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História - Extensivo I - 2013.indd 16 HISTÓRIA A PRIMAVERA ÁRABE INTRODUÇÃO O dia 17 de dezembro de 2011 entrou para a histó- ria recente da humanidade de uma maneira inesperada. Em uma localidade perto de Túnis, capital da Tunísia, Mohammed Bouazizi, um jovem vendedor ambulante de hortaliças imolou-se em fogo, após ter suas mercado- rias apreendidas pela polícia. O trágico suicídio incen- diou o país, em especial a juventude, e acendeu a faísca que faltava para o barril de pólvora árabe explodir. As manifestações de revolta na capital, cidades e vilarejos derrubaram em pouco tempo o ditador Zine Ben Ali, no poder há mais de duas décadas. Era apenas o começo da “Primavera”. A Tunísia foi o epicentro das lutas. Logo em seguida, tudo fazia lembrar a imagem de uma pedra que, após ser lançada sobre a água, provoca a formação de diversos círculos com um alcance cada vez maior. As ondas de luta, como um tsunami geopolítico, varreram o norte da África e provocaram sérios abalos até o Golfo Pérsico. Fosse apenas mais uma revolta popular, um tremor isolado, uma convulsão política episódica provocada pelo desemprego ou pelo aumento do custo de vida, não seria nada novo. O problema é que as revoltas rapida- mente assumiram a forma de movimentos de libertação popular e envolveram forças sociais potencialmente re- volucionárias. Mas tudo parecia tão bem naquele país!... Pelo me- nos era o que dizia o FMI... Quando visitou a Tunísia em 2008, o então diretor-geral do Fundo, o incorrigível tarado Dominique Strauss-Khan, fez elogios pessoais a Ben Ali. Os mesmos que foram feitos a Muammar Kadafi na Líbia (o modelo de “economia livre” líbio e seu siste- ma contratual favorável permitia que o petróleo do país fosse explorado por empresas ocidentais, como a norte- -americana Oxy, a britânica BP e a italiana ENI. Os rendi- mentos oriundos da venda dos hidrocarbonetos eram dividi- dos entre as companhias e o Estado controlado por Kadafi ). A Tunísia, segundo o FMI, dava um show de pros- peridade. Com um crescimento médio de 5% na última década, o país era apresentado como um exemplo a ser seguido. Em suas moderníssimas estradas multiplica- vam-se veículos 4X4, e nos hotéis fervilhavam os turistas europeus, entusiasmados com as praias e as paisagens do deserto. O cenário lembrava a vida perfeita dos fi lmes de Hollywood. Túnis parecia mais francesa que tunisiana. E a Tunísia parecia mais europeia que árabe. Parecia... Enquanto isso, na cidade do Cairo, capital do Egito, com as famosas pirâmides de Gizé emprestando um ar de eternidade a tudo em volta, também não havia ne- nhum sinal de mudança. Para o ditador, Hosni Muba- rak, bem como para seus generais de muitas estrelas, a situação estava totalmente sob controle. Não era para menos. O Egito, considerado pela Casa Branca um alia- do-chave, era (e ainda é) favorecido com “subsídios” da ordem de dois bilhões de dólares anuais, utilizados para o armamento de um exército faraônico, o décimo maior do planeta, e para obras de infraestrutura. Uma “mesa- da” de dar inveja, somente comparável aos “mensalões” do PSDB, do DEM e do PT... juntos! E por falar no Egito, o país controlado por Mubarak não se parecia em nada com aquele que um dia foi go- vernado por Gamal Abdel Nasser, símbolo da luta contra o imperialismo e pai do pan-arabismo. O coronel Nasser e outros militares egípcios integravam a organização conhe- cida como Ofi ciais Livres, responsável pela derrubada do HISTÓRIA 17 História - Extensivo I - 2013.indd regime corrupto do rei Farouk, sustentado até então pela Inglaterra. Após o golpe, o novo regime nacionalizou o canal de Suez, o que desencadeou o assalto combinado de forças inglesas e francesas, cujo propósito era recu- perar o controle sobre a região. O ataque contou ainda com a participação de Israel, interessado na conquista do deserto do Sinai. Apesar da incontestável vitória mi- litar, os governos da Inglaterra, da França e de Israel foram intimados pela ONU a recuarem suas posições. As superpotências, Estados Unidos e União Soviética, não estavam dispostas a aceitar uma ação militar em uma área tão importante do globo sem sua prévia auto- rização. Anos mais tarde, a rota da política egípcia seria al- terada radicalmente pelo sucessor de Nasser, Anwar al- -Sadat. Primeiro, aproximou-se de Israel, antigo inimigo e aliado mais confi ável dos Estados Unidos na região. Segundo, abraçou Menachem Begin, primeiro-ministro israelense, velho comandante de uma brigada terrorista pró-sionismo. E ainda negociou a paz e o reconhecimen- to de Israel em troca da devolução do Sinai, que havia sido mais uma vez ocupada pelos israelenses durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967. E deu no que deu... Em 1981, os fundamentalistas árabes se vingaram. Durante um desfi le militar, quatro soldados do exército egípcio ligados à Irmandade Muçulmana abandonaram suas po- sições e metralharam a tribuna de honra. Sobrou bala até para os VIP’s que estavam ao lado do presidente, que não sobreviveu ao ataque. Um breve parêntese na direção da história: a Irman- dade Muçulmana, fundada em 1928 por Hassan al-Ban- na, professor e teólogo tradicional, defendia a necessi- dade de uma reforma de cunho religioso e conservador. As críticas eram dirigidas ao imperialismo, à moderni- dade e seus “males”, ao comunismo e seu discurso ate- ísta, e aos “desvios” que existiam no interior do Islã. O movimento nasceu em Ismailia, não por acaso sede da Companhia do Canal de Suez e do consórcio franco-bri- tânico instalado no Egito. Os Irmãos colaboraram com o movimento vitorioso liderado por Nasser em nome do ódio ao colonialismo europeu. No entanto, como era de se esperar, a relação entre os fundamentalistas e os na- cionalistas sofreria um desgaste irreversível nos anos seguintes. Para a Irmandade, o país deveria ser gover- nado segundo a shari’a, a lei islâmica. Nasser, que não estava disposto a ceder às pressões, chegou a ser víti- ma de um atentado à bala. Escapou por um triz. Sadat, como vimos, não teve a mesma sorte. Com o assassinato de Sadat, Hosni Mubarak che- gou ao poder. O clima no país estava tenso. Não era para menos. O primeiro decreto do novo governo (ima- ginem por quê?) foi proibir a utilização de munição de verdade em cerimônias ofi ciais. Em seguida, assinou uma lei de emergência que permitia prisões sem acu- sação prévia e fez algumas concessões de má vonta- de aos extremistas com o claro objetivo de acalmar os ânimos e ampliar sua base social e política. Algo como permitir à Irmandade uma existência limitada e vigiada. Uma delicada convivência acompanhada de perto pela Casa Branca. Para os EUA, o mais importante era usar Mubarak para sufocar a oposição interna ao processo de ocidentalização, iniciado por Sadat, garantir a passa- gem do petróleo árabe pelo canal de Suez e quebrar o isolamento de Israel na região. Agora fi ca fácil compreender por que as lutas na Tu- nísia, na Líbia, no Egito e no Golfo Pérsico acenderam a luz de alerta nos EUA, em Israel e na União Européia. Um movimento de massas na região era a pior notícia que poderia chegar a cidades como Washington, Tel Aviv, Berlim, Paris, Roma e Londres. E já que tocamos no assunto imperialismo... COM QUANTAS MENTIRAS SE FAZ UMA GUERRA? Façamos um teste rápido. Quando o assunto é o mundo árabe, qual a primeira coisa que vem à sua ca- beça? a) Bin Laden e os “malucos” da Al-Qaeda?; b) os barbudos do Hezbollah?; c) os “terroristas” palestinos?; d) tapetes voadores?... gênios da lâmpada?... ; já sei, e) a novela global O Clone?... Se você não pensou em nada disso, sua nota é dez. Todas estas imagens, tanto as mais sinistras quanto as mais aparentemente inofensi- vas são, na verdade, perigosas projeções fantasiosas. O que pouca gente costuma levar em consideraçãoé que por trás desse imaginário construído no Ocidente, sob esse pesado véu ideológico, encontra-se um mundo que foi muitas vezes invadido, colonizado e destruído. Se estiver errado, então me corrija: você se lembrou, por acaso, das Cruzadas?... Apenas um, entre os muitos pecados mortais da história ocidental. As Cruzadas cau- saram a morte de dois milhões de pessoas no Oriente, algo em torno de sete por cento do total de toda a popu- lação da Europa no período. Somente em um dos capí- tulos da tomada de Jerusalém pelos cavaleiros cristãos, foram degolados 15 mil “hereges” muçulmanos que pro- curavam abrigo na mesquita de Al-Aksa. No fundo, uma coisa é certa: o cenário das Mil e Uma Noites possui uma história bem diferente daquela que se ouve por aí hoje em dia. Questionar as “fantasias” que povoam o nosso ima- ginário e as razões do nosso “esquecimento” histórico são componentes importantes de um estudo crítico do mundo atual. Isso por que são estreitas, além de pe- rigosas, as relações entre a imaginação cultural e a ação imperialista. E não há nada de novo em tudo isso. Passaram-se dois séculos, mas parece que foi ontem que ouvimos das potências europeias aquela história da carochinha de “levar a civilização” aos recantos do mundo. Ninguém mais acredita, nos dias de hoje, que as aventuras de Leopoldo II, da Bélgica, na África, tenham sido motivadas pelo idealismo missionário e pelo espí- rito fi lantrópico. E se você desviar rápido o olhar para o século XXI, fora os atores e os cenários, o blá blá blá continua o mesmo. A diferença é mínima, retórica. A fi c- ção tipo faroeste de “combate ao terror”, estrelada pelo cowboy-presidente George W. Bush, por exemplo, foi uma peça-chave para o sucesso do plano de instaura- ção de um estado de guerra permanente e para a ten- tativa de legitimar uma ditadura global norte-americana. O discurso da guerra contra o Irã “antes que seja tarde demais” também ilustra o problema. Enquanto pro- clama a necessidade de uma ação armada, o imperialis- mo manobra na direção do petróleo persa. E o seu avan- ço já está em curso, basta observarmos os movimentos para entender o cerco: a V Frota da Marinha norte-ame- ricana, com 6 mil soldados de prontidão, armada de porta-aviões, destróieres e submarinos, estacionada História - Extensivo I - 2013.indd 18 HISTÓRIA no Bahrein, no meio do Golfo Pérsico; assassinatos de cientistas nucleares iranianos pelo Mossad, serviço secre- to israelense; pressões políticas de todo tipo e embar- gos econômicos asfi xiantes compõem o quadro. Uma verdadeira guerra não declarada que poderá em breve se converter em convocação para mais um genocídio. Ninguém duvida que o imperialismo tenha muitos truques na manga, e que sempre recorreu, em diferen- tes épocas e latitudes, a uma complexa estratégia de atuação que abrange um conjunto articulado de práticas militares, políticas, econômicas, sociais e ideológicas. A construção de um imaginário que legitime previamente a violência é um componente vital para a conquista e a dominação de extensas áreas ao longo do globo. Afi nal, como já sabemos, a propaganda é a alma do negócio. No entanto, não se trata simplesmente de afi rmar que a nossa consciência do mundo seja uma simples repro- dução do que pensam os “operadores do sistema”, os “homens com os fi os de marionete nas mãos”. Trata-se de compreender e expor a atualidade da prática nazista de utilizar a mentira e a (des)informação como meios mais que efi cazes para reforçar o poder e a dominação. E, por que não dizer, ao invés de nazistas, práticas “murdoquianas”?... Convenhamos que Rupert Murdo- ch serve perfeitamente como paradigma de midiocrata inescrupuloso. Magnata das comunicações, dono de uma cadeia de jornais no Reino Unido (Times, Sunday Times, Sun e News of the World), e aliado político de go- vernos comprometidos com o modelo neoliberal, como o de Margaret Thatcher, John Major, David Cameron e Tony Blair. Este último, diga-se de passagem, parceiro inseparável de W. Bush nas aventuras bélicas no Iraque e no Afeganistão. Há algo de muito familiar na fi gura de Rupert Murdoch. Não acham?... Os abusos da grande imprensa são os mesmos observados mundo afora, in- clusive na América Latina. Não faltam, por aqui, pode- rosos grupos privados de comunicação que ameaçam o direito inalienável dos povos à informação e à pluralidade de interpretações. Conglomerados midiáticos, sempre empe- nhados em massifi car uma visão de mundo conservadora. Alguns dos maiores exemplos estão na Argentina (o grupo Clarín) e no Brasil (a Globo e o grupo Abril). E olhe que essa tática da propaganda é pra lá de antiga. O Império britânico, no passado, utilizava o com- bate ao tráfi co negreiro para defender a existência da sua poderosa armada. Já os Estados Unidos, no século XXI, recorrem a outros álibis. Após a extinção da União Soviética e com os “comunistas” fora do jogo, o “perigo vermelho” deixou de ser capaz de conferir um sentido ideológico e justifi car as ações do campo imperialista. Nada melhor do que oferecer ao mundo outro “inimigo conveniente”. É aí que se apresenta o “terror”, o novo “mal” a ser combatido. Nesse novo contexto, o 11 de setembro teve um peso decisivo, visto que o maior benefi ciário dos atentados foi o próprio baby Bush. Em apenas um lance ele conseguiu marcar três pontos: dissipou da memória nacional a fraude nas urnas que possibilitou sua eleição; abafou grande parte da oposição democrática ao seu governo; e, ao proclamar a missão de “vingar” a Améri- ca e garantir a “paz”, conseguiu abrir espaço para uma guerra com o claro objetivo de reabilitar a economia. No mundo do “vale tudo por dinheiro”, uma coisa está ligada à outra, não necessariamente nessa ordem. Foi assim que em poucos dias, o presidente Bush passou de vilão a Capitão América. Claro que o que menos importava àquela altura era punir ou não os ver- dadeiros culpados. Por quê?... Mesmo quando não se sabe ao certo contra quem, uma guerra pode ser muito oportuna: (1) o valor das ações das empresas de alta tecnologia dispara nas bolsas; (2) a canalização de no- vos recursos fi nanceiros, sempre disponíveis no cassino global, aumenta o fl uxo dos investimentos; (3) as ino- vações tecnológicas estimulam a produtividade do tra- balho e o lucro do capital; e por fi m, (4) a ampliação da capacidade produtiva potencializa a competitividade e a agressividade do imperialismo. Uma implacável roda- -viva que alimenta a indústria da guerra e confere impu- nidade a uma potência dotada de esmagadora superio- ridade militar. Como em toda regra pode haver exceções: não seria coincidência o fato de as regiões atacadas pelos EUA, as montanhas da Ásia Central (por onde se estende o território do Afeganistão) e as dunas de areia da anti- ga Babilônia (o atual Iraque), serem muito ricas em gás e em petróleo?... Claro que não. Estamos tratando, nos dois casos, de insumos vitais para qualquer economia moderna e, em especial, para os Estados Unidos. Entre os anos de 2000 e 2001, o país vivia à beira de uma grave crise energética. A ausência de um provimento satisfatório de gás natural chegou a causar apagões na Califórnia. Além disso, o petróleo nunca deixou de ser a principal fonte de energia, responsável por nada menos que dois quintos do abastecimento energético estadu- nidense. Há lições importantes em tudo isso para hoje. Qualquer semelhança com o caso do Irã... De lá para cá, muita água rolou debaixo da ponte. A última novidade da Casa Branca na briga “contra as trevas” foi recorrer a mercenários para a composição de suas forças espalhadas pelo mundo. Muitos desses soldados “descartáveis” são recrutados em países mise- ráveis da África, mergulhados em intermináveis guerras civis, como é o caso de Uganda. E como o problemade falta de combatentes é cada vez maior, o governo passou a lançar mão de veículos aéreos não-tripulados (UAVs em inglês), os drones. Depois dos EUA, Israel é o maior comprador dessas máquinas exterminadoras recém-chegadas do futuro. Foi um desses robôs voa- dores, o responsável pela eliminação de Abu Yahya al- -Libi, o número 2 da Al-Qaeda, morto em uma operação militar norte-americana. Há, ainda, além do papo furado da guerra contra o “Eixo do Mal” e do combate ao “Terror”, o discurso da “defesa da democracia” e dos “direitos humanos”. Mais uma sutileza do poder imperial. Por isso, não se deixe levar tão rápido por Obama. Desde o fi m do governo Bush as coisas não mudaram muito. As provas estão aí, para quem quiser ver: as guerras piratas e os golpes de Estado (a derrubada do governo de Manuel Zelaya por militares, em Honduras, no ano de 2009; e o golpe parlamentar que derrubou o presidente Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012. Ambos respaldados por setores da CIA e do Pentágono); os gastos militares recordes e a venda de armas para governos inescrupulosos (em 2011 os EUA exportaram mais de US$ 66 bilhões, US$ 33,5 bilhões para a Arábia Saudita, o centro ideológico do terrorismo islâmico); a manutenção da prisão de Guantá- namo em Cuba; o desrespeito ao Direito Internacional; as demonstrações de desprezo pelo princípio da soberania HISTÓRIA 19 História - Extensivo I - 2013.indd e autodeterminação dos povos; a sabotagem à Confe- rência Rio+20; as investidas contra o Mercosul; a caça às bruxas contra o “Wikileaks” e seu fundador, o “ter- rorista” Julian Assange, ameaçado pelo governo norte- -americano de condenação à prisão perpétua ou à pena de morte; e por aí vai. A SOMBRA DO PODER GLOBAL AMERICANO O conjunto de todas essas ações norte-americanas pelo mundo e, em especial, no Oriente Médio, não pode ser compreendido de forma isolada. Tais operações fa- zem parte, em sua dimensão particular e regional, de uma estratégia de dominação mais ampla, de caráter global. Os mandachuvas do Pentágono se referem a ela como Dominação de Pleno Espectro. Os EUA pretendem ampliar sua presença no Atlân- tico e no Pacífi co, reforçar suas posições nas periferias marítimas da Ásia e estender sua hegemonia sobre uma gigantesca área que se estende do Golfo Pérsico ao Ín- dico. As ambições imperiais apontam para as reservas de petróleo que restaram e para as principais vias de circulação global, como o canal de Suez e os estreitos de Ormuz (saída do Golfo Pérsico) e Malaca (entre o Índico e o Pacífi co). Não vá pensando que a América Latina não fi cou de fora. E é aí que mora o perigo. A reativação da IV Frota em 2008 (desativada em 1948), uma divisão da Marinha de Guerra dos EUA que se movimenta sobre as águas do Atlântico Sul, e os ataques a governos de esquerda são dois componentes da política imperial para a região. O maior alvo dessa ofensiva é a Venezuela, ameaçada por um cerco de 13 bases militares norte-americanas, situadas na Colômbia (que recebe anualmente uma ajuda militar estadunidense de US$ 630 milhões), no Panamá, em Aruba e em Curação. A explicação não podia ser outra... o petróleo. Segundo o relatório anual da OPEP, divulgado em 2011, a Venezuela possui uma reserva comprovada de mais de 250 bilhões de barris, superando a Arábia Saudita. A Revolução Bolivariana e o discurso antioligárquico e anti-imperialista do seu diri- gente, Hugo Chávez, são considerados obstáculos pela Casa Branca, pois difi cultam o processo de implantação de uma sólida política de dominação sobre o continente. É bom lembrar que em abril de 2002, os EUA apoiaram escancaradamente uma tentativa de golpe militar em- presarial para derrubar o governo venezuelano. E isso não é tudo. Está mais do que claro para a Casa Branca que a Rússia e a China serão seus rivais no século XXI. A China, por exemplo, somente na última década, aumentou quase dez vezes mais rápido o seu PIB que os EUA, enquanto seu orçamento militar alcan- çou uma dimensão gigantesca. A diferença em relação ao orçamento norte-americano caiu da proporção de 1 para 20 (em 2000) para 1 para 7 (em 2012). Com a Rús- sia, a situação não é muito diferente. O país transitou, nos últimos anos, do ocidentalismo subserviente de Boris Yeltsin ao imperialismo agressivo, de cunho eslavófi lo e mi- litarizante, praticado pelo “novo Czar”, Vladimir Putin. Por isso mesmo, com o claro propósito de ampliar sua força na Ásia (os EUA já possuem 219 bases mili- tares na região, a maioria delas instaladas na Coreia do Sul e Japão) e enfrentar a ascensão do dragão chinês, Barak Obama anunciou, no fi nal de 2011, uma “guina- da para o Pacífi co”. O mar da China oriental, um dos alvos dessa nova investida imperial, não por acaso, é palco de uma disputa entre japoneses e chineses envol- vendo o arquipélago Senkaku / Diaoyu. Nesse cenário atual, caberia ao governo japonês, parceiro privilegia- do do Império na Ásia, a tarefa de custear o desenvol- vimento armamentista na região do Pacífi co. Ganha o Japão, que abandona a postura antibelicista que vem do fi m da Segunda Guerra, e passa a disputar o rico mercado mundial de armas, abrindo uma solução para a sua crise; e ganham os Estados Unidos, que asseguram seus objetivos geoestratégicos sem o ônus de ter que aprofundar seu próprio défcit orçamentário com novas e caras posturas guerreiras. Embora exista uma rivalidade potencial entre os dois blocos imperialistas, ela não foi totalmente explicitada. E mais: nada impede que, em alguns casos, ocorra co- operação entre os EUA, a China e a Rússia. Quando o assunto é o combate ao “terror”, por exemplo, a rivalida- de dá lugar a um alinhamento estratégico. Isso por que, a Rússia e a China enfrentam, em seus próprios quintais, as forças do fundamentalismo islâmico e do nacionalismo sepa- ratista. Inimigos, inimigos... Interesses à parte! Outra questão importante: a luta imperial pela hege- monia e pela energia, além de envolver o recurso direto e indireto à força (instrumentalização da OTAN como testa-de-ferro em operações militares) exige a costura de uma pragmática política de alianças. Na Ásia, como acabamos de ver, o governo Obama se empenha para ampliar os parceiros comerciais (negociam a TPP, sigla em inglês para Parceria Transpacífi ca) e estreitar os laços com os aliados militares (caso do Japão). Já no Oriente Médio, uma das bases da política estadunidense é o apoio incondicional a Israel, uma ameaça atômica. Mas existem outras: desde a aliança com organizações terroristas não estatais, a exemplo da Al-Qaeda, até a cooperação com as petro-monarquias absolutistas que integram o Conselho de Cooperação do Golfo: Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Kwait e Omã. Vale tudo! A propósito, quem poderia imaginar, que a mente criminosa que planejou o “apocalíptico” suicídio-assas- sinato de 11 de setembro esteve ao lado dos Estados Unidos na década de 1980?... A “amizade” começou du- rante uma gigantesca operação que visava enfraquecer a posição da extinta URSS no Afeganistão. Em 2001, quando o primeiro avião riscou o céu de Manhattan, aquele punhado de caras com turbantes lembraria aos seus antigos professores do que são capazes quando vão à guerra por al-Lah. Eram os fantasmas do passa- do que retornavam para assombrar os vivos, da mesma forma que um bumerangue retorna para o seu lançador. Um caso clássico de blowback, termo utilizado pela CIA para se referir aos efeitos indesejados das políticas ou ações militares norte-americanas através do mundo. E se é verdade que perguntar não ofende: 1 – al- guém sabe como se deu a transformação de um jovem herdeiro de boa parte do petróleo saudita em líder de uma “horda de terroristas”?; 2 - quem armou o funda- mentalismo islâmico e fez dele um instrumentode com- bate ao poder soviético na Ásia Central (Afeganistão) e Oriente Médio durante a Guerra Fria?; 3 – quem sus- tentou, a partir de bases instaladas no Paquistão, a resistência dos mujahidins (“guerreiros sagrados” da História - Extensivo I - 2013.indd 20 HISTÓRIA Al-Qaeda, altamente treinados e disciplinados) forne- cendo-lhes dinheiro à vontade, armamento moderno e até mísseis antiaéreos?; 4 - por que eliminar Bin Laden e em seguida lançar o seu corpo ao mar, o mais rápido possível, e sem autópsia?... Se você ainda não tem a resposta para todas essas perguntas, talvez a análise de outro caso paradigmático da série “queima de arquivo” ajude a esclarecer as coisas: Saddam Hussein. Não menos prodigioso em metamorfo- ses, Saddam passou de ditador anti-imperialista a déspota pró-ocidental, e depois, de déspota pró-ocidental a inimigo número um do Ocidente. Quando encabeçou, em 1979, um golpe de estado, Saddam implantou no Iraque um regime laico, marcado por um forte discurso nacionalista e pan-arabista. Tudo levava a crer que seu governo seria mais uma pedra no sapato dos EUA na região, mais um inimigo a ser com- batido. Ao invés disso, seu nome foi cuidadosamente retirado da lista de terroristas em 1982. Como isso foi possível?... Todos os caminhos levam ao Irã. Lá encon- traremos essas e outras respostas. Na década de setenta, a situação do Irã era a pior possível em termos econômicos, sociais e políticos. O regime pró-EUA da Dinastia Pahlevi, implantado em 1953 após um golpe orquestrado pela CIA e pelo serviço secreto britânico (MI6) contra o governo nacionalista de Mossadegh, acumulava a cada momento novas antipa- tias. O processo de ocidentalização não era visto com bons olhos pelos setores mais conservadores ligados ao xiismo e, além disso, a juventude insatisfeita contribuía para dar à oposição um caráter mais amplo. Isso sem falar das greves operárias que se multiplicavam rapidamente. Corria o ano de 1979 quando a revolução contra o regime explodiu. A luta foi marcada pela hegemonia xii- ta e conduziu o aiatolá Khomeini ao poder. A Repúbli- ca Islâmica nascia com a promessa de justiça social, fi m da corrupção e limpeza cultural. Um levante contra o poder norte-americano no Oriente Médio, carregado de uma forte ideologia fundamentalista e pan-islamista. Enquanto os iranianos saíam às ruas para festejar ento- ando Allahu Akbar (“Deus é Grande”), na capital, Teerã, um bando de jovens muçulmanos ocupava a Embaixada Americana para exigir a volta do xá (que havia fugido) para que pudesse ser julgado. Entre aqueles jovens, es- tava o então estudante universitário... Mahmoud Ahma- dinejad. Ele mesmo, o atual presidente iraniano. Para os EUA, o quadro era preocupante. O risco de novas lutas xiitas no Iraque, na Arábia Saudita e no Gol- fo Pérsico era iminente. O presidente Jimmy Carter agiu rápido. Foi dele que partiu a ordem para a montagem da Operação Blue Light, que consistiu em uma tenta- tiva de resgatar os reféns norte-americanos em poder dos iranianos na Embaixada. Apesar dos helicópteros cheios de homens armados até os dentes, e do apoio dos porta-aviões estacionados no golfo de Omã, nada saiu como no cinema. A operação foi um fi asco e os Estados Unidos foram obrigados a mudar de estratégia. Era mais aconselhável, naquele contexto, abrir canais de aproximação com o ditador vizinho: Saddam Hus- sein. Aquele cara que teve o nome retirado da lista de terroristas em 1982... Lembram?... Ele poderia esmagar qualquer possibilidade de um levante dos xiitas no Ira- que e, de quebra, servir como barreira de contenção aos ideais da Revolução iraniana. Nesse momento começam a pular do nosso texto al- gumas interrogações candentes. Então, sem querer ser repetitivo: 1 – quem estimulou as divergências entre os dois países (Irã e Iraque) e forneceu a Saddam as armas químicas e biológicas que seriam, mais tarde, utilizadas contra a minoria curda?; 2 – quem prometeu a Saddam, caso vencesse a guerra contra o Irã, o canal de Chaat- -al-Arab, uma varanda para o Golfo Pérsico, disputada pelos governos de Teerã e Bagdá?; 3 – quem lucrou com a guerra que se arrastou por quase toda a década de 1980?; 4 – quem coordenou a farsa do julgamento, seguido pela condenação e execução de Saddam em 2006, acusado de, olhem só que ironia, genocídio?... Moral da história, se é que podemos falar em algu- ma “moral”: desde que cumpram suas funções, tiranos e fanáticos de todos os tipos não serão de imediato des- cartados pela política externa norte-americana como “inimigos do mundo livre”. O único problema é que de vez em quando alguma coisa dá errado. Que o digam: Zine Ben Ali, na Tunísia, o primeiro tirano a ser derruba- do pela força dos levantes populares; o ex-amigo excên- trico do Ocidente (íntimo de Blair, Berlusconi e Sarkozy), o coronel Muammar Kadhafi , na Líbia; e Hosni Mubarak, no Egito, o carrasco do seu próprio povo e dos palesti- nos em Gaza, região controlada pelo Hamas. Não surpreende que o mundo árabe tenha sido pal- co de uma sequência de lutas resultantes do acúmulo de tensões sociais e políticas. Era impossível evitar o que aconteceu: profundas desigualdades sociais, desemprego, corrupção, ausência de liberdades, perseguições e assas- sinatos políticos, prisões arbitrárias e torturas horripilantes... “PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES” Um elemento novo irrompeu em 2011: a multidão. A juventude e os trabalhadores saíram às ruas aos mi- lhares. A maioria dos manifestantes é laica. Esses se- tores não-crentes que adotaram a modernidade como modo de vida estão presentes em todo o mundo do Islã e convivem com a religião organizada e com os velhos hábitos que persistem nos países árabes. Os alvos dos protestos foram os regimes ditatoriais carcomidos pelo parasitismo econômico, capturados por verdadeiros clãs mafi osos e corruptos que assumiram o controle da má- quina estatal em consórcio com os interesses do capita- lismo internacional. A participação popular, que durante décadas a fi o esteve sufocada pela truculência dos regi- mes ditatoriais, voltou ao palco principal da história. O problema é que o longo “inverno árabe” inviabili- zou, por muito tempo, o surgimento e a organização de forças políticas portadoras de um projeto alternativo de sociedade. E em momentos como esse, mais importan- te do que saber o que não se quer (não queremos isso, isso e isso) é saber o que se quer (queremos isso, isso e isso). A ausência de um movimento popular organiza- do, de instrumentos de luta coletiva capazes de orientar esses povos no caminho da verdadeira emancipação, se verifi cou na inexistência de partidos políticos que pu- dessem funcionar como ferramenta (embora não única) de constituição de uma subjetividade, de um sujeito co- letivo autoconsciente da sua tarefa revolucionária. No Egito, até torcidas organizadas cumpriram o papel de vanguarda nas lutas, incorporando as táticas utilizadas em sucessivos enfrentamentos com a polícia do regime. HISTÓRIA 21 História - Extensivo I - 2013.indd Que o Facebook e o Twitter tiveram, na falta de um veículo tradicional de organização política, um papel destacado em levar o povo para a rua, também é ver- dade que os fóruns urbanos que se formaram espon- taneamente e o velho cara a cara, funcionaram como catalisadores dos protestos. A ocupação das praças (em Túnis e no Cairo), como lugares simbólicos, serviu para auto-organizar os movimentos, criar uma solidariedade entre os manifestantes e derrubar barreiras entre gera- ções, entre classes e raças, entre estudantes e operá- rios, crentes e não-crentes, etc. A propósito, qual a relação – se é que ela existe – entre os movimentos de contestação política no mundo árabe e o movimento dos “Indignados”, em Madri, e dos “Ocupas”, em Nova York? Opano de fundo: o atual está- gio de desenvolvimento do capitalismo globalizado e as políticas neoliberais, responsáveis pela fi nanceirização da economia, pela desregulamentação dos mercados, pela precarização do mundo do trabalho, pelo desem- prego e pela pobreza. A dinâmica dos movimentos na Europa e nos EUA tem um traço anticapitalista, embora nem sempre explicitado de forma consciente. Somente a prática subversiva e sua ação coletiva poderão conduzir as lutas, por caminhos sempre imprevisíveis e originais, a uma verdadeira conscientização e – por tabela – a uma emancipação histórica. Os “Indignados”, nascidos na Espanha, deixaram clara a revolta contra a democra- cia liberal, a recessão e o desemprego, frutos do atu- al modelo econômico. Os “Ocupas” surgiram em Nova York e concentram a atenção para a (ir)responsabilidade do capital fi nanceiro, sediado em Wall Street, divulgando o slogan da luta entre o 1% dominante e a maioria, os 99% de oprimidos. O movimento OWS orientou-se para a ideia de democracia econômica. Ou seja, o controle democrático sobre a economia, o capital especulativo e sobre os bancos. Acertaram na mosca!... É fundamen- tal denunciar o sistema de crédito (e seus juros imorais) como forma de expropriar a riqueza dos povos em uma escala planetária. Quanto ao imperialismo, como era de se esperar, restava tentar evitar uma derrota em tantas frentes. A contrarrevolução não demorou muito. O IMPÉRIO CONTRA-ATACA (NO EGITO, NA LÍBIA E NA SÍRIA) * Após a queda do regime Mubarak, os militares pas- saram a controlar os poderes presidenciais e legislati- vos. Seguiam as ordens da Casa Branca, que ameaçou suspender o apoio fi nanceiro ao país, caso o ditador (que não servia mais aos interesses norte-americanos) não fosse retirado do poder. O plano traçado pelos EUA era diminuir a tensão social extrema, evitar a verdadeira democratização do país e fazer tudo voltar a ser como em 2010, como se nada tivesse acontecido. Para isso, o Conselho Supremo das Forças Armadas deveria ocu- par imediatamente o poder. Os generais não pensaram duas vezes em se livrar de Mubarak. Afi nal, aquela era a única maneira de manter os privilégios e preservar incó- lume a estrutura de poder herdada do período ditatorial. O Exército, no Egito, tem um poder gigantesco. É um verdadeiro Estado dentro do Estado. Os militares domi- nam algo em torno de 20% do PIB do país. Um exemplo do poder dos generais egípcios é o controle sobre a in- dústria de armas, responsável pela fabricação de muni- ções, tanques, aviões, etc. As vendas, boa parte delas para países do Golfo Pérsico e da África, movimentam um bilhão de dólares a cada ano. O setor de serviços também é controlado pelo Exército. Segundo o Wiki- Leaks, uma gigantesca “rede de empresas comerciais particularmente ativa nos setores da água, do óleo, do cimento, da construção, da indústria hoteleira, da distri- buição de combustíveis e de um vasto parque imobiliário no delta do rio Nilo e na costa do Mar Vermelho”. O plano parecia infalível, mas o que a Casa Bran- ca queria evitar acabou acontecendo. As mobilizações populares massivas não recuaram e a junta da máfi a fardada que assumiu o poder após a queda de Mubarak, o Conselho Supremo das Forças Armadas, foi forçada a convocar eleições. O favorito dos militares era Ahmed Chafi k, ex-primeiro ministro de Mubarak, mas a eleição acabou com a vitória do candidato da Irmandade Muçul- mana. Lembra-se dela?... Mohamed Morsi foi lançado pelos Irmãos depois que os militares rejeitaram a candi- datura do popular Khairat El-Shater. A vitória do Partido Liberdade e Justiça, braço po- lítico da Irmandade, no segundo turno das eleições foi favorecida por dois fatores. Primeiro, os jovens e traba- lhadores da praça Tahrir se recusaram a participar das eleições e legitimar uma transição controlada pelos ge- nerais de Mubarak, o que explica a participação baixa dos eleitores e uma alta proporção de votos nulos. Se- gundo, os Irmãos conseguiram mobilizar para as urnas uma parcela da população que já estava com eles, os mais pobres, setores rurais e periféricos, com os quais a Irmandade desenvolve, há décadas, um trabalho social, incluindo atendimento médico e apoio econômico a de- sempregados. Mohamed Morsi tornou-se, após a vitória eleitoral, o primeiro mandatário islamita do Egito. Sua posse, que chegou a ser ameaçada por um golpe militar, só aconte- ceu após uma tensa negociação com os generais. Ao fi - nal, a maioria dos ministérios do novo governo continuou nas mãos do Exército. Era tudo parte do novo plano de “estabilização política” elaborado pelos EUA: levar os militares para os bastidores e chegar a um acordo com o governo dos fundamentalistas. Para a Casa Branca, um governo da Irmandade, legitimado pelo Islã (com algum apoio dos salafi stas, o ultra do ultra fundamentalismo no Egito) e aceito por determinados setores populares, pa- recia ser o melhor caminho para manter o controle sobre o país. Desde então a Irmandade e o Exército passaram a trabalhar juntos. A passagem dos poderes executivo e legislativo, das mãos do Conselho Supremo das Forças Armadas para as mãos do presidente egípcio, ocorreu com a condição de Morsi não retirar dos generais o con- trole sobre determinadas áreas consideradas estratégi- cas, como a defesa e a segurança interna. Até mesmo o afastamento dos velhos generais de Mubarak e a co- optação de uma nova geração de ofi ciais aspirantes do privilégio pode ser considerada parte do esforço de le- gitimação do novo governo. Esse pacto entre o Exército e a Irmandade constitui a maior ameaça ao processo de democratização do Egito. Ao que tudo indica, a “transição democrática” comandada por Morsi e pela Irmandade interessa aos Estados Unidos. Dois últimos acontecimentos História - Extensivo I - 2013.indd 22 HISTÓRIA parecem confi rmar essa hipótese. Primeiro, o silêncio da Casa Branca diante da tentativa do presidente egíp- cio de promulgar um decreto através do qual conferia a si mesmo plenos poderes. Um ensaio de golpe islamita cinicamente justifi cado com o argumento de “defender a revolução” iniciada em 2011 e “tomar todas as medidas necessárias”. Segundo, sua importância como mediador na solução do mais recente confl ito envolvendo Gaza. Morsi é o principal aliado internacional do Hamas, que é inimigo de Israel, que é aliado da Casa Branca. Há qualquer coisa no ar que nos transmite a sen- sação de que estamos assistindo a um fi lme que nós já vimos, mas cujo fi nal ainda desconhecemos. A começar pelo problema central: a oposição popular ao presiden- te. Para a maioria da população, o governo, da Irmanda- de, assim como a ditadura derrotada, não passa de uma representação invertida da sociedade, já que contempla apenas os interesses de uma minoria conservadora e fundamentalista. Isso explica por que os estudantes e trabalhadores que derrubaram Hosni Mubarak voltaram às ruas e ocuparam mais uma vez a praça Tahrir para protestar contra Mohamed Morsi. Em resumo, não sabemos ainda se os setores po- pulares irão acumular força sufi ciente para, no limite mínimo, pautar o governo da Irmandade ou, no limite máximo, derrubar o regime islamita, desmontar o po- der dos militares e impor uma derrota ao imperialismo. A não realização dessas possibilidades é a derrota da revolução. A ver. ** O quadro na Líbia é igualmente incerto. A guerra contra Kadafi expôs a articulação entre as potências ocidentais capitaneadas pela Casa Branca. Estava em jogo o controle sobre o ouro negro do norte da África e a transformação do Mediterrâneo em um novo Mare Nos- trum. E como a exploração do petróleo exige a monta- gem de uma grande infraestrutura, os lucros oriundos de uma ofensiva militar dessa magnitude,sobretudo em um contexto de crise econômica, mais do que justifi cavam a “necessidade” de uma guerra. A “intervenção humanitária” autorizada pela ONU abriu caminho para a OTAN bombardear a Líbia ao longo de mais de seis meses. Àquela altura era funda- mental impedir que as tribos beduínas “indisciplinadas”, inimigas mortais do ditador, consideradas forças opo- sicionistas não tuteladas pelo Ocidente (leia-se EUA), conduzissem a derrubada do regime. Nessa “guerra para salvar os civis” na Líbia, a responsabilidade pelos ataques foi partilhada por alguns governos ocidentais. Mas não esqueçam que por trás de toda essa história há muita sujeira e oportunismo. Não entenderam?... Como a Inglaterra de Tony Blair explicaria ao mundo que o serviço secreto britânico (MI6) e a CIA colabora- ram com a polícia política de Kadafi na captura e tortu- ra de oposicionistas?... A França também deve alguns esclarecimentos. Como explicar, por exemplo, que seus modernos caças Rafale, responsáveis pela destruição da aviação líbia, tenham pulverizado os velhos e ultra- passados caças Mirage, de fabricação... francesa?... Isso mesmo! Quem os vendeu a Kadafi ?... Como expli- car os 50 milhões de euros que Kadafi injetou na cam- panha presidencial de Sarkozy, em 2007?... E o que di- zer de Silvio Berlusconi, então primeiro-ministro italiano, amigo íntimo do “guia” líbio? Só para termos uma ideia do tamanho dessa amizade, Kadafi esteve em Roma mais de uma dezena de vezes até 2011, ano em que começaram as lutas. O fato é que a ofensiva ocidental contra a Líbia, mo- ralmente indefensável, acabou produzindo resultados muito duvidosos. Nada garante que a estratégia que teve a OTAN como peça-chave, consiga garantir o mais importante: um governo alinhado com as potências oci- dentais e o fl uxo do petróleo para suas economias. O problema é que os combatentes que estiveram presen- tes na derrubada do regime Kadafi não se curvarão fa- cilmente a centros decisórios ligados a forças externas. Por isso, o Conselho Nacional de Transição (CNT), ins- talado em Trípoli, terá sérias difi culdades em se afi rmar como poder central nesse novo cenário. Seus maiores desafi os são a legitimidade e a militarização de uma sociedade que é um verdadeiro saco de gatos, dividida pelas identidades tribais, por regionalismos e por res- sentimentos que estimulam ao máximo a violência e a instabilidade. *** Na Síria, desde o início das lutas, o ditador Bashar al-Assad mostrou-se infl exível. Perdeu a oportunidade de propor um programa de reformas, ganhar algum tem- po, e impedir que os protestos por melhores condições de vida e mais liberdade aumentassem. Optou pelo ter- ror de Estado, pelos homens armados, pelas bombas de gás (e de pregos), pelos tanques e blindados, muitos deles recém-chegados da Rússia. Fez a escolha errada. Por quê? Se num primeiro momento, a guerra civil ofi cial desencadeou uma onda de temor, num segundo momento, com a generalização da violência estatal e o saldo pavoroso de milhares de mortes, foi o medo que acabou morrendo. O povo par- tiu para a briga e a guerra assumiu, cada vez mais, um perfi l de confronto entre religiões e etnias. Palavras de ordem anticristãs, antixiitas e antialauítas, religião do clã de Assad ligada ao xiismo, passaram a ser cada vez mais comuns entre a maioria da população, que é suni- ta. Enquanto isso, em sentido oposto, o governo investe no discurso de uma guerra civil sunita-xiita para não ser devorado pelo calcanhar e para justifi car previamente os assassinatos, a limpeza étnica, o estupro de mulheres e a castração de crianças. É claro que o imperialismo não iria fi car de fora des- se jogo macabro. Um movimento popular autônomo não é interessante para a Casa Branca. Enquanto faz o dis- curso da “guerra para salvar populações civis”, estimu- la subterraneamente o sectarismo e a violência. Nesse contexto turvo, põe em prática seu plano de solução militar apoiando a luta dos “rebeldes”. E, como sempre, brinca com fogo. Quem pensa que a relação entre a CIA e a AL-Qa- eda é coisa do passado, caiu do cavalo. A despeito da espetacularização do assassinato de Osama Bin Laden e da assombrosa comemoração em Times Square, as duas organizações terroristas – a estatal e a não esta- tal – continuam de braços dados. Basta, para isso, que haja alguma convergência de interesses. Ouviram bem? É isso mesmo. Nesse exato momento, os mujahidins (já falamos deles), recebem apoio por baixo dos panos do governo norte-americano e integram as Forças do Exér- cito Livre da Síria, empenhadas a todo custo em derru- bar o regime Assad. Seus combatentes jihadistas são sunitas e enfrentam, ao lado dos fundamentalistas da HISTÓRIA 23 História - Extensivo I - 2013.indd Irmandade Muçulmana, as tropas xiitas despejadas na Síria pelo Irã e pelo Hezbollah. Além disso, a Al-Qaeda serve como instrumento de cooptação de recursos fi - nanceiros de países simpatizantes no Golfo Pérsico, em especial a Arábia Saudita. O governo saudita também atua em outra frente. Exerce uma forte infl uência sobre o Conselho Nacional Sírio, órgão de oposição ao regime instalado no exílio. Dominado pela Irmandade Muçulmana, mas com uma fachada liberal, o CNS defende a “ajuda externa” e a formação de “um governo de transição”, o que daria às forças ligadas ao Ocidente a possibilidade de conduzir o país em um eventual cenário pós-Assad. E por falar em CNS, não podemos esquecer que ele foi criado na Turquia, país aliado dos EUA e peça-chave para uma eventual opera- ção militar da OTAN. Alepo, cidade mais rica e populosa da Síria, fi ca a apenas alguns quilômetros da fronteira com a Turquia, utilizada para o fornecimento de armas aos inimi- gos de Assad. A monarquia Saudita se empenha de corpo e alma em construir a ideia de uma aliança sunita contra os seus “inimigos” no Oriente Médio. Quem acha isso ótimo é a Casa Branca. Sem esse estado de guerra permanen- te na região, seria impossível sustentar a espetacular indústria de venda de armamentos. Por isso que o Irã, país xiita e “persa”, é alvo de uma dupla hostilidade. Sem falar de Israel, que insiste em elevar o tom das ameaças contra o governo de Teerã, e conta com o aval norte- -americano. O governo de Netanyahu sabe que a queda de Assad poderia isolar o Hezbollah no Líbano e abrir a possibilidade da assinatura de um acordo defi nitivo com um novo governo sírio sobre as colinas de Golã. Uma coisa é certa: Assad é bem diferente de Ka- dafi , e a Síria, defi nitivamente, não é a Líbia. O regi- me de Damasco conta aliados no Conselho de Segu- rança da ONU: Rússia e China. O governo de Moscou tem uma estreita relação com o governo sírio. Além da compra regular de armamentos, a Síria permite que a Rússia opere o segundo maior porto do país. A base naval de Tartus é o único acesso da marinha russa ao lado ocidental do Mediterrâneo. Não vamos esquecer a China. Uma eventual queda do regime Assad não seria nada favorável ao governo de Mahmoud Ahmadinejad no Irã, velho aliado e importante fornecedor de petróleo para Pequim. Pelo andar da carruagem, podemos dizer que o des- tino do regime já está traçado. Mais cedo ou mais tarde o ditador será obrigado a negociar a sua saída do co- mando do país. Com o avanço das forças rebeldes e o cerco a Damasco, a capital síria, Assad corre cada vez mais rápido contra os ponteiros da história e tem cada vez menos espaço para manobrar politicamente. No entanto, como é impensável um desfecho para a guerra civil que exclua a participação russa, resta saber o seguinte: que preço Vladimir Putin irá cobrar para se desfazer do seu antigo aliado?... Isso é o que veremos. AO MODO DE UMA CONCLUSÃO A essa altura da nossa conversa você deve estar perguntando... “qual será o fi nal dessa história?”.E não é para menos. Isso por que o curso dos movimentos permanece aberto e sujeito a vaivens, o que confere ao nosso texto algumas insufi ciências e certo ar de pre- cariedade. Como todo processo histórico novo, pode admitir muitos fi nais. E se vencerem as forças da con- trarrevolução, ligadas ao projeto de denominação impe- rialista?... O fundamentalismo islâmico pode dar a volta por cima?... (Com a Primavera Árabe, imaginava-se que a força das multidões substituiria a forma de luta isolada de grupos como a Al-Qaeda, mas o eventual fracasso de um projeto popular pode favorecer o retorno do dis- curso extremista.) Então, o que nos ensina essa guerra suja? Que não devemos assumir a defesa nem de um lado nem de ou- tro. Basta, pra começar a conversa, rejeitar o manique- ísmo vulgar. Existe um terceiro lado nessa história toda, o lado dos povos, do seu direito à luta, à liberdade e à autodeterminação. O que difi culta a formação de uma unidade popular é justamente a existência, no interior dessas sociedades, de inúmeras clivagens étnicas, tri- bais, sociais e religiosas, que são instrumentalizadas de maneira oportunista pelos dois lados em disputa, o pró-ocidente (que defende a necessidade do uso “mo- ral” e “humanitário” da violência) e o pró-ditadura (que defende a luta até o fi m contra o “complô” ocidental). A formação de um poder popular unifi cado dependerá da capacidade da juventude e dos trabalhadores de com- preender que o combate aos verdadeiros inimigos (in- ternos e externos) está acima de todas as diferenças. A formação dessa unidade é vital para fortalecer a resis- tência, e abrir caminho para a construção de regimes democráticos. O mais importante é que a “Primavera”, os “Indigna- dos” e os “Ocupas” colocaram na berlinda dois sistemas políticos que podemos considerar como inimigos da de- mocracia real: a ditadura e a democracia formal. Não precisamos aqui explicar por que os regimes ditatoriais, espalhados do norte da África ao Golfo Pérsico, são ini- migos da democracia. É autoexplicável. Mas, quando o assunto é a democracia liberal, a coisa muda. Nesses regimes, a liberdade perde seu sentido mais amplo e encontra-se reduzida a um simples livre-arbítrio. Diga- mos que somos livres para escolher... mas dentro de limites previamente estabelecidos pelo próprio sistema político. Exemplo? Somos livres o sufi ciente para decidir se apertaremos “x” ou “y” no dia da eleição. E isso bas- ta, por que ao fi nal do processo eleitoral, às cinco horas da tarde, voltaremos a ser o que verdadeiramente somos numa democracia formal, consumidores de mercadorias e vendedores de força de trabalho. Por fi m, podemos dizer que o denominador comum de todas essas lutas, a despeito das suas peculiarida- des, é que todas elas representam a utopia, o aspec- to mais essencial de qualquer movimento que coloca para si o desafi o de mudar o curso da história. O dever daqueles que defendem a utopia, entendida não como negação romântica da realidade, mas como a negação da ordem existente e a projeção do que ainda não exis- te, é o de assegurar a organização e a continuidade das lutas de massas. O humanismo que esse projeto encarna se subtrai à lógica da barbárie imperialista e ao obscuran- tismo das ditaduras e dos fundamentalismos. Será o fi m de uma era?...
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