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COLECÇÃO FILOSOFIA & ENSAIOS FILOSOFIA GREGA PRÉ-SOCRÁTICA PINHARANDA GOMES QUARTA EDIÇÃO Com selecção de textos, tradução, introdução e aparato crítico de Pinharanda Gomes, apresentam-se os textos integrais dos filósofos pré- -socráticos e suas diferentes escolas: a Cosmogonia remota, as Escolas J ónica, Itálica, Eleática e Abderítica, a Sofística. GUIMARÃES EDITORES FILOSOFIA GREGA PRÉ-SOCRÁTICA Quando a moderna divulgação científica afirma que a vida nasceu do mar, está longe, ou perto, da filosofia grega que, na água, situava a origem de toda a existência? Que tem a sabedoria grega pré- -socrática a ver com a civilização e a cul- tura contemporâneas? Houve um progresso real e efectivo quanto ao conhecimento dos primeiros princípios, ou, tudo o que acerca deles sabemos já se encontra enunciado na filosofia pré-socrática? As interrogações eleáticas sobre o princípio, a origem, o processo e os fins universais já foram solvidas pelo progresso científico? Que sabe o homem contemporâneo, a mais do que Zenão, sobre a realidade do pensamento e do movimento? Esta selecção de textos não deixará de provocar um clima de fecunda perplexi- dade. COLECÇÃO FILOSOFIA & ENSAIOS FILOSOFIA GREGA PRÉ-SOCRÁTICA PINHARANDA GOMES QUARTA EDIÇÃO · GUIMARÃES EDITORES • LISBOA COLECÇÃO FILOSOFIA E ENSAIOS FILOSOFIA GREGA PRÉ-SOCRÁTICA 1.a edição- Janeiro, 1973 2.a edição -Abril, 1980 3.a edição- Novembro, 1987 4.a edição- Outubro, 1994 FILOSOFIA GREGA PRÉ-SOCRÁTICA PINHARANDA GOMES QUARTA EDIÇÃO LISBOA GUIMARÃES EDITORES 1994 SUMÁRIO NOTA À 2. a EDIÇÃO 9 PREFÁCIO 11 INTRODUÇÃO I. A leitura 17 II. As fontes documentais 22 III. Perspectiva histórico-filosófica 27 1. A cosmogonia remota 28 2. A escola jónica 34 3. A escola itálica 47 4. A escola eleática 54 5. A escola atomista 64 6. A sofística 69 IV. Síntese final 77 V. Bibliografia 79 FILOSOFIA GREGA PRÉ-SOCRÁTICA (Textos) 83 I. A cosmogonia remota 8 5 1. Homero 85 2. Hesíodo 88 3. Orfismo 90 4. Os sete sábios 93 II. A EscolaJónica 99 1. Tales de Mileto 99 2. Anaximandro de Mileto 102 3. Anaxímenes de Mileto 104 4. Anaxágoras de Clazómenas 106 5. Arquelau de Atenas 113 6. Heraclito de Éfeso 114 7 Diógenes de Apolónia 126 III. A Escola Itálica 131 1. Ferécides de Siro 131 2. Pitágoras de Samos 132 3. Empédocles de Agrigento 137 4. Alcméon de Crotona 155 5. Filolau de Crotona 158 6. Eurito de Crotona 162 7. Arquitas de Tarento 163 IV. A Escola Eleática 167 1. Xenófanes de Cólofon 167 2. Parménides de Eleia 172 3. Melisso de Samos 180 4. Zenáo de Eleia 183 V. A Escola Atomista 187 1. Leucipo de Abdera 187 2. Demócrito de Abdera 188 VI. A Sofística 213 1. Protágoras de Abdera 213 2. Górgias de Leontinos 217 3. Pródico de Ceos 222 4. Hípias de Élis 226 Glossário e Índice dos Principais N ornes Próprios citados no Texto 229 I r NOTA A 2.a EDIÇAO Q uando, em janeiro de 1973, Guimarães Editores publi-cou a Filosofia Grega Pré-Socrática, o leitor era colocado perante a primeira tentativa de criação de uma obra do género elaborada no nosso país, e por um autor português. Patentes, nela, as virtudes e os defeitos, a crítica mais escla- recida, algumas vezes colaborante e útil !I), soube dizer de sua justiça. E, quando assinalou as deficiências, não deixou de reco- nhecer o esforço que a obra constituía, já como devoção traba- lhosa do autor, já como risco do editor. Não pudémos, aqui, como noutros escritos nossos, aceitar sem íntima discussão os contributos da crítica; mas não hesitá- mos em introduzir aqueles que nos pareceram razoáveis. Esta nova edição não é um novo livro. É o texto da I. a edi- ção, com algumas significativas variantes, resultantes de cortes e de acrescentos, de clarificações e de ajustamentos, o que, tudo junto, de modo nenhum altera na essência a perspectiva inicial. Quanto a esta, estamos certos de a ter mantido, porquanto o modificado se situa mais no domínio do acidental do que no domínio do principia!. (1) Cumpre-nos mencionar, entre outras críticas, as de Carlos Alberto Louro da Fonseca (Humanitas, XXIII-XXIV, 574-77), António Martins (Rev. Port. de Fi/., Sup. Bib., n.0 55, 274), ]. Barata-Moura (Didaskalia, III, 1, 1986-98), Maria Emília Sal e ma (Diário de Notícias, 6-9-1973), P. Dias Palmeira (ltinerarium, 84, 223) e António Quadros, (Diário Popular, 22--3-1973). Entretanto, o país terá sido enriquecido com obras equiva- lentes, mormente traduzidas de uma que outra língua viva. O facto é vantajoso, porque a opção não se faz sem escolha, e a escolha não se faz sem variedade. Quanto a nós, resta a garantia de esta ser, com todas as pos- síveis limitações, a nossa, e não de outro, «filosofia grega pré- -socrática>>, que o público, de uma forma geral, distinguiu. PREFACIO E m modo prefocial seja-nos permisso apresentar esta edição antológica da filosofia grega pré-socrática, e justificar alguns pontos de relevo sobre a matéria versada. Motivar a edição por causas extrínsecas, eis o que se nos afi- gura prescindível, porque, já na faculdade, já no seminário, muitos assumem a tarefo de ensinar a filosofia pré-socrática, nos currículos que pedem tal ensino. A inexistência, ou a limitada existência, de bibliografia portuguesa sobre o tema (louvor se presta, por devido, à professora D. Maria Helena da Rocha Pereira, de Coimbra, e ao professor Gerd Bornheim, do Brasil, a quem se devem peculiares manuais didácticos, de cuja valia nos não cabe ajuizar!) ndo demonstram que a filosofia pré-socrática seja ignorada; quando muito, podem servir de argumento proba- tório à tese que afirma haver, desde longa data, neste país, um profimdo desinteresse pela filosofia como pura filosofia, mesmo quando se julga que, saber de filosofia, é saber da sua história. Sem dúvida, a filosofia não é uma arte profona, e torna-se igualmente duvidoso saber o que pode ensinar-se, se a filosofia, se a arte de filosofor, se a mera história da filosofia. Por tal motivo, enquanto o movimento editorial se desenvolve no fomento de edições respeitantes às categorias do saber, a filosofia implica problemas de vária ordem, dos quais, e não o menor, será o da comunicação, que se resume genericamente ao seguinte: a) a filo- sofia deve ser posta à disposição de todos, transferindo o ensino 12 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA das aulas, ou o <<private tuiton», para os livros, que se oferecem à compra do grande público? b) no caso de ser posta ao dispor comunitário, qual a forma apropriada de expressar e de comuni- car o pemamento filosófico? Assumindo que a filosofia não se destina a todos, mas assu- mindo, também, que todos podemos ensaiar o acesso à filosofia, forçosamente se devém para o segundo termo do problema qual seja o de encontrar uma veiculação que se ajeite à eventualidade dos leitores, e à seriedade do tema. Quando se publica um livro, visa-se principalmente uma expressão comunicante e comunicável. Tal regra nos orientou na feitura da presente antologia, que, por isso, não surge, nem para disputar a dificuldade da erudição estabelecida, nem para fran- quear a facilidade da ignorância acossada. A liberdade, outra designação para a temperança, continua sendo o meio termo entre a avareza da erudição e a carência da ignorância. Dos que desejam aprender, um buscam a escola, outros os livros. Ou o aprendiz vai à escola, ou o livro vai ao aprendiz, de onde o viso desta edição se tornar evidente e justificado. Em face do que, gostaríamos de sublinhar algumas características da obra, características essas, que desejaríamos ver olhadas como causas de possíveis benefícios.Em termos de utilização, as antolo- gias deste tipo não se distinguem umas das outras, a não ser pelos benefícios que oferecem. Das características técnicas, diremos o seguinte: I. O leitor fará o favor de entender que projectámos uma antologia filosófica, não uma antologia científica. As fontes de que nos servimos, quer como fontes básicas, quer como fontes consultivas, eram abundantes em doxografia, de que s6 recolhe- mos parte. Quanto à ordenação, achámos por bem seguir a prática adoptada em manuais divulgativos publicados em outros países, para fins didácticos, respeitando a numeração estabelecida por Diels, 8. a edição (1956), com excepção do referente à Sofística e FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 13 às notas biográficas e doxográficas, onde adoptámos a nossa pró- pria numeração. Sem prejuízo da necessária consulta da obra de Diels, sem- pre que as circunstâncias o peçam, teve-se em mente facilitar aos estudantes uma refirência para exercícios de menor responsabili- dade, tanto mais que se admite que, em trabalhos de maior res- ponsabilidade, o estudante não deixará de consultar, ou Diels, ou Mullach, consoante a orientação que lhe for proposta. 2. Por via de regra, cada autor encontra-se representado com a biografia, uma doxografia e os fragmentos. Por biografia, entenda-se um mínimo de informação sobre a vida e as obras, retirada de fontes antigas, devidamente refi- renciadas. Por doxografia, entenda-se um mínimo de opiniões atri- buídas aos autores, também refirenciadas a fontes antigas. Por fragmentos, entenda-se a totalidade dos mesmos, atri- buída à autoria dos pré-socráticos antologiados. 3. As fontes vão, por via de regra, citadas na íntegra a menos que, no sentido de evitar frequentes repetições, se haja adoptado uma ou outra sigla. Esse critério foi adoptado para «D.L.» (Diógenes Laércio) e para a sua obra Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos, e para <<Aécio>>, cuja menção significa encontrar-se em refirência a sua obra Opiniões. No mais, e que tenhamos visto, efictuou-se sempre a inte- gral citação das fontes, incluindo as numerações dos livros, capí- tulos, partes, e nomes dos autores. 4. Para facilitar a arntmação de materiais, e para evitar capítulos à parte, os apotegmas dos Sete Sábios vão abusiva- mente incluídos no 1. 0 capítulo. 5. Os nomes citados nos textos aparecem, por vezes, comen- tados em rodapé, mas a maior parte foi remetida para um índice final, onde a consulta se torna funcional. 14 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA Qualquer explicação, apenas em referência a nomes signifi- cativos, pode ser procurada na tábua onomástica final. Pareceu-nos sensato evitar a sobrecarga de notas comentarís- ticas ao texto. O leitor erudito prescinde de tais notas e, quanto ao leitor médio, não se sentirá inibido de efectuar uma leitura tanto quanto possível linear. 6. Quanto à tradução em geral: salvo no primeiro capítulo, pareceu-nos mais consentânea com as realidades a versão em prosa. Embora a filosofia não tenha de ser obrigatoriamente comunicada em prosa, o formulário poético, com seus correspon- dentes atavios, dificulta a linear leitura das ideias; por outro lado, a relação entre os ritmos poéticos gregos e portugueses ofe- rece dificuldades várias a quem falece a impiração rítmica. Quanto aos onomásticos, procurámos respeitar as normas do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências. 7 Uma palavra de referência ao aparato introdutório, através do qual, de forma nenhuma, se pretende evitar a leitura fimdamental dos textos. A Introdução visa apenas, por um lado, a respeitar o cos- tume de apensar tal aparato às obras antológicas e, por outro, tentar discernir algumas motivações, constantes e variantes, na unidade pluralizada da filosofia grega pré-socrática. O leitor menos afeito ao tema poderá, se quiser, e sem o pre- conceito de acatamento das opiniões do introdutor, passar uma vista de olhos ao que na introdução se escreve. Em todo o caso, uma leitura viva e vivenciável será a que o leitor efectuar, des- prevenido da norma alheia. 8. Enfim, tentámos restringir a enorme gama de bibliogra- fia consultada a uma selecção bibliográfica, cujo conhecimento se tornará mais acessível. As espécies constantes da nossa Bibliografia remetem, por norma, para outra, e esta para outra, ainda. O leitor que procure a leitura suficiente e fimcional, jamais a leitura adiposa e infuncional, pois, como antes afirmá- FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 15 mos, o livro vale pelo beneficio, em primeiro lugar, e só pelas características, em segundo lugar. 9. Uma palavra de agradecimento para quantos, em avisos e sugestões, nos ajudaram a completar este trabalho de quase três anos, realizado a intermitências com outras tarefas. Uma obra que se publica é um risco que se corre, e a firmeza que os livros oferecem, mesmo quando muito valiosos, é problemática. Que o saber firme, só no firmamento! E porque, se for para bem, a graça lhes retribuirá e, se for para mal, teriam de ser envolvidos no processo, o autor pede licença para omitir os nomes de quantos o ajudaram. A glória que lhes advém de suas obras, nunca seria aumentada com a pobreza das palavras de quem lhes deve a gratidão. INTRODUÇÃO I. A LEITURA A s leituras são objectivas e subjectivas. Por exemplo: se lermos o teorema de Pitágoras, havemos de o fazer objectivamente, queiramos ou não queiramos, porque a sua formulação é limitada, isto é, enuncia-se e determina-se num conjunto de postulados apriorísticos, que impossibilita uma outra interpretação que não seja a literal e figurativamente contida no teorema. Tomemos, ainda, o conceito de triân- gulo, e veremos como a leitura da palavra, que contém esse conceito, só permite ser lida como triângulo, ou algo que se determina na convergência de três ângulos. Agora, se lermos o substantivo caos (xáoç), eis que essa leitura se prefigura logo em toda a subjectividade, e tanto o podemos interpretar na forma habitual de desordem, como noutros sentidos, em que se intuirão conceitos de vazio, de não-ser, de i/imitação, de origem, de envolvência esférica, etc., conceitos que apare- cem de modo mais ou menos intermitente e permanente, na generalidade da filosofia grega pré-socrática. A filosofia pré- -socrática não pode ser lida pelas mesmas regras pelas quais efectuamos a leitura de filosofias mais próximas da nossa geração. Porque, enquanto a leitura da filosofia próxima assenta nos subsídios exegéticos de uma tradição estreita- mente unida a nós, a leitura das filosofias remotas oferece inestimáveis dificuldades, pois, embora sendo exacto poder- mos ler o que os remotos escreveram, já é menos exacto que 18 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA estejamos em posição de ler qual o que foi escrito, pois, no bulício da história, se perderam, sem dúvida, as rigorosas ele- mentaridades que nos permitem predeterminar, e determinar, a verídica substância do que foi escrito. A profunda e íntima cópula da filosofia e da filologia oferece-nos com liberalidade o juízo de relacionarmos o que se encontra escrito com o que, nisso que se encontra escrito, julgamos pensado. Mas, pese a efectividade lógica e gnoseológica da cópula filosofia/filolo- gia, essa relação pode exigir, ou não, um testemunho escritu- rístico e, caso este exista, nós podemos saber, ou não, qual o efectivo significado daquilo que, na escritura, se nos oferece, justamente porque a semântica altera os conteúdos e corre- mos, portanto, o risco de lermos os pré-socráticos pensando estar a ler o que eles escreveram, sem termos a garantia de saber o que eles efectivamente pensaram. Ou seja, a filosofia pré-socrática é para cada um ler segundo as suas interiores virtualidades, ou para todos assentarmos, em forma de dogma, que só podemos ler oque neles foi dado como escrito? Consabidas as enormes gamas de colorações conceptuais que o filósofo põe em cada conceito principiai da estrutura filosófica por ele criada, como podemos nós, à distância, quase utópica e quase ucrónica, saber se o conceito de apeiron devido a Anaximandro, consiste, com rigorosa justeza, nisso que os leitores julgamos? Trata-se de um conceito de «iiimitaçáo», sem dúvida, mas a que se refere tal ilimitação, ou, como a vamos en- caixar, com lógica e certeza, no esquema da filosofia de Anaximandro? De resto, as anteriores dúvidas colocam-nos em face de algumas dificuldades gnoseológicas, quais as preditas por Aristóteles (ll relativamente ao conhecimento nominal e con- <ll Segundos anallticos, I, 1 , 1 O. FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 19 ceitual. A leitura dos textos pré-socráticos, e dos textos anti- gos em geral, efectua-se muito mais a partir do conhecimento nominal do que do conceptual, ou seja, lemos as palavras sem absoluta garantia de que tais palavras signifiquem com exacto rigor - qual da imagem de um objecto no espelho- o con- ceito que julgamos. Vertendo de novo à facilidade do exem- plo, tomemos o conceito de apeiron (andpov) , especulado, ou pelo menos intuído, por Anaximandro. Quem de verdade sabia o conteúdo do conceito era Anaximandro e, depois dele, os discípulos que dependiam do seu magistério, Anaxímenes incluído. Todavia, a tendência para a dialéctica conceituai, em grupos animados pelo ardor da especulação filosófica, é naturalmente a de sujeitar os conceitos principiais à análise especulativa e à síntese teórica, de onde se tornar legítimo conjecturar se o conceito de apeiron é, para o seu intuidor, algo de bastante diferente da forma como se apre- senta para os seus discípulos, ou estudiosos. Demais, e como veremos adiante, cada escola assume um esforço de especula- ção sobre as origens, e, conquanto a estrutura nominal de cada escola se diferencie com certa largueza, importa assinalar que a especulação sobre as origens se apresenta como orienta- ção capital em todas as escolas, sem excepção. Acrescentemos o facto de existir uma íntima relação, uma aguda osmose, entre o saber das várias escolas, de onde se poder conjecturar que os principais conceitos de cada escola se encontram muito mais próximos dos conceitos de outra do que na apa- rência se julgará. De onde se indagaria qual a relação concep- tual existente entre os conceitos de arké (áPXfJ) e de apeiron (lmdpov), isto é, se a formulação de um não dependerá subs- tancialmente da formulação do outro, e se, para os seus cria- dores, eles não constituiriam nominações diferenciadas de uma mesma ideia, ou uma diversidade de nomes para uma universidade de conceito. 20 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA Parece difícil, sem dúvida, comunicar ao leitor esta reali- dade: o que temos dos pré-socráticos é um conjunto de textos por via de regra em segunda mão. Para além da distância espacial e temporal, que nos inibe de perguntar a um pré-socrático o que pretende dizer com esta ou aquela palavra, existe ainda a deficiência, provinda de os textos disponíveis haverem che- gado, até nós, através de uma infinidade de mãos, as quais nem sempre representaram um pensamento de fidelidade ao magistério dos pré-socráticos e que, na maior parte das vezes, os pretendem e desejam ultrapassar, sobretudo quando as doutrinas emergentes na história posterior afirmam teses de algum modo susceptíveis de conflito com as teses pré-socráti- cas. O conhecimento, mesmo sucinto, das fontes para a filo- sofia grega pré-socrática, bastará para nos pôr de sobreaviso e para tomarmos o cuidado de modestamente assentarmos em que talvez exista uma filosofia pré-socrática real- a que exis- tiu ali, e então- e uma filosofia pré-socrática ideal, esta que ousamos perceber, sem absoluta certeza de a entendermos. Há textos para percebermos; por saber fica se os podemos de facto entender como os entenderiam, já os autores, já os dis- cípulos. Além do mais, e este elemento não é mero pormenor, importa considerar o conhecimento fragmentarístico da filo- sofia grega pré-socrática. A ordenação dos fragmentos é muito posterior aos autores, e o próprio conceito de «pré- -socrático» constitui algo que não foi afirmado pelos que esta- vam antes de Sócrates, mas pelos que vieram depois, e muito mais tarde. De certo modo, parece lícito admitir que a leitura possível da matéria filosófica em causa é apenas a leitura que os grandes investigadores, historiadores e reconstituidores, sobretudo germânicos, fizeram dela. A convicção formal com que lemos essa matéria depende, em última análise, não da certeza de que dispomos quanto à autenticidade da matéria, mas do apreço devido a quem, através de lutas e de lúcida FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 21 visionação, procurou dar equilíbrio lógico e consequente ao que, até aí, se afigurava apenas potencial e antecedente. Melhor: a leitura da filosofia grega pré-socrática, ou se faz de um ponto de vista historicista (e nada nos garante que a his- tória dela seja qual a que julgamos ser. .. ), ou se faz de um ponto de vista filosófico, isto é, a partir do modo como somos e como pensamos, a partir daquilo que se nos oferece pensar. A motivação intrínseca e extrínseca que nos acompanha na leitura, hoje, é concerteza algo diversa da motivação com que um Eusébio efectuava a sua própria leitura; e, mais, a lei- tura que neste momento se efectua, ou que qualquer de nós pode efectuar, apresenta-se concerteza já diversificada da modística que um Diels teria adoptado para intrínseco conhecimento da história e da filosofia dos pré-socráticos. Um exemplo característico surge no caso da filosofia contida na cosmogonia e na cosmologia órficas. Até que ponto a autenticidade órfica chegou até nós? Até que ponto o julgado segundo as motivações poéticas e filosóficas do orfismo não constitui, em última análise, uma excrescência tardia, surgente na mistura histórica do orfismo com outras mitologias, até, com a nascente e forçante teologia da patrís- tica e da gnose? Outro caso se consideraria, quanto ao pitagorismo: que é pitagórico, de Pitágoras, que é pitagórico, de seus presumíveis discípulos, que é pitagórico, formulado e acrescentando em gerações mais tardias, se, no regime de seitas e de correntes grupais de opinião, se encontram motivações pitagóricas a cada passo da história, no conserto cultural mediterrânico? Cremos existir um abundante grupo de dificuldades que importa reter e que, por isso, nem sempre a percepção e o entendimento que houvermos da matéria discursada se ade- quará inteiramente à percepção e ao entendimento de quem primeiro a discursou. 22 FILOSOFiA PRÉ-SOCRÁTICA O que acima se encontra explanado leva para uma con- clusão, muito menos hipotética do que aparenta, qual seja a de ficarmos a saber o seguinte: que a filosofia grega pré-socrá- tica que sabemos é, afinal de contas, a filosofia que o pós-socra- tismo julga constituir o pré-socratismo. O que pede uma leitura tllosófica, de preferência a uma leitura histórica, ou uma leitura mais especulativamente do que retentivamente efectuada. As fontes são o que nos per- mite saciar o que do entendimento queremos, mais do que da história abarcamos. II. AS FONTES DOCUMENTAIS Textos completos de filósofos gregos só os possuímos depois de Platão e de Xenofonte. Antes deles, nem mesmo Sócrates, se na verdade chegou a escrever, logrou atingir a posteridade com um testemunho directo e insuspeito, isto é, sem a forma que ao seu luminoso pensamento teria sido mol- dada, por discípulos e comentadores. Em todo o caso, e na medida em que houvermos presente a excepcional dimensão da obra platónica, certamente poderemos conceder que, mais ou menos objectivamente, os tópicos principais da filosofiasocrática nos foram transmitidos com suficiência e clareza satisfatórias. Se não ousarmos distinguir entre um Sócrates real (o que ele na verdade foi) e um Sócrates histórico (o que nos foi dado entender segundo Platão), teremos assente que, embora indirectamente, é a partir de Sócrates que dispomos de um conhecimento, tanto quanto historicamente possível, global, da filosofia clássica dos gregos. O mesmo se não adiantará quanto a tudo o que se pas- sou antes de Sócrates e, por isso, o primeiro argumento, de carácter historicista, que delimita um período pré-socrático, consiste na discutibilidade do noticiário referente a esse FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 23 período. Claro, outros argumentos, e de maior peso, justifi- cam a designação de «filosofia pré-socrática>> e, entre eles, teríamos de salientar o argumento crítico, segundo o qual esse período teria sido dominado pela temática e pela proble- mática do conhecimento da natureza e do cosmos, sem o conhecimento, aristotélico, da Causa Primeira. Relativamente ao Ocidente o período pré-socrático constitui como que o abismo, a fundura, onde lançam raízes todas as posteriores incursões filosóficas do espírito europeu. Parafraseando Hesíodo, bem poderíamos dizer que, antes da Filosofia, tal como a concebemos em nossos dias, era uma apetência ino- minável que para ela tendia, uma espécie de caos a que suce- deu a terra, ou uma fatigante busca dos princípios, que ori- gina toda a sistemática moderna. Das escrituras dos pré-socráticos, que as houve, chega- ram-nos ecos, mas não só ecos, vozes também, e reais. Uma sólida reconstrução da cultura grega tem convocado muito das grandes disponibilidades da história da ciência e da filoso- fia, por ser exacto que a atenção prestada ao pensamento pré- -socrático pelos primeiros padres da Igreja, atenção que per- manece, embora delida, ao longo do tempo, ressurge em apropriada dimensão nos países renancentistas, de onde, até agora, a reconstrução do pré-socratismo ter assumido carácter de permanência. Tal reconstrução exige fontes documentais, que existem, sem dúvida, e a sua imensa variedade (já estudada por notá- veis investigadores, entre os quais seria injustiça não salientar quantos alemães, desde o século XIX, se lhe têm entregue), constituiria matéria bastante para cometimentos bibliográfi- cos que, neste ensejo, melhor será deixar ao cuidado dos bibliógrafos (1). lll Francisco Luis Leal, História dos Filósofos Antigos e Modernos, II (Lisboa, 1792), traduz e comenta alguns excertos pitagóricos e pré- -socráticos. 24 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA Para os reconstrutores do pré-socratismo, todas as fontes eram imediatas, ou seja, todos os textos de que se serviam se encontravam mais próximos, no tempo e no espaço, dos pen- sadores gregos pré-socráticos. Indubitavelmente que, uma vez as tarefas principais da reconstrução efectuadas, passámos a dispor de mais cómodos veículos de acesso à filosofia pré- -socrática, e, por via de regra, o estudioso médio não carece de um contacto directo com as fontes mediaras, pois as fontes imediatas proporcionam já, na actualidade, uma ampla visão das determinações filosóficas dos pré-socráticos. No sentido de proporcionar uma visão indutiva desta reconstrução, importa enumerar, em primeiro lugar, as fontes documentais mediatas, ou seja, essas de que ac,tualmente dis- pomos para um acesso rápido à filosofia pré-socrática. Tais fontes documentais são geralmente constituídas, ou por recompilações maciças, ou por recompilações antológicas, ou por monografias, ou por outras variedades de estudos, nas quais se permite um contacto, ou com um, ou com a maioria (ou com todos!) dos pré-socráticos. Julgamos que, no entanto, cerca de meia dúzia de fontes mediaras nos habilitará a esboçar uma imagem generalizada do esforço levado a cabo para a reconstituição da filosofia pré-socrática. Entre as várias recompilações, apraz-nos citar as seguintes, por via de regra tidas por exemplares: Burnet, J. - Early Greek philosophy, 4.a edição. Londres, 1930. Diehl, Ernst- Anthologia Lyrica graeca. Leipzig, 1942. Diels, Hermann- Doxographi graeci. Berlim, 1878. Diels, H. - Poetarum philosophorum fragmenta . Berlim, 1902. Diels, H. - Die Fragmenta der vorsokratiker, 8.a edição, Berlim, 1956. Kern, I.- Orphicorum fragmenta, Berlim, 1922. Mullach, A. - Fragmenta philmophorum graecorum, 3 volu- mes, Paris, 1860-1881 . FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 25 Em segundo lugar, faremos uma breve e sumária enume- ração das fontes imediatas, nas quais os modernos recompila- dores, sobretudo Mullach e Diels, se basearam, para realiza- ção das suas monumentais e modernas obras. As fontes documentais imediatas são classificadas em função dos critérios dos historiadores e exegetas. Com res- salva por outras opiniões, pareceu-nos que as poderíamos agrupar em quatro espécies, a saber: 1. A tradição dos debates filosóficos, em que, filosofando, alguns pensadores efectuaram resumos dos seus predecessores, resumos esses formulados, ou no sentido polémico, ou no sentido apologético. Aristóteles, em muita da sua obra, e designadamente em Física, De Coelo e Metafísica, oferece fre- quentes resumos das principais teses de alguns pré-socráticos, com o intuito de as rebater, ou de as reformular. O mesmo ocorre em considerável parte dos diálogos de Platão, de quem se citaria, a título de exemplo, os diálogos Parménides (impor- tante para o conhecimento da doutrina de Parménides e de Zenão), O sofista (importante quanto a Empédocles e Heraclito), o Pedro, etc, bem como na obra de Plotino. Mesmo admitindo que tais resumos, por vezes sucintos, pequem por certa parcialidade do relator, na medida em que, já Platão, já Aristóteles, assumiam posições controversas rela- tivamente às teses resumidas, tais resumos facultam uma importante aproximação ao pensamento pré-socrático, na medida em que são, aliás, ai primeiras e mais imediatas fontes disponíveis. 2. A segunda espécie é constituída por exposições. Obras tardias, algumas delas derivadas do influxo que o liceu aristo- télico exerceu nas artes de investigação e recompilação, já na ciência, já na história, representam uma fonte abundante de materiais doxográficos. A gama de exposições é vasta e, só a título de exemplo, consideraremos as seguintes: 26 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA Opiniões (Vetusta placita), de Aécio; Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos mais ilustres (IlEp( ~lWV ÕOy!J.Ú'tWV XUl ànmp8EÚ!J.Ú1:WV núvw cplÀ.ooocpCa ÉuÔOXl!J.Y]Oávwu), de Diógenes Laércio; Miscelâneas (IIEpl 1:wu ápoxó1:wv cplÀ.ooócpmç cpumxwv õoy!J.ácwv), de Pseudo- Plutarco; Éclogas físicas ('Exf....oym), de Estobeu; e, enfim, a Doutrina dos físicos (<l>umxwv õo1;m) de Teofrasto, que parece consti- tuir a fonte primeira de todas as demais doxografias citadas, as quais vieram a ser posteriormente utilizadas, já pelos filóso- fos, já pelos padres da Igreja, já pelos que, até ao apareci- mento da ciência moderna, se guiaram pelo saber pré-socrá- tico em matéria científica. 3. A terceira espécie consiste em imensa variedade de comentarística e de doxografia, atribuída a comentadores e a filósofos subsequentes. Tornar-se-ia moroso enumerar quan- tos, desde Platão a Cícero, de Aristóteles a Marco Aurélio, e aos Estóicos em geral, comentaram e glosaram as fontes pré- -socráticas. Mas, entre tantos, seria falta maior não citar o Contra os matemáticos (ou professores), (Adversus mathematicos), de Sexto Empírico, e bem assim, o Comentário, de Simplício. 4. Enfim, referência à patrística que, no âmbito da aurora do cristianismo, observou, com rigor, umas vezes, com paixão ardente, outras, a sabedoria pré-socrática. O Contra ]ulianum, de Cirilo, a Stromata, espécie de miscelânia, devida a Clemente de Alexandria, a Preparaçãoevangélica (Praeparatio evangelica), de Eusébio, a Refutação de todas as heresias ('Ef....Eyxoç xa1:á napwv aL"pf:mwv), de Hipólito, obra anteriormente dada à autoria de Orígenes, sob o título de Filosofoumena (<l>lÀ.oooyoiJ!J,EVa), bem como as obras de Justino, de Orígenes, de Hermias, e outros, foram documen- tos gráficos muito importantes na tarefa de reconstrução do pensamento pré-socrático, e permitiram que nós soubéssemos FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 27 pelo menos o que, no seu tempo, era havido como o con- junto mais significativo das teses pré-socráticas. Bem se poderia afirmar que as fontes mencionadas, como as muitas omitidas, são os olhos pelos quais a história lê o pré-socratismo. III. PERSPECTIVA HISTÓRICO-FILOSÓFICA No princípio era Homero, ou, como dizia Xenófanes, «desde o princípio todos aprendemos em Homero» - o que seria convertível à regra de que, no princípio, foi a poesia! Mas a poesia e a filosofia andam tão estreitamente vincu- ladas uma à outra, que se torna difícil efectuar uma diferen- ciação, ao menos antes de Anaximandro, que foi o primeiro a escrever em prosa, pois o logos (f..àyoç) tanto designa o dis- curso poético com a razão intrínseca ao discurso poético. A noção criacionista, interposta na relação do logos para a poesia (:n:o(YJOLÇ), surge como a primeira congenital capaci- dade de espanto do homem, face a esse sentir-se a si mesmo, e, mais, a esse sentir-se na envolvência de uma natureza cujos fenómenos se tornam bem evidentes, é certo, mas que esconde a profundeza da razão de ser, parecendo que ela mesma, natureza, aparece aos homens, não segundo a intrín- seca realidade, mas como textura de símbolos, que o logos tem de interpretar. Mais tarde, logos sofre as alterações resultantes da evolução cultural, e, se por um lado continua designando o pensamento do ser, por outro passa a designar o discurso prosódico, por oposição a epos (É:n:oç) e a meios (f.tÉÀ.Óç), que se afirmam como termos designativos das espécies puramente poéticas. Em todo o caso, o que importa assinalar é a capaci- dade de espanto em face da mundividência, sem cujo espanto a poesia e a filosofia certamente não seriam possíveis, nem como exercício filológico, nem como opção filosófica. 28 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA Na confluência das culturas originárias do Oriente, da Caldeia e da Suméria, do Egipto e de Creta, a pura vivência acrescenta-se também aos dados formulados na textura da sapiência, ou seja, a vivência natural enriquece-se de contri- butos culturais. As artes e as técnicas, as ciências e as letras, as religiões e as políticas, adicionam-se de forma sincrética ao simples facto de estar vivo. Ser e pensar funcionam concomi- tantemente: o ser a si mesmo se afirma como o que pensa e como o que, pensando-se, se atribui uma realidade funda que, sem pensar, não ousaria possuir. Então, o homem surge como a expressão natural em que as categorias do ser e do pensar se imbrincam de tal maneira, que, se é homem, pensa, e que, se não pensa, não é homem. . 1 -A COSMOGONIA REMOTA Ora, a dignidade com que os gregos se assumem homens é a nota de maior relevância nessa obscura idade em que, absortos nos vales, se perguntariam o que eram eles, onde estavam, qual a origem, ou princípio, de tudo isso, e a quanto montava o mundo para além dos vales. Haviam de subir às montanhas, perscrutar os horizontes, meditar, indagar, revul- sionar a cabeça e o coração, ou, enfim, tentar obter uma res- posta satisfatória aos quesitos de Édipo, um mito que, desde muito cedo, nos põe em contacto com a energia que deter- mina o milagre da filosofia grega: a capacidade de interrogar, a persistência em face do enigma, o culto do mistério, o átrio de todo o possível descobrimento. Interrogar o princípio e a origem é o que de forma mais instante se nos dá a ler nos gregos. Que sabiam eles? Teogonia, cosmogonia, ou antropogonia? Onde o princípio, onde a origem? Dilucidar o processo de como os gregos chegam mais depressa à teogonia do que à cosmogonia seria pretensão FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 29 estulta neste lugar, mas talvez importe assinalar a dúvida: se eles não chegaram à teogonia, porque de muito cedo antro- pomorfizaram as ideias e as imagens do conhecimento, isto é, se de muito cedo intuíram o mundo como algo à semelhança do homem, de onde a personalização das divindades e das infernidades, a nominação quase antroponímica que a todo o momento assalta as suas vivências e determinações gnoseoló- gicas? Em certa medida, o homem é, com a terra, os astros, as águas, personagem da mesma e única cena, onde os compar- sas se mascaram de formas diferentes, para efectivação do jogo telúrico. E do celígeno também! Então, a teogonia é, em certa medida, uma antropoteogonia! Em Homero se encontram as remotas e poéticas noções das disponibilidades gnoseológicas dos gregos. Torna-se arris- cado optar pelas soluções radicais de saber se a cosmogonia homérica deve ser lida literalmente, ou se deve ser lida mito- graficamente para, sob os mitos, se descortinar o que ele pre- tendia dizer. Mas o estado da ciência grega parece não ofere- cer, ao tempo da sabedoria homérica, uma distinção entre o saber mítico e o saber sófico, pois, na verdade, se imbricam um no outro, e o mito (!A'Ü8oç), ou conto, que se conta, é o veículo pelo qual se comunica o mesmo saber sincrético, em que a razão se persuade a significar, sob os nomes e sob os contos, a íntima realidade de quanto é, e de quanto existe. Teogonia e cosmogonia são as duas contemplações da cosmogonia remota, e a vidência que de Homero se des- prende é predominantemente telúrica, tal como nos precur- sores da primitiva cosmogonia filosófica, ou cosmologia. A riqueza com que Homero descreve o escudo de Aquiles (!fiada, XVIII, 478-608) permite-nos observar o estado da cosmogonia à data de Homero: «Cinco eram as camadas que dispôs, e em cada uma delas I compõe lavores numerosos, com seus sábios, pensamentos. I Forjou lá a terra, o céu e o mar /o sol infatigável e a lua na plenitude I e ainda quantos 30 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA astros coroam o céu» 01 • A importância da motivação poética de Homero reside em que ela se compõe de motivos míticos, históricos, e principalmente naturais, ou retirados da natu- reza. A terra surge como a origem, <<a sólida mãe de todas as coisas, a mais antiga». Em toda a vida existe a pujança do oceano, o suporte da terra. Oceano, a terra, o firmamento, a noite e o dia- o tempo em suas fases cíclicas - são, enfim, o claramente visto que a cosmogonia remota sabe, porque vê. A cosmogonia homérica, tanto quanto a de Hesíodo, encon- tra-se incapacitada para formular explicações racionais dos fenómenos - de onde a cosmogonia remota tem mais importância, pelo que o seu carácter descritivo nos permite conjecturar: o grego espanta-se e admira-sé. Descreve isso perante o que se espanta e se admira. Omite o discurso lógico explícito mas, na própria forma como descreve o que vê insere, ou implícita, uma lógica explicitação das causas e dos processos. Se a cosmogonia é uma tentativa para sistematizar toda a mítica relativa à natureza visível, a teogonia é outra tentativa, essa para sistematizar todas as histórias dos deuses <21 - ou toda a mítica relativa, não só à natureza visível, mas também à invisível, de onde a conspícua importância que Hesíodo, com o respeito devido à estética de Homero, assume, para quem deseje aprofundar o mistério, ou o enigma, do saber grego. Algo de diverso acontece em Hesíodo, relativamente a Homero. Verifica-se um aprofundamento das perspectivas originais, a teogonia obriga a saltar um pouco para fora da cosmogonia, de onde se predizer que a teogonia já constitui uma transição para a filosofia, ao menos na forma como viria a ser encarada, no subsequente cursoda história. Ol Tradução extraída de H é/ade (Coimbra, 1963), 34. <21 W. Jaeger, The theology of the ear!y Greek philosophers. FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 31 Da dimensionalidade perfeitamente telúrica lida em Homero, Hesíodo, catalogando a tradição homérica, as tradi- ções misteriosas dos santuários, as míticas hieráticas (tEpol, f...àym); assumindo o saber de que a cosmogonia era tão velha quanto a humanidade; Hesíodo alarga a genealogia cosmogó- nica para a dimensão teogónica, põe, antes da Terra, o Caos e, a seguir à Terra, a dynamis e a energeia de Eros, que é como que o laço que, dos fundamentos sólidos de quanto existe, fomenta a geração e a interminável sucessão de vidas, ou a força que, no dizer de um poeta mais tardio, Íbico, atira para «as redes intérminas de Cípria». O princípio da origem, ou o princípio da geração! As imensas e intermináveis motivações cosmogónicas e teogónicas de Hesíodo, por valiosas, não apa- gam a importância capital da introdução dos dois conceitos que julgamos mais relevantes na sua obra: a noção de Caos (xáoç) e a noção de Eros, (Épwç) as quais irão, num futuro próximo, constituir o ternário de superior realce em toda a subsequente filosofia. Porque, se o Caos, aqui dito como o abismo, já em si traz as potenciais noções de princípio - matéria original, espaço ilimitado, Deus! - então, teremos de verificar o significado da obra de Hesíodo para os poste- riores filósofos, e compreenderemos qual o motivo porque, lançado para outras perspectivas, e para outras dimensões de espanto filosófico (n:apàôo~ov) Heraclito afronta a influência de Hesíodo na cultura popular, achando-a altamente perni- ciosa. No entanto, o principal conceito de Hesíodo não podia deixar de ter algo de muito íntimo a ver com as perspectivas novas, determinadas por Heraclito. Entretanto, e apesar da notável redimensionação teogó- nica de Hesíodo, tudo leva a crer (embora se não possa garan- tir que a sua 8wyovLa é única, podendo ter havido outras) que a cosmogonia persistiu valorativamente sobre a teogonia, sendo óbvio o excesso de naturalismo no século VII, e, até, no século VI. Teria sido em vista deste excessivo naturalismo, 32 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA com tudo o que ele acarretaria de imanentismo e de potente materialismo, que, no século VI, se assiste a uma renovação da vida religiosa, destinada a abafar, na medida do possível, a vaga de naturalismo que, desde Homero, predominava na cultura grega. Certamente que havia práticas religiosas, mas encontravam-se algo destituídas de motivação intrínseca. A evolução cultural havia-se rotinado num saber incons- ciente, e o culto valia mais pelo aparato externo do que pelo teor significativo, uma vez o excesso de cosmogonia, em certa medida, atirar, para segunda instância, as exigências teogóni- cas. A natureza visível é mais patente do que a natureza inví- sivel, e entrar no templo do invísivel é correr o risco de defrontar o primeiro segredo do cosmos, ou o risco de pôr em causa a sistematização cosmogónica OJ. Mas foi pelos cultos cosmogónicos, qual o de Dionísio que, no século VI, cresceu de súbito, se derivou para uma mais fecunda teogonia, expressa na erupção de imensos cultos .locais e na veneração de mistérios antigos, caídos em desuso, entre os quais tiveram particular relevo os cultos purificató- rios, os ritos de purificação, os teletai (TEÀETat) de cujo sin- cronismo, e de cujo sincretismo, vem a surgir o orfismo que, apesar de todas as suas radicações cosmogónicas, se atira fran- camente para uma vivencialidade religiosa que implica com todos os costumes de seus prosélitos, a pontos de se constituir uma ~LOÇ, um modo de vida. O Caos de Hesíodo talvez apareça, no orfismo, desig- nado por Zeus, o «mestre do raio I o princípio e o fim I a cabeça, o meio, o pai do Universo I o ser masculino, a virgem imortal»: Zeus, a íntima união dos conceitos, que perfuram toda a problemática filosófica, pré e pós-socrática, o princípio e a ongem. c•J W. Jaeger, op. cit. FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 33 O orfismo deu lugar a uma vasta literatura, que podería- mos chamar de propaganda órfica, e, embora as origens do culto sejam atribuídas a Orfeu, tal literatura é motivada e garantida cem outros nomes míticos, quais os de Museu e Sileno, e neles se faz a apologia dos deuses, se propõe uma ética, se explanam regulamentos ascéticos, se abomina o con- su!no de carne (àljruxoç j)opà) e se procuram explicar as ori- gens da natureza e do mundo, tudo isso constituindo como que uma espécie de teologia sem dogmática. Mas, para os gregos do tempo, a teologia tem pouca expressão. O que par- ticularmente lhes interessa, os motiva e os entusiasma é a teo- gonia. A teologia requer a incineração dos mitos, e a teogonia grega vivia, ainda, e continuaria vivendo, da enorme gama de conceptualidades míticas. O orfismo tende a englobar toda a literatura mística e religiosa, e sem dúvida que imensas conatações órficas são concentráveis em épocas posteriores, e em filósofos, como Heraclito. Mas a difusão dos testemunhos órficos é tardia, os hinos chamados órficos ainda são mais tardios, e torna-se problemático saber em que medida os hinos, compendiados por Eusébio, por Macróbio e outros, são assistidos por uma garantia de autenticidade e de fidelidade, em que medida eles não nos chegam carregados de certas intuições cristãs, ou de certas e variadas motivações de outras correntes filosóficas e gnósicas. O que de algum modo se deduz, de todo este longo processo, é o facto de a mitologia suportar, já a teogonia, já a cosmologia. Numa e noutra existem indícios de iluminações superiores, que parecem transcender do mito para a verdade, ou do enigma para a solução, mas a filosofia requer toda uma outra forma de encarar, e de pensar, os dados dos problemas. Até se aduz que a mitologia contempla o que a filosofia pensa, ou que a filosofia choca com a mitologia, enquanto pretende desvendar o enigma e o mistério e, assim, teremos compreendido os motivos pelos quais Homero e Hesíodo 34 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA sofrem, por vezes, a cisma e a birra dos filósofos que vieram depois deles. As alegorias filosóficas de Hesíodo, as imaginações poéti- cas de Homero, as ético-estéticas explanações de toda a mito- logia, a propaganda política de Teseu para a unificação da Ática, as lendas morais, as sagas helénicas, as facções históri- cas, todo esse vasto sincretismo literário não sabe, ainda, onde termina a mitologia e começa a filosofia, mas, se a mitologia tinha proposto os objectos e os temas, bom seria que a filoso- fia tentasse, de futuro, discernir as causas e as origens de uns e de outros. 2- A ESCOLAJÚNICA Julgamos desnecessário estabelecer uma rubrica separada para tratamento dos <<Sete Sábios», porquanto, além de terem sido incluídos com o tiro de não deixar de fora o que pode chamar-se uma catalogação da moral, da ética e da política gregas, a designação que lhes cabe afigura-se puramente sim- bólica, pois nem todas as tábuas comportam os mesmos nomes. Demais, as sentenças constituem como que uma espécie de reflexão ética, a qual vamos encontrar em muitos dos pensadores pré-socráticos, não havendo também garantia de autenticidade dos apotegmas, uma vez previsto que a sua redacção é devida, não aos ditos sábios, _mas a quem, deles tendo recebido a tradição, os pôs em testemunho gráfico 0 l. Além disso, o conteúdo dos apotegmas constitui já uma derivação da filosofia para a moral, para a política e para a ética, consequências que devem ser da ciência das primeiras causas e dos últimos princípios, os quais são o leit-motiv de tudo a quanto a filosofia pré-socrática nos obriga. OJ P. Tannery, Pour l'histoire de la science hellene. FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 35 O agrupamento dos pré-socráticos por escolastem mais uma função didáctica do que uma fundação realista, por- quanto a primeira ilação que se tira da leitura dos textos é a de uma considerável similitude de temários e de problemá- rios, similitude essa de onde em onde perturbada pela efusão de um conceito novo, de uma chave que parece trazer a solu- ção da abertura das portas dos segredos, que aos filósofos se punham. De facto, e mesmo em referência à função didáctica dos agrupamentos, existe uma certa discrepância entre os vários especialistas porque, enquanto uns abrem resoluta- mente um capítulo para os jónicos, nele integrando todos, incluindo os mais tardios, qual um Anaxágoras, outros espe- cificam a filosofia em ritmo de cronologia, e abrem dois capí- tulos, um para considerar os primitivos, e outra para conside- rar os posteriores lo. Ora, tanto quanto julgamos acertar, o agrupamento deve ser feito em função das constantes ideiéticas, relegando para última instância as constantes cronológicas, dessa forma se definindo, o conjunto de razões a que, por via de regra, cha- mamos «escola>>. A Escola Jónica, ou dos filósofos jónicos, desenvolveu-se em Mileto, na Jónia, e o temário que a preenche é, à seme- lhança das outras escolas, a investigação dos primeiros princí- pios, através de uma hermenêutica fisiológica, expressa num conjunto de tratados que, em suas variantes, remete sempre para o estudo acerca da natureza, ou para o que eles chama- riam ntpl q>umuç. Os pensadores jónicos afirmam um pluralismo e um hilozoísmo, isto é, uma teoria pela qual admitem a multipli- cidade ou a pluralidade dos elementos e dos seres, e uma teo- 1" Esta diferença é assinalável em vários compêndios de história da filoso- fia, de que citamos, por um lado, Klimke e Abbagano e, por outro, Dilthey. 36 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA ria pela qual denotam não categorizar entre o espírito e a matéria. O seu mestre teria sido Tales, a quem Aristóteles cogno- minou de «Príncipe>>, ou de primeiro filósofo, e, segundo informação de Laércio, era vulgarmente conhecido pelo «Sábio>>, tendo sido ele quem iniciou o ensino da fisiologia, ou da física, entre os gregos. A sequência lógica e cronológica do magistério jónico mostra uma íntima relação de mestre a discípulo, e a sequên- cia poderia ser salientada na indicação de que Anaximandro foi discípulo de Tales, Anaxímenes foi discípulo de Anaximandro, Anaxágoras, um jónico mais tardio, foi discí- pulo de Anaxímenes, Arquelau foi discípulo de Anaxágoras e, enfim, Heraclito, ao que parece isolado, denota profundas correlações espirituais com toda a filosofia jónica, embora a tenha ultrapassado na formulação das teses essenciais. Dos pensadores, e da corrente em que se integram, dir- -se-á que se enquadram em três momentos altos: o momento inicial do magistério de Tales, o momento do magistério de Anaximandro e o momento de surgência de Heraclito. O que fica entre os três momentos, com todo o relevo que merece, surge talvez menos original do que o conteúdo das três etapas antes mencionadas. No entanto, o desenvolvimento teórico do magistério jónico apresenta-se com uma rigorosa inclinação para o entendimento dos primeiros princípios, e a eles voltam rodos os que, no seguimento de Tales, se aparentam ao seu magisté- rio. Tales propõe um único princípio imóvel (apxlÍ) que é a inteligência universal, e uma única origem, ou um único ele- mento original, que disse consistir na água, (üôwp), o líquido elementar, que se deixa penetrar pela energia divina. A água seria a matéria-prima que, fecundada pelo princí- pio, constituiria a origem de todas as coisas, animadas, ao fim e ao cabo, por uma espécie de substância cinética, a alma, que FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 37 reduziria a virtualidade da potência criadora e da actualidade geradora. No entanto, em Tales, a distinção radical e separa- tizante entre o princípio imóvel e a origem, ou elemento ori- ginal, não aparece afectada, e torna-se quiçá propício deter- minar se ele conformaria, no mesmo princípio imóvel, ou na arké, a duálica unidade do que determina e do que surge como determinado, ou seja, do princípio e da origem, da energia criadora e do elemento primário, a água. Discípulo de Tales, Anaximandro terá ensejo de apro- fundar as teses do mestre, e tudo leva a crer que o conceito de apeiron (iim:tpov) constitui uma nova dimensionação do itá- lico conceito de apx'l'í, pois o apeiron não surge como um ele- mento, mas como uma natureza infinita, indimensional, dis- tinta da gradação dos elementos, sendo como que uma razão originante, ou um princípio que efectivamente se distingue do processo geracional, ao qual será, se não superior, pelo menos envolvente. Quer dizer, onde Tales havia posto a água, Anaximandro surge para destituir a intrínseca razão por Tales concedida a esse elemento, e para afirmar a existência de um elemento eterno, imortal e indissolúvel, no qual tudo se gera e se dissipa, insusceptível de excesso e de carência, e deixando omisso se esse apeiron deveria referir-se à água, ao ar, à terra, ou ao fogo, de onde parece lícito inferir que Anaximandro postulava, no hilozoísmo da escola, uma pers- pectiva diferente, um arrepio, senão no sentido da física para a metafísica, pelo menos no sentido anterior, da física para a cisfísica, com o fito de descortinar, não propriamente o que se encontra para além da natureza, ou da IP'Úmç, mas o que se encontra antes dela, as causas que a determinam, ordenam e arquitectam. Justamente em virtude deste arrepio de Anaximandro, nos pareceu bem citá-lo como o segundo momento alto da escola em que, Tales, seu parente, fora também seu mestre. 38 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA No trânsito de Anaximandro para Anaxímenes, o que favoravelmente se intui é a fidelidade do discípulo ao mestre. Anaxímenes, segundo os testemunhos disponíveis, aceita cabalmente as noções e as teses de Anaximandro, mas, con- certeza perturbado pela indeterminação do apeiron, e pela referência de Tales ao elemento água, talvez se haja encon- trado indeciso quanto ao radical seguimento da indetermina- ção quinte-essencial de Anaximandro e ao particular projecto de Tales, quanto à principal originalidade da água. Dessa indecisão teria nascido o que, na doxografia, surge como con- ciliação entre a noção do ilimitado de Anaximandro e a noção referenciada à água, de Tales. Simplesmente, ao efec- tuar a conciliação, precisando de determinar o indeterminado de Anaximandro, fá-lo com a introdução de um elemento, o ar, que seria o primeiro princípio, ilimitado, sem dúvida, mas definido, melhor, nominado e referenciado a um dos elemen- tos. Portanto, o pentágono de Anaximandro, constituído pelos quatro elementos e pelo ilimitado, é, na perspectiva do discípulo, rectificado para o quadrângulo dos quatro elemen- tos, em que um deles, o ar, é o própro ilimitado, seja como ar enquanto tal (á+Jp), seja como vento ou sopro (n:vtu[!a) uma vez que, segundo a doxografia, Anaxímenes dava ambos como sinónimos. O que ainda se acrescenta é a dúvida de saber se Anaxímenes, ao citar o ar, não dava já, a este, a signi- ficação de espírito - o que sopra - de onde, então, na sua perspectiva orgânica, termos apenas três elementos materiais, ou gerados, e um elemento anímico, o ar ... Em todo o caso, ainda na teoria deste pensador, o espírito e a matéria surgem como um todo único, insusceptível de diálese, ou de ôntica distinção, porquanto o ser que existe é também o ser que determina tal existência. A relação espírito/ matéria encontra- -se altamente indiferenciada, porque mesmo o conceito de ili- mitado é pensado como algo de profundamente inserido na matéria, ou na natureza, monobloco elementar onde se torna FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 39 possível pensar a elementaridade, mas onde os elementos se negam a uma análise, feitade rigores categoriais. O magistério de Anaxímenes propiciará o currículo filo- sófico de Anaxágoras que, embora tardio no esquema jónico, parece ter sido o primeiro a efectuar uma pertinente relação entre o espírito e a matéria. De facto, refluindo à iniciática noção de Caos, onde eram todos os elementos, Anaxágoras precisava de justificar a passagem da ordem caótica à ordem noética; e sendo o Caos isso em que a geração se afigura impossível, e havendo necessidade de transitar para a ordem noética, Anaxágoras havia necessidade de um terceiro dado que, na relação da física para a cisfísica - ou da Natureza para o Caos - tomasse a decisão do pensamento e do movi- mento que tal passagem exigiria. Para ele, todas as coisas se encontravam juntas, indistintas, inesperadas, no estado de homeomerias, ou de uma mistura original, de onde, por superior instância, as coisas se separam, dando lugar à enorme multiplicidade material. A origem é una, é uma substância primordial, e, por sistemas de revoluções, as coisas separaram- -se umas das outras, aparecendo na pluralidade, mas man- tendo a unidade, pelo que o todo não passou a ser, nem maior nem menor, dado existir para além das partes que o integram, ou o revelam, em multiplicidade de aspectos. Que elemento novo é o de Anaxágoras? É a própria noção de inteligência (vouç), de espírito cognoscente, que é uno, separado, distinto, eterno, que está onde estão as coisas, no que a ele se encontra homeomericamente unido e no que, por revolução, dele se separa. Autónomo, independente da matéria, em virtude dele nada nasce e nada morre - tudo se separa, tudo se interpenetra, ou, em termos de hoje, tudo se transforma. <<As coisas combinam-se ou separaram-se>>, como a água se separa das nuvens, a terra da água, as pedras da terra, e assim sucessivamente, num projecto combinatório e 40 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA dissolutório, que a realidade noética contempla, ou que a dinâmica noética transforma em actualidade hilética. Que tem a ver o vouç de Anaxágoras com o arrnpov de Anaximandro? Está um distante do outro? Ou, melhor, o conceito de Anaxágoras não constituirá uma rectificação, um apuramento conceptual, uma refinação ideiética, uma refor- mulação do ilimitado, do eterno e do imenso, atributos, tem- poral e espacial, do ilimitado? Não nos repugnaria aceitar que, na dialéctica escolar, a concepção de Anaxágoras tenha de imbricar-se numa psicologia de profundezas, com as con- cepções de Anaximandro. Todavia, a problemática da exegese pré-socrática continua sendo a problemática da leitura ... que, a não existir, como existe, nos levaria a considerar aporéticas situações de valor, quais as de saber a relação entre um e outro e, mais, o que a teoria da separação teria a ver com a tese de Anaxímenes sobre o motor aéreo, ao provocar a multiplicidade material pelos processos da condensação (m1xvwcnç) e da dilatação (ápaíwcnç). Em Anaxágoras, a escola jónica reassume um momento alto, não talvez tão alto como seria justo inferir, mas, logo de seguida a dimensionalidade predominantemente especulativa de Anaxágoras se vê subsumida na preferência pragmática de Arquelau que, tendo sido mestre de Sócrates (há notícias de uma viagem de Sócrates e de Arquelau a Samos), se interes- sou mais pela especulação imediata do que pela especulação mediara, hesitando entre a propedêutica da ética e a ciência física. Arquelau de Atenas, embora tendo introduzido uma visão original na cosmogonia - talvez dando novas sugestões na exposição das doutrinas - , manteve-se fiel ao mestre e aceitou, como ele, os mesmos princípios noéticos e homeo- méricos, assinalando a identificação da razão noética com o princípio aéreo. Ora, o jonicismo poderia ter ficado por aqui. Arquelau já apanha Sócrates, e este, em certa medida, surge para ultra- FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 41 passar o estádio cosmogónico, em busca de uma nova dimen- são para a filosofia, talvez a dimensão de uma antropoteogo- nia. No entanto, havia Heraclito, natural de Éfeso, que, orgulhoso e insolente -, chamavam-lhe <<O obscuro» (ó oxo•nvóç) aparece desgarrado dos pensadores jónicos, dos quais acusa, todavia, determinadas influências, ou, senão influências, pelo menos coincidências gnoseológicas que importa reter, pois Éfeso não ficava assim tão longe de Mileto, e se com o tempo se transformou num misantropo, é de crer que houvesse recebido as óbvias influências de uma escola que tinha reafirmado uma tradição poética e filosófica tão importante como a que vem de Tales a Anaxágoras. O admirável solitário, o perturbante contestário da sabe- doria estabelecida, o opositor da erudição polimática, o asceta que se fecha numa estrumeira, aguardando a cura da hidrop- sia, depois de verificar que os médicos não sabiam responder à sua enigmática questiúncula, o contemplador dos mistérios, o senhor de uma obscura clareza que é, por isso, o acme do paradoxal -, Heraclito não se pronuncia sem que sintamos algo de nós em causa. É toda uma seriedade de pensar e de ser, uma íntima e corajosa coerência entre o pensamento e a vida, o pensamento e o movimento, que o corpo fragmentá- rio disponível nos propõe, num estilo em que a alegria pura contrasta com a acutilante ironia, e em que um dinamismo optimista nos leva a olvidar o hilozoísmo mecanicista de outros pensadores jónicos. Que pensava Heraclito? - Que há um ser, principiai e original, que tem o poder de conceber e de criar, ser esse que, Deus embora, identifica com o fogo (ll. O fogo (nüp) é a origem de todas as coisas, e ill Em algumas traduções, como a hebraica (e mesmo em determinadas instâncias da cultura grega), o Espírito é simbolizado pelo fogo, e não pelo ar. Espinosa analisou a simbologia do fogo, com teológica profundidade, no seu Tratado teológico-político. No entanto, a palavra grega que melhor traduz a hebraica Ruah (sopro) é pneuma. I I! I 42 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA o fim de todas elas, seja por transformação, seja por sublima- ção, seja por condensação. O fogo propõe-se como uma cor- rente em que há curso e recurso, ou discurso, isto é uma teo- ria de oposição dos contrários, por cuja oposição os seres se geram, e por cuja concordância os seres se integram de novo no seio do rio eterno. A terra surge como o fogo condensado, a terra é o berço da água por liquifação, enquanto, num ciclo dinâmico, onde nada se encontra inerte - tudo flui, (rrav-ra pei) -os seres surgem e se dissipam, num cosmos que, con- cebido e gerado pelo fogo, mantém a unidade superior do seu criador, o mesmo carácter ciclíco, a mesma determinação fatalista, a mesma lógica, a razão de movimento, porque o cosmos se gera em função do movimento e nunca em função do tempo- o tempo que é, enfim, uma relação enganosa do movimento para os sentidos. Na verdade, o tempo resulta das modificações aparentes, porque nenhuma coisa permanece como parece num dado instante, encontrando-se em perpé- tuo processo de modificação. O logos cognoscente absorve indícios das modificações havidas, de onde cria a noção de tempo e adquire a certeza de que nenhuma coisa sensível é passível de conhecimento ade- quado. No momento em que julgamos estar a conhecê-la, é o momento em que já se não apresenta como a julgávamos conhecer. <<Banhamo-nos e não nos banhamos nas águas do mesmo rio)). De onde os filósofos deverem alertar-se quanto ao real valor das coisas, uma vez que, dormentes ou vigilan- tes, os sentidos nos enganam sempre; na medida em que <<O que é em nós é sempre um, e o mesmo, vida e morte, vigília e sonho, juventude e velhice, porque a passagem de estado é recíproca)). Somos e não somos, pensamos e não pensamos, não podemos descer duas vezes às águas do mesmo rio, os olhos e os ouvidos são más testemunhas para conhecimento das apa- rências do real- o cosmos, como o julgamos pelo conheci- FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 43 mento sensorial - e porque só o logos conhece e o logos, que a si mesmo se multiplica, pertence ao espírito. O fluxo heraclitino apela para um modo de vida. É uma filosofia que bule com o ser do homem; um discurso sobre o real realizado e o real ideado, ou sobre a aparência e a reali- dade, ou sobre a existência e a essência. A existência é o que da essência flui, corre, como as águas do rio; nós não conhecemos o movimento do rio, limi- tamo-nos a ver a posição das águas, mas a unidade intrínseca, a essência de tudo isso, é algo que nos foge. Efectuar distin- ções no essencial, pelas aparências existenciais, constitui um risco igual ao que corremos quando a Deus damos o nome de Deus porque, enfim, Deus, que é Deus, quer, e não quer, ser invocado por tal nome! Nominar é um modo de definir, e Deus persiste como o que não se define 0 l. Como o inominá- vel! Não é, nem para demonstrar, nem para provar, mas para contemplar. Como o deus, cujo oráculo se encontra em Delfos: «nem fala, nem finge, mostra>> Admirável é a universalidade do pensamento filosófico de Heraclito que, partindo de uma teoria do conhecimento rigorosamente modesta, assume a noção dos limites gnoseoló- gicos humanos e, como tal, se nega a toda a formulação pró- pria de filosofias regulamentares, estabelecendo, a partir dessa teoria, uma ética (relação do homem com Deus), uma política (relação do homem com as instituições) e uma moral (relação individual), cujo vértice consiste numa já esboçada axiologia, em que a salvação devém da obediência íntima aos projectos incognoscíveis do Uno, isso em que se crê, através de uma doença sagrada, que é a crença: a justificação recíproca, em que o crente garante a crença e, esta, o crente. O pensamento filosófico de Heraclito oferece, por vezes, o risco de negar a própria filosofia. Sendo, a filosofia, o amor <•> A inefabilidade divina tem tido muitos defensores, entre eles um Dionísio Aeropagita, cujas relações com Heraclito se deveriam equacionar. 'l 44 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA da sabedoria, que interroga e se interroga, no sentido de garantir-se um saber, e sendo sua razão o logos, mas, não sendo o logos humano possuidor de pensamento próprio, que todo o pensamento é divino, como pode o homem filo- sofar? Aliás, ao escrever obscuramente, para que as suas dou- trinas se não vulgarizem, talvez Heraclito estivesse assumindo a dificuldade própria da sua visão filosófica que, a ser assim, devia quanto possível ser dada apenas a iniciados, ou a discí- pulos, preparados para darem testemunho da verdade e para assumirem todas as contingências mundanais que a filosofia de Heraclito recusa como não verdadeiras. A Sibila, que, nos textos de Heraclito aparece mencionada, é, talvez, o próprio Heraclito: «faz ouvir palavras enigmáticas, sem ornamentos e sem floreados, faz ecoar seus oráculos por mil anos, pois recebe a inspiração dos deuses». Ocorre memorar que Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, e com possíveis ligações com Parménides, pos- tulara um primeiro princípio, o ar - que tanto invocava sob a forma aérea, como sob a forma pneumatológica - que delimita o cosmos, surgindo, assim, como uma espécie de apeiron aeriforme, envolvendo e gerando o Universo. De Diógenes de Apolónia, que alguns autores preferem ligar directamente à escolaridade jónica, para respeitar a tradi- ção, segundo a qual Diógenes é um discipulo de Anaxímenes, existem testemunhos de que este discipulato se refere a uma comparticipação em teses de Anaxímenes, e não a uma directa e oportuna actividade no seio da escola, uma vez que a- passagem de Laércio (IX, 57) referente a Diógenes assenta em Antístenes, e certos autores 01 dizem constituir uma erró- nea interpretação que Laércio teria feito do testemunho de Antístenes. É difícil introduzir lógica na perspectiva crónica, e não nos cabe resolver o problema da situação época! de " 1 Kirk and Raven, The presocratic philosophers. FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 45 Diógenes de Apolónia, embora, tendo aceite que se trata de um autor pós-pan:nenidino, pudéssemos incluí-lo no final do eleatismo. Advertidos destas dificuldades, assinale-se o desejo de clareza que dita a obra de Diógenes, o qual, segundo as bio- grafias, teve como preocupação primeira estabelecer postula- dos sólidos e comunicar com os outros, através de uma lin- guagem precisa e acessível, não querendo seguir o mesmo processo de Heraclito, quanto à obscura comunicabilidade dos textos. A semelhança de Parménides, Diógenes entende que o mundo é finito, à semelhança de Anaxímenes, entende que o mundo devém do ar infinito, que, segundo o grau de ponde- rabilidade, gera os seres da natureza. O nada não existe, o ar constitui esse caos ignoto e insondável a que o autor alude, e a terra constitui o centro do Universo. Já se deixa ver que, a partir destes postulados, dando o infinito como incognoscí- vel, Diógenes poria de parte toda a especulação metafísica, ou ontológica, desviando a atenção para o que hoje designamos por ciências da natureza. Os fragmentos disponíveis dão franco testemunho da sua preocupação intelectual, e o atri- buto de fisiólogo, bem como a grande nomeada que parece haver tido, justificam-se plenamente, pois, mais do que um filósofo, Diógenes foi um físico, pesem embora as passagens em que emite afirmações sobre a metafísica, as quais servem apenas para demarcar o seu campo de trabalho e de investiga- ção: os fenómenos naturais, incluindo o corpo humano, de cuja circulação efectuou uma curiosa anatomia. A validade filosófica de Diógenes garante-se principal- mente pela forma como, através da física, introduz, na filoso- fia, o conceito da razão (vàtJmç). Há uma evidente relação filológica entre o nous de Anaxágoras e a noêsis de Diógenes, uma vez que o étimo radi- cal é o mesmo. O nous de Anaxágoras vem dado com seus 46 FILOSOFIA atributos e para s1 o um determinismo para o Universo a substância existencial com o , mas ao razão, afirma que esta governa e seres sentem, entendem e cotsas, e que os da razão. A razão é, no esquema de rior, não mero instrumento fim de a e de muito supe- ria, como, de resto, Sócrates não teve dificuldade em nhecer, e isto a crermos no C!J Fétlon, 98, B7. Tradução do P. Dias Palmeira, Coimbra, 1954. FILOS O FIA PRÉ-SOCRÁTICA 47 perfeita consciência desse valor, razão fundamental, que é razão de razão- a que de si mesma sabe, e de todo o outro. O florescimento da filosofia na Jónia apresenta-se como um trânsito e como um regresso - por um lado, a tentativa de prosseguir o apuramento das razões de ser e, por outro, um esforço no sentido de identificar o ser de razão. Entre as primevas concepções de Tales e as posteriores visionações de Heraclito, é todo um longo caminho em que tudo flui, em que, mesmo quando não parece, as ideias de cada um se geram nas ideias do outro, em que os debates escolares e as argumentações discorrem, mas ao mesmo tempo concorrem, para a tarefa de construção de uma disciplina, cada vez mais liberta do culturalismo sincrético, e cada vez mais ciente das suas limitações e, p~r isso, pouco a pouco mais assenhoreada das inestimáveis possibilidades. 3- A ESCOLA ITÁLICA Escolas itálicas houve, pelo menos, duas: a pitagórica e a eleática. As designações, fundadas em motivos geográficos, ou de geografia política, têm destes paradoxos pouco, ou nada, razoáveis. No entanto, como a escola de Eleia obteve o nome próprio de eleática, nada impede que a escola de Pitágoras se chame itálica e, para evitar confusões com a eleática, se chame também pitagórica. Quem fundou esta escola foi Pitágoras, oriundo da ilha de Samos, que se fixou em Crotona, onde passoua ensinar. Pitágoras, na data em que se fixa em Crotona, traz consigo, a crermos nos biógrafos e doxógrafos, uma longa experiência de vida e de saber. Viajara imenso, estivera no Egipto, na Fenícia e na Caldeia e, entretanto, teria sido discípulo de Ferécides de Siro, um cosmógono e um teógono que, na melhor das hipó- teses, teria lato conhecimento das ciências ocultas dos fení- 48 FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA cios, que teria efectuado alguns milagres, e passado a Pitágoras muito do seu saber, a pontos de, em certos porme- nores, haver dificuldade em certificarmo-nos sobre o que deve ser atribuído a Ferécides e o que deve ser atribuído a Pitágoras. (De acordo com o doxógrafo Apolónio, na data em que Ferécides adoeceu, em Delos, foi Pitágoras quem o tomou' a seu cuidado, dele herdando a sabedoria que, acres- centada de outras contribuições, veio a desenvolver, e a trans- mitir, sob a forma do pitagorismo). Pelos motivos expostos, pareceu-nos justo situar Ferécides à cabeça da escola de Crotona, porque, em obe- diência ao critério filosófico das teses, Ferécídes apresenta-se como o remoto fundamento do pitagorismo, ou, pelo menos, como o consabido mestre de Pitágoras. Ferécides teria escrito o livro dos «Sete esconderijos» ('E:rr-rártuxoç) '1>, onde expõe o seu saber, do qual nos chegou, entre o mais, a explicação relativa à problemática da origem. Ferécides resolveu-a, não através de uma criação a partir do Nada, mas pela defesa de que Zeus e Ctónia existiram desde sempre, um como o céu, outra como a terra. Os elementos restantes são o fogo, o ar e a água, que resultaram das combi- nações do movimento, expresso na noção de tempo, Cronos. Temos, desta forma, cinco e não sete esconderijos, ou reces- sos, ficando, portanto, por saber quais eram os outros dois recessos a que o título da obra de Ferécides alude, ou se a transmissão histórica do título terá sido correctamente efec- tuada. Poéticas e cosmogónicas, as alegorias de Ferécides têm grande importância, e acentuam uma forma de singular absorção de contribuições culturais, sendo possível que a sua obra haja recebido tais contribuições da filosofia e da teogo- Cll Certos autores, entre eles, Diels e Jaeger, inclinam-se para «cinco esconderijos», em vez de «sete>>. FILOSOFIA ou porque, em já existente entre as várias ~J'-~'aJ, ricos tomavam os cuidados necessários à não seus conhecimentos, de da que 50 FILOSOFIA FILOSOFIA V !Ce-versa: 1. Limitado 2. Ímpar 3. Unidade 4. Direita 5. Macho 6. 7. Recta 8. Luz 9. Bem 10. Par Fêmea Movimento Curva (1) 51 52 FILOSOFIA fl0 vVU01-''-'''V à Tétrade. É este o antes que as significa e que com o demais. mátíco na sua já a coisa em FILOSOFIA tem, nem excesso, mula no do uno, e, por dela são sempre Amor que une o ser cinde o ser mecânico. O poema sobre a 53 e, ao que parece, que, em 54 FILOSOFIA reverter à e à onde se não morre! A tanto havia levado o metria. 4- A ESCOLA ELEÁTICA em Eleia, na Itália Zenão. Dilucidar a as ções acerca das que se levantam quanto a parte integral da cujas teorias abrem o conti- FILOSOFIA 55 avant Socrate. FILOSOFIA cosmos são um e o mesmo - o ser eterno, incriado e incor- FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 57 dó nem piedade, designadamente a tendência de antropo- morfização dos deuses - assinalando Xenófanes uma noção correcta, já expandida nas tradições médio-orientais, de que a divindade não tem imagem (l>. Muito embora, Xenófanes tinha inteira certeza de que a verdade, tal como a concebia, não era para divulgar, porque as imagens da opinião, ou do senso comum, são historicamente mais fortes do que a justiça da verdade, ou a verdade da justiça. O fragmento 34 é alta- mente explícito quanto ao juízo de Xenófanes, e serve para alertar o filósofo sobre o valor das essências e das aparências, garantindo-lhe que o vulgo não quer senão as aparências, enquanto a filosofia não quer senão as essências. De onde haver muita coisa, dada como filosofia, que não é senão uma forma refinada de opinião, ou de logos comum. Apesar da valorização atribuída a Parménides, a filosofia deste, que foi discípulo de Xenófanes, já se encontra projec- tada nos fundamentos da escola xenofónica. Todavia, além do magistério que recebe de Xenófanes, Parménides liga-se também ao jonicismo de Anaximandro de quem, se não acei- tou todos os ensinamentos, aceitou, pelo menos, a teoria do princípio único, bem como algo da tradição pitagórica, que lhe teria sido transmitida por Amínias, iniciador de Parmé- nides na via mística, muito mais do que o seu primeiro mes- tre, Xenófanes. Grande parte da celebridade de Parménides deriva da viagem efectuada a Atenas, na companhia de Zenão, onde, a crer na historicidade dos diálogos platónicos, haveria propi- ciado um encontro com Sócrates, para discussão da teoria das ideias. Dedicando um diálogo ao acontecimento, Platão é em parte responsável pela notabilidade do filósofo eleático, um dos mais seguros interlocutores de Sócrates, a cujas teses Aristóteles dedicou considerável atenção. <•J E. W. F. T omlin, The Eastern philosophers. 58 FILOSOFIA incriado, imprincipial, per- idêntico a si mesmo, uno e deixar de ser, porque é IJ'-lcl~d.RW.lHV de surge-nos um pouco meta designa apenas uma categoria adverbial, a categoria substancial sendo a física. Portanto, a da se pro- através do enriquecimento modal do Mas o que na verdade Parménides nega é tanto a cisfísica (o que se encontra como a possibilidade da tisica (o que se encontra bilidade da metafísica (o que se encontra O que nega em é a física, como sujeito substantivável, e tanto nos leva a pôr que, a física, se tem de toda a intrínseca realidade da negar o adver- bialmente pode depender, a e a A qualifi- FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA 59 cação de racionalismo metafísico, atribuído ao pensamento de Parménides, oferece alguma garantia de autenticidade? Se os elementos gramaticais suportam um pensamento lógico, temos que a relação se oferece na afirmação dos elementos relativos: ora, se nego a realidade de um deles, não posso fazer depender os outros desse que nego. Logo, se nego a física, tenho de negar a metafísica. Que qualificativo atribuir, então, ao pensamento parme- nidino? Cremos que só um lhe calha em absoluto, com todas as garantias de adequação ao conteúdo do que, de Parménides, sabemos: racionalismo do ser, racionalismo ontológico, ou, porque estabelece a univocidade do ser, onto- logismo unívoco. Não vemos que outra solução possa justifi- car-se, uma vez definidas as noções de racionalismo metafí- sico e de racionalismo ontológico, e bem demarcadas as fronteiras entre ontologia e metafísica. A ontologia é garan- tida, a metafísica é o que resta da física, e Parménides quer e crê o Ser, não o que resta do possível Ser. Racionalismo ontológico é também o de Zenão. Difere do de Parménides na matéria formal da argumentação, por- que, enquanto Parménides prefere a via poética, Zenão pre- fere a via dialéctica, sendo em virtude deste acidente formal que se classifica de dialéctico o racionalismo de Zenão. De facto, a diferença deveria ser estabelecida em três termos: de um lado, o racionalismo ontológico-poético de Parmé- nides; de outro, o racionalismo ontológico-dialéctico de Zenão. Cremos atingir maior grau de clareza adoptando essas tríades, das quais constam o sujeito, o objecto, e o processo de um para o outro. Ora, Zenão, segundo Laércio, era filho adoptivo de Parménides, e seu discípulo. Aristóteles e Platão concordam em que o poder de conversação dialéctica do discípulo de Parménides era notável, e que tanto seguia a linha afirmativa,
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