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o CRIMINALISTA Trata do crime sem castigo, que assim permanece a despeito da prova testemunhal, do corpo de delito, da exibição da arma do crime, da própria confissão do criminoso e r ainda dojulgamento regular a que ele faz questão de submeter-se para poder depois repousar tranqüilamente sobre a intangibitidade da coisa julgada. Demonstra, em todos os pormenores, o planejamento e a execução de três homicídios juridicamente impuníveis, concluindo que o leigo não tem razão quando pensa ou afirma que não há crime perfeito. t: obra de notável rigor dia lético, célere, instrutiva e fascinante. Seus leitores, principal- ,mente se forem ju(zes, advogados, promotores ou estudantes de Direito, percorrerão com interesse todas as suas páginas e o farão sem esforço algum, porque é realmente veloz a sucessão dos fatos não apenas descritos, mas, sobretudo, psicológica e juridicamente inter- pretados. ~. EDITORALTDA. VINICIUS BITTENCOURT ~. CRIMINALISTA ~. EDITORALTDA. Capa Copyright 1979 VINICIUS 81TTENCOURT Carlos Ferreira Impressão Arte Final - Ind.Gráficas e Editora JANC Editora e Publicidade Ltda. Rua Barão de Itapemirim, 209 - Sala 311 29.000 - Vitória - E.S. ÀJô Aos curiosos do Direito Penal ri; ti PREFÁCIO "O Criminalista" é livro de poucas páginas e muita substância. Pela rapidez da progressão, pelo teor científico da urdidura e pela seqüência imprevisfvel dos eventos, não tem simi· lar entre as obras do gênero. Rapta, desde a primeira página, a mente do leitor, e não a liberta um só instante, porque não re~ pete situações, não contém palavras inúteis, nem retrata banali- dades. Os crimes que descreve são juridicamente perfeitos e não apenas sem rastros ou de apuração difícil, como os versa- dos no romance policia! comum, onde tudo se reduz ã busca de provas para a condenação do culpado. "O Criminalista", ao contrário, trata do crime sem castigo, que assim permanece a despeito da prova testemunhal, do corpo de delito, da exibi- ção da arma do crime, da própria confissão do criminoso e, ainda, do julgamento regular a que ele faz questão de subme- ter-se para poder depois repousar t~nqúi!amente sobre a intan- gibilidade da coisa julgada, Demonstra, em todos os pormenores o planejamento e a execução de três homicídios juridicamente impuníveis, concluindo que o leigo não tem razão quando pensa ou afirma que não há crime perfeito, E claro que o autor, deduzindo temas amplos e profun- dos, poderia ter facilmente duplicadO, ao menos, o número das páginas deste livro. Mas, então, teria sacrificado um dos seus mé- ritos principais, que consistiu exatamente na eliminação de palavras supérfluas, na exclusão de incidentes irrelevantes e na podadura das repetições que cansam o leitor, sintetizando a obra para que pudesse ser lida em um único impulso, como demanda a época vertiginosa em que a mesma vem à luz. Os estudantes, os curiosos do Direito Penal e todos aqueles que se preocupam com esse alarmante fenômeno social que é o crime, cujas explosões, cada vez mais contínuas e pode- rosas, vêm abalando os alicerces de todas as comunas, certamen- te ouvirão neste livro o eco de indagações que já fizeram e que nele enco,ntrarão resposta satisfatória. "O Criminalista", portanto, é uma obra preciosa, de no- tável rigor dialético, instrutiva e fascinante. Seus leitores, prin- cipalmente se forem ju fzes, advogados, promotores ou estudan- tes de Direito, percorrerão com interesse todas as suas páginas e o farão sem esforço algum, porque é realmente veloz a sucessão dos fatos não apenas descritos, mas, sobretudo, psicológica e jurid icamente interpretados. João Batista Cerutti ADVERTENCIA Os personagens deste livro são fictfcios e os fatos imagi- nanos< Qualquer semelhança entre essas figuras supostas e pessoas vivas ou mortas, ou qualquer analogia entre os fatos narrados e outros que possam ter ocorrido no mundo real será fruto exclusivo de mera coincidência. ' Por outro lado, como advertiu Pitigrilli em seu inimitá- vel "L'Esperimento di Patt", ê poSSível que nos futuros proces- sos em que eu venha a lidar como advogado ou a responder como réu, meus oponentes se estribem neste livro para escarne- cerem de minhas alegações com o caviloso argumento de que eu não acredito na Justiça. A verdade, porém, é que escrevendo sobre aberrações forenses, provei exatamente o contrário, reverenciando por via índireta a Justiça, porque se a regra fora o desacerto dos julga- dos, os erros judiciários não aproveitariam à literatura de impacto, por não causarem mais sensação alguma. Só o extravagante, insólito ou inaudito, aquilo que rara- mente ocorre, pode emocionar ou comover, Se o erro judiciário tem esse condão, se surpreende, espanta ou alarma, e se por isto foi escolhido como tema desta obra, ela é a prova melhor da crença do autor na infabilidade da Justiça, Vitória, Junho de 1979 Vinicius Bittencourt 7 1 A sala de audiências regurgitava de curiosos que haviam aflu ído ao Palácio da Justiça para assistir aO interrogatório de um advogado famoso que, há cerca de vinte dias, ocupava as colunas frontais de toda a imprensa paulista como indigitado autor de um uxoricídio sensacional. Havendo oompletado o meu curso de Direito no mês anterior e desejando especializar-me em criminologia, aguardava com mais ansiedade que qualquer dos presentes, a chegada do acusado. O evento estarrecera a opinião pública, dívidindo-a em duas facções, a maior das quais não admitia a culpabilidade- do indiciado. Ele mesmo, fogo no começo do inquérito policial, sustentara com firmeza a sua inocência, demonstrando clara- mente a fragilidade das provas em que a acusação se estribava, Sabia-se, ademais, que malgrado a decretação de sua custódia preventiva, havia o réu dispensado os criminalistas que o acom- panhavam desde a abertura do inquérito e isto despertara na mente popular a crença de que a denúncia já havia sido pulveri- zada. Aguardava-se, assim, que logo após o interrogatório o acusado fosse posto em liberdade. De minha parte, com a inexperiência de meus vinte e cinco anos, estava totalmente fascinado pela atuação do réu diante dos inquisidores policiais a quem desmoralizara impíe· dosamente com sua dialética irresistível. Máis do que por sim· pies curiosidade, estava eu ali, pois, como um aluno estudioso, à espera de um mestre capaz de brindar-me com uma aula prática de inestimável valor para a minha futura carreira de criminalista. 9 - Afastem-se. Deixem passar o juizl - bradou em voz áspera ° escrivão, abrindo caminho por entre os curiosos e ingres- sando na sala, seguido de perto pelo magistrado e pelo promotor. - Tragam o réu. - ordenou o juiz, após sentar-se em sua poltrona. Minutos depoís, os "flashes" fotográficos e o rumor de passos apressados anunciaram que o acusado já estava por perto. De fato, logo a seguir entrou ele na sala, escoltado por dois militares~~" Sua aparência era a mesma das fotografias que há três semanas vinham sendo diariamente estampadas nos jornais da cidade. Uma lividez impressionante e um ar de profunda tristeza nimbavam, todavia, com uma auréola de mártir, aquela estranha personalidade que irradiava inteligência por todos os ângulos de que fosse examinada, Revelando completa indiferença para com os súcubos do sensacionalismo que se aglomeravam compactamente para vê-lo e ouvi-lo, o acusado sentou-se na cadeira que ° escrivão lhe indícou, permanecendo em silêncio enquanto aguardava o inter- rogatório. o magistrado, passando osautosao escrivão,ordenou-Ihe que lesse em voz alta o texto integral da denúncia. Cumprida essa formalidade, dirigiu-se pela primeira vez ao imputado, di- zendo-lhe: ~ O réu deve declarar seu nome,estado civil e profissão. o acusado respondeu: - Jorge Muniz, brasileiro, viúvo, advogado. o juiz, como no intuito de dar satisfação aos circunstan- tes.disse: - Embora pareça ocioso, face à profissão que o réu exer- ce, cumpro o de'Jer legal de adverti-lo de que não está obrigado 10 a responder às perguntas que eu lhe fizer; seu silêncio, todavia, poderá ser interpretado em prejuízo de SU'3 defesa, o réu fez COm a cabeça um sinal de assentimento. Abrindo o processo na folha vestibular, o magistrado co- meçou o interrogatório: ~ E verdade o que se alega na denúncia? o acusado, COm voz-clara e segura, respondeu: ~ A denúncia é verdadeira, em todos os seus termos, Murmúrios de estupefação percorreram a sa!a eo próprio juiz não conseguiu esconder seu desapontamento. O promotor, que antes do acusado responder, riscara um fósforo para acen- der o cigarro, teve de jogá-lo precipitadamente ao solo para evi- tar que a chama lhe queimasse os dedos. Estava preparado para uma negação frontal de autoria e aquela resposta absurda o perturbara completamente. - Pode o acusado declinar os nomes de outras pessoas que, de qualquer modo, tenham concorrido para a prática do delito? o réu, fixando no juiz um olhar intraduz(vel, respondeu: - Nada mais tenho a declarar. Peço que seja encerrado o interrogatório. o juiz perguntou-lhe, então, se tinha advogado Ou se, como lhe facultava a lei, iria encarregar-se de sua própria defesa. Exasperando ainda mais a confusão dos presentes, todos surpreendidos com o desfecho melancólico da audiência, o acusado respondeu tranqüilamente: - Não tenho advogado, nem me defenderei. 11 l. ~ Neste caso, - disse o juiz - como é de seU conheci- mento, estou obrigado a nomear-lhe um defensor. Percorreu a vista pela sala, pareceu hesitar um instante, IS! fez finalmente um sinal para que eu me aproximasse. Já me conhecia desde os tempos de acadêmico, quando eu andava pelo Forum estudando processos. Perguntou-me, quando já me acha- va a um passo de sua cátedra: _ Doutor Nilo, aceita patrocinar a defesa do réu como seu advogado dativo? Até hoje, quando tanto tempo já transcorreu após aque- le extraordinário evento que, praticamente, decidiu a minha carreira de criminalista pergunto a mim mesmo como foi que tive forcas para responder-lhe que aceitava o encargo. Não sei e provavelmente nunca saberei como pude, eu que não ,ti~ha experiência alguma, acolher sem o menor protesto a gravlsslma responsabilidade de patrocinar uma causa que era, sem qualquer dúvida a mais espetacu!ar que o foro criminal conhecera nos último~ anos. Por mais que reconstitua mentalmente as circuns- tâncias do momento, não encontro outra explicação para aquela minha temeridade, além da propensão instintiva que fizera de mim um advogado nato, com tendências vocacionals tão marcan+ tes que induziram minha pobre mãe a exaurir-se em trabalhos penosos, empolgada pela certeza de meu futuro sucesso numa arte tão dif(cil. De qualquer forma, por culpa do acaso ou da afoiteza, em minhas mãos tombara a liberdade de um homem de vasta cultura, advogado habilíssimo, ~ue por um inexpl1cá;,e! capricho entendera de confessar um crime sobre o qual, at:: ? momento do interrogatório, pairavam dúvidas mais que SUfICI~ entes para garantjrem~lhe a absolvição, Esmagado, portanto, pela tremenda responsabilids.de, assinei como se fora um autômato o termo de compromisso e vi-me subitamente envolvido pelos repórteres, sendo fotogra- fado por todos .Q,$ !ados, crívado de perguntas sobre o cu,:so_que pretendia dar ao processo e sobre a sorte de meu constltumte. 12 Somente quando a sala se esvazIOU por completo, foi que dei conta da gravidade de minha situação. Aquele processo, em menos de quatro meses, subiria a julgamento pelo Tribunal do Júri, cumprindo-me funcionar na defesa, com as câmaras de televisão focalizadas sobre mim e os microfones dispostos a poucos centímetros da tribuna, captando todos os equívocos que a minha inexperiência iria prodigalizar a um público irreve- rente e inexorável em suas sentenças sobre o mérito dos orado- res. E não poderia, ao menos, sustentar a inocência do acusado, Ele mesmo confessara a prática do delíto, só restando ao seu defensor excogitar circunstâncias atenuantes que lhe minoras- sem a pena. Tudo indicava, ademais, que eu r,ão iria contar com sua colaboração. A inabalável firmeza com que confessara em juízo a autoria e a culpabilidade, seu pedido de encerramento do interrogatório e sua terminante recusa em constituir advoga- do ou defender-se pessoalmente, eram provas cabais de que nem sequer iria receber de bom grado a minha atuação no processo. Por outro lado, o simples fato de discursar perante um aud itórto que venerava a eloqüência do homem que eu teria de defender e que permaneceria mudo durante a sessão de julgamento, era bas- tante para desencorajar advogados de prest(gio, quanto mais a mim que ainda não funcionara no Tribunal do Júri. Fosse qual fosse o empenho com que eu me dedicasse à causa, não conse~ guiria, por certo, nem absolver o acusado nem convencer ao pú- blico de que a sua condenação inevitável emanara de circunstân- cias alheias à minha inexperiência ou incapacidade. Com o raciocínio acossado por essas apreensões, desci a escadaria do Palácio da Justiça, e como não tinha escritório nem o que fazer pelas ruas, tomei o ônibus e segui para a minha residência. Logo que cheguei, minha mãe desligou a máquina de costura, baixou o volume do rádio e disse-me entre sorrisos: - Já ouvi a notícia. Ainda hoje, seu nome estará em to~ dos os jornais. Você fez carreira rapidamente. Até seu paI, se vivo fosse, teria inveja de você. 13 Beijando-a nas faces, respondi tristemente, certo de que iria desapontá-la: - Não há dinheiro algum na causa; apenas trabalho e o risco de ficar para sempre liquidado como criminalista. Minha mãe, com seu incomparável bom senso, fixou-me um olhar bondoso e d ísse: - Não preciso de muito dinheiro; só o bastante para manter aceso o fogão. - Acontece que nessa causa não há dinheiro nem mes- mo para o gás. O réu é muito rico, mas não quer ser defendido. - Sei de tudo, Você esquece, no entanto, que ganhará uma publicidade que vale mílhões e que atrás dessa causa virão as compensadoras. - Já pensei nisso. Tenho medo, todavia, de decepcionar a opinião pública, perder a confiança em mim mesmo e ter de cavar um cargo de comissário de polícia ou outro qualquer, para não morrermos de fome. - Tire isso da cabeça. Seu pai, que não tinha o seu ta- lento, nunca precisou de função pública para viver. Sempre foi exclusivamente advogado e nunca teve uma causa de tamanha repercussão como essa que você vai patrocinar, logo depoís de diplomado. Era difCcíl resistir à sua diatética. Minha mãe passara a vida a secretariar meu pai em todos os seus trabalhos jurídicos e, como verifiquei mais tarde nas lides forenses, entendia muito mais de Direito do que um grande número de advogados que desfilavam sua empáfia pelos corredores do Palácio da Justiça. De qualquer forma, entretanto, eu não estava disposto a deixar que me imolassem naquele processo, Conhecia as minhas limi- tações e sabia que dificilmente poderia fazer boa figura. O melhor seria mesmo declinar do mandato e ir cautelosamente 14 abrindo caminho com causas mais modestas que, com o passar do tempo, iriam fatalmente surgindo< Preparei-me, pois, para no dia seguinte comparecer ao Forum e pedir ao juiz que nomeasse outro advogado mais experiente para patrocinar a defesa de Jorge Muniz. Naquela noite, por força da insistência de minha mãe e das hesistaç5es que conturbavam a minha vontade, não canse- gu i dormir tranqü itamente. Acordei várias vezes com um senti- mento de frustração e desânimoque felizmente se dissipava depois que eu conseguia convencer-me de que, logo na manhã seguinte, após a renúncia do mandato, estaria livre daquela res- ponsabilidade que impensadamente assumira. Pela primeira vez na vida, pude ver a cara do homem que nos trazia o leite todas as manhãs. Durante anos seguidos, exce- to quando meu pai era vivo, minha mãe costumava deitar-se logo após o jantar, acordando sempre pela madrugada do dia seguinte. Quanto a mim, ficava estudando até multo tarde da noite, levantando-me, em conseqüência, depois das oito horas da manhã. Naqueledia, entretanto, embora houvesse, como sem- pre, dormido muito tarde, levantei-me cedo da cama e fiquei meditando sobre as ocorrências do dia anterior. Decidira exo- nerar-me do encargo, mas uma estranha fascinação me impelia a ir visitar o homem cuja defesa estava ainda sob minha respon- sabilidade. Por mais que me esforçasse, náo podia admitir uma renúncia sumária. Tinha, ao menos, de ouvir o meu constituint:e, a quem, talvez, mesmo não lhe patrocinando a defesa, pudesse prestar outra assistência qualquer. Assim raciocinando, c.omecei a pensar nas causas que po- deriam ter determinado sua súbita decisão de confessar o crime e seu inacreditável propósito de não se defender da acusação, nem permitír que colega algum o auxiliasse de maneira efícaz, Uma idéia, então, começou a preponderar em minha mente. Teria ele Sido dominado por um acesso de loucura? Não era rara a ocorrência de transtornos mentais em homens de gênio. Ele vinha de uma batalha enervante com a polída e a imprensa que se prolongara por vários dias. De um momento para outro, 15 passara certamente a ser odiado por todos os familiares da víti- ma. Não era, pols, absurda a hipótese de que sua mente houves- se, por fim, entrado em colapso. Ao pensar nessa alternativa, não pude continuar na poltrona. Passeí a andar de um lado para outro da pequena sala, numa inquietação que não cessou duran- te todo o tempo em que permaneci em casa, tentando organizar meus pensamentos. Agora, quando tudo aquilo já passou, não restando em meu íntimo senão a lembrança dos avanços e retrocessos de minha mente, numa fase de iniciação e incertezas, é que percebo que naquele exato momento o processo me conquistara inapela- velmente. Daf em diante, embora eu não interpretasse, na época, os meus sentimentos com a devida clareza, nada, absolutamente nada, conseguiria desvincular-me daquela causa cujos percalços estava, então, disposto a arrostar, fosse qual fosse o prejuízo. Minha mãe notava perfeitamente a minha lntranqüHida- de, maS não dizia palavra alguma, talvez com a secreta intenção de deixar que eu exercítasse minhas forças mentais, acostuman- d0-me a encontrar, sem aux(ljo externo, a solução para OS meus próprios problemas. Depois do café, ingerido em silêncio, vesti-me e saí com destino à Casa de Detenção, determinado a avistar-me com meu constituinte e a associar-me a ele nas vicissitudes do seu processo, 16 2 Quando o carcereiro descerrou as grades da prisão espe- cial em que se encontrava Jorge Muniz, ° quadro que se me de- parou foi o de um apartamento de hotel modesto, lIumínado satisfatoriamente por pequenas aberturas guarnecidas por barras de ferro. Uma cama estreita, um armário, duas cadeiras e uma pequena mesa, constituíam todo o mobiliário do aposento. Estirado na cama, os braços cruzados sobre o peito, numa atitude de profunda meditação, ° preso não fez movi- mento algum com a minha chegada, nem revelou, por qualquer expressão convencional, o menor interesse em minhi3 visita. Um tanto desconcertado com a imobilidade e o mutismo de meu constituinte, que eu, apesar de tudo, dada a minha con- dição de noviço, não podia aceitar sem um sentimento de humi- Ihação, sentei-me na cadeira mais próxima da cama e, enquanto meditava como iniciar a entrevista, fique! a examiná-lo física e psicologicamente por alguns segundos. Moreno, de estatura um pouco acima da mediana, cabe- los castanhos, finos, lisos e escassos, a começarem do topo de uma larga fronte, nariz aquilino, boca inexpressiva, faces leve· mente encovadas e uma palidez cadavérica, seriam os traços Inconcludentes daquela fisionomia se não estivessem ali, animan- do-a com um fulgor intenso, dois olhos que lampejavam deses- peradamente, como faróis de um barco sacudida pela tormenta. Se tivesse de definir aquela personalidade com fulcro nos dados que a sua aparência me revelara nesse primeiro encontro, tê-la-ia 17 descrito como um estranho fenómeno de supressão c...omp!eta das forças instintivas, cuja influência, mercê da maldade, da dor ou do desencanto, havia sido substituída por uma apatia extre- ma, insensível a todos os reclamos da natureza humana, Apenas aqueles o lhos, inquietos e brilhantes, pareciam lutar ainda contra o naufrágio total de uma estrutura anímica que as tempestades da vida teriam destroçado completamente. Depois de algum tempo, animei-me- por fim a dizer: - Sou seu advogado dativo. Vim buscar informações que me habilitem a funcionar no processo. o acusado, fixando-me os olhos, descruzou os braços e fo f aos poucos se levantando até sentar-se na cama. Quando já se acomodara na nova posição, disse~me: - Como o senhor não foi nomeado por mim, creio que só o juiz, autor da designação, poderá ter algum interesse em auxiliá-lo no cumprimento dessa tarefa. Não perdi ainda a capa- cidade jurídica de administrar meu patrimônio e, se quisesse, os maiores criminalistas do País estariam, a esta altura, revolvendo suas bibliotecas para demonstrarem que a linha sinuosa é o ca- minho mais curto entre dois pontos. Nada pedi, nada desejo e de nada preciso. A única coisa (lue o senhor poderia fazer por mim seria deixar-me em paz, se é que isso, a paz, ainda poderei encontrar na vida. Ouvindo essas palavras, que não me foram ditas em tom insultuoso, mas que, obviamente, liquidavam toda possibilidade de um entendimento entre nós, levantei-me e ao estender-lhe a mão em despedida achei que devia confortá~!o e disse-lhe: Se o senhor mudar de idéia e. Quiser confiar em quem não veio aqui interessado em seu dinheiro nem na proje- ção da causa, mas por simples impulso vocacional. queira comu- nicar-se com este endereço que o atenderei imediatamente, a despeito de tudo, 18 Jorge Muniz susteve na mão esquerda o cartão que lhe estendi, e sem olhá-lo, sem pronunciar qualquer palavra, sem fazer gesto algum de agradecimento, deixou que eu me retirasse do cárcere, cuia porta, logo a seguir, sobre ele se fechou. Um tanto aturdido com o que ocorrera nessa entrevista, segui para o centro da cidade e como a hora era oportuna, entrei no Palácio da Justiça e dirigi-me diretamente ao cartório do júri para ali formular um pedido ao juiz, desistindo do encar- go. Quando cheguei, fui logo avistado pelo escrivão que supon- do estar eu em busca dos autos, fez-me sentar junto à sua escri- vaninha e sobre a mesma depositou, para meu exame, o volu- moso processo, Embora meu propósito, àquela altura, não pudesse ser outro senão o de renunciar à designação do magistrado, aquele processo exercia sobre mim tão grande fascfnio que não pude reprimir a ânsia de examiná~lo, peça por peça. Sofregamente, e sem poder explicar a estranha paixá'o que aqueles papéis excita- vam em meu espírito, fui lendo, linha por linha, o que neles estava escrito, e olhando, como se fossem de personagens len- dárias, as fotos que aqui e ali surgiam por entre as folhas dos autos. Não sei ao certo quanto tempo permanecI sentado, nem dei conta das pessoas que transitavam pelo cartório. A denúncia, cujo inteiro teor eu ainda hoje seria capaz de repetir, sem omissão sequer de uma vírgula, continha, em resumo, a descrição de que uma dama da atta sociedade, casada há mais de um decênio com o acusado,fora encontrada morta, com evidentes sinais de envenenamento, havendo o exame de corpo de delito constatado a presença de elevada carga de T·61 nos despojos da vttima e, entre outras mais antigas, uma punctura recentísslma de injeção endovenosa no seu braço direito. As demais provas colhidas no inquérito afirmavam que a injeção havia sido aplicada pelo próprio acusado, o qual, logo a segu!r, retirara·se da mansão e partira para Santos, onde, no dia seguinte, foi detido pela polícia, negando terminantemente a autoria do crime. Várias testemunhas depuseram no inquérito, inclusive a filha da vítima e uma empregada que esterilizara a 19 seringa e vira o acu:moo aplicar a injeção. Outros elCll'0rrtOS. do processo inforn,Bvam que o réu, apesar de sua notoriedade como advogado, era relativamente pobre quando contraiu casa~ rnento com a dama assassinada, tendo toda sua fortuna advindo desse consórcio. As fotos da morta, a despeito do momento impróprio em que foram batidas, retratavam uma mu!her de notável bele- za, beirando os quarenta anos, de expressão p!ácida e risonha, talvez por força das características letárgicas do veneno empre- gado em sua eflminação. A denúncia, como é óbvio, imputava ao acusado a práti- ca de veneffcio doloso, com a agravante de ter sido consumado contra cônjuge, e ainda qualificado pelo motivo torpe, o qual decorreria de haver Jorge Muniz pretendido, com a ação lutuosa, apossar-se da fortuna da mulher. Pedia, em conseqüência, a pena máxima, e forçoso era admitir-se, tudo nos autos indicava que o acusado a merecia. Ê bem de ver que no interrogatório policial e!e sustenta- ra com bravura a sua inocência, esgrimindo entre outros argu- mentos o de qúe ninguém seria tão estúpido ao ponto de injetar veneno na vítima, estando presentes a flIha da mesma e outra pessoa. Na realidade, declarou e!e, a lnjeção aplicada teria sido de um sonífero a cujo uso a v{tlma se acostumara, tornando~se até mesmo indispensável à sua tranqüilídade, sobretudo nas noi~ tes em que ele dormia fora. Esses argumentos, entretanto, caí- ram por terra com o exame da própria ampo!a da injeção vene- nosa, onde estava gravado o símbolo clássico da caveira sobre as duas tíbias cruzadas e, além disso, com a confissão cabal que o acusado fizera em juízo, declarando serem verdadeíras as Imputações contidas na denúncia. Como eu consumira todo o tempo de expediente do car- 10rlO lendo e relendo os autos, não pude, naquela oportunidade, ingressar com a petIção que me excluiria da causa. Por instâncias do escrivão que desejava fechar a porta para ir almoçar, devolvi finalmente o processo e com a cabeça confusa voltei para casa. 20 Não tive coragem de dizer a minha mãe que meus servi- ços haviam sido dispensados. Ela, também, vendo-me abatido, acreditou talvez que o peso do encargo estivesse mortificando meu espírito e, bondosamente, não me fez pergunta alguma. Mal tinha eu, no entanto, começado a almoçar, quando um guarda do presídio bateu à minha porta e me transmitiu um recado de Jorge Munlz pedindo meu comparecimento à Casa de Detenção, com a ríspida advertência de que eu não me demoras~ se porque ele poderia mudar de idéia. 21 3 Voltando a avistar-me com o acusado, já agora a seu pe- dido e conhecendo quão graves eram as provas de sua culpabili- dade, senti-me pela primeira vez como seu verdadeiro patrono, sem direito a uma desistência honrosa da causa e, talvez por isso, minha timidez era bem maior do que na oportunidade anterior. Recebeu-me com a mesma apatia, com a mesma expres- são mórbida de quem luta para sobreviver sem Uma determina- ção firme, aparentemente aceitando qualquer solução como obra fnelutável do destino. Logo que me viu sentado, perguntou-me: - Que entende o senhor por "Erfolgshaftung"? Descrevi com proficiência, expondo, citando e compa- rando, o que os velhos penatistas alemães sustentavam e os mo- dernos Impugnam sob e!."Se título, e pergunteHhe se esta deveria ser a tese de sua defesa, Olhando-me inexpressivamente, respondeu: - Não, de forma alguma. Não creio que haja tese para minha defesa, A pergunta fOI !anç,ada a esmo, apenas para testar seus conhecimentos e saber se o senhor está em condições Inte!ectuais de tirar vantagem dessa causa. Sei que tudo está perdido e por isto pensei que, quando nada, alguém poderia be- neficiar-se dos acontecimentos, Acredito que o senhor poderá 23 fazê-lo. Não haverá, entretanto, dinheiro algum nessa causa, salvo, é daro, a indenização de seu tempo e despesas. - Porque o senhor pensa que um processo dessa nature- za, sem esperança de absolvição, possa beneficiar a um princi- piante como eu? - Se não percebe, desista logo da especialidade, Durante dez anos, talvez não haja outro processo igual em São Paulo. .Para quem souber tirar proveito, esta causa significa publicidade constante, meses a fio. Bastará que eu diga que acredito na sua capacidade, para que o senhor passe logo à frente de muitos outros que há anos forcejam por uma reputação. - Sim. Mas o senhor esquece que a possibilidade de absolvição é praticamente nula e que a minha reputação, nascen- do com essa causa, poderá também ser por ela sepultada, - Sei disso. Todavia, enquanto a decisão não for proferi- da, o senhor centralizará as atenções e irá obtendo êxitos em outros processos que compensarão, no julgamento público, o insucesso do meu. Além disto, existe coisa muito mais impor- tante do que a matéria dos autos, que o senhor poderá expandir em um romance e futuramente publicar, com enorme sucesso. A história do criminoso do ano. As minhas memórias ... Interessado. perguntei-lhe: - Porque entendeU, finalmente, de confiar-me a causa e, ao que parece, já agora muito mais do que ela? - Você é tão moço, parece sincero, está começando. , . - Muito bem. Agora, se o assunto não !he desagrada, va- mos estudar em conjunto o sistema de defesa que devo adotar e as fontes de prova a que posso recorrer. - t: inútil. Não lhe darei nenhum subsídio material ou doutrinário sobre a tarefa que o senhor vai realizar e que, desde 24 11 ti logo, 'fica sob seu exclusivo critério. Dar-lhe-ai, isto sim, uma narração completa dos antecedentes que conduziram minha mulher ao tümulo e me arrojaram neste presídio, ou, pior ainda, no cárcere maisterrfvel que, desde então, aprisiona meu espfrito. A história é longa e não pode ser resumida. Contrate uma este- nógrafa e venha aquí amanhã, que começarei a ditar. Ao dizer a última palavra, creio que Jorge Muniz se liber- tou de algum constrangimento porque sua fISIonomia impassível recebeu, ainda que levemente, uma excitação quase similar à que estimula o homem normal quando se dispõe a realizar algu- ma tarefa importante. Chegou mesmo a levantar-se da cama, aproximando-se de uma das grades por onde deixou que o olhar vagasse pela amplitude do céu coberto de nuvens escuras. Despedimo-nos, então. 25 4 Na noite daquele mesmo dia, conversando com minha mãe sobre a possibilidade de encarregá-Ia de taqulgrafar a narra- tiva de Jorge Muniz, estranhei vê-la recusar a tarefa, pois sempre buscava serviços com cujos proventos pudesse manter a casa. Mais tarde, foi que vim a compreender quais eram seus verdadei~ res propósitos, Enquanto estudava, percebi que ela se afastou por uns dez minutos, voltando depois com uma jovem vizinha que me indicou para executar o trabalho. Na manhã seguinte, eu e a moça comparecemos ao presí- dio. Enquanto ela diligenciava uma posição cómoda para colher o ditado, fiquei a observar as condições em que o acusado vivia. Surpreendi-me de não encontrar no aposento Um livro sequer. No armário, somente uma pasta de couro, cigarros e caixas de comprimidos que logo identifiquei como analgésicos e hipnó' ticos. Sempre limpo,mas sempre com a barba por fazer, quem ali ° visitasse teria a impressão de que eie pouco se locomovia, deixando'5€! ftcar em meditação profunda horas a fio, estirado ao longo da cama de ferro. Depo is dos cumprimentos e da apresentação da secretá· ria que ele aprovou com indiferença, Jorge Muniz começou a sua narrativa: "Rio de Janeiro, tarde escaldante, vinte anos atrás. Eu estava sentado, na pensão onde vIvia, em conversa com duas amigas que ali também moravam. Ela entrou, à procura de alguém. Tinha menos de vinte anos. Elástica, risonha, irradiando 27 juventude S, não sei se por peculiaridade exclusiva ou se pela representação que dela fiz, as suas formas sensuais cHlu íam-se numa expressão de ternura que afugentava de meu pensamento qualquer ideação pecaminosa. Sua cabeça loura e seu sorriso alvinitente semelhavam-se a uma lâmpada acesa. Essa primeira impressão soldou-se em minha mente, embora sem provocar a ânsia de aproximação que o seu porte, a sua afabilidade, a sua graça e a minha juventude justificariam. "Naquele tempo, estava eu ainda no segundo ano do curso de Direito, ensinava idiomas para manter-me e vivia mise- ravelmente naquela pensão, sem desejar empolgar·me em dema- sia com impulsos amorosos, para não comprometer a minha carreira, trágica ambição que eu não tinha forças para colocar em segundo plano, Mas, de qualquer forma, aquela primeira visão fixara-se tenazmente em meu esp ír/to. "Uma ou duas semanas após já éramos amigos, já nos beijávamos, já nos queríamos muito mais do que na realidade nos convinha, porque o nosso passionalismo tendia a precipitar- nos em um casamento precário que eu não poderia defender e conservar a não ser abdicando de meu futuro, Fosse eu dotado dessa virtude que a maioria dos homens possui de obedecer impensadamente aos reclamos do coração, sem alarmes premo" nitõrios, e tudo teria sido fácil. Teríamos sido mais felizes, ela hoje não estaria morta e eu não estaria aqui. Entretanto, como já avencei, sempre me perseguiu um sentimento de que adestran- do minhas forças intelectuais a vida fluiria para mim mais tran~ qüila, sem tropeços, sem vexames e humilhações. Terrível enga- no. Hoje posso comprovar. À medida que a gente se ilustra, var distendendo as cordas da sensibilidade e essa tensão permanente provoca do!orosas vibrações do espírito, submetendo nossos nervos e as fibras de nosso coração a roturas inelutáveis. "Porém, como naquela época eu assim não entendia, evitei abismar-me em um casamento suicida, ma!grado amasse perd ida mente aquela mulher e não tivesse dÚVida alguma de seu amor por mim. Embora não goste de esmiuçar ororrências mate- riais quando exponho alguma coisa, porque aprendi que elas não 28 retratam com fidelidade a vida, que melhor se compreende atra- vés da avafiação de seus transes emocionai.>, an ímicos, sentimen·· tais, é preciso que eu mencione alguns fatos de nosso relaciona· mento, para que se saiba que realmente nascemos um para o outro e que uma misteriosa fatalidade teria que, mais cedo ou mais tarde, unir as nossas vidas, mesmo ao preço de nossa des- truição futura. "A primeira intuição que tive da estranha força desse desígnio ocorreu dois dias após o nosso encontro inicial, porque tendo-a perdido de vista, não sabendo seu nome e endereço e não querendo ainda investigar a respeito, exatamente por temer o seu encanto, quis o acaso que em cidade tão populosa nos encontrássemos a pouca distância um do outro, quando acende- ram as luzes de um cinema que estava com a sua lotação quase esgotada. Como se isso não bastasse, era carnava! na semana seguinte, e eu, entendendo como Schopenhauer que a quantida- de de ruído que o homem suporta é inversamente proporcional à sua inteligência, aceitei um convite de meu professor de Direi- to Penal para passar com ele aqueles dias turbulentos em Teresó- polis, então uma vila, a fim de auxiliá~lo na tradução de textos que ele teria de citar em uma .obra que estava escrevendo, Por inacreditável que pareça, naquela mesma casa onde eu estava trabalhando com o mestre, ela apareceu à noite para juntar-se às filhas do professor, suas amigas, e irem a um clube local. Sem que combinássemos coisa alguma, sem que soubéssemos previa- mente onde um ou outro poderia estar, acabávamos sempre jun+ tos, como se alguma força sobrenatural nos aproximasse, ou melhor, como se o espaço-por si mesmo se encurtasse para com- portar finalmente apenas nós dois, num processo de exclusão progressiva que reduzia cada vez mais o número de outras pes- SOaS em seu âmbito. "Menciono este pormenor, porque, como se verá, a nossa vida foi sempre vincada de despedidas e regressos, extremamen- te emotivos e dramáticos. Por mais que contra nós conspirassem as contingências externas, o fato é que presos um ao outro pelos llames do sentimento, pela atração sensual e pela lrmanação do espírito, sempre voltamos a nos encontrar quando tudo parecia 29 des"truído, e nínguém, nem mesmo qualquer de poderia admitir com segurança que o nosso amor pudesse reviver com a mesma, e quiçá com mais intensidade do que naquetes anos ma~ ravilhosos de nossa juventude, "Quanto a mim, e estou certo de que com ela ocorria algo semelhante, o estranho magnetismo que me subjugava como a limalha ii ponta imantada, decorria de um sentimento perfeita> mente dosado de ternura e atração Instintivas, estimulado pela tranqüilidade, pela desambição das COisaS materiais e pela con+ fiança que ela me inspirava, Quando estava longe dela, mUitas mulheres me pareciam sedutoras, 'graciosas, apetecíveis; provo- cavam em mim desejos, gratidão, simpatia ou piedade. Entre- tanto, nenhuma, absolutamente nenhuma, me inspirou jamais todas essas sensações ao mesmo tempo, nem despertou em mim aquilo que, hoje eu entendo, determina a submissão vo!un- tária de um homem a uma mulher, ou seja, o sentimento de ad- miração, quando abarca ° corpo e o espfrito, "Muito teria eu a dízer em torno de nossa vivêncfa nessa primeira fase de vinculação amorosa, para retratar fíe!mente a intensidade de nossas relações, Resumindo, direL apenas que os grandes momentos de nossas vidas eram aqueles em que nos encontrávamos, e que embora nos desejando avassaladora mente, mantivemo-nos, durante todo esse tempo, na mera expectativa de nossa união futura, Ela, certa de que nos casaríamos, e eu acreditando também nessa possíbilldade, mas temendo que as solicitações da cidade tentacular, agravadas pela nossa pobreza, pudessem desnaturar depois, degradando intoleravelmente aquilo que eu reputava um milagre da lrmanação humana e que eu não poderia, de forma alguma, arriscar à influência deletéria do amblente, Amando·3 acima da satisfação dos meus desejos, preferia perdê-Ia antes de possur·!a, a ver depOIS destroçado o nosso lar pelss contingências de minha própria vocação, de mInha inaptidão para perseguIr o dinheiro, e sobretudo, de minha inflexível probidade, que não admitiria a lmo!açEo da- quela mulher em meu benefício e, porque não reiterar a confis- são, a renúncia ao meu progresso espiritual através do estudo, como teria sido forçado a fazer, caso assumisse, naquela época, os encargos de família. 30 "Achava"me, assim, confinado nos angustos limites do dilema deterao meu 1300, como esposa, a mulher que eu amava, sacrifkando minha carreira ou imolando aquda em favor de'i>ta última, Mas, dos pratos da baiança, o que mais pesava era real~ mente aquele em que eu colocara a mulher querida. Fata tmente, com mais um ou dois meses, teria eu caído em seus braços e esta história tomaria outro curso, não fora o e'fetivo ingresso do Brasil na segunda guerra mundial, "Com a mente confusa, procurando a verdade sem saber onde encontr.í-la e animado pelo espírito de aventura, próprio da mocidade, não me esquivei, como poderiater feito, à conscri- ção miHtar, e ansiando por baralhar as cartas de modo a saber o que realmente desejava, v(-me certa noite navegando em rota secreta. "O que fola nossa primeira separação, os jornais cinema- tográficos da época colheram por toda parte, sobretudo nas estações ferroviárias da França e nos portos da Inglaterra, proje- tando por todo o mundo ° adeus dos jovens que se separavam de suas noivas para a imersão no desconhecido. Crelo, todavia, que em nenhuma daquelas reproduções vi tanta ternura, tanta confiança e tanta emotividade, como nos beijos que trocamos na hora da despedida, "Naque!a viagem, vendo ac1ma o céu e embaixo o mar também infinito, sem pontos de referência, durante dias lntar" mináveis, selítario entre milhares de companheiros, seguiu-me sempre com sua presença dolorosa, pertinaz e envolvente, a lembrança daquela que eu deixara, "Os fatos da guerra são muito conhecidos, Sobre o que não se fala ê que vou dizer alguma coisa, não para ilustrar a quem quer que seja, mas, tão somente, para explicar as mu" taçêles de que foi sendo vítima o meu espírito, até evoluir para o estágio atual que, a despeito da situação em que me encontro, constituiria um património predos(sslmo para quem dele pu- desse ut1!1zar-se, ambiclonando ao menos viver, coisa que hoje seria frontalmente oposta aos meus sinceros desejos. 31 "Eu que, já na vida rotineira do Rio, considerava um risco ca!culado, mas sobremodo excessivo para nós ambos, a vinculação matrimonia!, quando assisti na Itália vilipendiada pe!a guerra, à inversão total de tudo que aprendera como sendo a expressão mais nobre da conduta humana, comecei a desen- cantar-me das normas de cultura vigentes e passei a dar nenhum apreço à moral familiar, que eu vira rebaixada ao nível. d~ ';l0ral dos cães nas cidades anteriormente ocupadas pelo inimIgo e posterior'mente exploradas pelos aliados vencedores. "Meu primeiro contata com a realidade socia! i~posta pela guerra àquele pa ís adorável, relicário de todas as manlfesta- côes da arte e da cultura, excedeu de muito, em seu impacto ~rrasador a todas as revelações que me tinham sido transmiti- das pela 'leitura de novelas sobre a situação a que se reduzem certas comunas em épocas de calamidade pública. Fora dos acampamentos, dos quartéis e hospitais, some~te um~ minor!a insignificante desfrutava a certeza de que no dIa segumt~ tena o que comer. A imensa maioria da população, nas Cidades abertas, perambulava pelas ruas e pelas praças sem ter o que fazer, ou melhor, espreitando a oportunidade de prat.icar assaltos receber esmolas do estrangeiro ou a ele prestar servIços lndecor~sos. Os homens transitavam aos magotes pelas avenidas, sujos, barbudos, sem rumo certo, COm suas faces esquálidas expressando angústia ou desespero. As crianças viviam de peque~ nos furtos ou acompanhavam os marinheiros e soldados, dos quais conseguiam, com sua insistência, arrancar bastões de cho- oolate, cigarros, goma de mascar e outros produtos inexistentes na terra, que vendiam por alto preço aos que lhes podiam pagar. As mulheres, de todas as idades, desde as mocinhas até as mães de família, prostituíam·se por um ou dois maços de cigarros, sem oposição de seus pais ou maridos que, moralmente arrasa- dos pelas contingências da catástrofe, não viam outra solução para a sobrevivência delas. Em qualquer bar ou restauran~e ~m~e os militares se encontrassem, ao seu redor e a prudente dIstanCIa agrupavam·se homens válidos, espreitando o momento em que eles atirassem ao chão os cotos dos cigarros que fumavam, para apanhá-los vorazmente, apagando a brasa, rompendo o invólu- cro de papel e guardando cuidadosamente em pequenas latas o 32 resto de fumo que houvesse, para posterior feitura de novos cigarros. Estes eram a moeda que resistia à inflação. "Lembro-me como hoje, de que uma vez, em dia de li- cença, transitando por uma avenida em Trieste, uma mulher de aparência razoável precipitou-se sobre mim fincando as unhas na minha túnica e fazendo súplicas delirantes por uma ajuda qual- quer. Tal foi o tumulto que ela produziu que uma patrulha inglesa de ocupação veio em meu socorro, forcejando por tirá-Ia de meu corpo sem que ela atendesse. malgrado as ameaças que lhe faziam. Eu, de minha parte, tentando ampará-Ia, protestei contra o emprego de violência, mas eles não me deram ouvidos e com ela se foram para não sei onde. "De outra feita, ainda condicionado pelas cautelas que em nosso País todos tomam em casos dessa natureza, segui à distância uma linda moça cuja aparência angelical não prometia mais que um simples namoro. Ao chegar em determinado loca! cujo asfalto estava marcado por um traço branco, tendo ao lado, em letras bem visíveis, a advertência "no traspassing", ela me fez sinal para que a seguisse de qualquer forma. Chegando a uma daquelas casas tipicamente italianas, com escadaria de már- more desgastado e cheirando a cemitério, subimos juntos. De- pois da porta única, alcançamos um segundo andar, passando por uma escada de madeira que rangia assustadoramente sob nossos pés. Era uma habitação coletiva e a moça bateu com fir- meza na porta de um dos quartos. Um ancião veio abri-Ia. Ao ver-nos, voltou-se para a larga cama que tomava quase todo o aposento e humildemente, com suas mãos trémulas, estirou o lençol que sobre a mesma estava enrugado. Depois, de cabeça baixa, fechou a porta e disse que ficaria esperando do lado de fora sentado no degrau da escada. ImpressIonado com a ocor- rência, expliquei à moça que o velho tinha provocado em mim uma influência inibitiva e que, por isso, eu preferia ir-me embo- ra, Ela, risonha, desembaraçada, não me entendendo bem, ten- tou dissipar minha g!aciaJidade, assegurando-me que o ancião era seu pai e que eu poderia ficar tranqüilo porque ele não im- portunaria. Um sopro mais frfgido ~assou pelo meu.cor~ e eu, para surpresa de minha companheira, dei-lhe o dinheirO que 33 usualmente se pagava às mulheres da pro"ftss,-50, retirando-me do quarto sem tocá·!a. "Em Outra oportunidade, encontrando um camarada de farda em um restaurante ao ar livre, acompanhado de um casa!, sentei~me ao seu lado e comecei a beber com eles. O par me foí apresentado como sendo marido e mulher. Mas, a certa altura da palestra, o meu companheiro, mais experimentado com os uros da terra e nâo sofrendo dos escrúpulos que sempre me inibiram, fez abertamente ii mulher uma proposta de conjunção cama! e ela automaticamente a transmitiu ao esposo, que não estava atento porque conversava cOI'lligo, r:. claro que o sangue me fu- giu do rosto, tanto peJa situação lns6!íta em que meu colega Se precipitara, COmo peja expectativa de uma reação violenta por parte do marido ultrajado, Ao contrário, porém, dessa conse- qüência, o que vi f.Ql o esposo concordar passivamente com o conchavo, estabelecendo, todavia, para que o mesmo frutificasse, um preço mais alto que o usual. "Posteriormente, estando bebendo vinho e escutando canções napolitanas em uma casa noturna, fui, depois de algum tempo, inquirido pela gerente se não desejava uma companhia. Ajudava pela copa uma menina de aproximadamente doze anos de idade. Para conferir até que ponto chegara a degradação mo- ra! daquele povo, disse-lhe que apenas poderia inten,Jssar"me pela criança, A mulher respondeu que eu estava querendo o impossível, porque ela não podia vender uma "bambina" e afastoL!-se aparentemente desapontada, Mas, passados alguns minutos, vendo que eu a nada me determinava, encaminhou',se decididamente para mim e aceitou a proposta por um preço que para ela seria alto, mas que eu podia, se quisesse, pagar na hora. Creio, porém, desnecess.:1rio dizer que apenas anote( men- talmente o fato, não me deixando degM3dar com a experiência. "Em outra ocasião, vi também um homem exibir sua esposaa alquns mHitares, forcejando por negociá-Ia para fins sexuais. Havendo um dos assediados dito grosseiramente que a mulher não era bonita, o marido empolgou-se e, com a insistên- cia de um corretor de títulos, dlst.'Orreu sobre as virtudes carnais. 34 da esposa, aduzindo, para maior efictida da propaganda, que ela havia sido amante de um genera! fascista. "Por fim, um outo evento de muito menor gravidade, que apenas vou mencionar para que não pensem que eu era um puritano e saibam que só me sentia realmente chocado ante fatos brutalmente contrários às leis da natureza e aos prfocfplos básIcos da moral sedimentada no decurso de séculos de civiliza- ção. Já retornava ao acampamento, à hora de recolher, Quando encontrei no percurso uma jovem tentadora. A seu convite, acompanhei-a através de uma rua parcialmente obstru {da por crateras de bombas que algum avião solitário lançara perversa· mente sobre a cidade aberta. Chegamos ii casa, onde também residia uma irmã de minha acompanhante. A noite era de calor ardente e como não se podia dormir, eu, na larga cama, deitado entre as duas, a passei em claro, saindo de uma e entrando na outra, até o alvorecer, que naquela época do ano, isto é, na ple- nitude do verão, alf OCOrre por volta das três ou quatro horas da madrugada, Isso me valeu quinze dias de prisão e a minha pri· melra doença venérea. Mas, felizmente, jã existia então, embora disponfvel para nós apenas, o antibiótico que ainda se usa nesses casos, de modo que, sem sofrimento algum, curei-me em poucas horas. "Como se poderia argumentar que essas experiências não retratam com fldelidade a decomposição mora! daquele povo, porque eu teria lidado apenas com 85 camadas mais baixas da sociedade, apresso~me em lembrar que uma das oonseqüên> elas primárias da guerra, entre os vencidos, ê exatamente a liqui· dação da solidariedade humana e o nivelamento de todos em sua degradação. Ali, de fato, não havia mais sociedade alguma. Apenas, esgueirando~se um pouco acima da massa, alguns espe- culadores que se endqueclam com o contrabando, com ° câm- bio negro, com o penhor, e com a agiotagem estimulada pela fragorosa desvalorização da moeda. t possível Que em toda a Itália, umas poucas fmn(!las de recursos i!im·ltados e residentes em lonas não pisad2$ pelo tacão tedesco, houvessem atravessa- do incólumes os vendava is da tormenta. Mas, simples gotas no oceano de infortúnios em que imergira todo o povo, essas 35 f~mrnas é que não poderiam servir de exemplo, com relação à dIátese gera! de que enfermava o país. . "Além disso, essa minha experiência era muito inexpres- sIVa se comparada com a cruel realidade, como vim a registrar na memória, ainda durante a minha permanência alI', através dos depoimentos daqueles que haviam servido na ocupação de outros países, ou dos que recolheram dados precisos sobre a invasão dos territórios da França e da Polónia. Na própria Ale- manha, .sobretudo em Hamburgo e Bremen, segundo testemu- nhos reIterados, andava-se horas seguidas sobre a neve, entre ruínas de cujos escombros surgiam mulheres vestidas de farra- pos negros, para atacarem virtualmente os soldados tentando negociar o corpo por qualquer coisa. Em resumo, o que eu vi, e note-se que não me refiro ao inevitável, isto é, às esposas e filhas deixadas em Varsóvia e Berlim que foram estupradas vinte vezes por noite pelas tropas russas, bastou para que eu compreendesse que a família, como a entendemos, é planta que só viceja em condições muito favoráveis e que seu apodrecimento é processo naturalissimo, tão logo a fome sobre ela se abata. Também não me reporto às ações indignas que foram provo-cadas pelo terror, como, entre exemplos multifários, a entrega das esposas judias aos crematórios nazistas, efetuada pelos próprios maridos, quando estes, nos raros casos em que não eram judeus, assim podiam acobertar-se das iras daquele abominável regime. Men- ciono apenas aquilo que eu vi em época de anormalidade tole- rável, quando a violência não mais imperava e já seria exigível um comportamento social que não proclamasse a todo instante que todos nós somos porcos, em busca apenas de um pretexto para chafurdarmos na lama de nossa degradação. "E fácil entender que avassaladora influência esses fatos exerceram em meu espírito, já antes atormentado pelas dificut- d~des de construir para mim e para a mulher que eu não esque- CIa, um abrigo invulnerável às agressões da sociedade. Dir-se-â que se todos assim raciocinassem, nada na vida seria feito. Hoje concordo com esse argumento. Entretanto, não custa repetir que eu já então possu ia de mim mesmo um conceito exacerbado de valorização pessoal, nada existindo Com potencialidade capaz 36 I I I de fazer-me imitar aos outros em sua vivência de irresponsabili- dade ou deboche. Sabia como vegetavam ,10 Rio casais eufóricos de jovens apaixonados, constritos a habitações coletivas, sujeitos à promiscuidade com os adultérios e torpezas dos quartos vi- zinhos, bem como ao fascínio das grandezas materiais dos que monopolizavam o dinheiro, estabelecendo entre aquelas vidas frustradas e a ostentação dos ricos, a chocante contradição que se observa ao comparar os "slums" londrinos e os pardieiros do East Side americano, com o conforto e a exuberância das man- sões de Pai! Ma!1 ou da Park Avenue. "Ainda naquela época comecei também a achar proce- dentes as contorsões subterrâneas do povo revoltado, que mais tarde eu víria de armas em punho nas montanhas da Grécia, tentando desesperadamente derrubar a monarquia, uma das poucas remanescentes, para substituí-Ia de um salto pelo regime ainda mais cruel da foice e do martelo. Mas, COmo não é minha pretensão inflar esta narrativa com questões políticas e sim con- finar-me à análise dos elementos de causa e efeito que determi- naram, depois de tantos anos de labor incansável, a minha queda vertiginosa, não voltarei mais a este assunto, para que possa me dedicar apenas à exposição dos antecedentes que culminaram na morte de minha mulher. "Como já disse, eu que partira em busca da interpreta- ção de mim mesmo, mas ansiando por pretextos que vencessem as minhas hesitações, pois que a falta daquela mulher me tortu- rava como se minha alma houvesse fugido na hora do embarque, passei a exercer tirânica repressão sobre minhas forças impulsi- vas, intensificando as frenadora!; que cedo tomaram conta do meu psiquismo, anu!ando-me a volição, malgrado a lembrança da indiz{vel felicidade que aquela mulher me dera com sua bele- za, com sua tolerância, com a doçura do seu sorriso, com seus beijos, com suas lágrimas de alegria, de ternura ou tristeza, Clue eu enxugava, ainda em seus olhos, com os meus lábios trémulos. "Finalmente, com essa tremenda carga de experimentos a oprimir-me o coração, regressei ao Rio depois de uma ausên- cia de quase dois anos daquela mulher que, para mim, absorvia 37 toda a cidade, Bcrn escassa fora a correspondência que trocára- mos, mas eu tinha a certeza de que a encontraria ii ,ninha espera, com a alma desimpedida de qualquer ilusão estranha." 38 5 "A descrição de nosso reencontro, se eu me propusesse a requintar esta narrativa como o escultor burl!a a sua estátua ou como o pintor retoca a sua paisagem, impediria que estas memó- rias se- encerrassem no curto espaço de tempo de que ainda d IS" ponho. Expansão repentina de toda a carga de ansiedade que comprimfamos em nossos corações, quando nos vimos e nos tocamos depois de tanto tempo, uma levitação milagrosa ergueu aparentemente os nossos corpos, fazenóo-Qs caminhar lado a fado, sem sentirmos se nossos pés tocavam a calçada, as vezes correndo, sem destino certo, sem qualquer objetivo racional, como se a intoxicação de euforia nos houvesse suspendido por sobre a terra, numa volatHlzação semelhante àquelaque mais tarde experimentef ao socorrer-me da morfina, visando esque- cê-la ou, quando nada, acolchoar a dor de sua ausôncia. "Mas, como ao cessar a vindima é impossfvef afastar o amargor da ressaca, depois daquele encontro, o esprrito de cen- sura que em mim, mais do que nos outros, sempre esmagou o instinto e as paixões dete decorrentes, voltou a atormentar·me, já agora com as visões sombrias da Europa envilecida, que agra- vavam a minha angústia de não dispor de recursos para definir com um m Coima razoável de segurança a nossa situação, "Tinha: eu pela frente, como já disse, o curso que ansIa- va completar, não como fazem os moços que se formam, mas como quem deseja dominar realmente a ciência que estuda, Essa tarefa que eu me havia imposto e que já se integrara à minha personalidade, reclamando o seu dgoroso cumprimento, 39 não era, pois, coisa que se realizasse mediante simples obediên- cia ao regime 'formal das 8r'..adem!as. Eu precisava de tempo, de tranqüi!idade, da concentração exclusiva de minha mente na pesquisa dos princípios e das doutrinas com que pretendia subli- mar o meu espirito e alçar-me por sobre os outros indivíduos dedicados ao mesmo labor. "Embora já fosse bem razoável o acervo de conhecimen- tos que eu então possuía, para lograr sem socorro exógeno algum êxito na sociedade, o fato é que, para dominar o pequeno, mas seleto mundo em que desejava pontificar, eu, realmente, não sabia coisa alguma. Versava, de fato, certas matérias ele- mentares e, como já disse, ensinava idiomas. Mas, para chegar onde desejava, dez anos de estudos sérios não bastariam, como mais tarde comprovei. Tinha que saber, praticamente de memó- ria, desde os textos b Iblicos até a prosa de Ruy I passando pela mitologia, pelo direito romano, pela história dos povos mais remotos, peja imensa literatura francesa, pela poesia britânica, pela sociologia, peja metafísica, pela lógica e pela dialética, pela psicologia e pela psiquiatria, pela biografia e pelos discursos dos grandes oradores, pelo conflito religioso que ensangüentou a Idade Moderna, pelo iluminismo dos enciclopedistas que alicer- çou a Revolução Francesa, pela supressão da burguesia em vários países, pelas lutas de classes desde o começo do tempo, pela derrocada dos mitos mais antigos e pela entronização de outros e, finalmente, ainda no círculo vicioso da história, pela submissão do proletariado aos seus próprios filhos, isto é, à nova classe de revolucionários profissionais que emergiu de sua atlvidade sub- terrânea para alçar-se com mão de ferro ao poder. HÃ margem de tudo isso, a aquisição de uma cultura universal, abrangente dos princípios básicos de todas as ciências, das noções fundamentais de todas as artes e ° exercício cons- tante de minhas faculdades intelectivas nos ampl (ssimos ramos da filosofia, da exegética, da literatura, da oratória e da retórica. E, além de todo esse alicerce, aínda as matérias de minha ambi- cionada especialização, que deveriam ser estudadas com prima- zia, isto é, direito penal, processual e penitenciário, medicina legal, jurisprudência, dogmática, criminologia e criminal(stica. 40 Um mundo de livros, uma tremenda tensão do raciocínio e um permanente exercitar da palavra para dar à minha prosa, escrita ou falada, o poder da doutrinação filosófica, aliado â harmonia poética e â penetração musical. "Se for oonsíderado que naquela época eu não tinha dinheiro, era obrigado a trabalhar para sobreviver e não podia renunciar ao amor daquela mulher com quem precisava casar-me imediatamente, entender-se-á o conflito devastador que lavrava em meu psiquismo e quão inatingível era a meta de minhas ambições. Mais uma vez, repito para a perfeita compreensão do problema, que minha situação não se resolveria com a simples graduação em um curso superior. O meu caso semelhava-se ao daqueles poucos indivíduos que, em todas as épocas e em todos os pa(ses, acreditam que são dotados de atributos excepcionais para rea[jzarem dentro de si mesmos a síntese da sociedade. Enfermava do bacilo de Nietzsche, sem entretanto permitir que minha mente fosse dominada pela crueldade de sua brilhante doutrina. Não seria eu ° super-homem no sentido de submeter os outros ao meu impiedoso domínio, mas, fazia questão cerra- da de superar a todos eles em conhecimentos, em ilustracão em finura e em bondade. . , "Se houvesse me precipitado no casamento, como meu instinto reclamava, teria sido, talvez, sensual e poeticamente 'feliz. Mas, a agitação da cidade esmagadora e a caçada perma- nente ao dinheiro, teriam frustrado a minha personalidade naquilo que ela possuía de mais recôndito e insopitáve!, isto é, a ânsia de saber e de sublimar o meu espírito, extraviando-me do gado humano que se aglomera pelas metrópoles, condicio- nado aos estímulos materiais da nutrição, da libido e dos pobres triunfos da acumulação monetária. Eu era vítima, portanto, de uma ambição infinitamente maior do que a daqueles que por dinheiro vendem a própria alma. O que eu queria era muito mais. Era enriquecer por dentro, de modo a poder amar a minha companhia mais do que a dos outros. Era em suma, nada menos do que a louca ambição de apresar o mundo Inteiro nas asas do espírito, 41 "Entretanto, a deflníção do roteiro de rninha \,lida, devo confessar, niro foi, como se poderia supor, no sem ido do SJcer- clócio intelectual ii que me propunha. Multo ao contrário, B ver- dade é que aquela mulher já flu ía pelas minhas artérias, e o mais que a mlnhB estranha dependêncla para com ela podia conceder- me era a busca de uma situação conciliatória em que, sem per- dê-Ia, eu também pudesse atender aos redamos de minha índo- le, obedecendo simultaneamente à sua radloatívidade e ao espf- rito de censura ou supereHo freudiano, que nada me deixava fazer impulsivamente. "Depois de multo considerar em torno do dllema e compreendendo que qualquer esco!ha deixada o problema inso- lúvel, porque uma alternativa me tiraria ° vinho e a outra me quebraria a taça, resolvi passar alguns dias em minha terra, a fim de avaliar as possib Hidadas de uma reaproximação com meu pai, pequeno comerciante em Pandora, que a despeito das diver~ gênc!as ideológicas que sempre nos separaram, tinha por mim uma admiração desmedida, acreditando-me um verdadeiro gênio a, em conseqüência, ambicionando tenazmente que eu abando, nasse a vida inquieta que levava e me dedicasse a estudos pro~ fundos, missão cujo. êxito ele antecipava com indísfarçável orgu- lho ante todas as pessoas com quem falava a meu respeito. "A esta altura, e para melhor compreensão de minha personafidade e dos antecedentes fam1fiares que a forjaram, é preciso relatar que quando de meu nascimento a minha famnia desfrutava de relativa abastança, sendo minha mãe muito jovem, de beleza peregdna e alguma cultura, enquanto meu pai era um homem franzíno, um tanto recurvado, de vivência metódica, dedicado a produzir d;nheiro e conservar, peio conforto e pela Vigilância, a extraordinária mulher que a fortuna lhe proporcio- nara, Por isso, a nossa casa, enorme como já não mais se cons- trói um daQueles casarõeS da época da col6nia, que hoje consti· tue~ atração turística da cidade de Pandora, ilumim.lVâ"se quase semanalmente para recepções socials em que se discutia sobre todos os assuntos e onde eu, com apenas quatro anos de idade, fazia papéis dec!amatórios e outras representações teatrais ao gosto da época. Impressionado com minha aparente precoddade 42 que, de fato, não era mais que o resultado do intenso treina- mento a que minha mãe me sujeitava, tal':ez para dlstrair~se do desamor que sentia por meu pai, foi que ele concebeu ti hipó- tese de minha genialidade e se empenhava por desenvo!vê-la a todo custo, "Ocorda, entretanto, que ao lado dessa disposição para comigo, crepitavaem nosso lar a chama da discórdia, e eu, des::'8 cedo fui testemunha de conflitos dramáticos entre meu pS! e minh'a mãe a pretexto de ciúmes que ele não podia controlar, talvez em face da plena consciência que tinha de sua inferior]·, dada física em relação a e-ta, da huml!hante dependência amoro~ Si! em que se achava e que, até hoje, ainda se percebe, lhe perdu- ra no íntimo. A propósito, lembro-me de que. " :' Ao chegar a esse ponto, Jorge Munlz fo'l forçado", inter- romper a sua exposição, porque ° carcereiro 6?trara. com o almoço. O!hando com desdém para o que lhe traZiam, disse-me: - Habituei-me a reduzir ao indispensável a minha alimen- tação" t. um processo que adoto há vários anos, Se niJo fumasse, crelo que poderia passar, insensivelmente, três dias sem comer. Vocês, entretanto, são multo moços e devem viver normalmente. Por isto, n50 os detenho, levantou-se da cama onde permanecera recostado, apriu uma pasta de couro, retirou um talão de cheques, e com a can~e ta que a estenógrafa estava usando, preencheu com a mao esquerda uma ordem de pagamento que me entregou, sem que eu a olhasse atentamente. Na reandada, eu também poderia dispensar o almoço para continuar ouvindo aquela narrativa. Mas, como estava acompanhado, precisei retirar-me para levar a moça até a sua casa. Quando já estava no ônibus, abrindo a carteira para p~. gar o transporte, re!anceei os o!hos pelo cheque de meu cr:nst!" tuinte e tive a emoctonante surpresa de ver que a quanhl no mesmo consignada cobriria regiamente o serviço da secretária e alnda daria para que eu e minha mãe, dentro do frugaEssimo 43 padrão de vida a que estávamos acostumados, não nos preocu- pássemos com dinheiro por mais de um ano. Talvez peio estímu- !o da ocorrência e pelo sentimento de orgu!ho que de mim se apossou, antecipando a satisfação com que minha mãe receberia aqueles meus primeíro5 honorários, comecei a rir e a conversar com minha secretária, estabelecendo com ela uma aproximação mais íntima e desembaraçada, Eu sei que quando a gente tem pouco mais de vinte anos, a aparência do sexo oposto é tudo ou quase tudo, mormente para quem, como eu, desde menino, vivera encerrado em casa e nunca tivera recursos para freqüentar, como muitos de meus colegas de Faculdade, as samaritanas que dessedentam a juven- tude e animam a velhice a protelar a humilhação da aposentado· ria. Nessa fase, é comum a gente mentalizar formas esculturais e associar as aproximações femininas com a possibilidade de uma fusão rec(proca ao calor de um amplexo sensual. Para a juven- tude a mulher é a fêmea. Se não é desejável, não tem prestígio. Não existe como mulher. Dificilmente, portanto, uma jovem sem caracterfsticas peculiares, ainda que não típicamente afro- disíacas, poderia despertar em um moço como eu era naquela época, sentimentos de aproximação mais intensos que os da fraternidade. Não sei, pois, qual foi a razão por que a minha secretária eventual, de óculos, sem pintura e sem malícia, come- çou a ocupar algum espaço no âmbito de minhas idéias, de mo- do a provocar em mim uma sensação de apego, enquanto nos aproximávamos de nossas casas, Do que falamos então, já não me lembro, e isto se me afigura como maiS uma prova de que meu bem estar era completo, Quanto a ela, eu sei que se lembra de tudo e poderia reproduzir ainda todos os meus gestos e até mesmo a entonação de minha voz, Quando chegamos, ela me disse que não demoraria e que logo poderíamos retornar ao presídio. Entrei pelos fundos de casa e descobri minha mãe, como sempre, atarefada na cozinha, Desde a soleira, eu avançara nas pontas dos pés para não fazer ruído, e tive a sorte de encontrá-Ia de costas e poder, com um movimento rápIdo, espalmando-a pelos ombros, Virá-Ia de frente e puxá-Ia para mim. Ela, que não estava acostumada a essas 44 efusões, ensaiou uma cena de artificioso protesto, entre risos e censures. Exibí-Ihe o cheque, embora sabendo que ela, sem ócu~ los, não poderia ler ° que nele estava escrito, porém certo de que avaliaria a importância do documento. Mas, ao invés de me fazer perguntas, como eu supusera, ela continuava a protestar, dizendo que estava atrasada no almoço e que lugar de homem não era na cozinha. ~ Pois bem. - disse-lhe. ~ Aítambém não é o seu lugar, e de agora em diante você vai ter uma empregada. - Para que serviço? ~ Para esse mesmo. Mas não pense que vai ficar desfi· !ando pelas avenidas, sorvendo chá com torradas ou passando todo o tempo nos teatros. Você vai ficar é comigo, cuidando de processos e arrumando as minhas petições, a não ser que já tenha esquecido o que meu pai lhe ensinou. Rindo-se, ela inquiriu: - Já tem tantos clientes assim? Ou será que você não quer fazer nada? Acostumou-se 'a estudar, comodamente recos- tado, e acha que tudo o mais é desprezível. Não deixa de ter alguma razão. Eu sou a culpada. Queria e consegui que você superasse seu pai, ao menos em conhecimentos teóricos. A vida dele foi muito difícil. Você tinha tudo para progredir, inclusive a nossa falta de dinheiro, que o afastou das más companhias. - Eu sei que tudo lhe devo, mas sei também que a cria- tura tem de ser suportada pelo criador. Agora, pois, agüente as conseqüências. Esse negócio de cozinha e máquina de costura não pode mais nos ajudar. Você vai ter de passar a vista em muita coisa que já alterou o sistema no qual meu pai trabalhava, para que eu possa cuidar de nós. - Você é quem sabe. Por ora, vamos cuidar do almoço, Enquanto ela me servia, foi sendo inteirada de todos os fatos que até então eu havia omitido, para não confessar~!he a 45 minha timIdez, as mInhas hüsltaçõss, e os pdmeir'O~; desaponta-- mentos que me trouxera o processo Jorge Muniz, mn cujo péi3~ go eu estava agora totalmente Imerso. Quando acabou de ouvir- me, e!a me disse: - O assunto é, realmente, de extraordinária importân- da. Não sei como você conseguiu ficar catado por todo esse tempo:, O homem que você está defendendo é o maIor crimina- !ista de São Paulo, Quando seu pai era vivo, assisti a várias de suas funçdes no Tribunal do Júri. t: um orador maravilhoso e sua clientela é enorme. Se ele fizer declarações favoráveis a seu respeíto, você não terá mais tempo nem para respirar. - Também seI, Não perco júri de mestre. Não há quem se dedique ao estudo do crime, que não o conheça. O meu pro- blema é que não estou atnda preparado para um pulo tão alto, Os colegas são impiedosos e tudo farão para ridicularlzar'me. - Não interessam colegas. Todos se odeiam cordial· mente, Não conheço dasse mais desunida, exceto a dos ladrões. O que interessa ê o povo, Você está preparado. Acredite em si mesmo. Não deixe a causa sair de suas mãos e faça. com que ele o recomende pela imprensa, - Está bem, - di5s8'!he, enquanto me dirigia à porta para receber a moça que chegav8, Vesti o casaco, beijei a minha mãe e segui com J secretária para O ponto do ônibus, 46 6 No presídio, o movimento era desusado. Várías camio- netas pintadas de Cores berrantes, com os títulos dos melhores jornais de São Paulo, estavam estacionadas no parque de entra" da, Na cela, Jorge Munlz, recostado como das vezes ameriores, falava a urna duzia de repórteres e fotógrafos que o assediavam com perguntas de toda natureza. Notando que, entre eles, eu tomara uma posição de retraimento, ordenou que seus interlo- cutores abrissem caminho e mandou que me fotografassem ao seu lado. A seguir, dispensou os Jornalistas que a custo se afas- taram e sem trair a mais leve emoção, djsse~me: - Podemos recomeçar. DePOIS, virando,se para a secretária que remexia em sua pasta escolar, perguntou: - Em que ponto ficamos? Consultando a última folha, ela respondeu; - Divergência entre seus genitores, por questões de ciú- mes de seu paL A ultima fraseé: "8 propósito, lembro-me de que.,," -- Prossiga: "quando nasceu a minha fHha única, meu pai já era cego e minha mãe já havia morrido há quase dofs lustros. Ele, portanto, nElo chegou a conhecer vlsua!mente a sua neta. Mas, quando ela começou a falar, ele percebeu que sua voz se 47 assemethava à de mínha mãe e, enquanto me confidenciava essa impressão, duas grossas lágrimas deslizaram lentamente pela sua face, até ficarem dependuradas à altura de seu queixo ressequi- do. Viveu, pois, todo o tempo, como eu também vivi, preso à mulher que amou, torturou e destruiu. "Voltando aos pródromos de minha existência e para melhor esclarecer noções já fornecidas em torno de minha vida familiar, recordo-me de grotescas cenas de ameaças em que meu pai, desesperado, de revólver em punho, tentava, por motivos externamente frívolos, intimidar minha mãe que, de uma cora- gem invulgar, o estimulava a acionar o gatilho, sem sair de sua frente. Depois dessas cenas que eu e meus irmãos assistíamos apavorados, ele, envergonhando-se de sua desintegração psíqui- ca e subjugado pela intrepidez da mulher que amava alucinada- mente, corria à cidade, regressando à noite, cabisbaixo, arre- pendido, lamuriento, trazendo-lhe jóias ou vestidos de alto preço. Ê escusado dizer que uma certa trégua então se estabele- cia, para explodir depois de uma ou duas semanas em novos entrechoques. Assim viveram até se desquitarem. Não resiS!in- do morar na mesma cidade, meu pai trasladou-se para aqui, onde se dedicou, como sempre, às suas atividades comerciais. Depois que ela morreu, ainda muito jovem, de um distúrbio cardíaco, ele voltou a Pandora para viver conosco, masjá havia caído muito em recursos financeiros e teve de reiniciar a vida com uma pequena loja de comércio. "Era, portanto, para ali que eu regressava depois de ter- minada a guerra, a fim de tentar a adoção de uma fórmula conci!iatória entre minhas ambições intelectuais e as exigências de meu coração, Como já disse, meu pai sempre foi rotineiro, tímido em tudo que planejava, e embora exagerando a minha acuidade intelectual, não confiava na estabilidade de meus sen- timentos e, desde logo, recebeu com glacialidade as alusões for- tuitas que eu lhe fazia em torno de meu pretendido casamento. Sem trair, não obstante, suas antigas esperanças de ver-me situado entre os homens mais ilustres do Ps ís, acolheu e estimu- tou calorosamente a outra face do dilema, isto é, aquela que tendia à minha exclusiva devoção aos livros e às coisas da ciência. 48 "Nessas circunstâncias, embora o mais saboroso fora reunir-me à mulher amada, o outro prato da balança ficou so- brecarregado de minhas inibições, de minha vocação para o estu- do, de minha indigência financeira, do temor de um fracasso conjugal 8, ainda, das exortações que em casa me faziam no sen- tido de não malbaratar os dotes intelectivos com que, afirma- vam eles, a natureza me agraciara generosamente, U A batalha que então se travou na minha cabeça, não foi fácil de comandar e nunca terminou, Eu sei que tudo que acontece na vida, acontece necessariamente. Mas, também sei que nosso futuro depende do concurso de uma infinidade de fatores que podem muito bem deixar de incidir sobre nós possibilitando-nos um certo arbítrio em nossas determinações: Dizer, portanto, que apenas fui fraco ou egoísta, equivaleria a derruir todo o positivismo, ressuscitando o princípio da volição espontânea. Hoje, quando já perdi a conta das centenas de acu- sados, de todas as camadas sociais, que passaram pela minha clínica criminal para curarem-se da perseguição judiciária, e quando já li tudo que merece ser Ilda sobre criminologia, psico- logia, psicanálise e psiquiatria, sem falar em minha dramática vivência que é, toda ela, um tratado sobre as paixões, seria imperdoável se eu cometesse o erro de achar que poderia ter procedido de outra forma. O que posso afirmar é que se fui objetivamente egoísta, no íntimo eu me acreditava um abnegado, e se fui covarde, no fundo me julgava um herói por ter tido a força de renunciar ao meu prazer pessoal, para não sacrificar aquela doce mulher, não demolir o mito de noSso amor, para enfim carregar sozinho a minha cruz, intentando construir duradouramente, ao invés de atirar~me com sofreguidão ao gozo efémero de relações sobre as quais pendia, suspensa pe!o acaso, a espada de Dâmocles. "Como todo espírito meditatívo, raciocinante, estóico, paciente, eu conservei no fundo da alma as memórias de minha convivência amorosa e, como o avestruz que enterra a cabeça na areia até que acabe a tempestade ou como o varão de Horácio que esperava o r10 passar para atravessá~lo, encerrei-me nas bi~ bliotecas e fui ingerindo sedativos livrescos com a mesma faina 49 desesperada com que Van Gonh Br'ct;Ja freneticatnsntf; de sol artificial as suas telas, para adestrar-se no pInceí e fugir 30'5 impactos da loucura. pouoo a pouco, um a um, foram sendo re- tirados e devolvidos às estantes de minha casa, às bibliotecas ptlblicas e às dos amigos, uma Infinidade de grossos tomos que que eu ia devorando numa atividade delirante, numa monomanla absorvente que me (.'Qnsumía todas as horas de vida. Noite após nOite, banhando o rosto e os pés em água "Fria quando o sono me acossava, sacudindo a cabeça mm violência ou fazendo outros exercícios fíSICOS, eu voltava ii mesa de leitura ou, quando já exausto da pc)sição encurvada, ao leito do meu quarto, onde ficava lendo, nunca menos de doze horas por óta, "Assim, como se ·fora um paraHtico, passei anos a fio, lendo e criticando mentalmente o que de melhor já se escreveu sobre filosofia, história, Direito e outras ciências auxl!iares. A Faculdade, eu somente ia fazer as provas. Quando ali chegava, era dlHci! decidir-me em que local deveria sentar-me. Meus cole- gas arrumavam'sc em vários círculos, deixando no centro de cada um destes uma cadeira vaga, na esperança de que eu me sentasse junto a eles e lhes ditasse as provas. Ordinariamente, eu baixava a cabeça ao chegar à porta do salão, fingindo não ver os grupos mais afastados e sentava-me logo na prlmeka vaga que me houvessem reservado, sem responder aos protestos elos que ficavam na orfandade. E bem de ver que certos professores rea- clonários, e assim os qualifico porque Direito não se aprende em academias, logo se íncumbíram de poupar-me esse constrangi- mento, fazendo-me sentar em suas próprias cátedras, situadas a grande distância dos aiunos, de modo que quando isso ocorria eu 'ficava impossibilitado de fazer as provas dos cQlegas, porém livre do assédio de suas perguntas. De qualquer modo, se fonna- tura ou cobção de grau valessem alguma COisa, no sentido da presunção de capacidade, eu poderia hoje alegar que sou forma- do mais de vinte vezes, porque a mais de duas dezenas de ana\- fabetos eu faciHtei a aquisição do diploma. Tudo isso, entre" tanto, é irrelevante, porque, como já disse, academias e formatu- ras nada têm a ver com estudo ou ilustração. As academias são fábricas de dlplornados, onde quem deseja aprender alguma coisa desperdiça predoso tempo entre a chalaça dos colegas e o 50 tédio d?s proh~ssores. Eu estava bem vivido e consegUI atraves- sar o pantano $em desaprender o que havia arrninenôdo na rnen· te, durante minhas incansáveis lucubrações, "No primeiro ano de minha ausência do Rio, eu e a víti, ma nesse processo que nos Qcupa, mantivemos uma correspon- dência de conteúdQ indefinido e índole prote!atóda que, com o passar do tempo, desesperançou-a completamente da união que tínhamos como certa quando nos separamos da última vez. Repentinamente, as cartas cessaram e ela desapareceu de seu primitivo endereço. A úrtima que !he escrevi fOI-me devolvida pelo correJo. De então em diante, não fiquei mais sabendo por onde efa andava, "Certa feita, porém, quando
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