efeitos necessários, cuja estrutura profunda e invisível é matemática, isto é, a causa de tudo é sempre um movimento e esse movimento segue leis universais perfeitas que podem ser representadas matematicamente.”. As coisas exteriores são conhecidas apenas quando o su- jeito as representa intelectualmente, apreendendo-as por operações cognitivas realizadas pelo próprio sujeito do conhe- cimento. Nada pode ser conhecido pelos dados que a realida- de sensível apresenta, pois esses dados podem ser enganosos. 3 Paul RICOEUR em O si-mesmo como um outro e Enrique DUSSEL em 1492: o encobrimento do outro apresentam detalhes dessa exaltação do cogito que se sobrepõe a tudo e a todos. 12 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I Para tal processo de conhecimento, Descartes formulou quatro regras para um método capaz conhecer a essência dos seres e fenômenos: 1 – Regra da evidência – só aquilo que está absolutamente evidente por causa de sua clareza e distinção pode ser aceito como verdadeiro. 2 – Regra da análise – cada dificuldade que surgir precisa ser dividida em tantas partes quantas forem necessárias para compreendê-la. 3 – Regra da síntese – o raciocínio precisa ser ordenado indo do mais simples ao mais complexo. 4 – Regra da enumeração – realizar numerosas verificações completas e gerais para se ter certeza e confiança absoluta de que nada ficou de fora. Em suma, haja vista os sentidos e os juízos serem engana- dores, caberia ao ser humano dominar todas as paixões, pois não são confiáveis, são enganadoras e conduzem à incerteza. A partir desse domínio e, solucionando a dúvida hiperbólica, mediante uma percepção racional clara e distinta, seria possí- vel traçar um conhecimento de si e do mundo. Nesse caminho, Descartes supõe uma espécie de “gênio maligno” cuja meta é promover o engano. 1.2 Da dicotomização do Ego Cogito à unidade da vivência perceptiva Nietzsche questionou tanto as certezas do Cristianismo quanto as do Racionalismo. Para ele, o simples fato de pensar não Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 13 dá a certeza da existência para o ser humano. O “querer” e o “sentir” também comprovam a existência4. No entanto, assim como a razão, também estes não propiciam nenhuma certe- za imediata. Nietzsche5 defendeu que conceber o ser humano como causa do conhecimento, como fez Descartes, implica elevá-lo à causa da natureza, das coisas e do mundo. Tal con- cepção conduz a uma compreensão enganosa, tanto sobre a natureza, as coisas e mundo quanto sobre o próprio ser hu- mano, pois apreender a verdade das coisas é uma pretensão humana, criada a partir da linguagem para sobrepor o ser humano aos outros. Não passam de camuflagem da vontade de poder. A existência não ganha sentido pela razão, mas pela vontade. Esta e a cognição são construídas sobre os impulsos humanos, não sobre a razão. Para Ricouer6, o cogito como critério autofundante para alcançar a verdade das coisas mostra um sujeito desancorado e desencarnado, pois não dá nenhum valor ao corpo. Nem mesmo para promover o engano. Este é prerrogativa do gênio maligno. Logo, o “eu” do cogito é essencialmente metafísico e hiperbólico como a própria dúvida: não é ninguém. A própria verdade do cogito é vã, porque precisa ser construída a partir de uma dúvida que a si mesma se coloca, sem que o sujeito do Ego Cogito possa ser reconhecido nesse ato. O sujeito ser- 4 Friederich NIETZSCHE. Para além do bem e do mal. In: Obras incomple- tas... (Os Pensadores) 5 Id. Ibid., p. 51ss. 6 Paul RICOEUR. O si-mesmo como um outro, p. 15ss 14 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I ve apenas para colocar uma substância sob o cogito ou uma causa atrás dele.7 Outro aspecto importante para a presente “caminhada” é sua concepção de “outro”. De mero objeto cartesiano, passou a ser visto como outro “eu”, que existe, assim como meu “eu” (sujeito), para si na sua subjetividade – constituída e configu- rada pelas vivências corporais (a percepção e as sensações). Essas vivências corporais possibilitam uma objetividade inter- subjetiva de si e do mundo, a partir do fenômeno. Percebe-seclaramente, em Ricouer, duas rupturas em rela- ção ao Ego Cogito cartesiano: o outro é sujeito cognoscente assim como eu – não simples “objeto”; a apreensão do outro, de si, e do mundo se dá no e a partir do corpo – não da razão. No século XX, surgiram outras áreas do conhecimento que, sustentadas pelo Positivismo, não buscaram a fundação última do ser humano no cogito. No entanto, fizeram-no por meio de estudos mecanicistas e orgânicos. A Fisiologia foi um dos destaques nessa empreitada. Propunha-se a dar respostas a respeito do comportamento humano, que a Filosofia e a Re- ligião não estariam conseguindo fornecer. Para tal buscava a apreensão do ser humano mediante a observação empírica, mensurando e explicando suas ações. Nesse cenário, surgiu Sigmund Freud propondo uma rup- tura, tanto com os modelos fisiológicos quanto com a filosofia reflexiva. A partir dessa proposição, construiu uma nova noção 7 Id. Ibid., p. 27 Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 15 de sujeito, particularmente na “teoria topográfica” e na “teoria da sexualidade”. Na teoria topográfica8, mediante a divisão da psique em In- consciente, Pré-consciente e Consciente, mostrou que a cons- ciência preterida pelo cogito refere-se apenas à superfície do aparelho psíquico, à consciência imediata. Isto é, o ser huma- no não é apenas aquilo que “pensa ser”. A razão, para Freud, pode fornecer muitos dados, mas não passa de consciência imediata, pois o sujeito cognoscente (aquele que conhece) é guiado fundamentalmente por processos psíquicos sobre os quais detém pouco conhecimento. Estes podem ser traduzidos a partir das representações (sonhos, mitos, arte etc.) – as vias de acesso ao inconsciente. Logo, tomada de consciência de si e do mundo implica a decifração dos enigmas propostos pelo inconsciente. Por isso, a consciência jamais poderá ser vista como uma apreensão total do ser, como propõe o cogito. Freud complementou esse seu estudo dos processos men- tais analisando a psique a partir da ótica do desejo, pois en- tendia que esses processos não se esgotavam no fato de serem ou não conscientes. Para ele o desejo tinha muito a dizer a respeito da constituição do sujeito. Assim, a partir do desejo, dividiu a psique em Id, Ego e Superego. 8 Sigmund FREUD. Interpretação dos sonhos. Sigmund FREUD. Psicopato- logia da vida cotidiana. 16 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I Id é o habitat de Eros9 e Thânatos10. É o centro pulsional de onde emergem todos os desejos. É totalmente inconsciente e regido pelo Princípio do Prazer. O Ego é consciente e incons- ciente. Tem a função de intermediar os desejos e a realidade. Tendo sua origem no Id, é regido pelo Princípio de Realidade. Esse princípio faz com que desenvolva mecanismos para re- primir ou adiar a satisfação dos desejos de Id. O Superego é uma diferenciação do Ego, com influências do meio externo, a partir da vivência do Complexo de Édipo. A vivência desse complexo é mediada tanto pelo medo da castração quanto pela paixão pelo pai. A realidade social fornece limites para a vivência desses medos. Esses limites, em forma de valores e normas morais, religiosas e sociais, introjetadas pela criança, transformam-se em critérios utilizados pelo Superego no seu afã de guardar os desejos que emergem da batalha infinita entre Eros e Thânatos. O Superego é basicamente consciente, mas compreende também partes inconscientes. A batalha não se limita ao pulsional (entre Eros e Thâna- tos) – descarga de energia para buscar o prazer e evitar a dor. Dá-se também entre o Id, o Ego e o Superego. Na vida adulta normal, o Superego acaba vencendo. Percebe-se que na teoria topográfica, Freud traçou uma nova concepção de sujeito, de ser humano, na qual a consciên- cia, longe de ser o elemento fundante desse ser humano, não 9 Termo grego que significa “vida”, pulsão de vida que impulsiona para o contato e embate com os outros e a realidade. 10 Termo grego que significa “morte”, aniquilação. Expressa o desejo de não separação, de retorno à situação uterina ou fetal, quer o repouso, a aniquila- ção das tensões. Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 17 passa de superfície do seu aparato psíquico. Nessa concepção, o que constitui o ser humano em seus pensamentos e ações são os desejos inconscientes, sob a égide de Eros e Thânatos. A partir da sua Teoria da Sexualidade11, também fica claro que o ser humano é muito mais que produto do cogito. É re- sultado de uma infinidade de desejos e representações. Freud, a partir do método clínico, propôs-se a decifrar os enigmas de seus pacientes a partir das diferentes fases do desenvolvimento psicossexual, protagonizado pela libido. Mostrou que grande parte daquilo que é o ser humano adulto, particularmente suas psicopatologias, resulta da qualidade da resolução dos confli- tos peculiares às diferentes fases. Essa resolução é determina- da pelos movimentos da energia libidinal: fixação, progressão e regressão. Outra superação do separatismo, protagonizado pelo cogito, foi encabeçada pelo fenomenólogo alemão Edmund Husserl12. Defendendo uma consciência e objetos intencionais, rompeu com a verdade objetiva e concluiu que o corpo – não a razão – é a expressão, a impressão e o sensível que coloca o ser humano em relação com o mundo. Logo, é a vivência corpórea que dá ao sujeito a dimensão do “eu” e o torna um sujeito cognoscente. Merleau-Ponty13, para compreender o sujeito, voltou-se para a existência. Encontrou na percepção e no sensível os 11 Sigmund FREUD. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. 12 Edmund HUSSERL. A ideia da fenomenologia 13 Maurice MERLEAU-PONTY. Fenomenología de la Percepción. 18 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I indícios necessários para a compreensão desse mesmo sujeito, do ser humano, bem como a sua relação com o mundo. Ele ampliou a concepção de consciência fenomenológica de Hus- serl, concebendo a “consciência perceptiva”14 e destacando a importância do corpo sensível. Situou a consciência no corpo e o corpo no mundo. Nessa caminhada, desenvolveu o con- ceito de “corpo vivido”, ou seja, há um imbricamento tal entre o sujeito e o objeto que inexiste o ser constituído e o consti- tuinte. O corpo e a coisa estão enxertados. Tal imbricamento é pré-reflexivo, porque o corpo se encontra atado (acoplado) ao tecido das coisas. Ele não apenas toma consciência das coisas, do mundo, mas integra-o. Consciência é participante, é constituinte do mundo, não mera simbolização que se pode fazer dele. Ambos, corpo e mundo entrelaçam-se mutuamen- te. Aquele que toca é tocado ao mesmo tempo e vice-versa. O sujeito é objeto e, ao mesmo tempo, o objeto é sujeito. Logo, a coisa percebida15 não é uma unidade ideal possuída pela inteligência. Ela é uma totalidade aberta ao horizonte de um número indefinido de perspectivas. A partir disso, criticou a noção de consciência da filoso- fia tradicional e a de inconsciente de Freud por entender que ambas deixam de lado a percepção e o corpo. A crítica de Merlau-Ponty consta do seguinte: tradicionalmente, o incons- ciente foi concebido como um campo de simbolizações, opos- to à consciência, não constitutivo do mundo; a relação do ser humano com o mundo passa pela consciência reflexiva, não 14 Maurice MERLEAU-PONTY. O primado da percepção e suas consequên- cias filosóficas, p. 39 ss. 15 Id. Ibid., p. 48. Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 19 pelo corpo. Concluiu afirmando que, na verdade, essa relação é pré-reflexiva, pois o corpo, e não a consciência, detém todas as dimensões da existência. Logo, não há nada a ser procura- do no inconsciente. Muito menos, procurar um inconsciente no fundo ou atrás da nossa consciência. Ao contrário,... o que se deve compreender é, além das pesso- as, os existenciais segundo os quais nós compreen- demos e que é o sentido sedimentado de todas as nossas experiências voluntárias. Esse inconsciente a ser procurado não está no fundo de nós mesmos, atrás de nossa consciência, mas diante de nós como articulação de nosso campo.16 Assim, inconsciente não é o inverso da consciência, não é uma concretização de experiências passadas, nem se encontra apenas em plano psíquico. Inconsciente é o poder articulador do nosso campo. Ele compreende basicamente o presente, pois é nele que toda a apreensão perceptiva se liga às outras, mas é também o passado. A partir dessa perspectiva, não há como compreender o ser humano por e a partir de si mesmo (dos fenômenos psíquicos), nem pelo que está fora dele. Para Merlau-Ponty a vivência per- ceptiva, e não a consciência reflexiva ou o inconsciente (como quer a psicologia Personalista e a Racional e a filosofia ilumi- nista-idealista pré-hegeliana, bem como a racionalista carte- siana), é a possibilidade fundante de todo o conhecimento.17 16 Maurice MERLEAU-PONTY. O visível e o invisível..., p. 174. 17 Maurice MERLEAU-PONTY. O primado da percepção e suas consequên- cias filosóficas, p. 49. 20 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I Uma pergunta que se coloca é: como minha experiência perceptiva se liga à experiência perceptiva que outros têm dos mesmos objetos? É preciso, pois, que, pela percepção do outro, eu me ache colocado em relação com um outro eu que este- ja, em princípio, aberto às mesmas verdades que eu, em relação com o mesmo ser que eu. E essa percep- ção se realiza. Do fundo de minha subjetividade, vejo aparecer uma outra subjetividade investida de direitos iguais, porque no meu campo perceptivo se esboça a conduta do outro, um comportamento que eu com- preendo, a palavra do outro, um pensamento que eu abraço e de que aquele outro, nascido no meio dos meus fenômenos, se apropria, tratando-o segundo as condutas típicas de que eu próprio tenho a experiên- cia. Do mesmo modo que meu corpo, como sistema de minhas abordagens, funda a unidade dos objetos que eu percebo, o corpo do outro, como portador das condutas simbólicas e da conduta do verdadei- ro, afasta-se da condição de um de meus fenômenos, propõe-me a tarefa de uma verdadeira comunicação e confere a meus objetos a dimensão nova do ser intersubjetivo ou da objetividade.18 Destaque-se que a percepção não compreende simples- mente sensações pessoais, nem resulta de atos de inteligência, mas se configura a partir de minhas percepções em uma inter- 18 Id. Ibid., p. 50, 51. Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 21 -relação analógica 19 com o outro. E, esse “outro” é mais que um fenômeno do meu campo perceptivo. É sujeito do seu pró- prio campo perceptivo com direitos iguais aos meus. Ou seja, na percepção de determinado ser ou objeto, sua percepção é tão importante quanto a minha e imprescindível para “com- pletar” a minha percepção, pois confere aos meus objetos a dimensão nova do ser intersubjetivo ou da objetividade. Quer dizer, sem a percepção do outro, minhas percepções não pas- sam de simples sensações privadas, só minhas. Sendo a vivência perceptiva a via do conhecimento, a lin- guagem se torna a via de acesso para a compreensão do Ser20. Essa linguagem não é uma simbolização, mas a expressão do sentido daquilo que é experimentado pelo corpo sensível, é a exteriorização da vivência perceptiva. Para Merleau-Ponty tal linguagem não faz o pensamento, nem o contrário, pois, na vivência perceptiva, não há como se- parar ou dicotomizar sujeito/objeto, conceito/percepto, conte- údo/sensação. Dussel magistralmente sintetiza essas premissas de Merleau-Ponty: Merleau-Ponty já demonstrou claramente que as sensações estão integradas em um campo, que in- clui como partes indivisíveis as sensações: a percep- 19 Relação que, para a Filosofia da Libertação, particularmente para Enri- que Dussel, é uma relação entre dois sujeitos (e seus mundos) distintos. Sujeitos e mundos tão diferentes que inviabilizam a cooptação de qualquer um deles pelo ou- tro. No entanto, jamais tão diferentes que inviabilizam uma inter-relação analógica entre ambos. Analógica, porque o paradigma da relação não é o da razão lógica, mas o da vivência perceptiva, acentuadamente analógico – além da lógica. 20 Maurice MERLEAU-PONTY. Resumo de cursos: filosofia e linguagem. 22 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I ção. A percepção é a totalidade fenômeno-sensível, constituída por unidades indivisíveis de sensações- -eidéticas. Assim como há concepção de sentido na interpretação, assim há concepção de campo ime- diato pela sensibilidade. Conceito e percepto (ima- gem sensível) dão-se simultaneamente, porque a interpretação é um ato de inteligência-sentiente, e a percepção um ato de sensibilidade-inteligente. As- sim como não se pode dividir o homem em corpo e alma, assim também não se pode dividir o conteúdo eidético do sensível.21 Para Merleau-Ponty, há dois tipos de linguagem no caminho da apreensão do ser ou do mundo: a do pintor e a do escritor22. A do pintor é a que melhor possibilita a apreensão do ser e do mundo, pois expressa aquilo que experimenta um jeito tremen- damente próximo da experiência pré-reflexiva. Antes de tratar- -se de expressão reflexiva, é vivência perceptiva. Trata-se uma linguagem encarnada e corpórea. Encarnada, porque está in- separavelmente tecida às coisas, ao mundo. Corpórea, porque sua construção e exteriorização se dão no e mediante o corpo. Percebe-se, assim, que a apreensão do ser se dá mediante o acesso ao inconsciente, ou, mediante a expressão daquilo que acontece pré-reflexivamente. Esse ser está tecido às coi- sas, ao mundo, inseparavelmente. A relação entre ambos é prioritariamente perceptiva. Logo, a consciência é uma cons- 21 Enrique DUSSEL. Filosofia da libertação, p. 41. 22 Maurice MERLEAU-PONTY. Textos selecionados. O olho e o espírito, p. 89 (Os pensadores). Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 23 ciência encarnada. Consequentemente, sempre remeterá ao irrefletido, cuja expressão ou exteriorização se dá preferencial- mente pela linguagem encarnada e corpórea. Recapitulando A partir das reflexões acima, é importante perceber que a com- preensão de um acontecimento, um fenômeno, uma realida- de, um grupo, uma comunidade, uma sociedade etc., há que ultrapassar as habilidades e possibilidades da razão objetiva do “eu penso”, uma vez que: - o simples fato de pensar não dá a certeza da existência para o ser humano. O “querer” e o “sentir” também compro- vam a existência (Nietzsche); - a existência não ganha sentido pela razão, mas pela von- tade. Esta e a cognição são construídas sobre os impulsos hu- manos, não sobre a razão (Nietzsche); - o Outro é sujeito cognoscente assim como eu e não sim- ples “objeto”. Ele sente, percebe, pensa e vive a partir de suas próprias referências. Logo, não pode ser compreendido ape- nas a partir das referências do meu eu (Ricouer); - a apreensão do outro, de si, e do mundo se dá no e a partir do corpo – não da razão (Ricouer); - a razão pode fornecer muitos dados, mas não passa de consciência imediata, pois o sujeito cognoscente (aquele que 24 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I conhece) é guiado fundamentalmente por processos psíquicos sobre os quais detém pouco conhecimento (Freud); - a tomada de consciência de si e do mundo implica, tam- bém, a decifração dos enigmas propostos pelo inconscien- te. Por isso, a consciência jamais poderá ser vista como uma apreensão total do ser, como propõe o Ego Cogito (Freud); - a consciência, longe de ser o elemento fundante do ser hu- mano, não passade superfície do seu aparato psíquico (Freud); - a consciência e objetos são intencionais, isto é, o ser hu- mano, percebendo ou não, escolhe o que vai conhecer. Essa escolha implica a subjetividade, por isso não existe nenhuma verdade completamente objetiva (Husserl); - o corpo (não a razão) é a expressão, a impressão e o sensível que coloca o ser humano em relação com o mundo. Logo, é a vivência corpórea que dá ao sujeito a dimensão do “eu” e o torna um sujeito cognoscente (Husserl); - o ser humano se constitui como “corpo vivido”, ou seja, há um imbricamento tal entre o sujeito e o objeto que inexis- te o ser constituído e o constituinte. O corpo e a coisa estão enxertados. Tal imbricamento é pré-reflexivo, porque o corpo se encontra atado (acoplado) ao tecido das coisas. Ele não apenas toma consciência das coisas, do mundo, mas integra- -o (Merleau-Ponty); - a relação do ser humano com o mundo (a vivência per- ceptiva) é pré-reflexiva, pois o corpo, e não a consciência, detém todas as dimensões da existência (Merleau-Ponty); Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 25 - a vivência perceptiva, e não a consciência reflexiva ou o inconsciente (como quer a psicologia Personalista e a Racional e a filosofia iluminista-idealista pré-hegeliana, bem como a racionalista cartesiana), é a possibilidade fundante de todo o conhecimento (Merleau-Ponty); - a percepção não compreende simplesmente sensações pessoais, nem resulta de atos de inteligência, mas se configura a partir de minhas percepções em uma interrelação analógica com o outro, pois sua percepção é tão importante quanto a minha e imprescindível para completá-la, uma vez que confere aos meus objetos a dimensão nova do ser intersubjetivo ou da objetividade (Merleau-Ponty); - na vivência perceptiva, a linguagem se torna a via de acesso para a compreensão do Ser e do mundo. Essa lingua- gem não é uma simbolização, mas a expressão do sentido daquilo que é experimentado pelo corpo sensível, é a exterio- rização da vivência perceptiva (Merleau-Ponty); - a apreensão do ser se dá mediante a expressão daquilo que acontece pré-reflexivamente. Esse ser está tecido às coi- sas, ao mundo, inseparavelmente. A relação entre ambos é prioritariamente perceptiva. Logo, a consciência é uma consci- ência encarnada – sempre remeterá ao irrefletido, cuja expres- são ou exteriorização se dá preferencialmente pela linguagem encarnada e corpórea (Merleau-Ponty). 26 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I Atividade Complete com “A” as afirmativas abaixo que se referem à pers- pectiva do Ego Cogito e, com “B” as afirmativas que se referem à perspectiva da vivência perceptiva. ( ) Só há uma coisa que é certa, que é indubitável: se penso, está claro que existo. ( ) O corpo se encontra atado (acoplado) pré-reflexivamente ao tecido das coisas. ( ) Conhecer, constituir e dar sentido a tudo passou a ser prer- rogativa do espírito. ( ) A linguagem não é uma simbolização, mas a expressão do sentido daquilo que é experimentado pelo corpo sensível, é a exteriorização da vivência perceptiva. ( ) As coisas exteriores (instituições, organizações, natureza etc.) são racionais em si mesmas. ( ) A relação do ser humano com o mundo (a vivência per- ceptiva) é pré-reflexiva, pois o corpo, e não a consciência, detém todas as dimensões da existência. ( ) As coisas exteriores são conhecidas apenas quando o su- jeito as representa intelectualmente. ( ) A apreensão do ser se dá mediante a expressão daquilo que acontece pré-reflexivamente. ( ) Só aquilo que está absolutamente evidente por causa de sua clareza e distinção pode ser aceito como verdadeiro. ( ) A vivência perceptiva, e não a consciência reflexiva ou o inconsciente é a possibilidade fundante de todo o co- nhecimento. Capítulo 1 A relação ser humano-mundo no ocidente... 27 ( ) Cada dificuldade que surgir no processo de conhecimento precisa ser dividida em tantas partes quantas forem neces- sárias para compreendê-la. ( ) O raciocínio precisa ser ordenado indo do mais simples ao mais complexo. ( ) É necessário realizar numerosas verificações completas e gerais para se ter certeza e confiança absoluta de que nada ficou de fora. ( ) Na percepção de determinado ser ou objeto, a percepção do outro é tão importante quanto a minha e imprescindível para “completar” a minha percepção. 28 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I REFERÊNCIAS Descartes, René. Discurso do método; As paixões da alma; Meditações São Paulo: Nova Cultural, 2000. 335 p. (Os Pensadores). DESCARTES, René. Meditações. In: CIVITA, Victor (ed.). Os pensadores, v. 15, São Paulo: Nova Cultural, 1987. DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. SP: Loyola, s. d. FARIA, Nilton Juliano. 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O primado da percepção e suas consequências filosóficas. Campinas: Papirus, 1990. 93 p. MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. 271 p. (Debates; 40). MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Em: Maurice Merleau-Ponty. Textos selecionados por Marilena. Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensado- res). NIETZSCHE. Obras Incompletas. São Paulo: Nova Cultu- ral, 2000. 464 p. (Os pensadores). RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Tradução de Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991. RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. Tradução de Ni- colás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2006. Do raciocínio lógico- racional ao sistêmico ÂÂ A perspectiva lógico racional apresenta como caracte-rísticas: a certeza, a lógica racional, a ordem, a ob- jetividade, a neutralidade, a explicação e a linearidade. Apenas a explicação objetiva, construída a partir dos da- dos objetivos do método científico, é aceita como verda- de. O mundo é concebido como uma grande máquina que, naturalmente, tende à ordem. Se algo não funciona bem é porque uma ou mais partes não estão bem ajusta- das ao todo. A subjetividade, a corporeidade, a intuição, o desejo, as percepções etc. são tidas como enganosas, portanto, não servem para descobrir a verdade dos fatos. Essas características definiram o processo científico do Arno Vorpagel Scheunemann Capítulo 2 Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 31 século XVII ao século XX. A partir da metade dos anos 1900, quando as ciências sociais passaram a não aceitar mais a leitura objetiva da realidade como única alternativa, passou-se a questionar os pressupostos lógico-lineares de causalidade, afirmando que: cada ato de conhecimento requer um ato de interpretação; que natureza e o mundo são sistemas, constituídos por inúmeros subsistemas que se autoproduzem a auto-organizam em processos circula- res; que a ordem, a desordem e sucessivas organizaçõescaracterizam a vida, a natureza e o mundo. Nessa perspectiva, defendia-se que: Â separar e isolar os elementos para compreender algo é insuficiente, pois o mundo está globalmente interligado por cadeias complexas de eventos e a natureza é uma complexidade organizada, viva e ativa; Â explicar os sistemas em termos de circularidade implica considerar que sua história passada é elemento ativo na configuração e constituição da história presente; Â não há componente no sistema capaz de controlar ou determinar unilateralmente o funcionamento do outro. Essa maneira de conceber a vida, a natureza e o mun- do contou com o engajamento de cientistas de diferentes áreas: Mc Culloch, neurofisiólogo); Gregory Bateson, an- tropólogo e teórico da comunicação; Heinz von Foerster, físico; Rosenbluth, biólogo; Jean Piaget, psicólogo e epis- temólogo; Margareth Mead, antropóloga. Neste capítulo, destacarei contribuições e autores desse processo de superação da linearidade causal em direção à compreensão sistêmica da vida, do mundo e da natureza. 32 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I 2.1 A primeira contribuição: os processos circulares e a retroalimentação Um dos primeiros a ser citado nessa empreitada e o mate- mático Norbert Wiener, fundador da Cibernética, nos anos 40. Valendo-se de teorias como a da informação (Shan- non), dos jogos (von Neumann) e a dos sistemas gerais (von Bertalanffy) propôs-se a estudar princípios organizati- vos que pudessem ser usados tanto nas máquinas artificiais quanto nos organismos vivos e nos fenômenos psicológicos e sociais. Wiener concebia e construía máquinas com cir- cuitos circulares que possibilitassem à mesma corrigir seu funcionamento. Esses circuitos circulares permitiam reinserir no sistema os resultados de sua história passada. Esse me- canismo circular de reinserção tornou-se conhecido como retroalimentação negativa. A retroalimentação é um processo pelo qual um sistema realimenta seu processo com algo que ele mesmo produz, a fim de manter seu padrão e estado de organização, evitan- do que a contínua produção da mesma coisa gere sua des- truição. Por exemplo: o corpo humano produz energia para manter-se acordado. Esse processo de “produzir energia para estar acordado” gera a fadiga (cansaço) que produz sono. O processo do sono é necessário para restabelecer (sempre de novo – processo circular) as condições necessárias para pro- duzir o estar acordado. Ludwig von Bertalanffy que, a partir da década de 30, bus- cando descrever leis que explicassem o funcionamento dos sistemas gerais independentes de sua substância, formulou Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 33 a Teoria Geral dos Sistemas. Apesar do mecanismo de cir- cularidade superar a causalidade linear, para Bertalanffy ele ainda conserva aspectos mecanicistas. A retroalimentação e a homeostase1 são insuficientes para descrever ou explicar os organismos vivos, que protagonizam atividades espontâneas, processos de criação, de crescimento e outros, pois são siste- mas fechados nos quais não se considera a possibilidade de transição para estados de maior complexidade. Para a ciber- nética, um sistema fechado desenvolve-se em direção a uma desordem crescente ou indiferenciação – a “lei da entropia” na termodinâmica. Para Bertalanffy, os organismos vivos contradi- zem essa lei, pois neles é possível tanto o aumento da ordem quanto a diminuição da entropia. 2.2 A segunda contribuição: a retroalimentação positiva Por quase duas décadas o trabalho na perspectiva sistêmica viveu uma espécie de dilema. Por um lado, havia os que enfa- tizavam a importância da retroalimentação positiva como um fator construtivo-positivo nas relações familiares (MINUCHIN, 1 Retro significa atrás. Retroalimentação é o processo pelo qual o produto de um sistema retorna para alimentar o próprio sistema. Por exemplo, o sistema de uma geladeira produz frio. Contudo, o próprio frio produzido dispara a válvula termostáti- ca, desligando o motor a fim de que o sistema permaneça no estado de resfriamento (temperatura) para o qual foi projetado (homeostase). Ou seja, o frio (produto do sistema da geladeira) volta para evitar que congele tudo, implodindo o sistema sobre si mesmo (entropia). Quando a temperatura ultrapassa o estado de resfriamento do sistema, este retoma a produção de frio em um processo circular contínuo: liga o motor – resfria – desliga o motor – temperatura sobe – liga o motor... 34 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I 1982). Por outro, massiçamente, destacava-se seu potencial destrutivo no sistema, privilegiando seu equilíbrio. Na práti- ca, buscava-se a mudança a partir e mediante um referencial de estabilidade, resistência e homeostase. Acreditava-se que sistemas homeostáticos, isto é, equilibrados, só poderiam ser modificados a partir de perturbações externas, pois estariam imunes às suas próprias flutuações e possibilidades de mudan- ça. Espontaneamente, não conseguiriam mudar seu padrão de relação. Com Bateson foi dado um passo a mais na superação da linearidade causal. Até então, a cibernética estava mais preo- cupada com os mecanismos e processos de homeostase, isto é, com as estratégias de ação dos sistemas e organismos para manter sua estabilidade, apesar da mudança permanente nas interações entre seus componentes e do fluxo ininterrupto des- ses componentes – como é o caso dos organismos vivos. Em outras palavras, por mais que circulassem informações dife- rentes dentro do sistema e, por mais que houvesse intercâmbio de informações com o ambiente, a preocupação se centrava no estabelecimento e manutenção do equilíbrio do sistema. Para Bateson, os modelos cibernéticos também são dotados de outro tipo de mecanismo de retroalimentação que, ao invés Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 35 de corrigir o desvio, aumenta-o – retroalimentação positiva2. O que pode levar à sua destruição ou a uma mudança des- contínua, transformando o padrão de funcionamento. Nesse novo padrão de funcionamento, a evolução do sis- tema no tempo e sua continuidade dependem de uma com- binação do aleatório e da redundância – da ordem e da de- sordem. Essa mudança descontínua foi descrita por Bateson (1986) como mudança de segunda ordem, pois estava além daquelas reversíveis e adaptativas que mantém o sistema próximo ao seu padrão, mediante os mecanismos de correção do desvio. 2.3 A terceira contribuição: as estruturas dissipativas, a ordem a partir do ruído e a autorreferência A circularidade acentuadamente mecanicista passou, en- tão, a ser estudada em termos de desordem, complexidade, instabilidade e coerência. Os sistemas biológicos e sociais passam a ser vistos como extremamente complexos, em pa- tamares distantes do equilíbrio. Prigogine fala em “estruturas 2 Retroalimentação positiva é aquela que aumenta o ruído, o desvio, o “problema”, produzindo elementos e informações novas, capazes de proporcionar as condições necessárias para o sistema se estabilizar em patamares mais com- plexos de organização. Por exemplo, se em um grupo de amigos (sistema) um dos integrantes ofender outro, essa ofensa pode produzir um processo interminável de ofensas mútuas. Uma primeira ofensa desencadeou a produção de muitas ofensas (retroalimentação positiva). Se a produção de ofensas não for interrompida, poderá destruir o grupo (entropia). Contudo, se, ao surgirem as primeiras ofensas, o grupo desenvolver mecanismos para “negativar” as ofensas produzidas e evitar o acúmulo de novas, estará desenvolvendo um processo de retroalimentação negativa (que aniquila o ruído – as ofensas). 36 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I dissipativas” (PRIGOGINE, 1984). Nestas, as mudanças são amplificadas detal forma que têm destino imprevisível e irrever- sível, gerando uma infinidade de pontos instáveis. Esses pontos são possibilidades de caminho para o seu futuro. A escolha do caminho que o sistema seguirá é imprevisível ao observador e não pode ser controlado. O sistema autorreferencia-se. Trata- -se da “ordem através do ruído” (FOERSTER, 1991) ou, “da ordem através da flutuação” (PRIGOGINE, 1984). A autorreferência é o processo pelo qual, considerando a teia de relações e interações, os sistemas estabelecem seus parâmetros, condições e valores. Respaldados nesses parâme- tros, condições e valores atribuem significado a tudo o que chega e sai do seu sistema metabólico. Em outras palavras, criam e estabelecem um conjunto de elementos a partir dos quais decidem o que fazer em cada circunstância. A autorreferência, cujo círculo é criativo e virtuoso – não vicioso e repetitivo, passa a determinar a versão da circulari- dade. O sistema passa a ser visto como uma rede de produ- ção de componentes que, por sua vez, produzem novos com- ponentes, em um processo recursivo e autorreferente. Nessa versão (MATURANA; VARELA, 1995), embora a relação com o ambiente seja fundamental, ela não controla nem determina o curso do sistema. Tais sistemas não permitem que sua direção seja determinada desde fora de sua coerência, como no caso da entropia. Perturbações do meio apenas geram comporta- mentos compatíveis com sua constituição. A partir da “ordem através da flutuação” (PRIGOGINE, 1984), quando o afastamento do equilíbrio deixou de ser visto Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 37 como perturbação temporária, passando a ser encarado como fator de evolução do sistema através de saltos descontínuos, a perspectiva sistêmica começou a superar a visão de equilíbrio, em direção a uma visão orientada para a compreensão dos processos pelos quais o sistema (vivo, social) evolui. O olhar foi dirigido para as alternativas disponíveis nas flu- tuações, que pudessem servir à mudança. Viu-se, assim, que um sistema é capaz gerar os recursos necessários para realizar mudanças. Os sintomas deixaram de ser vistos como meca- nismos homeostáticos. Olhou-se para eles como uma alter- nativa amplificada, uma solução possível para um sistema em determinado momento. A crise deixou de ser um perigo para ser parte imprescindível no processo de mudança. A questão (RAPIZO, 1998, p. 69) não era mais fazer o sistema resistente à mudança. No trabalho com famílias, por exemplo, o profis- sional passou a atuar mais no sentido de mobilizar recursos familiares, levantar e ampliar informações até então irrelevan- tes para o discurso oficial da família. Voltou-se para o desco- nhecido, o periférico, o não valorizado, que funcionasse como uma alavanca de mudança. Perguntar, reconstruir a história e redefinir papéis passou a ser o centro a atuação do profissio- nal, que tinha na linguagem da família sua via de acesso ao sistema familiar. 38 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I 2.4 A quarta contribuição: observação e linguagem não são neutras Se, por um lado não permitem essa determinação de destino, por outro, os circuitos de circularidade expandem-se a ponto de enlaçar o próprio observador. No processo de observar, o observador delimita em si mesmo um outro sistema autônomo, no qual observador e sistema observado interatuam a partir de processos autorreferenciais, superando a clássica distinção dicotômica entre observador e observado. Com isso, são questionados os pressupostos da objetividade e da repre- sentação, fortemente presentes na primeira cibernética. Sensível às teorias construtivistas, a cibernética apontou que o critério de cognição não podia continuar sendo o da representação correta de um mundo que se dá de antemão. Para a cibernética, se considerarmos a autonomia dos siste- mas auto-organizadores, precisamos reconhecer que o co- nhecimento revela as propriedades emergentes do observador, e não uma realidade independente, lá fora. Isto é, o que é percebido é uma construção de quem percebe e não a reali- dade em si. Exemplificando, a família que eu descrevo não é a família em si, mas a que eu percebo. Precisamos abandonar a noção de correspondência entre conhecimento e realidade, ou a de que o conhecimento é a construção de mapas que correspondem a um território, pois a realidade não determina o conhecimento, mas revela a estrutura3 do observador. Em 3 “Estrutura” designa um sistema complexo que compreende desde a cor- poralidade até as tradições culturais e linguísticas do mundo em que se vive. Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 39 outras palavras, não há realidade independente da linguagem (RAPIZO, 1998, p. 69). Para ressaltar a importância da observação, como resul- tado da dinâmica interna do observador – enquanto ser hu- mano vivo em relações –, Maturana e Varela defenderam que “tudo o que é dito é dito por um observador” (MATURANA; VARELA, 1995). Acentua-se, assim, que o mundo não é um sistema externo que se capta ao observar, mas uma constru- ção que surge na dinâmica da nossa experiência de seres em relação, ou seja, ativamente participamos da construção do mundo em que vivemos. Cresceu a importância de verificar as relações entre obser- vador, linguagem e sociedade. Para Sluzki (1997) ser obser- vador é estar em um barco, construí-lo e navegá-lo, ao mesmo tempo. Para Foerster, “tudo o que é dito é dito a um observador” (1991, p. 89). Estabelece-se um duplo jogo de observação que precisa ser considerado na compreensão dos processos sociais e científicos: “um observador” observa e expressa por meio da linguagem o que observou e, quem in- terage com o que foi expresso é “outro observador”. Significa que aquilo que foi observado passou por duas observações/ interpretações/recriações. Foerster quis apontar que os observadores se conectam pela linguagem, e, ao se conectarem, estabelecem relações, constroem uma sociedade – o mundo em que vivem. Nesse processo, a linguagem é constitutiva do sujeito e do mundo. Ela não transmite informações, nem denota objetos ou refle- te o mundo, mas expressa e cria o mundo e o sujeito desse 40 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I mundo. Ela compõem a autorreferência dos sujeitos e grupos. Logo, não há como estabelecer uma anterioridade lógica ou cronológica entre observador, linguagem e sociedade, pois cada um é constitutivo e constituinte de si mesmo e dos outros. Mais uma vez, fecham-se as portas para a dicotomia ra- cional e objetiva entre sujeito e objeto, para a descrição, a avaliação e a representação objetivamente construídas, pois o conhecer passa a ser entendido como uma atividade circular que enlaça a ação e o conhecimento, o conhecedor e o co- nhecido. No contexto do trabalho com famílias, Rapizo assim sintetiza essa mudança: ...neste momento, quase todos os baluartes sobre os quais a terapia sistêmica de família se apoiava, co- meçam a ruir. Nem homeostase, nem intervenções que “causam” mudanças, nem possibilidade de con- trole. Impossível a observação objetiva. Os sistemas evoluem descontinuamente, usam a desordem para alcançar novas ordens, não são determinadas pelo meio, mas sim por sua estrutura; no caso dos sistemas sociais, são sistemas de linguagem, e ainda por cima, apenas distinções de um observador que não tem nenhuma fundamentação objetiva para seu conheci- mento... Não há mais um terapeuta/observador que descreve uma família/sistema observada. Há uma ruptura dessa divisão e surge em seu lugar o sistema observante/terapêutico, onde o sistema emerge como distinção, construção de seus participantes. O conhe- cimento é uma construção social, linguística, biológi- ca, feita no seio de uma comunidade de observadores Capítulo2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 41 em convivência. A pergunta não é mais “como é esse sistema?” mas “como geramos o sistema que descre- vemos?” Uma família não é um sistema. Uma família é uma distinção de um observador ou comunidade de observadores, que podem ou não usar uma lingua- gem sistêmica para falar dela. Assim, podem existir tantas famílias quantos observadores, com elementos compartilhados e não compartilhados nessa distinção (1998, p. 70). As regras fixas, os “a priori”, foram substituídos pela lingua- gem e pelo profissional. O problema deixou de ser localizado no sistema (familiar, comunitário) para ser procurado na cons- trução da realidade (familiar e comunitário-social). O sistema deixou de ser visto como resultado de uma organização social. A interação profissional-família/grupo (usuário) passou a ser visto mais como colaborativo que hierárquico. A partir dessa perspectiva sistêmica, o trabalho profissional se tornou um contexto exploratório de possibilidades e restri- ções à mudança, em detrimento da busca por mudanças. Ou seja, os profissionais não se viam mais como os agentes de mudanças, mas como um parceiro do usuário na busca por alternativas. Eliminou-se o espaço para “dirigir” o processo de trabalho ou a vida das pessoas envolvidas. O foco do trabalho profissional sistêmico se deslocou daquilo que é possível intro- duzir no sistema para aquilo que o sistema pode selecionar. Em outras palavras, se valorizou as diferentes narrativas sobre o problema, bem como, as diferentes expectativas e alternati- vas existentes no interior do sistema em crise. 42 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I O papel do sistema profissional-usuário deixou de solu- cionar problemas, buscando superar os impasses na solução de problemas, mediante um melhor agenciamento do sistema para a tomada de decisões e a mobilização de seu potencial de autoprodução e auto-organização. A complexidade de nar- rativas passou a ser introduzida na tentativa de construir intera- ções dialógicas4 entre as diferentes vozes. 4 Dialógico não pode ser confundido com dialogal ou interação dialoga- da. Podemos encontrar diálogos dialéticos, lógico-lineares e dialógicos. O que vem a ser dialógico? Dialógico é composto por dois termos gregos: diá, que significa através; logikós, que expressa o logos (saber) organizado, lógico. Assim, dialógico expressa uma forma de saber que ultrapassa a lógica. Ao mesmo tempo, a compo- sição de dialógico pode ser vista da seguinte forma: di + a + logikos. “Di” significa dois, mais de um, plural. “A” expressa negação (apolítico, por exemplo). Assim, dialógico expressa uma forma de conhecer e conhecimento na qual mais de uma verdade, mesmo contrárias entre si, podem ser verdadeiras. Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 43 Recapitulando Vimos que o processo histórico da perspectiva sistêmica foi sensível aos novos conhecimentos produzidos, particularmente aos da Cibernética e do Construtivismo. Em sua fase inicial, caracterizava-se pela objetividade e pela neutralidade. A partir de elementos da Cibernética e da Teoria Sistêmica começou a superar essa objetividade e neutralidade, pois os fatos, as pessoas e os acontecimentos passaram a ser vistos globalmen- te interligados. A história de cada um, seja das pessoas, dos grupos ou dos acontecimentos, passou a ser lida de forma circular. A nenhum elemento do sistema se permitia controlar ou determinar unilateralmente o outro. Quando, nesse processo, a homeostase – a “grande meta” da perspectiva sistêmica de primeira ordem – foi superada pela concepção da retroalimentação positiva, abriu-se espa- ço para “ler” pessoas, acontecimentos, fatos, sistemas etc., em termos de desordem, desequilíbrio, complexidade, insta- bilidade e coerência. O sistema passou a ser visto como uma rede de produção de componentes, em um processo circular recursivo e autorreferente. Nele, os componentes do sistema produzem o sistema e a si mesmos, em um processo imprevi- sível e incontrolável. 44 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I Atividade Marque “V” (Verdadeira) ou “F” (falsa) nas afirmativas abaixo: ( ) A perspectiva lógico-racional se caracteriza pela certeza, pela lógica racional, pela ordem, pela objetividade, pela neutralidade, pela explicação e pela linearidade. ( ) A perspectiva sistêmica concebe o mundo como uma gran- de máquina que, naturalmente, tende à ordem. ( ) Para a perspectiva sistêmica, a subjetividade, a corporei- dade, a intuição, o desejo, as percepções etc. são enga- nosas, logo seus dados não podem ser considerados na produção de conhecimento. ( ) Para a perspectiva sistêmica, a natureza e o mundo são sistemas, constituídos por inúmeros subsistemas que se au- toproduzem a auto-organizam em processos circulares. ( ) Para perspectiva lógico-racional, separar e isolar os ele- mentos para compreender algo é insuficiente, pois o mun- do está globalmente interligado por cadeias complexas de eventos e a natureza é uma complexidade organizada, viva e ativa. ( ) A retroalimentação é um processo pelo qual um sistema rea- limenta seu processo com algo que ele mesmo produz, a fim de manter seu padrão e estado de organização, evitando que a contínua produção da mesma coisa gere sua destruição. ( ) Entropia é o processo pelo qual um sistema desenvolve a habilidade de se equilibrar em patamares mais complexos de organização. ( ) Homeostase expressa a habilidade de um sistema retornar, sempre que necessário, ao seu estado original de equilíbrio. Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 45 ( ) Retroalimentação positiva é aquela que aumenta o ruído, o desvio, o “problema”, produzindo elementos e informa- ções novas, capazes de proporcionar as condições neces- sárias para o sistema se estabilizar em patamares mais complexos de organização. ( ) A autorreferência é o processo pelo qual os sistemas criam e estabelecem um conjunto de elementos a partir dos quais decidem o que fazer em cada circunstância. ( ) Para Maturana e Varela, não há linguagem neutra, pois “tudo o que é dito é dito por um observador”. ( ) Foerster afirma que “tudo o que é dito é dito a um observador”, expressando que aquilo que é observado passa por duas observações/interpretações/recriações. 46 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I Referências BATESON, Gerard. (1986). Mente e natureza. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A. BATESON, Gregory (1979). Steps to an ecology of mind. To- ronto: Chandler Publishing Company. (Primeira edição pu- blicada em 1972) BERTALANFFY, Ludwig von.Teoria Geral dos Sistemas. Petrópo- lis: Vozes, 1975. CAPRA, Fritjof. Conexões ocultas. São Paulo: Cultrix, 2002 CAPRA, Fritjof. O Ponto de mutação. Trad.- Álvaro Cabral. 22ª Ed.- São Paulo: Cultrix, 2001. CAPRA, Fritjof. O Tao da Física Revisitado. In: WILBER, Ken (org.) O Paradigma Holográfico e outros Paradoxos. São Paulo: Cultrix, 1995. MATURANA, Humberto & VARELA, Francisco. De máquinas e seres vivos: autopoiése – a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. MATURANA, H. R.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas, SP: Psy II, 1995 MINUCHIN, Salvador. Famílias, funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982. PRIGOGINE, I., STENGERS, I. A nova aliança. Brasília: Univer- sidade de Brasília, 1984. Capítulo 2 Do raciocínio lógico-racional ao sistêmico 47 RAPIZO, Rosana. Terapia sistêmica de família: da instrução à construção. Rio de Janeiro: Noos, 1998. SLUZKI, Carlos E., A Rede Social na Prática Sistêmica. Casa do Psicólogo – SP, 1997 FOERSTER, H. von. Sobre sistemas auto-organizadoresy sus ambientes. In: PAKMAN, M (ed.) Las semillas de la ciber- nética: obras escogidas de Heinz von Foerster. Barcelona: Gedisa, 1991. Teoria Sistêmica de 1ª ordem ÂÂ A palavra “sistema” vem do termo latino systema que significa reunião, juntura, sistema. O termo grego correspondente é σýστημα (sýstema) que significa con- junto, multidão, corpo de tropas, conjunto de doutrinas, sistema filosófico. No capítulo anterior, conhecemos contribuições que possibilitaram caminhar do raciocínio lógico-racional ao sistêmico. Conhecidos os elementos dessa trajetória, vol- taremos nossa atenção para a Teoria Sistêmica. Abordar Teoria Sistêmica de Primeira Ordem pressupõe que haja mais de uma ordem na compreensão de sistemas. Ba- sicamente, se fala em Teoria Sistêmica de primeira e de Arno Vorpagel Scheunemann Capítulo 3 Capítulo 3 Teoria Sistêmica de 1ª ordem 49 segunda ordem. A denominação “Primeira Ordem” e “Se- gunda Ordem” vem da Cibernética. A Cibernética busca compreender a comunicação e o controle de informações em máquinas, seres vivos e grupos sociais, comparando máquinas eletrônicas. A Teoria Sistêmica de Primeira Ordem compreende a fase (até os anos 1970) na qual o foco trabalho profissio- nal era a homeostase do sistema, buscando evitar sua en- tropia. Ou seja, se defendia que era necessário encontrar alternativas de retroalimentar o sistema de tal forma que o ruído fosse diminuído. Em diminuindo o efeito do ruído, seria possível restabelecer o equilíbrio do sistema. A Teoria Sistêmica de Segunda Ordem compreende a fase (a partir dos anos 1970) na qual se passou a consi- derar que um sistema, além dos mecanismos que resta- belecem o equilíbrio, também é dotado de mecanismos de retroalimentação que, ao invés de corrigir o desvio, aumentam-no – retroalimentação positiva. Tal retroali- mentação pode levar à sua destruição ou a uma mudança descontínua, transformando o padrão de funcionamento, mediante interação aleatória da ordem e da desordem. A de primeira ordem será o assunto deste capítulo, a de segunda, do próximo. A abordagem da Teoria Sis- têmica de Primeira Ordem se dará sob 4 subtemas. No primeiro, compreenderemos a teoria sistêmica como es- tratégia de superação dos reducionismos. No segundo, conheceremos algumas tipologias de sistemas. No tercei- ro, conheceremos elementos das origens da teoria sistê- mica de primeira Ordem, bem como alguns pressupostos e conceitos. 50 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I 3.1 A Teoria sistêmica como estratégia de superação dos reducionismos A Cibernética é uma espécie de teoria dos sistemas de controle baseada na comunicação (transferência de informação) entre o sistema e o meio e dentro do próprio sistema e do controle (retroação) da função dos sistemas em relação com o ambien- te. Cibernética é uma palavra que vem do grego Kibernêtes (timoneiro) e Kibernetê (a arte de pilotar navios), empregadas por Platão. Mais tarde, os próprios gregos passaram a usá-la também para a arte de governar o Estado. Considerando essa origem, para entendermos o que é cibernética, precisamos ve- rificar em que consiste a arte de pilotar um navio. A arte de pilotar é exercida pelo piloto, contudo não é ele quem traça o rumo e destino da viagem, quem faz isso é o capitão. Ao piloto cabe administrar todas as informações que interferem na viagem (correntes, ventos, chuva, sol etc.). Visto dessa for- ma, é uma arte de, em movimento constante, gerenciar todas as informações e atravessamentos que surgem ao longo da viagem. Significa que o piloto não pode decidir baseado em raciocínios lógico-mecânicos, muito menos em raciocínios te- leológicos ou teleonômicos. Na Cibernética de Primeira Ordem, o foco está na estabi- lidade e na estrutura, pressupondo que o funcionamento dos sistemas tem uma meta: o equilíbrio do sistema. O processo de retorno ao equilíbrio existente antes da crise é a homeos- tase. Esta compreende as estratégias de ação dos sistemas e organismos para manter sua estabilidade. Grandesso sintetiza esse período da Cibernética afirmando que: Capítulo 3 Teoria Sistêmica de 1ª ordem 51 “o primeiro período da cibernética de primeira or- dem (primeira cibernética), se ocupava dos me- canismos e processos pelos quais os sistemas, em geral, funcionavam com o intuito de manter a sua organização. O sistema, de acordo com essa con- cepção, operava de acordo com um propósito ou meta, cujo alcance era garantido por mecanismos de regulação e controle (...) regulação, enquanto um mecanismo, visa manter a sobrevivência do sistema à medida que controla os distúrbios que o atingem, impedindo-os de evoluírem para uma mudança, que possa quebrar a sua organização. Nesse sentido, o sistema cibernético era compreendido como equiva- lente a uma máquina trivial, fosse ele uma máquina, um organismo biológico, ou um sistema social, que, tendo uma organização e um propósito, operava na correção dos desvios, de modo que se mantivessem estável e sobrevivesse. Esse processo conhecido como retroalimentação negativa, por meio do qual um sistema vivo sobrevive mantendo a sua constân- cia apesar das mudanças do meio, convencionou-se chamar de morfoestase.” (2000, p. 124) Em termos gerais, a Teoria Sistêmica de Primeira Ordem compreende os estudos e conhecimentos que partiam do princí- pio de que um sistema se retroalimenta na perspectiva do equilí- brio, corrigindo os desvios e ruídos – processo conhecido como retroalimentação negativa, cuja meta é o equilíbrio do sistema. A Teoria Sistêmica de Segunda Ordem compreende os es- tudos que entendem que um sistema, também, é dotado de 52 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I outro tipo de mecanismo de retroalimentação que, ao invés de corrigir o desvio, aumenta-o – retroalimentação positiva. O que pode levar à sua destruição ou a uma mudança descon- tínua, transformando o padrão de funcionamento, mediante interação aleatória da ordem e da desordem. Essa mudança descontínua foi descrita por Bateson (1986) como mudança de segunda ordem, pois estava além daquelas reversíveis e adaptativas que mantém o sistema próximo ao seu padrão, mediante os mecanismos de correção do desvio. Daí a ideia de teoria sistêmica de segunda ordem1. Tanto a de primeira ordem quanto a de segunda ordem propõem superar o redu- cionismo, o pensamento analítico e o mecanicismo. Reducionismo é um processo pelo qual se reduz a comple- xidade de um acontecimento, fenômeno, objeto etc., à lógica simples de uma ou mais de suas partes ou características. Tal processo reducionista pode acontecer em diferentes ares e as- sumir diferentes formas. O reducionismo ontológico, que se ocupa com a essência original de tudo o que existe, defen- de que tudo surgiu de um pequeno número de substâncias básicas, regulares e constantes, a partir das quais é possível explicar a complexidade da vida. O reducionismo científico entende que tudo pode ser explicado a partir e por meio do método científico. O reducionismo metodológico supõe que a explicação para qualquer fenômeno deve assumir apenas as premissas estritamente necessárias à explicação do mesmo e eliminar todas as demais. Reducionismo teórico parte da pre- missa de que tudo pode ser explicado a partir de poucos con- 1 A de segunda ordem será o objeto do próximo capítulo. Capítulo 3 Teoria Sistêmica de 1ª ordem 53 ceitos básicos que permanecem ao longo da história. Reducio- nismo linguístico entende que tudo pode ser descrito a partir de uma linguagem com alguns conceitos básicos, combinados de diferentes maneiras. Reducionismo materialista afirma que a origem de tudo está na matéria. O reducionismo idealista, ao contrário, destaca que a origem de tudo está na ideia. Não há necessidade de referenciar mais reducionismos.A partir dos já mencionados, é possível perceber que a lógica reducionis- ta consiste em deixar de lado a complexidade de elementos, características e aspectos, e eleger alguns poucos, como se, a partir desses poucos, fosse possível explicar a lógica e o sentido do todo. A perspectiva sistêmica entende que todas as formas de reducionismo são limitadas e falhas, porque deixam de lado elementos, características e aspectos necessários para a compreensão do todo e das partes. O reducionismo analítico entende que o funcionamento do todo pode ser analisado a partir das propriedades de suas partes. Prioriza as propriedades das partes e sua contribuição no todo em detrimento do funcionamento do todo. Em ou- tras palavras, compreende a decomposição dos objetos a seus elementos fundamentais para estudá-los e, posteriormente, re- composição do todo mediante a recomposição ou soma das partes. Um exemplo simples de reducionismo analítico é o fato de querer conhecer uma sala de aula a partir das “proprie- dades” (aquilo que é próprio) de alguns alunos ao invés de a sala a partir das propriedades do todo (a sala de aula real, “ao vivo e a cores”). De maneira geral, todas as análises feitas em laboratório são reducionistas, porque desconectam algumas partes para, a partir da análise destas, conhecer o todo. A perspectiva sistêmica entende que esse reducionismo deve ser 54 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I superado porque o todo precisa ser conhecido tanto a partir e por meio das suas partes quanto a partir e por meio do todo. O mecanicismo foi o grande movimento intelectual do sé- culo XVII, tanto em termos de filosofia quanto de ciência. O reducionismo mecanicista é uma maneira particular de com- preender as coisas, resultante desse movimento intelectual, que entende que todos os fenômenos podem ser explicados pela causalidade mecânica linear. Isto é, todas as coisas estão mecanicamente conectadas e o que acontece é resultado da interação mecânica dos fenômenos, acontecimentos e coisas entre si, bem como, da interação mecânica entre suas partes. O mecanicismo consiste em estabelecer relações lineares e diretas de causa e efeito, considerando a causa necessária e suficiente para explicar o efeito. Nessa visão, entende-se que o universo e mundo funcionam como uma grande máquina (relógio) ordenada. Battisti sintetiza: O mecanicismo, em seus aspectos mais gerais, pode ser definido como um modelo explicativo das mais diferentes ma- nifestações do mundo natural a partir de cinco eixos básicos: 1) a uniformização e a redução das entidades e dos processos existentes na natureza, de modo que todo fenômeno possa ser explicado por meio de elementos simples, tais como a matéria e o movimento, e de seus diferentes arranjos e combinações; 2) a utilização de modelos explicativos, inspirados na concep- ção e no funcionamento das máquinas, de sorte que os fe- nômenos naturais possam ser entendidos como mecanismos semelhantes aos inventados pelo homem e cujo conhecimento implique a possibilidade de sua decomposição e reconstrução Capítulo 3 Teoria Sistêmica de 1ª ordem 55 e, portanto, de sua reprodução e imitação; 3) a introdução da matemática como instrumento de análise e de explicação científica, de maneira que o conhecimento de um fenômeno só estará completo se puder ser traduzido, em algum sentido, quantitativa ou geometricamente; 4) a substituição da distin- ção entre coisas naturais e coisas artificiais pela distinção entre mundo humano e mundo natural, entre o mundo da liberdade e da consciência, por um lado, e o mundo do determinismo material, por outro, de modo que não se poderá mais transpor propriedades entre eles nem avaliar um a partir do outro; 5) a clara distinção entre causa final e causa eficiente ou operativa, com a consequente negação da possibilidade de conhecer, caso existam, as causas finais da natureza. (2010, p. 29) A teoria sistêmica entende que a compreensão mecânica, ma- temática e determinista é parcial, pois a interconexão entre os componentes dos sistemas e entre os sistemas além de mecânica, matemática e determinista, também é orgânica e aleatória. 3.2 Sistemas: tipologia Partindo das estruturas mais simples às mais complexas, Ken- neth Boulding (1956) construiu uma tipologia com nove siste- mas diferentes: 1 – sistemas ou estruturas estáticas – cristais, mapas etc.; 2 – sistemas dinâmicos simples (com mecanismos predetermi- nados): relógios, alavancas, sistemas solares, dínamos etc.; 56 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I 3 – sistemas cibernéticos simples (com mecanismo de contro- le), utilizando a comunicação e a retroação para retornar ao estado de equilíbrio – termostato, mecanismos home- ostáticos nos organismos; 4 – sistemas abertos (com fluxo de matéria, insumos, metabo- lismo com o ambiente) – célula, os rios, as chamas etc.; 5 – sistemas da vida vegetal (organismos inferiores), cujos componentes (as células) formam raízes, folhas, sementes e exercem a função reprodutiva; 6 – sistemas da vida animal, com órgãos sensoriais que rece- bem informações (olhos, ouvidos) e sistema nervoso que faz circular informações, possibilitando aprendizagem, mobilidade, comportamento e começo da consciência; 7 – sistemas humanos ou da vida do ser humano, que apre- sentam capacidade de autorreflexão, memória, fala, sim- bolismos, e autoconsciência reflexiva; 8 – sistemas socioculturais ou da organização social – orga- nismos, organizações, comunidades constituídos mediante trocas simbólico-culturais, sistemas de comunicação etc.; 9 – sistemas simbólicos – sistemas abstratos com linguagem, lógica e regras de jogo (matemática, ciências, arte, moral etc. Acredita que os sistemas e as redes virtuais se consti- tuem como sistemas simbólicos, com a diferença que esta- belecem diferentes relações com o tempo, as distâncias, a localização e a própria comunicação. Dependendo do critério de análise, os sistemas podem ser divididos em diferentes tipos. Tomando como critério sua cons- tituição e origem, os sistemas podem ser divididos em dois grandes grupos: vivos (organismos) e organizados (organiza- Capítulo 3 Teoria Sistêmica de 1ª ordem 57 ções). Os vivos nascem e herdam seus traços estruturais; têm tempo, e o ciclo de vida são determinados pela estrutura e morrem, pois não podem transformar a própria estrutura; pro- blemas são vistos como desvios do processo vital. Os orga- nizados são construídos e constroem sua estrutura ao longo do processo; têm tempo de vida indeterminado e podem ser reorganizados; o ciclo de vida não é pré-determinado, pois podem transformar a própria estrutura2; problemas são vistos como desvios nas normas sociais. Tomando como critério a interação com o ambiente, os sistemas podem ser fechados (não trocam informações com o ambiente), abertos (trocam informações com o ambiente). Se o critério for a sua natureza, os sistemas podem ser divididos em físicos ou concretos e conceituais ou abstratos. Físicos quando são constituídos de equipamentos e subsistemas reais, sejam materiais (máquinas, circuitos etc.), sejam biológicos (corpos e organismos vivos). A partir da influência do ambiente, podem ser divididos em estáveis (sofrem pouca, ou nenhuma, influên- cia do ambiente) e dinâmicos (mudam constantemente em fun- ção da influência do ambiente). Considerando sua duração, podem ser divididos em permanentes (duram muito tempo – 10 anos ou mais) e temporários (duram pouco tempo – alguns dias, meses ou anos). Em relação à dinâmica, os sistemas podem apresentar a seguinte tipologia: 2 Morfogênese. 58 Fundamentos Teórico-Metodológicos Contemporâneos I 1 – Sistema determinístico simples: possui poucos componen- tes e inter-relações, sendo previsíveis (determináveis)
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