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ENSINAR A COMPREENSÃO (EDGAR MORIN)
A situação é paradoxal sobre a nossa Terra. As interdependências multiplicaram-se. A consciência de ser solidários com a vida e a morte, de agora em diante, une os humanos uns aos outros. A comunicação triunfa, o planeta é atravessado por redes, fax, telefones celulares, modems, Internet. Entretanto, a incompreensão permanece geral. Sem dúvida, há importantes e múltiplos progressos da compreensão, mas o avanço da incompreensão parece ainda maior.
O problema da compreensão tornou-se crucial para os humanos. E, por este motivo, deve ser uma das finalidades da educação do futuro.
Lembremo-nos de que nenhuma técnica de comunicação, do telefone à Internet, traz por si mesma a compreensão. A compreensão não pode ser quantificada. Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade.
O problema da compreensão é duplamente polarizado:
• Um pólo, agora planetário, é o da compreensão entre humanos, os encontros e relações que se multiplicam entre pessoas, culturas, povos de diferentes origens culturais.
• Um pólo individual é o das relações particulares entre próximos. Estas estão cada vez mais ameaçadas pela incompreensão (como será indicado mais adiante). O axioma “quanto mais próximos estamos, melhor compreendemos” é apenas uma verdade relativa à qual se pode opor o axioma contrário “quanto mais estamos próximos, menos compreendemos”, já que a proximidade pode alimentar mal-entendidos, ciúmes, agressividades, mesmo nos meios aparentemente mais evoluídos intelectualmente
 
AS DUAS COMPREENSÕES
A comunicação não garante a compreensão.
A informação, se for bem transmitida e compreendida, traz inteligibilidade, condição primeira necessária, mas não suficiente, para a compreensão.
Há duas formas de compreensão: a compreensão intelectual ou objetiva e a compreensão humana intersubjetiva. Compreender significa intelectualmente apreender em conjunto, comprehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno). A compreensão intelectual passa pela inteligibilidade e pela explicação.
Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A explicação é, bem entendido, necessária para a compreensão intelectual ou objetiva.
A compreensão humana vai além da explicação. A explicação é bastante para a compreensão intelectual ou objetiva das coisas anônimas ou materiais. É insuficiente para a compreensão humana.
Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito. Por conseguinte, se vejo uma criança chorando, vou compreendê-la não por medir o grau de salinidade de suas lágrimas, mas por buscar em mim minhas aflições infantis, identificando-a comigo e identificando-me com ela. O outro não apenas é percebido objetivamente, é percebido como outro sujeito com o qual nos identificamos e que identificamos conosco, o ego alter que se torna alter ego. Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade.
 
EDUCAÇÃO PARA OS OBSTÁCULOS À COMPREENSÃO
Os obstáculos exteriores à compreensão intelectual ou objetiva são múltiplos.
A compreensão do sentido das palavras de outro, de suas idéias, de sua visão do mundo está sempre ameaçada por todos os lados:
• Existe o “ruído” que parasita a transmissão da informação, cria o mal-entendido ou o não-entendido.
• Existe a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida de outra forma; assim, a palavra “cultura”, verdadeiro camaleão conceptual, pode significar tudo que, não sendo naturalmente inato, deve ser aprendido e adquirido; pode significar os usos, valores, crenças de uma etnia ou de uma nação; pode significar toda a contribuição das humanidades, das literaturas, da arte e da filosofia.
• Existe a ignorância dos ritos e costumes do outro, especialmente dos ritos de cortesia, o que pode levar a ofender inconscientemente ou a desqualificar a si mesmo perante o outro.
• Existe a incompreensão dos Valores imperativos propagados no seio de outra cultura, como o são nas sociedades tradicionais o respeito aos idosos, a obediência incondicional das crianças, a crença religiosa ou, ao contrário, em nossas sociedades democráticas contemporâneas, o culto ao indivíduo e o respeito às liberdades.
• Existe a incompreensão dos imperativos éticos próprios a uma cultura, o imperativo da vingança nas sociedades tribais, o imperativo da lei nas sociedades evoluídas.
• Existe freqüentemente a impossibilidade, no âmago da visão do mundo, de compreender as idéias ou os argumentos de outra visão do mundo, como de resto no âmago da filosofia, de compreender outra filosofia.
• Existe, enfim e sobretudo, a impossibilidade de compreensão de uma estrutura mental em relação a outra.
Os obstáculos intrínsecos às duas compreensões são enormes; são não somente a indiferença, mas também o egocentrismo, o etnocentrismo, o sociocentrismo, que têm como traço comum se situarem no centro do mundo e considerar como secundário, insignificante ou hostil tudo o que é estranho ou distante.
 
 2.1. O egocentrismo
O egocentrismo cultiva a seIf-deception, tapeação de si próprio, provocada pela autojustificação, pela autoglorificação e pela tendência a jogar sobre outrem, estrangeiro ou não, a causa de todos os males. A self-deception é um jogo rotativo complexo de mentira, sinceridade, convicção, duplicidade, que nos leva a perceber de modo pejorativo as palavras ou os atos alheios, a selecionar o que lhes é desfavorável, eliminar o que lhes é favorável, selecionar as lembranças gratificantes, eliminar ou transformar o desonroso.
O Cercle de Ia Croix, de Iain Peaars, mostra bem, em quatro narrativas diferentes dos mesmos acontecimentos e do mesmo homicídio, a incompatibilidade entre as narrativas devido não somente à dissimulação e à mentira, mas às idéias preconcebidas, às racionalizações, ao egocentrismo ou à crença religiosa. A Féerie por une autre fois, de Louis-Ferdinand Céline, é testemunho único de autojustificação frenética do autor, de sua incapacidade de se autocriticar, de seu raciocínio paranóico.
De fato, a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros.
O egocentrismo amplia-se com o afrouxamento da disciplina e das obrigações que anteriormente levavam à renúncia aos desejos individuais, quando se opunham à vontade dos pais ou cônjuges. Hoje a incompreensão deteriora as relações pais-filhos, maridos-esposas. Expande-se como um câncer na vida cotidiana, provocando calúnias, agressões, homicídios psíquicos (desejos de morte). O mundo dos intelectuais, escritores ou universitários, que deveria ser mais compreensivo, é o mais gangrenado sob o efeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consagração e de glória.
 
2.2 Etnocentrismo e sociocentrismo
O etnocentrismo e o sociocentrismo nutrem xenofobias e racismos e podem até mesmo despojar o estrangeiro da qualidade de ser humano. Por isso, a verdadeira luta contra os racismos se operaria mais contra suas raízes ego-sócio-cêntricas do que contra seus sintomas.
As idéias preconcebidas, as racionalizações com base em premissas arbitrárias, a autojustificação frenética, a incapacidade de se autocríticar, os raciocínios paranóicos, a arrogância, a recusa, o desprezo, a fabricação e a condenação de culpados são as causas e as conseqüências das piores incompreensões, oriundas tanto do egocentrismo quanto do etnocentrismo.
A incompreensão produz tanto o embrutecimento quanto este produz a incompreensão. A indignação economiza o exame e a análise. Como disse Clément Rosset: “A desqualificaçãopor motivos de ordem moral permite evitar qualquer esforço de inteligência do objeto desqualificado de maneira que um juízo moral traduz sempre a recusa de analisar e mesmo a recusa de pensar”. Como Westermarck assinalava: “O caráter distintivo da indignação moral continua sendo o desejo instintivo de devolver pena por pena”.
A incapacidade de conceber um complexo e a redução do conhecimento de um conjunto ao conhecimento de uma de suas partes provocam conseqüências ainda mais funestas no mundo das relações humanas que no do conhecimento do mundo físico.
 
O espírito redutor
Reduzir o conhecimento do complexo ao de um de seus elementos, considerado como o mais significativo, tem conseqüências piores em ética do que em conhecimento físico. Entretanto, tanto é o modo de pensar dominante, redutor e simplificador, aliado aos mecanismos de incompreensão, que determina a redução da personalidade, múltipla por natureza, a um único de seus traços. Se o traço for favorável, haverá desconhecimento dos aspectos negativos desta personalidade. Se for desfavorável, haverá desconhecimento dos seus traços positivos. Em um e em outro caso, haverá incompreensão. A compreensão pede, por exemplo, que não se feche, não se reduza o ser humano a seu crime, nem mesmo se cometeu vários crimes. Como dizia Hegel:
 “O pensamento abstrato nada vê no assassino além desta qualidade abstrata (retirada de seu complexo) e (destrói) nele, com a ajuda desta única qualidade, o que resta de sua humanidade.”
Além disso, lembremo-nos de que a possessão por uma idéia, uma fé, que dá a convicção absoluta de sua verdade, aniquila qualquer possibilidade de compreensão de outra idéia, de outra fé, de outra pessoa.
Assim, os obstáculos à compreensão são múltiplos e multiformes: os mais graves são constituídos pela cadeia egocentrismo/autojustificação/self-deception, pelas possessões e reduções, assim como pelo talião e pela vingança - estruturas arraigadas de modo indelével no espírito humano, que ele não pode arrancar, mas que ele pode e deve superar.
A conjunção das incompreensões, a intelectual e a humana, a individual e a coletiva, constitui obstáculos maiores para a melhoria das relações entre indivíduos, grupos, povos, nações.
Não são somente as vias econômicas, jurídicas, sociais, culturais que facilitarão as vias da compreensão; é preciso também recorrer a vias intelectuais e éticas, que poderão desenvolver a dupla compreensão, intelectual e humana.
 
A ÉTICA DA COMPREENSÃO 
A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático compreende por que o fanático quer matá-lo, sabendo que este jamais o compreenderá. Compreender o fanático que é incapaz de nos compreender é compreender as raízes, as formas e as manifestações do fanatismo humano. É compreender porque e como se odeia ou se despreza. A ética da compreensão pede que se compreenda a incompreensão.
A ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. Encerrar na noção de traidor o que decorre da inteligibilidade mais ampla impede que se reconheçam o erro, os desvios, as ideologias, as derivas.
A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar estaremos no caminho da humanização das relações humana.   
O que favorece a compreensão é:
 
3.1 - O “bem pensar”
Este é o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano. Permite-nos compreender igualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception, possessão por uma fé, delírios e histerias).
 
3.2  - A introspecção 
A prática mental do auto-exame permanente é necessária, já que a compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a via para a compreensão das do outro. Se descobrirmos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão.
O auto-exame crítico permite que nos descentremos em relação a nós mesmos e, por conseguinte, que reconheçamos e julguemos nosso egocentrismo. Permite que não assumamos a posição de juiz de todas as coisas.
 
A CONSCIÊNCIA DA COMPLEXIDADE HUMANA
A compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana.
Assim, podemos buscar na literatura romanesca e no cinema a consciência de que não se deve reduzir o ser à menor parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto, na vida comum, nos apressamos em encerrar na noção de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos de sua vida e de sua pessoa a este traço único, descobrimos em seus múltiplos aspectos os reis gângsters de Shakespeare e os gângsters reais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode se transformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov.
Podemos enfim aprender com eles as maiores lições de vida, a compaixão do sofrimento dos humilhados e a verdadeira compreensão.
 
4.1 A abertura subjetiva (simpática) em relação ao outro
Estamos abertos para determinadas pessoas próximas privilegiadas, mas permanecemos, na maioria do tempo, fechados para as demais. O cinema, ao favorecer o pleno uso de nossa subjetividade pela projeção e identificação, faz-nos simpatizar e compreender os que nos seriam estranhos ou antipáticos em tempos normais. Aquele que sente repugnância pelo vagabundo encontrado na rua simpatiza de todo coração, no cinema, com o vagabundo Carlitos. Enquanto na vida cotidiana ficamos quase indiferentes às misérias físicas e morais, sentimos compaixão e comiseração na leitura de um romance ou na projeção de um filme.
 
4.2 A interiorização da tolerância
A verdadeira tolerância não é indiferente às idéias ou ao ceticismo generalizados. Supõe convicção, fé, escolha ética e ao mesmo tempo aceitação da expressão das idéias, convicções, escolhas contrárias às nossas. A tolerância supõe sofrimento ao suportar a expressão de idéias negativas ou, segundo nossa opinião, nefastas, e a vontade de assumir este sofrimento.
Há quatro graus de tolerância: o primeiro, expresso por Voltaire, obriga-nos a respeitar o direito de proferir um propósito que nos parece ignóbil; isso não é respeitar o ignóbil, trata-se de evitar que se imponha nossa concepção sobre o ignóbil a fim de proibir uma fala. O segundo grau é inseparável da opção democrática: a essência da democracia é se nutrir de opiniões diversas e antagônicas; assim, o princípio democrático conclama cada um a respeitar a expressão de idéias antagônicas às suas. O terceiro grau obedece à concepção de Niels Bohr, para quem o contrário de uma idéia profunda é uma outra idéia profunda; dito de outra maneira, há uma verdade na idéia antagônica à nossa, e é esta verdade que é preciso respeitar. O quarto grau vem da consciência das possessões humanas pelos mitos, ideologias, idéias ou deuses, assim como da consciência das derivas que levam os indivíduos bem mais longe, a lugar diferente daquele onde querem ir. A tolerância vale, com certeza, para as idéias, não para os insultos, agressões ou atos homicidas.
 
5. COMPREENSÃO, ÉTICA E CULTURA PLANETÁRIAS
 
Devemos relacionar a ética da compreensão entre as pessoas com a ética da era planetária, que pede a mundialização da compreensão. A única verdadeira mundialização que estaria a serviço do gênero humano é a da compreensão, da solidariedade intelectual e moral da humanidade.
As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura-mestra, deve-se tornar também uma cultura-aprendiz. Compreender é também aprender e reaprender incessantemente.
Como podem as culturas comunicar?Magoroh Maruyama fornece-nos uma indicação útil. Em cada cultura, as mentalidades dominantes são etno ou sociocêntricas, isto é, mais ou menos fechadas em relação às outras culturas. Mas existem, dentro de cada cultura, mentalidades abertas, curiosas, não-ortodoxas, desviantes, e existem também mestiços, fruto de casamentos mistos, que constituem pontes naturais entre as culturas. Muitas vezes os desviantes são escritores ou poetas cuja mensagem pode se irradiar tanto no próprio país quanto no mundo exterior.
Quando se trata de arte, de música, de literatura, de pensamento, a mundialização cultural não é homogeneizadora. Formam-se grandes ondas transnacionais que favorecem ao mesmo tempo a expressão das originalidades nacionais em seu seio. Foi assim na Europa no Classicismo, nas Luzes, no Romantismo, no Realismo, no Surrealismo. Hoje, os romances japoneses, latino-americanos, africanos são publicados nas grandes línguas européias e os romances europeus são publicados na Ásia, no Oriente, na África e nas Américas. As traduções dos romances, ensaios, livros filosóficos de uma língua para outra permitem a cada país ter acesso às obras dos outros países e de nutrir-se das culturas do mundo, alimentando ao mesmo tempo, com suas obras, o caldo de cultura planetária. Com certeza, aquele que recolhe as contribuições originais de múltiplas culturas está ainda limitado às esferas restritas de cada nação; mas seu desenvolvimento é um traço marcante da segunda metade do século XX e deveria estender-se até o século XXI, o que seria triunfal para a compreensão entre os humanos.
Paralelamente, as culturas orientais suscitam no Ocidente múltiplas curiosidades e interrogações. O Ocidente já havia traduzido o Avesta e os Upanishads no século XVIII, Confúcio e Lao-Tseu no século XIX, mas as mensagens da Asia permaneciam restritas a objetos de estudos eruditos. Foi apenas no século XX que a arte africana, os filósofos e místicos do Islã, os textos sagrados da Índia, o pensamento do Tao, o do budismo transformaram-se fontes vivas para a alma ocidental isolada ao mundo do ativismo, do produtivismo, da eficácia, do divertimento, que aspira à paz interior e à relação harmoniosa com o como.
A abertura da cultura ocidental pode parecer para alguns ao mesmo tempo não-compreensiva e incompreensível. Mas a racionalidade aberta e autocrítica decorrente da cultura européia permite a compreensão e a integração do que outras culturas desenvolveram e que ela atrofiou. O Ocidente deve também incorporar as virtudes das outras culturas, a fim de corrigir o ativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo”, o consumismo desenfreados, desencadeados dentro e fora dele. Mas deve também salvaguardar, regenerar e propagar á melhor de sua cultura, que produziu a democracia, os direitos humanos, a proteção da esfera privada do cidadão.
A compreensão entre sociedades supõe sociedades democráticas abertas, o que significa que o caminho da compreensão entre culturas, povos e nações passa pela generalização das sociedades democráticas abertas.
Mas não nos esqueçamos de que, mesmo nas sociedades democráticas abertas, permanece o problema epistemológico da compreensão: para que possa haver compreensão entre estruturas de pensamento, é preciso passar à metaestrutura do pensamento que compreenda as causas da incompreensão de umas em relação às outras e que possa superá-las.
A compreensão é ao mesmo tempo meio e fim da comunicação humana. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensões mútuas. Dada a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro.
MORIN, Edgar. Ensinar a compreensão. In: Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paullo: Edições Unesco, 2000, pp. 93-104.
TEXTO 10 - POR UMA MORAL PLANETÁRIA: CONTRA O HUMANICÍDIO
Michel Lacroix
EXERCÍCIO
 
TEXTO “O VALOR DA VIDA” (MICHEL LACROIX)
 
A ética da sobrevivência prende-se, primeiro, à mera lógica. A moral planetária apresenta um primeiro argumento. Questão de simples bom senso: quantos planetas temos à nossa disposição? Apenas um. Se tornarmos a Terra inabitável, onde é que nos refugiaremos? Estamos vendo que nossa biosfera é nosso único habitat. Evidência banal, cuja lembrança é oportuna: “Temos uma só e única biosfera que nos permite viver”. Um segundo argumento repousa na anterioridade lógica. Desejamos que nossos descendentes vivam melhor que nós? É uma preocupação louvável. Mas antes, não é preciso tomar providência para que, simplesmente, vivam? Em todo pensamento orientado para o futuro, não é a sobrevivência a condição sine qua non? A Declaração de Haia datada de 1989 inicia-se com as seguintes palavras: “O direito à vida está na base de todos os outros”. Certo. E antes o direito à vida, o que há? Há o direito a nascer: o que devemos desejar antes de tudo não é que indivíduos nasçam, no próprio interesse deles, e por nenhuma outra razão? Por isso o discurso da moral planetária tende a pôr o melhorismo em segundo plano. A prioridade absoluta não é melhorar a qualidade da vida, e remediar a injustiça, e construir sociedades novas, moldar um novo homem etc. “Que homens vivam”, escreve Hans Jonas, “que vivam bem, é o mandamento que vem depois". A invenção e a própria edificação de um futuro pressupõem que a possibilidade de um futuro não tenha sido abolida. O pré-requisito para qualquer projeto de futuro é haver futuro. É preciso destacar a importância desse mandamento que se inscreve no frontispício de qualquer reflexão sobre o terceiro milênio. Com a moral planetária, somos trazidos de volta ao indiscutível, ao inexorável, à brutal e prosaica evidência do primum vivere.
A ética da sobrevivência baseia-se, em segundo lugar, numa recusa de banalização do holocausto planetário. A moral planetária está plenamente consciente do fato que um dos maiores perigos que nos ameaça seria começarmos a encarar friamente a extinção da raça humana. Por exemplo, é preciso recusar a sórdida contabilidade em megamortes. A fim de manter intactas as forças da recusa é preciso que a extinção mantenha seu poder de escândalo. Não tornar tolerável o que deve permanecer intolerável. É preciso impedir que a sensibilidade enfraqueça. A moral planetária pretende evitar a anestesia, o costume, e suscitar o despertar da sensibilidade, a rejeição, a indignação e a ação.
 
A ética da sobrevivência alia-se a uma reabilitação do medo. Vale a pena demorar neste ponto que salienta a originalidade da moral planetária. De fato, o medo da morte é tradicionalmente considerado como um sentimento meio vergonhoso, sinal de fraqueza. Ora, isso não viria ao caso em se tratando da morte planetária. O medo dessa morte é totalmente legítimo, desempenha um papel crucial, agora, na identificação do bem e do mal. Ao filósofo alemão Hans Jonas, pelo seu Le Principe responsabilité, devemos a mais acabada expressão dessa concepção positiva do medo, considerado como instrumento da inteligência e da moral. Na base da moral da responsabilidade para com o mundo e para com as futuras gerações, explica o autor, deve residir o “princípio temor”. Para fundamentar a moral do nosso tempo é preciso o apoio do que ele chama de maneira chocante uma “heurística do medo”. No domínio da ética, hoje, o medo não é o melhor método para se descobrir a verdade? Seguramente, e é um dos sinais distintivos da moral planetária. Enquanto a moral tradicional amparava-se no instinto que leva os homens a buscar o bem, o desejável (o famoso “bem soberano” dos filósofos), agora chegou o momento, explica Hans lonas, de mudar de método, levando em conta os problemas que ameaçam o globo: “O temor”, escreve ele, “é um guia muito melhor”. Na moral planetária, o prognóstico do mal prevalece sobre o do bem e é preciso prestar mais atenção à profecia da desgraça que à previsão da felicidade. O medo passa a ser uma obrigação moral essencial.
 
Enfim e, sobretudo,a ética da sobrevivência dá à virtude de existir a proeminência sobre todos os demais valores. O “sim” à existência passa a ser o ato mais moral que se possa realizar. Convém aqui focalizar este aspecto primordial da moral planetária. Quando raciocinávamos apenas do ponto de vista individual, podíamos considerar haver bens mais preciosos que a vida. Sabemos que exigências mais altas autorizam, em certos casos, a pôr a vida na balança. Não podemos, legitimamente, preferir a morte à desonra? Entregar a vida por dedicação? Arriscar morrer para melhorar a condição de vida dos semelhantes? Sacrificar-se em defesa da pátria? Considerada do ponto de vista do indivíduo, a preocupação com a sobrevivência parece apenas moral. Cada qual sente, em relação às virtudes concorrentes, o reflexo vital secundário. Afinal, a menos nobre das obrigações não é a própria proteção?
 
Tudo muda, porém, ao passar do plano individual para o coletivo. Na escala da humanidade global, a hierarquia tradicional dos valores se inverte. O mais eminente dos valores passa a ser a sobrevivência da espécie. Esta exigência de sobrevivência constitui um absoluto, algo incondicional. Tal é a espetacular revolução trazida pela moral planetária: com ela, a preservação da vida passa do grau de virtude menor para o de virtude maior. Doravante, para a espécie considerada em sua globalidade, o instinto vital vem a ser o supremo mandamento. Nesta escala, torna-se evidente que nenhum bem moral pode ser preferido à sobrevivência pura e simples. A extinção, insiste a moral planetária, seria o maior dos crimes. Hans Jonas declara que, nos “assuntos referentes à humanidade, é proibido praticar o jogo do vale tudo”. As apostas do agir nunca devem comportar risco, por menor que seja, para a humanidade na sua totalidade. Insistimos: nenhum argumento, nenhum casuísmo pode legitimar que se coloque a espécie em perigo, não há grau de valores, por mais nobres que sejam: liberdade, dignidade, progresso, honra, direito. O indivíduo pode, se quiser, sacrificar sua vida por esses ideais. Nunca a humanidade.
 
 
O cuidado com o eu e o cuidado com o planeta
 
Estão certos os defensores da moral planetária quando assumem a literatura da transformação? Não se arriscam a perder de vista seu primeiro objetivo? Coloquemos a questão: o que as técnicas do desabrochar do eu, os exercícios de transformação pessoal têm a ver com a sobrevivência do planeta? Pode a moral expandir-se entre esses dois extremos sem perder força? O ecletismo não corre o risco de enfraquecê-la? É preciso, portanto, submeter a moral planetária a um último teste de coerência.
Comecemos observando que os dois termos - cuidado com o eu e cuidado com o planeta - não são excludentes. O interesse pela coisa coletiva e o interesse pelo desabrochar pessoal não exprimem dois aspectos complementares da moral? De fato, considerada em toda a sua extensão, a moral apresenta dupla orientação e, talvez, seja útil, aqui, invocar a autoridade de Kant. Segundo Kant, a moral determina para o homem dois tipos de obrigações, velar pela felicidade alheia e trabalhar pelo próprio aperfeiçoamento. Devemos, explica Kant, não apenas querer que os outros sejam felizes, mas também trabalhar pelo aperfeiçoamento da nossa pessoa (em compensação, sublinha, querer nossa própria felicidade não constitui um dever). A mensagem da moral planetária coloca-se em linha direta a essa concepção dualista. O interesse pela sorte da humanidade planetária corresponde à obrigação relativa à felicidade alheia, enquanto a ética do desabrochar pessoal alinha-se com o conceito de obrigações para consigo mesmo.
Contudo, o cuidado com o planeta e o cuidado com o eu não mantêm apenas relações de justaposição. Articulam-se de forma muito estreita. Uma sutil solidariedade, uma poderosa comunidade de interesses os une. Longe de nos desviar dos problemas planetários, o cuidado com o eu contribui para a solução deles. Um dos maiores motivos de orgulho para a moral planetária nos parece ser essa síntese ética plena de originalidade, que cabe numa fórmula lapidar: visando o desabrochar pessoal, salvamos o planeta.
Expliquemos: primeiramente, o eu e o planeta têm um inimigo comum, a famosa “bigness of things”. Os sofrimentos de eu e os do planeta não encontram explicação numa mesma causa? O que impede o eu de libertar-se? A desmedida das instituições, a desmedida das cidades, também a da tecnologia e a do crescimento. Ora, sabemos que os mesmos fatores ameaçam o planeta. Este está morrendo sob o peso do bigness of things. “Todos os sistemas e todas as instituições que crescem até o ponto de prejudicar ao nosso desenvolvimento enquanto pessoas”, escreve Theodore Roszak, “põem igualmente o planeta em perigo”. Se a etiologia é a mesma, a terapia deve ser a mesma. Recorremos aos mesmos remédios para curar o eu e o planeta. Para a moral planetária, esse remédio é simplesmente a volta à famosa “escala humana”. Ao restabelecer a escala humana, salvar-se-ão o eu e o planeta. Roszak expressa bem o ponto de vista da moral planetária quando considera a seguinte cadeia de reações: “Ao procurar salvar nossa personalidade, afirmamos a escala humana. Ao afirmar a escala humana, derrubamos o regime do bigness. Agindo assim, salvamos o planeta”.
 
O eu e o planeta são solidários também em outro sentido. Na medida em que nos recentramos sobre nossa vida interior, nosso comportamento econômico mudará. A acumulação de bens atrairá menos. Isto decorre de uma verdade psicológica banal que a moral planetária tem em alta conta: quando o eu íntimo sofre, já observamos, o homem tende a recorrer, por compensação, ao consumo desenfreado. E inversamente: o desenvolvimento interior torna menos imperiosa a necessidade de desenvolvimento exterior. Entregando-nos às técnicas do desenvolvimento do eu, tenderemos a abandonar as técnicas que violentam Gaia. Logo que estivermos empenhados no processo de transformação do nosso eu, da ampliação e do aprofundamento de nossa consciência, uma verdade saltará aos nossos olhos: as riquezas roubadas à natureza são irrisórias se comparadas às maravilhosas riquezas contidas no eu. Essa será a virtude do self discovery, da self realization tão enaltecidos nos ambientes da Nova Era: terão por resultado afrouxar a pressão que exercemos sobre o mundo, incitar-nos então a enfraquecer nosso poder sobre Gaia. O retorno à esfera individualista fará com que o meio ambiente natural retorne a si mesmo. Duplamente salutar, a ética do desenvolvimento pessoal salvará o eu da alienação e o planeta da morte. Portanto, a mais eficaz militância planetária consiste em cuidar de si mesmo. É o que sugere a moral planetária de forma bastante nítida. Contra todos os detratores dos costumes do final do século vinte, ela outorga ao individualismo um certificado de honorabilidade. Graças a ela, as técnicas do desenvolvimento pessoal e a literatura do eu acedem à legitimidade planetária.
 
Essas considerações trazem-nos de volta ao problema da “mão invisível”. Já vimos que a posição da moral planetária é claríssima quanto ao liberalismo econômico. Afirma que a felicidade coletiva, a prosperidade geral e, a fortiori, a salvaguarda do planeta não podem ficar à mercê do mero jogo dos egoísmos individuais. Pensa que as condutas orientadas para o gozo têm como conseqüência agravar inexoravelmente a situação geral da humanidade e assenta seu raciocínio no famoso apólogo da tragédia dos comuns. Esta condena sem apelo, os comportamentos orientados para as alegrias materialistas. Mas esse julgamento sem apelo aplica-se também às alegrias de ordem espiritual? Longe de serem prejudiciais, não têm elas um efeito gratificante? Contrariamente às alegrias materialistas, não constituem as técnicas da alegria espiritual a melhor terapia para curar o “câncer planetário”? Esse é o ponto de vista da moral planetária. Da soma dos esforços individuais para o desabrochar, pensa ela, só pode resultar um bem maior para o planeta em geral. No fundo, tudo se passa como se a moral planetáriaconservasse o mito da mão invisível, mas sublimando-a, ao espiritualizá-la. Parafraseando uma frase célebre, poderíamos dizer agora: “O que é autenticamente bom para o indivíduo, também o é para o planeta inteiro”.
 
Uma derradeira questão se levanta. É fortuita essa coincidência entre os interesses do eu e do planeta? Seria possível haver aqui uma intenção, um plano oculto? E se o próprio planeta tivesse desejado essa volta aos valores pessoais? Com o instinto dos seres que procuram sobreviver, ele talvez tenha inspirado as pesquisas relativas ao eu. Se assim for, a hipótese Gaia vai dar o último toque na moral planetária. Sigamos de perto o esquema explicativo que esta nos propõe. A explicação começa pela constatação banal de que o planeta sofre devido à pressão humana. Lembremos que Gaia é geralmente considerada como ser vivo. Experimenta, portanto, um sentimento de urgência, uma angústia em relação à sua sobrevivência. Como escapará ela aos perigos? Sem dúvida, ativando as forças espirituais do homem. Se ela pudesse desencadear o movimento da transformação pessoal, não estaria salva? Não seria suficiente que cada um de nós sentisse em seu foro íntimo, uma poderosa aspiração ao desabrochar, para que os problemas planetários fossem resolvidos? Assim se descobre o sentido profundo do esforço de desabrochar e de transformação de si, do esforço de self discovery: trata-se de uma resposta provocada pela própria Gaia para a situação de urgência ecológica. Num reflexo de self defense, consciente de que se trata do único meio que lhe testa pata escapar da morte, Gaia impeliu o movimento da descoberta de si e da realização pessoal, pois esse movimento afasta-nos da agressão econômica e tecnológica contra a natureza. Compreendemos agora porque as necessidades da pessoa e as do planeta coincidem: essa coincidência provém de que, em sua superior sabedoria, Gaia cria os primeiros a fim de satisfazer aos segundos! O que pensávamos ser uma aspiração individualista espontânea atende a um arranjo planetário. Somos apenas os instrumentos de Gaia, e a volta à ética do desabrochar psicológico e espiritual foi deliberadamente desejada por ela.
Essa é a teoria que encima o edifício do pensamento planetário. É evidente que não podemos abraçá-la sem postular uma intimidade profunda entre o eu e o mundo, sem repudiar toda a nossa concepção dualista, em proveito de uma filosofia monista, que, aliás, progride atualmente de forma espetacular sob a influência da Nova Era. Se Gaia tem o poder de agir desta forma sobre as molas das nossas mais profundas aspirações, não é porque, apesar das aparências, somos um só com ela? A moral planetária está muito inclinada a responder afirmativamente a esta pergunta. Não lhe desagrada pensar que nossas consciências individuais não passariam, no fundo, de fragmentos de uma gigantesca consciência coletiva, a consciência que o planeta tem de si mesmo. Seríamos apenas os modestos elementos, os nêutrons desse prodigioso órgão de Caia, desse Cérebro global, planetário, que vive, sente e pensa. A consciência planetária da qual tanto se fala presentemente, não seria apenas, como se pensa geralmente, um conjunto de obrigações a cumprir para com o planeta, um mero código de conduta moral, mas um verdadeiro fenômeno psicológico supra-humano. A expressão “consciência planetária” deve ser entendida stricto sensu, como uma emanação psíquica do Cérebro global, como a manifestação de uma vida mental superior, como um “campo de consciência planetária”, no qual os homens seriam completamente absorvidos. Tendo chegado a esse ponto, a moral planetária embrenha-se numa grandiosa especulação de planetologia panpsíquica em que a Humanidade e a Terra parecem fundidas num ser único. Alcança as representações pré-científicas e esotéricas da Renascença, nas quais as almas dos indivíduos eram partes integrantes de uma vasta alma do mundo. Levada por essas especulações, a moral planetária toma uma atitude quase visionária. Abre-se para um além da moral em sentido estrito e, visivelmente, novas aventuras intelectuais a solicitam. Chegamos ao ponto exato em que a moral planetária se transforma numa mística planetária.
 
 
Um novo humanismo: o humanismo da humildade
 
 
Eis que chegamos ao final da nossa pesquisa sobre a vasta corrente de pensamento, ao mesmo tempo filosófico, moral e científico, que está invadindo a paisagem intelectual do mundo. Essa corrente arrasta para si um número crescente de intelectuais de todos os horizontes, de cientistas de todas as disciplinas, de peritos, jornalistas, responsáveis políticos, que têm por característica comum fazer do planeta e da humanidade que o habita, o objeto principal da sua reflexão. Concluindo este livro, insistimos no fato de que a moral planetária proposta renova profundamente a corrente de idéias que chamamos comumente de “humanismo”. Podemos dizer que esta moral planetária anuncia um novo humanismo. De que tipo de humanismo se trata?
 
De início, fica claro que a moral planetária não é um hino à glória do homem. A visão que ela dá do homem, já vimos em diversas passagens deste livro, é isenta de autosatisfação. Os novos humanistas, pois assim é que convém chamar os fundadores da moral planetária, dirigem-se a uma humanidade que, longe de ser triunfante e segura de si mesma, encontra-se num momento particularmente crítico da sua história. Os três componentes essenciais da mensagem que passam para seus contemporâneos (impedir o suicídio coletivo por meio de um contrato mundial em que estarão representadas as futuras gerações; alterar nossos comportamentos; redefinir nosso lugar na natureza) são inseparáveis de uma visão depreciativa do humano. Se se passar em revista esses três componentes, essa depreciação do humano aparecerá de forma evidente.
 
A moral planetária exorta-nos a sobreviver. Não nos faz voltar, portanto, ao que há de menos glorioso em nós? No centro de gravidade dessa moral há o cuidado, pouco heróico afinal, de perseverar na existência, e destacamos em diversas ocasiões o papel desempenhado pelo princípio inevitável do primum vivere. Os novos humanistas exprimem o temor de que a humanidade contemporânea sucumba à tentação do suicídio. São obsedados pelo espectro de um suicídio da espécie. Não será o caso de admitir que esta humanidade, vítima da atração do nada, é atingida por uma espécie de depressão, por uma patologia mental? De fato, os novos humanistas nos dão a impressão de debruçar-se à cabeceira de um doente, segundo indica o emprego constante de termos como “loucura”, “insensatez”, “neurose”, “psicose”.
 
A moral planetária insiste também na imperiosa necessidade da mudança dos comportamentos. Não poderemos, lembra incansavelmente, continuar vivendo assim. Devemos aprender a “ser” diferentes. Essas exortações, tantas vezes repetidas, fazem ressaltar cruelmente a imperfeição de que sofre a humanidade atual. A esperança posta nas alterações futuras é a medida da decepção com o presente. Obviamente, os novos humanistas não sentem admiração nenhuma pelo homem. Aos olhos deles, não somos as criaturas mais bem sucedidas. Não somos a obra-prima do mundo. Não estamos nos comportando como perturbadores neste planeta? A falta de medida das nossas atividades econômicas e das nossas técnicas, nosso espírito de dominação, o desregramento dos nossos impulsos, nosso egoísmo, nosso hedonismo, o mau uso que fazemos da nossa inteligência e da nossa força, fazem de nós os mais perigosos habitantes da Terra. O novo humanismo tende a pensar que, longe de ser uma obra-prima, somos o ponto fraco da Criação.
 
O questionamento do antropocentrismo constitui a terceira grande idéia da moral planetária. O ideal de uma humanidade exercendo sua soberania sobre o mundo é substituído pela exigência de um contrato com a natureza. Vivemos numa época em que nossos sonhos de supremacia humana evaporam-se e a moral planetária nos traz de volta a uma função mais modesta ao nos impor ser simplesmente os guardiões da natureza. De agora em diante, nossa vocaçãoconsiste em estar a serviço da Terra, em velar pela manutenção do planeta. Na escala dos seres, o homem passa por uma espécie de desclassificação. Podemos expressar essa idéia dizendo que o humanismo de privilégio foi abolido.
Visivelmente, os novos humanistas reservam seus sentimentos de admiração para o próprio planeta. O desencanto com o homem acompanha um “reencanto com o mundo”, que surge como um dos aspectos mais característicos da mentalidade atual. Onde está a perfeição? Os novos humanistas respondem: no funcionamento harmonioso de Gaia e dos ecossistemas, na diversidade das espécies vegetais e animais, na beleza das paisagens. O novo humanismo é até tentado por uma espécie de neomisticismo, neo-animismo, e por um culto a Gaia, que progride rapidamente nos ambientes da Nova Era. A verdadeira obra prima é a Terra, a “pérola azul”, não a espécie humana.
Assistimos, com a moral planetária, à emergência de um humanismo, cuja principal característica é excluir qualquer glorificação do humano. Claro, o homem está no centro da reflexão dos novos humanistas. Mas é preciso ver que ele é para eles uma preocupação, não um motivo de orgulho. Os novos humanistas são testemunhas de uma das mais dramáticas crises morais da História. Sua doutrina reflete o estado de espírito de uma humanidade colocada repentinamente na obrigação de reformar-se e de repensar seu lugar no mundo, uma humanidade que passa pela provação da dúvida e da perda de estima de si mesma. Em que consiste, perguntávamos, a novidade desse pensamento humanista? A resposta parece-nos óbvia. O que legamos ao terceiro milênio é um humanismo de humildade.
Extraído de LACROIX, Michel. “Por uma moral planetária: contra o humanicídio”. São Paulo: Paulinas, 1996.

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