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GRITO D'ALMA

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Peça: Out Cry (Grito d’alma)
Autor: Tennessee Williams (1973)
Tradutor: Francisco Carneiro da Cunha (2000, Sbat 11260)
Personagens: Feliz e Clara
Sobre o autor: "Tennessee foi escritor extraordinário e homem encantador. Extremamente modesto e de fala mansa, foi um ser transparente e indefeso, vulnerável a todos e a tudo. Cruelmente sincero e poeta de alma puríssima ele sofreu arraigada neurose que lhe corroeu as entranhas e por isso teve uma vida cheia de mágoas, embora nunca mentisse ou dissesse algo desagradável a respeito de alguém. Se tivéssemos uma sociedade que desse assistência a um homem de sua fragilidade, certamente ele teria vida menos sofrida” (depoimento de Marlon Brando no livro Brando) 
Sobre a peça: "Acho meu melhor texto, o mais belo que escrevi desde Um bonde chamado desejo. Na verdade, nunca deixei de trabalhar nele. Para mim é uma obra-prima, sinceramente. Um grito da alma na exata medida em que toda verdadeira criação é um grito da alma". Assim o artista define sua última grande peça, terminada de ser escrita oito anos antes de sua morte em 1983. Metáfora do processo criador, Out Cry remete ao renascimento do teatro após a Antiguidade (Drama do Calvário) e durante a Idade Média (teatro mambembe de carroças). É um grito contra nosso mundo falido e comovida declaração de amor ao teatro. Exaltação do ato criador como única maneira do homem renascer novamente.
Resumo da peça: Feliz e Clara, dois irmãos atores donos de companhia mambembe são abandonados pelo restante do grupo num desconhecido palco subterrâneo. Em meio a um clima tenso e denso, ao mesmo tempo em que delicado e sensual, representam A peça de dois personagens que ele escreveu para ela e cujos personagens são também dois irmãos com seus mesmos nomes vivendo numa Nova Belém ensolarada na casa dos pais após sua morte trágica, local de onde não querem sair. O público torna-se hostil e termina por abandonar o teatro, o que os obriga a encerrar a representação passando a enfrentar frio e escuridão naquele palco de fim de mundo, lugar de onde não conseguem sair. Para se livrarem da infernal situação só lhes resta voltarem à peça e ao seu luminoso girassol.
(Ciclorama ao fundo do palco apresenta imagens que mudam conforme o clima das cenas)
 
CENA 1
Quando as luzes acendem, Feliz está parado no proscênio de um palco meio inclinado como uma criatura acuada, segurando numa das mãos caderno e caneta. Ouve-se na espécie de catacumba em que acaba de chegar ruídos vindos não se sabe de onde. Pedaços de cenários por toda parte: porta abobadada, janela com persiana, piano antigo, escada circular de ferro, baú cheio de objetos de cena e ao fundo enorme estátua negra de um homem acorrentado que espanta Feliz por ver nela a representação de seu mundo interior. Ele caminha devagar para o monstro à medida que os ruídos crescem em volume e velocidade. De repente lança-se ao pé da escultura que parece dobrar-se gigantesca sobre ele e num esforço quase demoníaco tenta movê-la, mas não consegue, ela é pesada demais. Grita por ajuda.
CENA 2
Feliz – Tem alguém pra me ajudar a empurrar isso? (pausa) Sozinho eu não 
 consigo! (eco da palavra sozinho) Esse lugar tem um eco que repete uma 
 vez só...(batida de porta lá fora) Fox? (silêncio) É você, Fox? (mais forte) 
 Fox! (eco de Fox) Não é possível! (pausa) Meu Deus, onde e quando tudo 
 isso começou? (esfrega a cabeça com as mãos) Essa sensação de 
 confusão...tentei esconder, mas agora ficou tudo tão claro! (ajoelha-se e 
 tira almofadas do baú. fala irônico e irado) Merda, não é no Marrocos que 
 a peça acontece! O sofá não veio...(respira fundo) Cena um: quando as 
 luzes se acendem estou sozinho no palco, ela nunca entra na hora certa 
 nem em condições normais.
Clara – (fora de cena num grito estrangulado) – Feliz!
Feliz – Sei o que esse grito significa, ela está voltando a si. Entendo sua má 
	 vontade, mas às vezes a paciência também perde a paciência (uma barata 
 corre pelo palco) Baratas! (prende a respiração com nojo) Um toque 
 humano. Li em algum lugar que elas são imunes à radiação, por isso serão 
 os últimos sobreviventes do planeta.
Clara – (ainda fora de cena com a voz mais limpa) – Feliz... 
Feliz – (olha para a estátua) – “O homenzinho selvagem com um tambor dentro da 
 jaula. Comparado ao medo que cresce até o pânico, a consciência sumindo, 
 um ser vivo e sensível não consegue experimentar qualquer emoção 
 criadora, nem o amor ou o ódio podem se comparar à força...grandeza...” 
 ah, está retórico demais, vou ter de trabalhar nisso depois (pausa). Vocês já 
 perceberam que estou tentando prender sua atenção com esse monólogo 
 que só de uma forma bem genérica tem a ver com...(faz, sem olhar a estátua, 
 um gesto em direção a ela)
Clara – Cadê você?
Feliz – (arranca e deixa cair uma folha do caderno) – “Há o amor e suas...alternativas,
	 envolvimentos superficiais condenados a uma breve duração, mesmo que 
	 necessários. Você não pode prender uma pessoa e depois pedir a ela, por 
 mais que a ame: toma conta de mim, estou com medo, não sei o que fazer! 
 Essa pessoa tão amada teria você nas mãos, acabaria por desprezá-lo, não 
 aceitaria mais a prisão. Em seu coração há um aparelhinho automático que 
 não pára de sussurrar: exija, chantageie, despreze, rejeite! Então, na manhã 
 seguinte você terá de preparar sozinho o seu café, dar seus próprios 
 telefonemas e ir ao médico pra lhe dizer: doutor, estou com medo de morrer”
Clara – (ainda nos bastidores vê o irmão) – Feliz!
Feliz – Clara! (larga caderno e caneta. agacha-se)
Clara – (levemente iluminada) - Alguém me chamou?
Feliz – Eu te chamei, que nem louco.
Clara – Quanto tempo a gente tem?
Feliz – (vem à boca de cena, para o público) – Imaginem que há uma cortina aqui (dá 
 uma olhada através da imaginária cortina) Está quase na hora, o público já 
 está aí.
Clara – Cadê todo mundo?
Feliz – Todo mundo? Em algum lugar...(para o público) O que eu preciso agora
	 é que ela não entre em pânico e represente bem neste teatro desconhecido, 
	 o que não é nada fácil. (Clara entra completamente em cena, insegura e meio 
	 às cegas. dá de cara com a estátua e grita. Feliz deixa cair um objeto tirado 
 do baú)
CENA 3
 
Clara – De quem é essa aberração?
Feliz – Sinceramente, não sei, mas daí não sai.
Clara – Ela sufoca o palco todo. Que peça, meu Deus, pode ter sido representada
	 debaixo disso? Nem mesmo Medéia ou Édipo...Daqui não sai, foi isso que 
 você disse?
Feliz - (desesperançado) – Não será iluminada...
Clara - Qualquer luz ilumina isso!
Feliz - Quer parar de gritar? Tem gente na platéia!
Clara - É você que está gritando!
Feliz - Por favor, Clara, você...
Clara - Eu o quê?
Feliz - Sua histeria crônica está acabando com meus nervos...
Clara - E os meus, hein? Também sou um animal vertebrado com um sistema 
 nervoso submetido a choque atrás de choque...(tropeça e grita de novo)
Felix - Cuidado!
Clara - Feliz, esse monstro é obsceno.
Feliz - Eu sei, tive a mesma impressão, tentei tirá-lo daí mas não consegui, pedi 
		ajuda mas ninguém apareceu, então, agora, o que a gente tem de fazer é 
		esquecer. Depois de tantas temporadas, você já deve ter percebido que 
		sempre nos deparamos com certas circunstâncias inalteráveis que devemos 
		simplesmente ignorar.
Clara - (controlando o choro) – É, eu também já percebi isso nessas nossas 
		 excursões intermináveis...circunstâncias inalteráveis...Pox vobiscum! Pox 
 rima com Fox...O que eu vou fazer daqui prafrente nas minhas horas de 
 folga, enquanto a gente espera pelos fiscais pra confiscarem nossas coisas, 
 é...
Feliz - Quer fazer o favor! Minha cabeça está estourando! (segura com força a 
 cabeça) 
Clara - Quem sabe não seria bom fazer uma relação completa dessas...inesperadas 
 e inalteráveis circunstâncias...vejo você mais tarde (anda lentamente e sem
	 muita segurança até a boca de cena e ao longo do proscênio. seus olhos 
 têm um brilho febril pouco natural) Lembra do dia em que fomos tomar chá 
 na casa daquele pintor? Quando a gente chegou o porteiro disse: “Ah, 
 ele...não vale a pena subir". Não era que não valia a pena, simplesmente que 
 o velho estava morto diante de uma tela totalmente branca, a chaleira seca 
 no fogareiro, sentado debaixo de uma clarabóia com aquela luz de inverno, 
 não vi nenhuma janela no quarto...este teatro fica debaixo da terra, é? Será o 
templo do prazer de Cablacublacun? (durante esta fala, Feliz fica paralisado 
de consternação pela irmã). O rio sagrado deve correr congelado por aqui...
(esbarra em alguma coisa, susto) Feliz!
Feliz - Calma, Clara.
Clara - Você me ajuda a enfrentar esse pesadelo de ruínas? É como se eu estivesse
	 no mar num navio que tivesse acabado de afundar, no meio dos vômitos de
		um naufrágio!
Feliz - Sombrinha.
Clara – Sombrinha? 
Feliz - Estou verificando os objetos de cena.
Clara - Não quero nem pensar nisso...
Feliz - Não pensa, só presta atenção.
Clara - Não dá mais pra prestar atenção. Nasci e me criei nessa...profissão! Não
	 vou dar mais um passo até que você se lembre que é um cavalheiro e meu
	 irmão...Vou ficar imóvel aqui, como esse monstro, até que você...
Feliz - Luvas!...Chapéu...
Clara - Eu disse...
Feliz - Dá um tempo! Sabe, não consigo acompanhar teus altos e baixos, juro que 
 não. (sobe até o último degrau da escada de ferro e deixa lá em cima a 
 sombrinha e as luvas de Clara)
Clara - Nem eu, é todo um processo sem fim de resignação...
Feliz - (corta) – Bacia, sabão líquido...cadê a outra argolinha?
Clara - (indo ao proscênio) – Depois dos desastres da última temporada deveríamos 
		ter ido descansar à beira mar em vez de excursionar por esses lugares tão
	 primitivos e distantes.
Feliz - Clara, você sabe muito bem que nenhum de nós dois tinha a menor chance 
 de parar.
Clara - Eu não poderia mesmo, não sozinha. Só se você parasse comigo. 
		(senta no baú)
Feliz - A gente tem de continuar, não temos saída.
Clara - Acho que quando duas pessoas viveram e trabalharam juntas por tanto 
 tempo, que é até difícil calcular, é natural entrar em pânico como eu entrei
		quando voltei a mim naquele camarim lá de traz. Sabe o que me acordou? 
 Um grunhido, o barulho de asas batendo em direção ao teto invisível, um 
 morcego! Mas não fiquei com medo nem surpresa. (os dois riem triste e 
 alegres ao mesmo tempo) Realmente, aquele camarim é um congelador 
 nojento, mas eu estava tão cansada que dormi sentada numa cadeira com o 
 encosto quebrado.
Feliz - Ainda bem que você dormiu.
Clara - Estou meio zonza e minha voz acabando.
Feliz - (ainda arrumando os objetos de cena) - Telefone...em cima do piano...você 
 nunca consegue entrar em cena sem me dar uma notícia assim, que está 
 sem voz e que vamos ter de fazer um espetáculo de mímica.
Clara - É, no meu caso isso parece ser sempre verdade.
Feliz – Infelizmente nunca é.
Clara - Eu faço o máximo que posso pra entender teu nervosismo e ansiedade. 
		Por que não tenta também entender um pouco meus problemas?
Feliz - Tento, mas são tantos! Vem cá, tenho algumas coisas pra você.
Clara - Também tenho algumas pra você: quero que em cena me olhe direito, pare 
 de evitar meu olhar, não consigo contracenar com alguém quando me olha 
 sem me ver.
Feliz - Querida, eu continuaria a ver você nem que ficasse cego.
CENA 4
Clara - (voltando ao proscênio) - Deixa eu dar uma olhada neles.
Feliz - (impedindo) - Não.
Clara - Por que?
Feliz - Quando você olha o público antes do espetáculo acaba se reprimindo em
	 cena, não consegue se perder na peça.
Clara - Não sei porque estamos falando assim, como se esta noite fosse a última e a 
 gente estivesse se culpando por isso!
Feliz - Você conseguiu descansar, mas eu não, estou exausto, provavelmente vou 
	 esquecer várias falas hoje.
Clara - Quase sempre antes do espetáculo começar você me diz que está sem 
 memória.
Feliz - É.
Clara - Infelizmente nunca está. (com medo na voz) Essa não é a camiseta de papai?
Feliz - Já estou vestido pra peça.
Clara - A de dois personagens?
Feliz - A outra foi cancelada.
Clara - Eu tenho de ser informada quando um espetáculo é cancelado, do contrário
		não entro em cena. Aquela escada não é da "Peça de dois personagens”!
Feliz - Até agora só chegaram partes do cenário.
Clara - Ela não leva a lugar nenhum, pára no espaço.
Feliz - Já coloquei tuas luvas e sombrinha lá em cima, basta você subir alguns 			 degraus e eu digo que foi pro andar de cima.
Clara - Está falando sério, quer mesmo representar desse jeito?
Feliz – Seriíssimo.
Clara - E o sofá, cadê?
Feliz - Também não veio, vamos ter de usar essas almofadas.
Clara - Você pretende inventar falas hoje?
Feliz - Esta noite sinto que vamos ter de improvisar muito, mas se a gente se deixar
	 perder dentro da peça a improvisação não vai atrapalhar nada, pelo contrário,
	 vai tornar a peça ainda melhor.
Clara - Eu gosto de saber o que estou representando, principalmente como é que
		termina essa "Peça de dois personagens", ela nunca tem um fim!
Feliz - Quando a luz acender você vai voar como um pássaro através da peça, se
		esquecer alguma coisa, inventa.
Clara - Há quanto tempo a gente está aqui? Pra mim parece a própria eternidade. 
		Todas aquelas cidades, nunca pensei que o mundo fosse tão grande...Pelo 
 amor de Deus, Feliz, sinceramente, eu não consigo me lembrar onde foi que 
 pegamos o último trem. Você se lembra?
Feliz - Lógico.
Clara – Então diz: onde?
Feliz - Agora não, Clara. Não me pergunta nada agora, certo? Guarda tuas 
 perguntas pra depois do espetáculo.
Clara - Se importa se eu fizer um comentário sobre tua aparência?
Feliz - Não.
Clara - Você tem os cabelos lindos, mas estão grandes demais, quase do tamanho 
 dos meus.
Feliz - Feliz não é o tipo de homem que vai sempre ao barbeiro.
Clara - Mas o papel de Feliz não é o único que você representa. A “Peça de dois 
 personagens” é certamente o texto mais estranho do nosso repertório, mas 
 não o único. 
Feliz - De hoje em diante pode ser.
Clara - O resto do grupo não vai gostar nada disso. Por que é que eles ainda não 
 chegaram? 
Feliz - Sei lá.
Clara - Maravilha! A excursão termina hoje, é?
Feliz - Pode terminar se a gente não fizer um espetáculo brilhante.
Clara - Tudo o que eu consigo me lembrar dessa última viagem, eu devo ter tido 
 muita febre, é que ora estava claro, ora escuro, então ficava mais ou menos 
 e de novo escuro...a paisagem ia de campos pra montanhas e de montanhas 
 pra campos. Meu relógio congelou. Honestamente, não tenho a menor idéia 
 de onde a gente está, parece um mausoléu gigantesco de lugar nenhum. 
 (ruídos e murmúrios guturais na platéia. vozes. Feliz bate com o pé no chão, 
 a peça vai começar)
Feliz - Depois eu respondo tuas perguntas, mas não vou atrasar o início dapeça pra
		responder mais nada!
CENA 5
Clara - Você acha que eu não sou igual a você?
Feliz - É superior.
Clara - Só numa coisa: sou mais realizada, e insisto em saber porque só nós dois 
 estamos aqui.
Feliz - Está ouvindo a gritaria?
Clara - Parecem gorilas furiosos...A minha pergunta: onde é que os outros estão?
		(procura cigarro) O cigarro acabando...(acende o cigarro, seus dedos 
 tremem. o irmão bate duas vezes com o pé o chão) Fala: e todo mundo?
Feliz - Quer mesmo saber?
Clara - Quero.
Feliz - Acho que não vai gostar. (pega um telegrama do bolso) Olha, lê.
Clara - (pegando o papel) - Você sabe que sou cega sem meus óculos. Acende um 
 fósforo.
Feliz - (abre a caixa) - O fósforo acabando...(acende um palito para a irmã ler)
Clara - (lendo alto e devagar) – “Você e sua irmã são...loucos! Pedimos dinheiro
		emprestado para voltar”... (o fósforo apaga. ela vai ao piano e toca uma tecla)
		Bem, como eles dizem...
Feliz - O quê?
Clara – Loucos...
Feliz - Foi todo mundo embora, ficamos sozinhos. Não tem um técnico, a não ser 
 dois absurdos contraregras que entraram sem uma palavra, colocaram 
 esses pedaços de cenário...
Clara - Foram embora também?
Feliz - Tentei que falassem, mas eram silenciosos como carrascos, nem olharam 
 direito pra mim.
Clara - Dá pra reconhecê-los?
Feliz - É você quem sabe o nome de todos os contraregras, eu sorrio, aperto a mão 
 deles mas não me lembro nunca dos nomes nem das caras.
Clara - Você sempre se envolve tanto no que faz que às vezes mal me reconhece...
		Entendo isso, mas um grupo novo não tinha a menor obrigação de 
 compreender, eles devem ter ficado ofendidos e confusos, chegaram à 
 conclusão de que você era meio louco, não só um excêntrico, mas pirado 
 mesmo. E ainda por cima você pegou a mania de ficar gritando: "louco, 
 estou ficando louco!" Acho que no fim eles acabaram acreditando nas tuas 
 palavras.
Feliz - O telegrama diz que só eu sou louco, é?
Clara - Não, ele diz "você e sua irmã". Pois é querido, nós artistas nos entregamos 
 tanto ao nosso trabalho que praticamente não agimos mais como pessoas 
 normais..
Feliz - A não ser por uma morte ou internamento, a gente está nisso há...
Clara - Há quanto tempo?
Feliz - Muito tempo.
Clara - Quanto?
Feliz - Você sabe?
Clara - O tempo foi sempre problema teu! (pausa) Não te dei um pedaço novo de 
 pele pra gola do casaco?
Feliz - Deu, mas prefiro minha gola antiga.
Clara - Tudo bem...O que é que a gente vai fazer agora, nada ou alguma coisa?
Feliz - Só os mortos não fazem nada, parece.
Clara - É, parece.
Feliz - Mas nós dois estamos vivos.
Clara - Vivos e imortais...
Feliz - Os vivos têm de fazer alguma coisa.
Clara - Bom...já pensou no quê ou está esperando uma inspiração milagrosa?
Feliz - Representar a "Peça de dois personagens".
Clara - Impossível.
Feliz - Necessário.
Clara - Algumas coisas necessárias são impossíveis.
Feliz - E algumas impossíveis são absolutamente necessárias.
Clara - Que argumento!
Feliz – Decisão.
Clara - Feliz Devoto comanda, mas não dá pra comandar sem alguém pra obedecer.
		Eu não serei esse alguém porque sei perfeitamente o que vai acontecer, o 
 caos completo, novas falas jogadas em cima de mim como pedras.
		Gostaria de trabalhar comigo em absoluto pânico e total confusão? 
		Talvez gostasse, mas não vai não, muito obrigada. Querido, esta não é a 
 primeira vez que eu tenho de salvar você de sua auto-destruição que me 
 destrói também.
Feliz - De vez em quando criaremos novas falas, qual o problema?
Clara - Eu não. Se a gente tentar dar um espetáculo hoje isso provaria que é 
 verdade o que o grupo disse da gente. Vou voltar pro meu camarim, vestir 
 meu casaco e dormir. Dormir...
Feliz - Clara, você já está de casaco. (pausa. ela toca um acorde no piano)
CENA 6
Clara - Cadê teu uísque?
Feliz - Agora não, depois.
Clara - Não pode haver peça nenhuma!
Feliz - Vai haver o quê?
Clara - Fox anuncia que o restante do grupo e os cenários não chegaram, por isso 
 não pode haver espetáculo, simples.
Feliz - (pacientemente) – Nada disso, vai haver espetáculo sim e com “A peça de 
 dois personagens". E o Fox também sumiu. (oferece uísque à irmã num 
 frasco de prata)
Clara - (bebendo) – Você acha realmente que eles pensam que somos loucos ou só 
		ficaram putos porque toda essa excursão acabou num enorme fracasso?
Feliz - Estou cagando pro que eles pensam.
Clara - Não acha tudo isso maluco? Eu acho.
Feliz - Vamos deixar essa conversa para depois, certo?
Clara - Sabe o que aquela sem vergonha da Amada me perguntou no trem? "Seu 
 irmão e você sempre entram em transe antes de um espetáculo?"
Feliz - Querida, acho que você está fazendo confusão, aquela sem vergonha da 
 Amada não estava com a gente nesta temporada. (vai aos bastidores)
Clara - (alto) - Mesmo com as luzes acesas está um frio de doer, imagina então na 
 peça, ela acontece no verão e a gente vai ter de tirar os casacos pro público 
 poder acreditar que faz calor. (tosse. Feliz volta e tira seu casaco. oferece as 
 mãos à irmã para tirar o dela, mas Clara só estica os braços com um olhar de 
 súplica)
Feliz - Não quero tuas mãos, Clara, só o casaco.
Clara - Não vou tirar meu casaco nesse congelador nojento! Se você se acha capaz
	 de fazer tua mímica pra eles, então faz (Feliz agarra a irmã e arranca o 
 casaco dela. Clara grita. ele joga o casaco atrás das almofadas e volta a 
 bater no chão, trêz vezes e agora com um pedaço de madeira) Feliz, por 
 favor, tenta compreender o que aquele telegrama me causou, não posso 
 representar esta noite “A peça de dois personagens"...eu não consigo me 
 lembrar de uma única fala!
Feliz - Quando começar você se lembra.
Clara - Você acha que está sendo corajoso, mas na verdade só está sendo 
 irracional. Acredita em mim, não posso, não sei.
Feliz - (obsessivo) - Você vai representar, Clara.
Clara - Vou voltar pro camarim e você vai anunciar que cancelamos a apresentação,
		por razões de força maior.
Feliz - Vou até a frente anunciar que trocamos de peça. Quando eu voltar você vai
	 estar aqui.
Clara - Nem pensar. Às vezes eu tomo decisões e não volto atrás.
Feliz - Olha minha testa: suando.
Clara – Por que?
Feliz - Porque é um dia quente de verão em Nova Belém.
Clara - Uma vez aquele médico me disse que eu e você éramos extremamente 
 corajosos. Respondi: não, meu irmão e eu temos medo de nossas próprias 
 sombras! Ele respondeu: sei, sei, é justamente por isso que admiro tanto a 
 coragem de vocês. Faz algum sentido? Vou explicar para eles, tentarei ser 
 bem simpática dizendo que algumas vezes acontecem coisas que tornam 
 impossível um espetáculo, vou...vou me humilhar diante deles, estender 
 minhas mãos pedindo que tenham pena de nós! (cai de joelhos. Feliz a 
 levanta com carinho)	 
Feliz - O telegrama foi um choque, eu sei, mas já superamos. Agora, o que temos
		de fazer é lembrar que se não somos atores não somos nada na vida, nada.
		Temos de representar a peça da maneira mais bela possível, como nunca 
 antes, sem nos importarmos com o nosso medo, entendeu?
Clara - (passando as mãos no cabelo do irmão) – Teus cabelos cresceram tanto que 
		você parece um hermafrodita.
Feliz - É? (sorri. bate com o pau pela última vez no chão, só uma vez. joga-oatrás das almofadas)
Clara - Bonne chance! Vejo você depois. (ignorando a ameaça, Feliz vai até o 
 proscênio fazendo a mímica de passar pela invisível cortina)
Feliz - (para o público) – Senhoras e senhores, boa noite! Gostaria que soubessem
 que minha irmã e eu estamos profundamente honrados em dar nossa
 contribuição a esse programa, a essa idéia de intercâmbio cultural. Tivemos 
 algumas, quer dizer, uma série de dificuldades inesperadas, mas sendo 
 atores há muito tempo estamos habituados a esse tipo de coisa. Esta noite 
 eu e minha irmã vamos representar sozinhos porque o restante do grupo 
 ficou preso devido às excentricidades meteriológicas, melhor dizendo, às 
 perversidades do tempo (ri cinicamente). Felizmente, entre todos os textos 
 do nosso repertório o que preferimos é justamente uma peça de dois 
 personagens que, coincidentemente, se chama "A peça de dois 
 personagens"...(ri novamente. tosse) Vamos...
Clara - (intercala) – Coitado...(veste o casaco)
Feliz - ...representar para vocês essa peça e esperamos sinceramente que perdoem
		as nossas dificuldades técnicas e os problemas causados pela ausência dos
		outros, uma ausência inevitável...(agradece e volta de costas para o cenário, 
		passa pela cortina e em tom de comando fala à irmã) Clara, na marca! Vai começar.
Clara - (ameaçando ir para os bastidores) – Estou no camarim. Feliz, por favor, não 
 se humilhe assim.
Feliz - É você que quer nos desgraçar! O espetáculo tem de acontecer!
Clara - Se você ficar aqui ele vai ser de um personagem só e aí eu terei certeza de 
 que aquele telegrama diz a verdade. (Feliz desaparece nos bastidores. Clara 
 às cegas começa a sair do palco, mas pára diante da estátua e encosta sua 
 cabeça nela. ouve-se o som da cortina se abrindo. a sombra violeta que 
 cerca um pedaço do palco vai aos poucos clareando. ouve-se uma 
 gargalhada debochada, inumana, estranha. Clara então vira-se rapidamente 
 e olha desafiadoramente a platéia. Feliz volta)
Feliz - Clara! (a gargalhada aumenta. Clara tira o casaco olhando fixamente a 
 platéia)
Clara - Quem começa hoje, você ou eu?
Feliz - Você. (Clara dá uma nota aguda no piano) Tua marca é no telefone.
Clara – Sei. (vai até o aparelho)
Feliz - Vai começar! (silêncio)
CENA 7
Feliz - Pra quem você está discando? (Ela parece não ouvi-lo) Clara, você está
	 ligando pra quem?
Clara - Pra qualquer alma por acaso ainda viva neste mundo que desaparece...
Feliz - Então por que está segurando o fone?
Clara - Pra ver se ele continua funcionando.
Feliz - Continua?
Clara - Está zumbindo no meu ouvido. 
Feliz - A telefônica teria avisado se fosse desligar.
Clara - (vaga e tristemente) - Às vezes não avisam...
Feliz - A casa ainda está ocupada.
Clara - Mas eles podem ter pensado que não, ela nunca está iluminada, ninguém 
 entra ou sai há tanto tempo...
Feliz - Sei, mas teríamos recebido um aviso.
Clara - Não podemos ter certeza disso.
Feliz - O que a gente não pode é continuar vivendo de fantasias.
Clara - É, devemos acreditar em coisas...
Feliz - Que aconteçam, coisas que...
Clara - Realmente aconteçam.
Feliz - Claro, e que dependam da gente.
Clara - Dependam da gente?
Feliz - Isso mesmo. (pausa) É verdade, ficamos chocados...
Clara - Quando as luzes não se acenderam.
Feliz - Foi uma sorte a lua estar tão clara, ela iluminou todo o andar de baixo.
Clara - Mas ficamos esbarrando em coisas lá em cima.
Feliz - Agora podemos encontrar nosso caminho no escuro, como os cegos.
Clara - Sem precisar tocar nas paredes.
Feliz - É uma casa pequena e vivemos nela toda a nossa vida.
Clara - Você disse que eu banquei a sonâmbula a noite passada.
Feliz - Você teve uma noite agitada.
Clara - Você também.
Feliz - Numa casa tão pequena, quando um de seus ocupantes tem uma noite 
 agitada...
Clara - Deixa o outro acordado. (protestando alto) Por que sou obrigada a dormir 
		naquela câmara da morte?
Feliz - (controlando-se) – Já não concordamos que o quarto deles seria apenas um 
 quarto, como outro qualquer? Tudo o que era deles foi tirado de lá.	
Clara - Menos a voz de papai nas paredes e seus olhos no teto que não deixam eu 
 fechar os meus...Naquela noite do acidente você correu até o pé da escada e 
 ficou bloqueando a passagem, tive de arrancar você do caminho pra poder 
 chegar até o quarto...onde mamãe abriu a porta como se eu fosse uma 
 desconhecida.
Feliz – Esquece isso.
Clara - Ela não deu o menor sinal de me reconhecer, só um olhar de espanto 
 abrindo a boca numa silenciosa fonte de sangue, e atrás dela papai me 
 olhando, calmamente...Só fiquei um pouco surpresa quando apareceu 
 aquela torrente vermelha e papai dizendo "Espera, Clara”, assim, gentil 
 comigo. Aí eles se afastaram em direções opostas, ela até a porta do 
 banheiro, onde caiu, ele até a janela, de onde atirou novamente olhando pra 
 fora. (Feliz bate com o punho no piano) E você ainda vem me dizer que 
 aquele quarto não é mais o quarto deles? Que agora é meu? Herança
 que eu não quero pra não ter que me lembrar...lugar onde você nunca mais 
 entrou!
Feliz - Esquece isso!
Clara - Quem me condenou à morte?
Feliz - (com forçada calma) - Você não ficou no seu quarto, veio pro meu.
Clara – Queria fumar...
Feliz - Não temos mais cigarro desde...
Clara - Será que sou obrigada a ficar sozinha naquele lugar?		 
Feliz - Você ficou andando pela casa, procurando coisas...
Clara - É, explorando tudo, todos os cantos.
Feliz - Achou o que queria?
Clara - Encontrei esta velha lembrança, este símbolo...(abre a mão e mostra um anel)
Feliz - O que?
Clara - Este anel com a minha pedra da sorte, a opala de fogo.
Feliz - Pensei que tivesse perdido. (música evanescente)
Clara - Mamãe uma vez me disse que a opala é uma pedra de azar.
Feliz - Mulheres frígidas têm sempre essas superstições...
Clara - As opalas têm péssima fama. Foi presente de papai.
Feliz - O que era suficiente pra ela implicar com o anel.
Clara - Pessoas com insônia adoram ficar procurando coisas. Achei este anel no 
 bolso de um casaco antigo de cotelê, todo mofado...nem liguei se ele dava 
 azar ou não.
Feliz - Clara, uma coisa tão linda não pode dar azar a ninguém. (coloca o anel no 
 dedo da irmã como se fizessem amor. pára a música)
CENA 8
Clara - (batendo numa tecla) - Você não disse que tinha saído hoje?
Feliz - Não me viu voltando?
Clara - Mas não te vi saindo.
Feliz - Quando alguém volta é porque antes saiu.
Clara – Foi até onde? Passou dos girassóis ou...
Feliz - Fui até o portão. (pausa) Sabe o que eu vi?
Clara - Alguma coisa que te deu medo e fez voltar.
Feliz - Não, não fiquei com medo, só um pouco assustado...(pára de representar e 
 fala como ponto. sua irmã ficou zumbi) Clara.
Clara - (sumida) - O que?
Feliz - (sempre como ponto e mais alto) - Quê que houve?
Clara - O telegrama deles ainda está aqui.
Feliz - Não tem telegrama nenhum na peça!
Clara - Se não tem por que é que eu estou vendo ele? Quando a gente vê uma coisa 
 não dá pra pensar que ela não existe. (Feliz pega o telegrama, amassa e joga 
 longe)
Feliz - Pronto, acabou, foi só um momento de confusão.
Clara - Que modo mais cômodo de se livrar de um momento de confusão!
Feliz - Sumiu, já disse. (pausa. volta a representar) Deixa eu te contar o que eu vi no
	 jardim.
Clara - Conta, conta! (apareceum enorme e lindo girassol no ciclorama)
Feliz - Um dos girassóis cresceu tanto que ficou do tamanho da casa.
Clara – Não acredito!
Feliz - Vai lá e olha. (ela quer rir) Olha pela janela então, ele está na frente do jardim,
	 do lado de cá.
Clara - Na frente? (Feliz concorda meio sorrindo com a cabeça, mas evita olhar para 
 a irmã) Ah, você está brincando comigo.
Feliz - Não estou não. Olha pela janela. Ele cresceu tão depressa, como aquele 
 feijão mágico daquela história pra criança. É dourado e tão brilhante que 
 parece gritar coisas maravilhosas. Será que atrairia turistas até aqui?
Clara – Turistas?
Feliz - Botânicos! A gente conhece esses cientistas, eles virão em massa até Nova 
 Belém para se extasiarem diante da maravilha, tirar fotos para a Revista 
 Geográfica Nacional, um girassol de duas cabeças mais alto que a casa de 
 dois andares onde moram um irmão e uma irmã...que nunca mais saíram de 
 dentro dela desde que...
Clara - Que tarde comprida...
Feliz - É verão, nossa estação preferida, mas depois que a tarde acabar vamos 
 voltar a dar encontrões no escuro e não só em móveis e paredes...
Clara - Pode chamar isso de "o poema dos dois irmãos". Escuro como o nosso 
 sangue.
Feliz – Nosso sangue? 
Clara – Sim, o nosso sangue é escuro. Se não é, o que é então? Anormal?
Feliz - Anormal...
Clara - Agora vamos fechar nossos olhos de crianças e acender as velas.
Feliz - Não tem essa fala...
Clara - (rindo brilhantemente) – Tant pis! Che pecato! Azar! (uma súbita mudança no 
 estilo de representar acontece. eles parecem haver saído de uma realidade 
 onírica e entrado na realidade cotidiana)
CENA 9
Feliz- Clara, tem alguém batendo.
Clara – Quem?
Feliz - Não dá pra ver através da porta.
Clara - Não estou ouvindo nada. (Feliz bate na mesa com a mão) Que gente 
 insistente!
Feliz - Vai ver quem é.
Clara - Não posso, não estou bem vestida.
Feliz - Está linda. Eu é que estou péssimo, minha camiseta está toda suada.
Clara - E daí, o calor está insuportável. Vai lá, convida a pessoa a entrar. Se 
 quiserem me ver, diz que vai me chamar lá em cima. (vai para a escada)
Feliz - Meu Deus, será que você chegou ao ponto de ter medo de abrir a porta?
Clara - (Clara sobe alguns degraus da escada em espiral)...pararam de bater, foram 
 embora. Não, olha, estão passando um cartão por debaixo da porta! (os dois 
 olham com medo o imaginário cartão) Pega ele. (Feliz vai até a porta e pega 
 o cartão. dá uma olhada e fica com o rosto contraído, respirando forte)
Feliz - (lendo) - Serviço de ajuda aos necessitados.
Clara - Nunca ouvi falar disso.
Feliz - Nem eu. Acho que devemos ter todo o cuidado com coisas que nunca...
Clara - (descendo) - Pode ser uma brincadeira de mau gosto, uma desculpa para...
Feliz - Invadirem a nossa privacidade.
Clara - Exatamente. Rasga ele.
Feliz - Não vamos precisar disso, nunca.
Clara - Não mesmo. Além de tudo, teríamos tantas perguntas pra responder, 
 entrevistas, questionários. Essas organizações são tão frias.
Feliz - Impessoais.
Clara - Vou colocar ele (pegando o cartão da mão do irmão) debaixo do retrato de
	 casamento da vovó...para o caso, nunca se sabe, de uma situação 
 desesperada.
Feliz - Pois é, uma situação em que o desespero aumente tanto que...
Clara - Bom, já sabemos onde ele está. O importante agora é a gente se preparar 
 para uma ação pública contra nós. Eles sabem que ainda estamos aqui.
Feliz - Que tipo de ação?
Clara - Despejo, por exemplo.
Feliz - Ah, pára de pensar nisso, acaba atraindo desgraça pra gente.
Clara - Que merda! (anda de um lado para o outro apertando as mãos)
Feliz - Fica fria. (senta numa almofada, as mãos debaixo do queixo e fica olhando o 
 tapete)
Clara - Vai ficar olhando essa rosa puída do tapete até que ela murche, é?
Feliz - E você, vai ficar apertando as mãos como se estivesse rezando?
Clara - Ah, eu quero tanto sair hoje, tanto! Andar pelas ruas, ver gente, conversar.
Feliz - Então sai.
Clara - Sozinha?
Feliz - Quê que tem?		 
Clara - Vem comigo.
Feliz - Hoje não.
Clara - Por que?
Feliz - Tenho de ficar, pra proteger a casa.
Clara - De quem?
Feliz - Curiosos, invasores! Alguém tem de ficar e esse alguém sou eu. Você pode
	 ir, tudo bem. Logo que você acordou deve ter percebido que hoje seria um 
 dia diferente pra você, um dia de sair, sorrir, fazer visitas. Você até lavou os 
 cabelos, estão lindos. Está parecendo um anjo. Sai. Por todo lugar onde 
 passar pede um cigarro, diz que esqueceu os seus em casa, não fuma, traz 
 eles pra gente fumar mais tarde. (abre a porta para a irmã) 
Clara - Abriu a porta pra quê?
Feliz - Pra você sair.
Clara - Muito elegante da tua parte, mas se você está pensando que eu vou sair 
	 sozinha está muito enganado! (os dois ficam se olhando, os lábios de Clara 
	 tremem, um sorriso irônico e terno desabrocha no rosto do irmão) Imagine 
 eu voltando e deparando com um montão de gente na frente da casa e uma 
		ambulância ou carro de polícia. Isso já aconteceu antes. (bate a porta)
	 Minhas pernas não conseguiriam ir a lugar nenhum, quando eu falasse ou 
	 sorrisse a expressão do meu rosto ficaria dura como uma máscara, meu 
 cabelo grudado no suor da testa...Não daria pra visitar amigos, aliás, que 
 amigos?, antes de chegar lá eu voltaria.
Feliz - Foi você quem disse que queria sair.
Clara - Nunca me passou pela cabeça deixar você sozinho. Eu lá fora e a sirene
	 dos bombeiros tocando, um revólver, pum!, atirando. Você acha que daria 
 pra eu ficar conversando e sorrindo? (Clara soluça docemente, suas mãos 
 buscam as do irmão) Meu coração não agüentaria.
Feliz - Nunca achei que você fosse sair.
Clara - Sozinha não, claro que não. Agora, conversar com pessoas, a gente pode 
 fazer isso por telefone. (vai até o aparelho e disca um número)
Feliz - Pra quem que você está ligando? (tenta arrancar o aparelho das mãos da 
 irmã)
Clara – Padre Antonio? Aqui é Clara Devoto...é, isso, filha...(Feliz tenta outra vez 
		tirar o fone da irmã) Feliz, ele vai pensar que eu estou...
Feliz - Maluca? Está mesmo!
Clara - Desculpe, padre, o fone caiu...como?...não, nada de mais...eu e meu irmão
	 ainda vivemos na casa de nossos pais, depois daquele acidente tão 
 maldosamente descrito nos jornais: papai não matou mamãe e depois se 
 matou, nada disso, nossa casa foi invadida por um...
Feliz - Protegido da natureza!
Clara - Assaltante que matou nossos pais, mas a suspeita caiu sobre nós! Oh, é tão 
 difícil continuar vivendo aqui, meu irmão e eu nos sentimos tão acuados que 
 quase nunca saímos de casa. De noite as pessoas ficam fazendo ameaças, 
 mandam cartas cheias de obscenidades, aquele jornal insiste em nos 
 chamar de filhos loucos de um homem que era um falso místico, mas, padre, 
 nossa pai foi realmente uma pessoa com poderes paranormais e místicos, 
 só possíveis num ariano cujo elemento é o fogo cardeal. (soluça) Ah, não 
 consigo descrever para o senhor como tem sido terrível...o filho do vizinho 
 joga pedras com um estilingue na gente...oh, ele acaba de atirar uma! (Clara 
 deixa o fone cair no mais completo pânico. Feliz o apanha)
Feliz – Padre Antonio, minha irmã não tem passado bem, ela está com febre...
Clara - Não!
Feliz - Está fora de si, desculpe...(desliga, limpa osuor da testa com as mãos que
	 tremem) Beleza! Nossa única chance de salvação é nossa privacidade e você 
 foi falar besteira logo para um homem que vai achar que é seu dever cristão nos 
	 internar num...(Clara tropeça, grita e toca no piano várias vezes a mesma 
 tecla. Feliz arranca Clara de lá e fecha violentamente o piano) Clara! 
Clara - Você não deve nem pensar nessa palavra, ela não existe...
Feliz - Sei, uma palavra proibida! Quando uma palavra não pode ser usada seu 
 sentido aumenta, ela fica cada vez maior, fica tão grande quanto esta casa!
Clara - Então fala, fica falando ela, fica, seu monstro perverso, seu...(Feliz afasta-se) 
 Está assustado, com medo?
Feliz - Não vou fazer loucura nenhuma, tenho de pelo menos fingir que há um 
 mínimo de sanidade mental aqui.
Clara - É isso que você quer? Pensei que estava querendo ir além de todos os 
 limites. (Feliz olha furiosamente para a irmã. ela sorri silenciosamente 
 formando com os lábios a palavra “manicômio”. depois a sussurra. Feliz 
 pega uma almofada e Clara fala mais alto) Manicômio, manicômio! (Feliz tapa 
 a boca da irmã com a almofada segurando-a com força. lutam. Clara parece 
 estar sendo sufocada. de repente os dois param e Clara, olhando fixa e 
 apavorada para a platéia, fala num tom calmo e completamente cotidiano) 
 Feliz, tem um homem armado no público, ele está apontando um revólver pra 
 mim.
Feliz - Clara, por favor! (olha para a irmã com desespero, em seguida fala ao 
 público) Infelizmente, acho que vai ser necessário dar uma parada, ela não 
 está nada bem (quieto e calmamente, Feliz leva Clara para fora do palco. ela 
 o acompanha sem resistir. silêncio)
CENA 10
 (barulho nos bastidores. Feliz surge arrastando Clara à força. ambos
	 respiram com dificuldade. Feliz larga a irmã)
Feliz - (apontando para uma bacia no peitoril da janela) - O quê que essa bacia está
	 fazendo aqui?
Clara - (olhando desafiadoramente o irmão) - É um brinquedo de criança, já se
	 esqueceu que a gente brincava de soprar bolhas nos degraus lá de traz?
Feliz - Nos degraus, não aqui na sala.
Clara - Ontem você não disse que a gente não tinha nada pra fazer? Ótimo, agora 
 temos: bolhinhas de sabão. (sopra uma)
Feliz - Lindo, mas elas estouram.
Clara - Tenta. (dá para ele a argolinha. Felix começa a rir) Qual a graça?
Feliz - Toda loucura tem o seu lado engraçado. Não podemos ficar bancando 
 crianças diante do público.
Clara - Esta fala é minha.
Feliz - (pára de rir) - Tem uma coisa que você precisa saber...
Clara - Feliz, você está pulando toda uma página. (pausa) Esqueceu tuas falas? 
 (Feliz parece que vai desmaiar. ela o senta docemente nas almofadas) 
 Descansa, respira, isso, deixa que eu retomo...de onde, meu Deus?
Feliz - Quando papai desistiu...
Clara - Quando papai desistiu do seu equipamento, de suas leituras espiritualistas e 
 das suas previsões astrológicas, poucos dias antes daquele inexplicável 
 acidente...bem, na verdade, ele não chegou a desistir...
Feliz - Não foi ele que desistiu.
Clara – Foi mamãe que trancou no porão o equipamento dele.
Feliz - Menos esta camisa que estou usando agora, com os signos dele e esse 
 mapa do céu na hora em que nasceu aqui em Nova Belém.
Clara - Sabe, ele parecia aceitar, pelo menos não falava nada, nem mesmo quando 
 ela disse que ia interná-lo no manicômio do Estado: "É, estou vendo que 
 você está ficando louco de novo. Ou você mesmo se interna por um longo 
 tempo ou eu...” Ele não reagiu, ficou quieto, a não ser na hora em que ela 
 mandou ele cortar suas flores sagradas do jardim aí da frente, dizendo que 
 se ele não fizesse isso ela mesma cortaria tudo.
Feliz - É, nossa mãe fez várias ameaças de castração...
Clara - "Ou você corta essas malditas flores ou eu mesma corto!”
Feliz - "Faz isso se tiver coragem, faz!"
Clara - Ela não fez mas papai ficou inquietamente quieto, sentado olhando pra
	 essa rosa puída no meio do tapete...ela parecia estar pegando fogo, 
 exatamente como os olhos dele e os seus agora...quando um tapete pega 
 fogo numa casa de madeira a casa também pega fogo. Olha, nossa casa é de 
 madeira! Pano e madeira são dois materiais inflamáveis, com os teus olhos, 
 três!
Feliz - Não, quatro! Não sou um ciclope de um olho só, e somando os teus são seis!
	 (ela toca uma nota aguda no piano. ele olha com raiva para a irmã. Clara
	 volta a tocar a mesma nota, mais alto) Continua! (pausa)
CENA 11
Clara - (noutro clima) - Você não disse que tínhamos uma coisa pra fazer?
Feliz - Sair.
Clara - Para algum lugar especial ou...
Feliz - À loja do Pontual.
Clara - Lá?
Feliz - É.
Clara - Já tentamos e não conseguimos.
Feliz - Porque nossa motivação não era forte, e a tarde não estava tão bonita.
Clara - Hoje ela está linda.
Feliz - Só sei que temos de ir ao Pontual. Não te contei, mas de vez em quando o 
 carteiro consegue atravessar nossa barricada de girassóis e deixar um aviso 
 de que mais nenhum pedido será aceito e que nenhuma encomenda será 
 deixada nos degraus...
Clara - Já sei, já sei. Há muito tempo que a gente está devendo, que não pagamos 
 nada.
Feliz - Por isso devemos falar pessoalmente com o dono, no escritório dele.
Clara - E onde é que fica esse escritório dentro daquela fábrica que mais parece um 
		labirinto?
Feliz - Pedimos pra algum empregado levar a gente.
Clara - Se algum empregado nos vir vai fingir que não viu.
Feliz - Não se a gente entrar com firmeza. Hoje vamos entrar como um casal de...
Clara - Prósperos fregueses e bons pagadores.
Feliz - Isso mesmo. Falamos pessoalmente, convencemos ele de que apesar de 
 tudo o seguro de papai vai ser pago no dia...
Clara - Feliz, a gente sabe que isso não vai acontecer em dia nenhum de mês
 nenhum de ano nenhum!
Feliz - Mas temos de dizer que vai!
Clara - Não sei...não acho que as coisas...
Feliz - Então não acha, não acha nada então! Você não consegue ter uma atitude 
 positiva!
Clara - O pouco que a gente faz sou eu quem faz. (pausa) Olha, fomos informados 
 pela Cia. de Seguros Progresso, e o Pontual sabe disso, ele não sabe de 
 tudo?, que o seguro de papai está, como é mesmo a palavra?
Feliz - Penhorado.
Clara - Pois é, o pagamento da apólice está suspenso em virtude do fato...
Feliz - De um homem ter matado a sua mulher e em seguida se matado...foi só um 
	 procedimento legal deles, mas a gente deve...
Clara - Ah, Feliz, o que é que você entende de leis?
Feliz - Sei que em determinados casos essa legalidade perde sentido em favor do
	 fato dos filhos estarem sem outro meio de subsistência...
Clara - Você está subestimando a desumanidade da Progresso. Meu Deus, eles 
 responderam com apenas três linhas uma carta que escrevemos e 
 reescrevemos durante mais de uma semana, um pedido com nada menos de 
 doze páginas!
Feliz - Foi um erro termos pedido, deveríamos ter exigido.
Clara - Você nem colocou a carta no correio.
Feliz - Dei ela pro carteiro, o dinheiro do selo estava junto, esqueceu?
	 A Progresso não teria nem respondido se não tivesse recebido a nossa carta 
 de doze páginas...quando acontecem acidentes terríveis os detalhes ficam 
 confusos, ou vai dizer que você também não ficou confusa naquela noite?
	 Desceu a escada correndoe ligou para um médico morto há cinco anos!
Clara - Quem é que poderia diferenciar os mortos dos vivos naquele momento?
Feliz - Pois é, mas se ele estivesse vivo, saberia o nosso endereço? Você 
 simplesmente disse pra viúva que era pra ele vir na casa dos girassóis...é, os 
 detalhes ficam realmente confusos. (pausa) Quer me ouvir agora?
Clara - Estou te ouvindo perfeitamente, mais do que isso é impossível.
Feliz - A gente tem de dizer que o que vimos naquela noite foi mamãe atirar em 
 papai e depois se matar e...
Clara - Uma simples mentira é uma coisa, mas o oposto da verdade é...
Feliz - (selvagem) - O que é a verdade no meio de pedaços de metal explodindo nas
	 mãos de um homem levado à loucura pela...?!
Clara - (fria) - O que você está sugerindo é que enfrentemos o sr. Pontual, aquele 
 ricaço, no seu escritório. Será que tem cadeiras pra gente sentar ou teremos 
 de ficar de pé olhando pros óculos bifocais dele enquanto gaguejamos essa 
 mentira maluca...?
Feliz - (ironicamente) - Poderíamos ficar olhando um pouquinho acima dos óculos 
 dele, ou abaixo, e falar rápido, muito rápido...
Clara - Dizendo o quê?
Feliz - Que a Progresso decidiu conceder...
Clara - Ah, sei, um plano, uma trama...acho que esse teu plano deveria amadurecer 
 mais. Amanhã a gente vê isso, hoje já está tarde.
Feliz - (frustrado) - Hoje você está tão bonita, tão bem vestida.
Clara - A blusa encolheu, acho que ficou meio...indecente.
Feliz - Atraente.
Clara – Atraente?
Feliz - Sedutora.
Clara - Pra seduzir quem?
Feliz - Quando você olhar pro Pontual não vai fazer mal nenhum sorrir pra ele. 
Clara - Nosso medo é nossa coragem. (parece que tem uma bomba prestes a explodir)
Feliz - Vamos? 
Clara - Tem gente na rua?
Feliz – Tem sempre gente nas ruas.
Clara - E aqueles rapazes grosseiros?
Feliz - Nunca entendi porque naquele dia você ficou tão apavorada, eles não 
 estavam fazendo nada.
Clara - Estavam sim, você sabe porque estava bem do meu lado.
Feliz - Não ouvi nada demais.
Clara - Ficaram me encarando, soletrando um palavrão pra mim.
Feliz - Palavrão?
Clara - É, o mesmo que alguém pichou no muro lá de traz.
Feliz - Não tem nada no muro.
Clara - Se você não tem medo deles, por que não quis ir na mercearia?
Feliz - Não quis ir porque você estava apavorada, ia fazer besteira aqui.
Clara - O que?
Feliz - Aquilo que nossos pais fizeram...
CENA 12
Clara – Olha, não dá mais pra continuar essa peça.
Feliz - Dá sim. (silêncio)
Clara – Fala.
Feliz - Alguns dias atrás você...
Clara - Eu não, você, você! (pausa) Não dá pra dormir numa casa onde tem um 
 revólver escondido. Me diz, onde foi que você escondeu? Vamos destruir 
 ele, juntos. (silêncio) Fala!
Feliz - Tirei as balas.
Clara – Colocou onde?
Feliz - Esqueci.
Clara - Mentira! Você sabe muito bem que a morte está nesta casa.
Feliz - Prefere casas separadas?
Clara - Você ficou obcecado com essa idéia depois que saiu do manicômio.
Feliz - Não sei porquê me prenderam lá!
Clara - Você tinha perdido todo contato com tudo que tivesse aparência de realidade.
Feliz - Aparência e realidade não combinam.
Clara - Tinha parado de falar.
Feliz - Não tinha o que falar.
Clara - Olhava pras pessoas sem reconhecer elas.
Feliz - Não tinha nada nem ninguém pra reconhecer!
Clara - Numa casa cheia de objetos familiares?
Feliz - Nada cega mais a gente do que objetos familiares.
Clara – Nem eu te agüentava.
Feliz - Você não sabia onde estava.
Clara - Sabia sim, tanto sabia que de manhã me levantava enquanto você ficava 
 deitado se escondendo debaixo das cobertas.
Feliz - (corre até a escada e começa a subi-la) - Era sinal de que algo começava a nascer.
Clara - Uma aparência de...
Feliz - Que a aparência se foda!
Clara - Calma. (pausa. com força) Onde está o revólver?, diz. Vou levá-lo ao porão e 		 destruir ele a machadadas, só assim poderei dormir em paz. 
Feliz - (descendo a escada. cansaço. carinho) - Muitas vezes a gente não sabe o que 
 nos mantém vivos. (liga o gravador. no começo a rotação é vagarosa. com o 
 olhar meio perdido, Feliz encosta a porta de entrada da casa. os dois se 
 olham profundamente) Você tem o rosto de um anjo...eu jamais poderia fazer 
 mal a você, nunca, nem consigo me imaginar fazendo isso, nem mesmo pra 
 forçar você a atravessar essa porta (olha para a porta) que nunca consegue 
 ficar completamente fechada...Clara, será que você não percebe que seu 
 inimigo é você mesma?
Clara - Ser o nosso próprio inimigo é ter contra nós o mais implacável dos inimigos. 
Feliz - A porta ainda está aberta.
Clara - (sorriso triste) – É...
Feliz - Vamos sair ou desistir pra sempre?
Clara - Sair, claro...
Feliz - Ótimo. (pausa)
Clara - Mas você tem de se trocar, ficar elegante. Vou até lá em cima pegar o teu
	 blaser e uma gravata. Que escada, meu Deus!
Feliz – A verdadeira não chegou.
Clara - Tudo bem, eu subo e você me espera aqui. (sobe a escada. Feliz desliga o gravador)
Feliz - Fico sozinho ouvindo vozes e gargalhadas lá fora: "malucos, loucos!" Aí 
 fecho completamente a porta me lembrando do que havia dito...
Clara - (corta) - Você disse que talvez ela nunca mais se abrisse. (silêncio. Clara 
 desce) Pronto, teu blaser e a gravata. (mostra as mãos vazias)
Feliz – Invisíveis?
Clara - (sorriso de deboche) - Veste teu blaser invisível e põe tua gravata invisível.
Feliz - Vou fingir que...
Clara - Vamos, passa uma escova no cabelo.
Feliz - Cadê?
Clara - No bolso de dentro.
Feliz - Ah...(faz o gesto de tirar uma escova e vai passá-la no cabelo)
Clara - Tudo bem, deixa eu fazer isso (dá um jeito no cabelo do irmão com os dedos)
Feliz - Chega, está ótimo.
Clara - Espera.
Feliz - Chega!
Clara - Hum...você está parecendo um homem muito importante, com ótimo crédito
	 nas lojas de Nova Belém.
Feliz - Hummm.
Clara - Fechou a porta por que?
Feliz - Por causa da poeira.
Clara - Não tem poeira nenhuma.
Feliz – Tinha.
Clara - Abre então. (Feliz liga novamente o gravador. após breve hesitação abre a porta) 
 Esperando o quê?
Feliz – Você.
Clara - Sai primeiro, te sigo.
Feliz - Verdade?
Clara – Verdadeira.
Feliz - Mas vai você primeiro.
Clara - Então vem comigo...(Feliz pega firmemente a irmã e a empurra. ela ofega)
Feliz - Fora!
Clara - Vê se não tem ninguém...
Feliz - Não tem ninguém, pára com essa besteira, as tardes não são eternas!
Clara - Deixa eu por o chapéu! (vai até um pequeno e empoeirado espelho oval e
	 coloca seu chapeuzinho de palha. tudo é muito patético, mas não ridículo)
Feliz - Pensava que você odiasse esse chapéu.
Clara - Ele não é chic, claro, mas eu não vou sair sem chapéu. 
	 (tira o raminho artificial da fita de seda do chapéu, tenta colocá-lo em outra 
	 posição) Que horror, não consigo...
Feliz - (arranca o chapéu da cabeça da irmã e o joga na escada. empurra Clara pela
	 porta afora. agora estão no jardim. ela protesta, grita, quer voltar. Feliz fecha 	 
 a porta atrás deles, pega a irmã pelas mãos e anda com ela alguns passos)
	 Você vai continuar tremendo assim?
Clara - Se você continuar me empurrando. (pausa)
Feliz - Estamos esperando o quê?
Clara - Uma pedrada do menino do...
Feliz - Não!
Clara - Feliz, alguma coisa pulou...!
Feliz - Um canguru pulou! (Clara tenta rir) O escritório do Pontual fica só um quarteirão e meio 
 daqui.
Clara - Quem tem pressa come cru.
Feliz - Se a gente conseguir convencer o Pontual, estamosfeitos.
Clara - Vai você.
Feliz – Nada disso.
Clara - Eu fico e ligo pro Serviço de ajuda.
Feliz - Maluquice!
Clara - Esqueci uma coisa lá dentro. (tenta correr até a janela, mas o irmão não deixa)
Feliz - Não vai pular janela nenhuma.
Clara - Deixa, estou sentindo uma dor no coração.
Feliz - Será que vou ter de levar você à força?
Clara - Eu vou...
Feliz - Mentirosa, covarde!
Clara - Oh, Feliz, eu...(corre até a porta, abre-a e entra. vai até o peitoril da janela e 
 em silêncio fica olhando o irmão lá fora)
Feliz - (concentrado) - Se não somos capazes de andar um quarteirão e meio até o
	 escritório daquele homem, então não somos capazes de mais nada, a não
	 ser viver em duas celas separadas de um hospício. (pausa. com força) Por 
 isso me escuta agora, Clara: ou você sai daí e nós vamos até lá ou eu vou 
 embora e não volto nunca mais.
Clara - Se eu ficar aqui sozinha me mato.
Feliz - (para o público) - Eu sei...por isso entro pela janela e empurro minha irmã
		pra fora (faz)
Clara - Eu me agarro em alguma coisa (procura essa coisa) Já reparou que não tem
	 nada no cenário onde a gente possa me agarrar? Essa escada não tem corrimão.
Feliz - (transtornado) - Fica aí então, fica! Quando eu botar o pé na rua vai ser pra nunca mais 
 voltar!
Clara – Ficarei esperando.
Feliz - Vai esperar até morrer. (anda. pára) Adeus! (anda mais)
Clara - (falando alto) - Não demora...
Feliz - (na boca de cena e para o público, ofegante) - Vocês devem imaginar que a 
 frente da casa está coberta de girassóis. Paro aqui. Sem ela é impossível 
 sair. Não consigo deixar minha irmã, me sinto desprotegido, sinto frio.
	 Atrás de mim está nossa casa, respirando como alguém abraçado em mim, 
 como alguém que me ama...Nosso lar é tão antigo, tão aconchegante, parece 
	 estar me ordenando delicadamente a ficar. Obedeço. (volta e entra pela 
	 porta) Entro tranqüilo mas não olho para minha irmã.
Clara - Não nos olhamos, estamos envergonhados de termos desistido.
Feliz - Há um silêncio.
Clara - Um sentimento de culpa.
Feliz - Ninguém joga pedras, ninguém grita palavrões.
Clara - A luz do fim de tarde está dourando a mobília...
Feliz - Agora eu tenho certeza de que nossa casa virou uma prisão.
Clara - Prisão que a gente conhece. (devagar eles voltam a se olhar)
Feliz - Estendo os meus braços...eles parecem não fazer parte do meu corpo...tenho uma 
 sensação de ansiedade.
Clara - É difícil respirar...(ela dá dois incertos passos em direção a Feliz e depois se 
 joga nos braços do irmão. se abraçam como dois amantes após longa 
 separação. os lábios de Clara sussurram palavras inaudíveis ao ouvido do 
 irmão)
Feliz – Não dá...a escada pára no espaço.
Clara – Então...(Feliz afasta-se delicadamente da irmã)
Feliz - (para o público) - Minha irmã é um jardim emparedado. (longo silêncio)
Clara - Ah, o retrato de casamento da vovó! (pega ele e o olha ternamente)
	 Um diadema de pérolas, a mão levantando o véu de seu rosto radiante...
Feliz - Toco levemente a mão dela, um sinal de que vou dizer uma fala importante
	 da peça. (faz) Clara, você não me disse que tinha encontrado a caixa de 
 munição do revólver?
Clara - Eu não!
Feliz - É "disse” que tem de dizer. (para o público) Daí eu pego o que chamo de 
 objeto central da peça e que ela teme tanto que se recusa a lembrar que 
 existe. (pega o revólver)
Clara – Estava o tempo todo aí?
Feliz - Revólver e balas nunca estiveram antes em nossa peça.
	 (pausa. para o público) Agora eu tiro a munição falsa e coloco a verdadeira,
	 tão calmamente como se trocasse flores mortas por vivas num vaso (seus 
 dedos tremem, ele deixa o revólver cair. Clara dá um grito sufocado, depois 
 ri muito) Pára com isso! (Clara tapa a boca com as duas mãos)
	 Agora eu...(parece que esqueceu novamente o texto)
Clara - Esqueceu? 
Feliz - Não esqueci nada (para o público) Ponho o revólver em cima do piano (faz)...
Clara - Daí?
Feliz - Ligo o gravador. (liga. música evanescente) Apanho a argola, molho ela na 
 água e sopro uma bolha pela janela. Imaginem que ela sobe através da luz 
 dourada além da cabeça de ouro do nosso girassol. Está vendo, Clara?
Clara - Estou.
Feliz - Às vezes a gente consegue ver a mesma coisa juntos.
Clara - Ficamos trancados em quartos separados, você guardado por homens com
	 olhos de lince e eu por mulheres com olhares de águia. (toca uma nota) 
 Estamos juntos há tanto tempo que nunca mais poderemos nos separar. 
 Voltamos sempre aos nossos girassóis, às nossas bolhas...estamos numa 
 estrada sem fim. (o gravador falha e começa a tocar a música a toda 
 velocidade até parecer um grito estridente. Clara arranca suas luvas 
 brancas e olha para o rosto em transe do irmão olhando um ponto perdido 
 qualquer. Clara respira fundo. desliga o gravador. barulho ao desligá-lo. 
 silêncio) Bom...(veste seu casaco) Veste teu casaco, já pus o meu. Agora 
 tiro esse maldito chapeuzinho. (tira, arranca o ramo de flores e joga no chão)
Feliz - (palidamente) – Que foi?
CENA 13
(a cena vai escurecendo lentamente a partir daqui)
Clara - Sai dessa peça que a platéia está vazia. Pelo amor de Deus!
Feliz - O quê?
Clara - Ficou inconsciente? Um homem da primeira fila xingou a gente e foi embora, 
 os outros atrás. Não tem mais ninguém. Finalmente essa tortura acabou.
Feliz - Porque a peça não é sua!
Clara - (dando-lhe o casaco) - Não é mesmo. Mas você escreveu ela pra mim, já se 
	 esqueceu? (veste o casaco no irmão, tenta abotoá-lo)
Feliz - Não precisa, pára, sei fazer isso sozinho!
Clara - Só tem mais três cigarros, quer um? (oferece um ao irmão que continua sem 
 ver nada) Aqui! Chama o Fox, vai. Vê se tem algum dinheiro pra gente sair 
 daqui e ir pra algum lugar mais longe que o círculo polar ártico. (pausa) 
 Diabo, quê que você está esperando, chama o Fox logo!
Feliz - (gritando) - Fox? (eco)
Clara - Fox? (eco)
Os dois - Fox? (eco)
Clara - Estou com a impressão que fugiu com o dinheiro da bilheteria.
Feliz - Vou atrás dele, até o inferno.
Clara - Não estou com vontade de ir atrás de ninguém.
Feliz - Quê que a gente faz então?
Clara - (recostando-se nas almofadas) - Quero dormir mil anos.
Feliz - Vai pegar tuas coisas.
Clara - Que coisas?
Feliz - Tua bolsa, maleta de mão...
Clara - Não tenho nada pra pegar.
Feliz - Perdeu tudo de novo?
Clara – Já te disse há vários dias que minha maleta tinha sumido. 
Feliz - As coisas ultimamente andam sumindo.
Clara - Até parece que a gente ainda está representando nossa peça.
 A pior coisa que sumiu de nossas vidas eu sei o que foi: não foi
	 o Fox nem o grupo, teu uísque ou mesmo o sucesso que nos faz
	 continuar vivos. Nada disso. A pior coisa foi a consciência do que está
	 acontecendo com as nossas vidas. Não temos sequer a coragem de falar 
 disso, é como se fosse um segredo que insistimos em esconder um do 
 outro, uma conspiração meio maluca, apesar da gente saber perfeitamente 
 que o outro sabe de tudo. (toca uma nota) Quanto à nossa peça, muitas 
 vezes já me perguntei se ela não é muito pessoal, impossível do público 
 compreender...
Feliz - O que é que você quer dizer com muito pessoal?
Clara - Muito pessoal! Tanto que usamos nossos próprios nomes nela.
Feliz - No dia em que fizemos a primeira leitura você disseque ela era boa, mas que
	 como vinho novo tinha de amadurecer pra ficar melhor.
Clara - Eu nunca disse isso, mas sei quem disse, foi aquela velha atriz. Foi ela 
 também quem disse que a peça era um verdadeiro desafio pros atores, 
 parecia mais um exercício de virtuosismo do que propriamente uma obra-
 de-arte.
Feliz - No nosso grupo nunca teve atriz velha nenhuma.
Clara - Ah, Feliz, você se esquece de tudo. Não se lembra daquela atriz que morreu
	 no incêndio daquele hotel?
Feliz - Ah, sei! Ela adorava incineração, queria que suas cinzas fossem cremadas.
Clara - Que besteira. Acho que estamos cansados demais para falar coisa com 
 coisa. Telefona e pede um taxi pra nos levar até o hotel, vai. (Feliz senta-se 
 no banco do piano. silêncio) Me ajuda a levantar, minhas pernas não 
 agüentam mais. (Feliz tenta levantar mas não consegue) Assim nunca que 
 vamos sair daqui. Último cigarro. Você tem mais?
Feliz - Acabou. (acende o cigarro da irmã)
Clara - Vamos dividir. (fuma) Feliz, será possível que nossa peça nunca termine? 
	 (passa o cigarro para o irmão)
Feliz - Mesmo que a gente fosse louco como disse o telegrama nunca 
 conseguiríamos representar uma peça que não tivesse fim.
Clara - Então diz: ela termina como?
Feliz - Ela não tem um fim convencional, só isso.
Claro - Que fim não convencional é esse? (passa o cigarro para a irmã) Ela parece 
 que pára sempre antes de acontecer uma coisa terrível. Aí você diz para o 
 público: o espetáculo terminou!
Feliz - É perfeitamente possível uma peça não terminar, qual o problema?
Clara - Nunca soube que você acreditava na eternidade (Feliz olha a irmã
 significativamente) As coisas terminam, têm de terminar.
Feliz – Acha? (pausa. levanta-se) Vamos! Pro hotel. Amanhã a gente vê o resto.
Clara - Antes do espetáculo você me disse que o Fox não tinha feito reserva.
Feliz - O único hotel desta cidade fica do outro lado da rua, não precisa de reserva
	 nenhuma. (atravessa rapidamente o palco e vai aos bastidores. Clara tenta ir
	 atrás mas pára de cansaço, bem em frente à estátua)
Clara - (para a estátua) - Inalterável...circunstância...inalterada...(fora do palco ouve-
 se sons frenéticos, passos correndo, punhos e pés socando e chutando 
 objetos, gritos abafados, durante todo o tempo em que dura a fala de Clara. 
 às vezes chamam sua atenção. lentamente ela se vira para olhar o proscênio 
 sob um foco de luz) Coitado, ele perdeu todos os seus argumentos sobre o 
 impossível ser absolutamente necessário...acho que o impossível e o 
 necessário andam os dois pelo mundo sem se reconhecerem nunca. 
 (barulho metálico lá fora) Bem, nem sempre tudo esteve perdido, houve 
 noites de triunfo, aplausos entusiasmados, temporadas gloriosas, 
 celebrações memoráveis...atravessar o Amazonas numa barcaça aberta, 
 aquela ponte com anjos de pedra e de repente uma tempestade
	 de gelo em cima da gente...todos cantando. Lindo! (canta trecho de
	 "Comme le rose" ou "Dicitencello Vuoie". pára, gritos distantes) Feliz?
	 Ah, aquela noite no vinhedo junto ao Prata, as luzes brilhando lá longe, 
 soldados portenhos cantando em coro! (canta trecho de um tango ou 
 milonga. mais socos e gritos abafados) Feliz?! (pausa) "Sua irmã e você são 
 loucos...vocês sempre entram em transe durante um espetáculo?" Óbvio, e 
 depois também. Há tanto tempo mortos e abandonados...Feliz. Feliz! 
 Quando ele perceber que eu não estou atrás dele como sempre estive não 
 vai mais voltar...(Feliz volta. parece não vê-la, mal consegue respirar, está 
 desorientado, confuso) Tudo bem? Por acaso estamos outra vez diante de 
 circunstâncias inalteráveis? (Feliz desaba em cima das almofadas) É, já 
 percebi que estamos novamente diante de um desastre. Primeiro vamos 
 colocar tudo de novo dentro do baú...enquanto isso a gente se prepara. 
 (coloca tudo dentro do baú, menos as almofadas sobre as quais o irmão
		 está sentado). Vai falar comigo ou não? (silêncio) Sim ou não?
Feliz - Clara, acho que a gente vai ter de continuar aqui.
Clara – Nessa geladeira?
Feliz – É.
Clara - Por que?
Feliz - Todas as portas estão fechadas e como o prédio não tem janelas, parece um 
 caixão.
Clara - Está querendo me dizer que vamos ter de ficar aqui congelando até alguém
	 abrir a porta amanhã de manhã?
Feliz - Não tenho a mínima idéia de quando vão abrir a porta.
Clara - (gritando) - Quero sair desse túmulo! Sair! (meio louca de medo, ela roda 
 pelo palco e termina agarrando o telefone da peça. percebe isso e o larga 
 como se ele ferisse sua mão)
Feliz - Clara, não adianta ficar histérica.
Clara - E o telefone lá de traz?
Feliz – Mudo como este.
Clara - Tenho a impressão que isso é uma metáfora onde você está querendo me 
 prender, mas me recuso ser presa nela!
Feliz - Mesmo que isso fosse possível, eu ia querer?
Clara – Claro, afinal a peça é tua e esse é o fim que você tanto queria!
Feliz - Querida, eu não quero fim nenhum, a não ser...
Clara - A não ser?
Feliz - Acho que não temos outra escolha, a não ser...
Clara - Caminhar do capelão ao carrasco sem qualquer resistência, não é?
Feliz - A sentença já foi dada há tanto tempo que o medo da execução 
 simplesmente acabou. Até o medo tem um limite, ao contrário do que digo 
 no meu monólogo de abertura...
Clara - (quase sem voz) - Monólogo de abertura?
Feliz - (apaixonado) - Eu comecei uma nova peça, mas fiquei cansado demais para
	 terminar hoje.
Clara - Meu Deus!
Feliz - (com a mesma paixão) - Hoje, antes de você entrar, eu criei o monólogo de
	 abertura de uma outra peça, fechada, impenetrável...(joga a cabeça para traz 
 numa silenciosa gargalhada de deboche) É, você poderia colocar o problema 
 assim: o medo é limitado pela habilidade que uma pessoa tem de conseguir 
 não pensar mais nele.
Clara – A não ser...(bate sua cabeça contra a do irmão. ouve-se um som metálico 
 oco) 
Feliz - Esse teatro cheio de ecos está vazio, o aquecimento foi desligado e até o 
 metal se contrai com o frio.
Clara - Você falou com um tom poético na voz...Vai ficar parado? Eu não.
	 Vou encontrar uma maneira de sair daqui. (movimenta-se inutilmente em 
 várias direções, aterrorizada pelo escuro que envolve a pequena área ainda 
	 iluminada do palco. a cada pequena corrida, pára de repente com gestos 
 secos e rápidos) Grito sufocado da minha alma! (bate com a mão no peito)
Feliz - Desiste, Clara, é inútil. Há capítulos em nossas vidas e é preciso aceitar que 
 um deles seja o último.
Clara - Com quem você pensa que está falando, hein? Não é com uma velhinha da 
 Casa dos Artistas não, mas com sua prática irmãzinha! (pausa) Feliz, por 
 favor, está um frio de doer, parece que vem de outro mundo. Será que este 
 teatro é a nossa última e eterna prisão?
Feliz - Talvez.
Clara - Sempre achei que os teatros fossem prisões...(som de explosões distantes) 
 Está ouvindo? Tiros!
Feliz - Fogos de artifício. (mesmo som) Está com medo?
Clara - Estou cansada demais pra sentir medo. Estranho, sempre tive pavor só de 
 pensar que pudesse ficar presa num lugar, foi sempre o maior medo da 
 minha vida, mas agora eu só estou sentindo cansaço...e um frio que me dóios ossos. Se não fosse isso, iria eu mesma olhar se tudo o que você disse é 
 verdade.
Feliz - Você acha que foi sonho? (sai pela porta do cenário. Clara fica em pânico)
Clara - Onde é que você vai?
Feliz - Pegar o telegrama do grupo. (volta com o telegrama, desamassa-o lê como 
 se tivesse acabado de recebê-lo)
Clara - Você está pensando numa coisa terrível e eu já sei o que é.
Feliz - Às vezes a gente pensa a mesma coisa juntos.
Clara - Ai, está cada vez mais frio.
Feliz - Durante o espetáculo também estava frio, mesmo com os refletores ligados,
	 mas eu estava tão perdido nele que senti calor como se fosse verão.
Clara – Precisamos voltar pra peça.
Feliz – Precisamos.
Clara - O palco está escuro.
Feliz - Se podemos imaginar o verão podemos imaginar luz.
Clara - Só se nos entregarmos à peça.
Feliz – É, completamente.
Clara - Podemos tentar.
Feliz - Não temos outra saída.
Clara - Vamos fazer de casaco?
Feliz - Se tirássemos eles, mais os girassóis e nossas bolhas de sabão no dourado
	 entardecer, a sensação de verão virá mais fácil.
Clara - Vamos parar onde paramos hoje ou tentar encontrar o fim?
Feliz - Não se preocupe com isso, amor, o fim virá até nós. (Clara repentinamente 
 prende a respiração levando sua mão à boca) Que foi?
Clara - Nada...(Feliz ajuda a irmã a tirar o casaco. enquanto ele tira o dele ela
	 esfrega os braços contra o frio. Feliz apanha o revólver da mesa)
Feliz – Coloco onde?
Clara - Debaixo da almofada. (Feliz coloca e Clara liga o gravador) Vamos mesmo
	 achar o fim da peça?
Feliz - Quando ele chegar já estaremos tão perdidos nela que nem notaremos.
Clara - Começamos do telefonema?
Feliz – É. (Clara vai ao telefone. pausa) O espetáculo começa!
Clara – Quando tem de haver um espetáculo, custe o que custar, então ele será
		 obrigatoriamente bom. (pega o fone)
CENA 14
 
(a cena volta a iluminar-se)
Feliz - Clara, pra quem está ligando?
Clara - Para alma alguma por acaso ainda viva nesse mundo que desaparece.
Feliz – Está segurando o fone por que então?
Clara - Pra ver se ele continua funcionando.
Feliz - A gente teria sido avisado se tivessem cortado a linha.
Clara - É um erro depender de avisos, especialmente quando uma casa parece vazia. (põe o 
 fone no gancho)
Feliz - Foi uma noite cansativa.
Clara - Foi.
Feliz - Eu não consegui dormir nada, a noite toda. Fiquei ouvindo você andar pela 
 casa como se estivesse procurando alguma coisa.
Clara - Estava e encontrei. (olha o anel. pausa) Já se perdeu na peça?
Feliz - Já. É um dia quente de verão, estou sentindo calor.
Clara - (passando a mão na cabeça do irmão) - Tenho certeza que a Progresso e o Pontual vão 
 acreditar na nossa história. Se a gente acreditar nela, então tudo que a gente precisa vai
 acontecer.
Feliz - Pula, fala do girassol gigante.
Clara - Já?
Feliz - É.
Clara - Feliz, olha pela janela, tem um girassol enorme lá fora, do tamanho da casa!
	 (ciclorama. Feliz respira profundamente e debruça-se sobre a janela)
Feliz - Puxa a vida, sua cor é tão brilhante que ele parece gritar!
Clara - Fica olhando. (vai até a almofada debaixo da qual está o revólver e a levanta. grita 
 surdamente. põe novamente a almofada em cima dele. olha para o irmão)
Feliz - (olhando o girassol) - Depressa, vem ver, não vai durar muito! (Clara segura a mão do 
 irmão e os dois ficam olhando o girassol. pausa)
Clara - A imaginação é uma necessidade...
Feliz - De nossas vidas. (as luzes vão diminuindo e os dois aceitam a treva como se ela fosse 
 a morte, por eles vencida)
 PANO
Out Cry trata da mesma questão que as peças de Nelson Rodrigues, o ato criador do humano. Razão pela qual tem tudo a ver com Criar o personagem, apostila para atores concebida a partir do teatro de nosso poeta cuja seiva vital é o mito de Cristo, o Drama do Calvário.
	 
	 
	 
	 
		
		
		
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