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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CURSO DE DIREITO – CPTL RITA NUNES LIMA DE SÁ UM ESTUDO SOBRE ABANDONO AFETIVO NO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO TRÊS LAGOAS, MS 2018 10 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CURSO DE DIREITO – CPTL RITA NUNES LIMA DE SÁ UM ESTUDO SOBRE ABANDONO AFETIVO NO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação do professor Dr. Cleber Affonso Angeluci. TRÊS LAGOAS, MS 2018 11 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha família. Aos meus avós maternos, que lá do céu devem estar orgulhosos e comemorando comigo mais esta vitória. Dedico, ainda, à minha mãe, Marlene, que sempre esteve ao meu lado. 12 AGRADECIMENTOS Inicialmente, agradeço a Deus pela minha vida, pela oportunidade de estar realizando o sonho de concluir um curso superior através de uma Instituição pública. Foi isso que o bacharelado em Direito me proporcionou, além da bagagem de conhecimentos, convivência com pessoas que se tornaram amigos e muita superação. Obrigada DEUS de infinita bondade por tudo. Agradeço à minha família, que muito me apoiou para a realização deste sonho, aos meus novos e antigos amigos, desta e da outra graduação. Ao falar de amigos, não posso deixar de mencionar a japa Juliana Kubo Midori, que nunca mediu esforços para que eu não desistisse do curso, assim como por inúmeras vezes me deu abrigo em sua casa em decorrência de eu morar em outra cidade e não ter onde ficar. Eu não poderia falar em família sem falar do meu tio Mauricio, durante esses 5 anos de graduação me abrigou em sua casa com a intenção de me dar a oportunidade de estudar, uma vez que sozinha eu não conseguiria se quer pagar um aluguel, bem como por inúmeras vezes me viu chorar pelas dificuldades que enfrentei durante esses anos e me dizia: Filha, calma, tudo isso vai valer a pena. Agradeço também, ao meu namorado Lucas Danilo, que sempre esteve ao meu lado e sempre foi um dos meus maiores incentivadores para concluir este curso, obrigado por acreditar em mim, este sonho não foi só meu, mas sim nosso. Eu, te amo! Sou grata imensamente a todos os professores do curso, e principalmente, ao meu Orientador Cleber Affonso Angeluci, que foi um dos primeiros professores com quem tive aula no primeiro ano do curso, pessoa pela qual sempre tive admiração como professor e desde o início deste trabalho sempre esteve disposto a me auxiliar, e contribuir para que este trabalho fosse feito. Um abraço fraternal, professor! 13 RESUMO Este trabalho apresenta um estudo sobre as consequências do abandono afetivo, com o objetivo de estudar como o dano causado na vida de um filho pode ser reparado. Os métodos utilizados para a execução do trabalho foram leituras de livros e artigos, a fim de entender o conceito e o desenvolvimento histórico da família, evidenciando as mudanças que a mesma sofreu com o passar dos anos, chegando assim nas modalidades de instituição familiar no ordenamento jurídico brasileiro atual e, por fim, os princípios constitucionais do direito de família. Outro método utilizado para conduzir o trabalho, foi a análise de jurisprudências, com o intuito de compreender o entendimento dos tribunais sobre o tema. A análise das referências utilizadas permitiu entender que segundo a responsabilidade civil, é direito de quem sofre o dano obter reparação mediante indenização. Entretanto, é possível concluir que não há unanimidade jurisprudencial quando a questão é a reparação do dano causado pelo abandono afetivo, isso porque as decisões contra a reparação entendem que não houve dano. Palavras-chave: Direito de família. Direito Civil. Abandono. Afetividade. 14 ABSTRACT This work presents a study about the consequences of affective abandonment, with the aim of studying how the damage caused in the life of a child can be repaired. The methods used to perform the work were readings of books and articles, in order to understand the concept and historical development of the family, showing the changes that it has suffered over the years, thus reaching at the modalities of family institution in the current Brazilian legal system and, finally, the constitutional principles of family law. Another method used to conduct the work was the analysis of jurisprudence, in order to understand the courts' understanding of the subject. The analysis of the references used made it possible to understand that according to civil liability, it is the right of the injured part to obtain compensation through indemnification. However, it is possible to conclude that there is no unanimous jurisprudence when the question is the reparation of the damage caused by the abandonment affective because the decisions against the redress understand that there was no damage. Keywords: Civil right. Family right. Abandonment affectivity. 15 LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS CC Código Civil art. Artigo CF Constituição Federal 16 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17 1 O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FAMÍLIA ................................................ 19 1.1 CONCEITO DE FAMÍLIA ......................................................................................................... 19 1.1.1 A família em Roma ............................................................................................................... 19 1.1.2 Família e direito canônico ..................................................................................................... 21 1.1.3 Conceito moderno de família ................................................................................................ 22 1.2 AS MODALIDADES DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ........ 23 1.2.1 A família na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002 ............................... 23 1.2.2 Famílias contemporâneas ...................................................................................................... 24 1.2.2.1 Família matrimonial ....................................................................................................... 25 1.2.2.2 Família informal ou União Estável ................................................................................ 27 1.2.2.3 Família monoparental .................................................................................................... 28 1.2.2.4 Família anaparental ........................................................................................................28 1.2.2.5 Família homoafetiva ...................................................................................................... 29 1.2.2.6 Família eudemonista ou afetiva ..................................................................................... 31 2 PRINCIPIOS DO DIREITO DE FAMILIA ..................................................................... 33 2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA ........................................... 33 2.1.1 Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana......................................................................... 34 2.1.2 Princípios Da Igualdade Entre Os Filhos E Da Igualdade Entre Cônjuges .......................... 35 2.1.3 Princípio Do Planejamento Familiar ..................................................................................... 36 2.1.4 Princípio Da Não Hierarquia Entre As Modalidades De Família ......................................... 37 2.1.5 A Afetividade: Um Princípio Jurídico? ................................................................................ 38 3 ABANDONO AFETIVO ..................................................................................................... 41 3.1 ABANDONO AFETIVO: CONCEITO E DEFINIÇÃO ............................................................ 41 3.2 CONSEQUÊNCIAS DO ABANDONO AFETIVO.................................................................... 44 3.3 EFEITOS JURÍDICOS: RESPONSABILIDADE CIVIL POR RAZÃO DE ABANDONO AFETIVO........................................................................................................................................... 45 3.4 ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS ....................................................................................... 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 50 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 52 17 INTRODUÇÃO A instituição familiar ao longo do tempo sofreu constantes mudanças, uma vez que suas características não são formadas de forma estática. No entanto, a família é a primeira relação que o indivíduo tem com uma sociedade, e é neste meio que o mesmo adquire a formação de seu caráter. Esta pesquisa visa estudar uma das consequências que a ausência familiar acarreta na vida de um indivíduo: o abandono afetivo. Vale ressaltar, que tal ausência poderá ser afetiva ou material, e para que venha ser entendida melhor, estudaremos o instituto da responsabilidade civil. Este trabalho justifica-se pela necessidade de estudar como tem sido feito o amparo e reparo dos danos causados pela falta de afetividade, de modo a identificar as causas que são pautadas para ser fixada a indenização por danos morais para o filho abandonado afetivamente, em face de seu responsável legal. Muitas vezes, pela falta de preparação familiar a instituição aqui descrita passa por problemas, como por exemplo, a dissolução de tal instituição que resulta em inúmeras consequências, dentre essas, o abandono afetivo. Dessa forma, o trabalho versa de acordo com a importância de expor os motivos que são predominantes para motivarem o filho (a) abandonado por seu responsável a buscar reparação diante do Poder Judiciário. O presente trabalho está estruturado em três capítulos: O primeiro trata do desenvolvimento histórico da família, abordando o conceito e estudando a composição familiar com base no direito romano e canônico, chegando por fim, às modalidades de família que são compreendidas perante o ordenamento jurídico brasileiro nos dias atuais, ou seja: a família perante a Constituição Federal e o Código Civil. O segundo capítulo trata de quatro dos princípios constitucionais norteadores do direito de família, cujo objetivo é tutelar e garantir a aplicabilidade das normas constitucionais à sociedade. Tendo em vista que o ordenamento jurídico está baseado em princípios e que a Constituição de 1988 é principiológica, tal estudo faz-se necessário. Considerando a opinião de alguns doutrinadores, o final deste capítulo apresenta a visão dos mesmos sobre a afetividade ser entendida como um princípio. Por fim, o terceiro capítulo aborda o conceito e a definição de abandono afetivo, culminando nas consequências oriundas dessa conduta. Além disso, é estudado o 18 desenvolvimento do abandono afetivo dentro do ordenamento jurídico, bem como a maneira pela qual a responsabilidade civil é entendida nos casos de indenização em decorrência disso. A fim de ilustrar a falta de concordância dos tribunais sobre a existência do dano, são apresentadas jurisprudências a respeito do tema. 19 1 O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FAMÍLIA Para chegar a um conceito de família, é apresentada a origem da família e sua evolução histórica, passando pela concepção da família nos seguintes períodos: direito romano e canônico, pois “deixando de lado a família da antiguidade, em sua forma primitiva, é possível afirmar que a família brasileira tem como base a sistematização formulada pelo direito romano e pelo direito canônico” (NORONHA; PARRON, 2016, p. 3). A compreensão do núcleo familiar e suas características não foram e nem serão estabelecidas de maneira estática, uma vez que essa instituição passa por constantes mudanças ao longo da história. Melo (2014, p. 4) assegura que “a família surge como um fato natural, quer dizer, próprio da natureza humana, baseada fundamentalmente na necessidade de convivência entre pessoas (afetividade)”. Desta maneira, é clara a compreensão de que ao longo da história a família passou por transformações e neste capítulo será demonstrada sua evolução ao longo da história, baseado no direito romano e canônico. 1.1 CONCEITO DE FAMÍLIA 1.1.1 A família em Roma Segundo Gonçalves (2017, p. 31), “no direito romano, a família era organizada sob o princípio da autoridade. O pater familias exercia sobre os filhos direito à vida e de morte (ius vitae ac necis)”. Nesse ponto, cumpre salientar que a família romana (ou romano-germânica, numa concepção mais ampla) é a semente da qual brotaram diversos modelos de família pelo mundo, dentre eles, o modelo consagrado pelo direito brasileiro (LEITE, 2016, p. 222). Sabe- se então, que o direito brasileiro em muito herdou a tradição europeia, isto é, o europeu no que tange à justiça. Trata-se de modelos que se assemelham em diversos pontos da cultura ocidental, passando por questões religiosas, morais e filosóficas: Na raiz da cultura europeia, deste modo, estavam os frutíferos coexistência, confronto e reconciliação de percepções, poderes e perspectivas divergentes: fides e ratio, papa e imperador, Império e territórios singulares que constituíam o Império, Roma e Bizâncio, antiguidade clássica nas variantes grega e romana, tradição judaico-cristã e os sucessivos ataques dos exércitos muçulmanos facilitaram o surgimento do senso de identidade europeu, o papel das revoluções na reforma, mas também preservação da identidade, o sentido de ser livre ainda que limitado, os ideais de vita activa e vita contemplativa, o Deus único como a trindade divina, Cristo como um homem e Deus verdadeiro, o cristão que renúncia ao mundo e, no entanto, que simultaneamente o aceita: que, por reconhecer algo que é mais importante do que este mundo, ama mais 20 este mundo do que aqueles que nada conhecem além deste. Historicamente, a Europa e a cultura europeia são constructos intelectuais, estabelecidos por uma fértil tensão entre elementos distintos. A oposição entre a unidade e a diversidade elucida a característicadinâmica e a habilidade de crescimento e de desenvolvimento da cultura europeia. (ZIMMERMANN, 2016, p. 3). Ou seja, “nosso direito e pensamento jurídico modernos moldaram-se pelo direito romano” (ZIMMERMANN, 2016, p. 5). Dessa maneira, a base das famílias romanas era regida pela figura paterna, vista como a autoridade do lar; o pai era detentor do poder sobre seus filhos, podendo corrigir lhes como achasse necessário, e o mesmo para com sua mulher. Dentre os poderes do pater, estava sob sua responsabilidade a figura materna, pois a mulher era totalmente submissa ao seu marido e não tinha autonomia alguma em casa. A mulher, no núcleo familiar, tinha função de gerar filhos para fins de sucessão. Para Nader (2017, p. 9), a “família romana, como a da Grécia antiga, foi patriarcal. O pequeno grupo social se reunia em função do pater, que era o único membro com personalidade, isto é, que era pessoa. [...]” Em síntese: [...] a família romana agregava caráter de unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional. Enquanto a figura materna, para os romanos, demarcava a linhagem sanguínea, não influenciando, entretanto, nas relações civis, a figura paterna detinha o pátrio poder, exercendo mais que o papel de pai, mas também de chefe de comunidade. (CARDOSO, 2017, p. 9). Nota-se que não havia igualdade de gênero nas relações familiares romanas, pelo menos em uma primeira fase. Havia uma hierarquia masculina predominante, enquanto à mulher cabia submissão e procriação, o que foi um pouco flexibilizado na fase de Constantino. Melhor explica Melo, ao distinguir duas fases no direito romano: a) 1ª Fase – no antigo direito romano: A família era organizada em torno do pater família, que exercia sobre os filhos direito de vida e de morte, e que no qual a mulher cumpria um papel de total sobrevivência. O chefe de família era autoridade máxima sendo, a um só tempo, chefe político, religioso, sacerdotal e jurisdicional (pater potesta). b) 2ª Fase – já no século IV DC: Com o imperador Constantino, as regras foram atenuadas e a família tomou contornos mais de ordem moral e religiosa, permanecendo o marido como o chefe da família, porém dando-se maior autonomia a mulher. Neste período, também foi permitido aos filhos economia própria, especialmente os militares, que podiam administrar seus próprios soldos e como ele formar um patrimônio. Assim também os intelectuais e os artistas. (MELO, 2014, p. 5) Este modelo de família durou até o século IV, quando o imperador Constantino assumiu o poder de Roma. Dessa forma, são notórios os princípios similares adquiridos do direito romano e utilizados no direito da família atual, como o poder familiar. No entanto, com a queda 21 do Império Romano e o aumento do Cristianismo, houve mudanças no significado da família, que serão mais bem trabalhadas posteriormente. (ZIMMERMANN, 2017) 1.1.2 Família e direito canônico O direito canônico ganhou fôlego com o Cristianismo. As relações familiares eram concebidas via cerimônia religiosa, sendo que os pactos formados nesta união deveriam ser respeitados, tendo o casamento como sacramento, pois os homens não poderiam dissolver a união constituída por Deus. (GONÇALVES, 2017, p. 32) Com a ascensão do Cristianismo, a Igreja Católica assumiu a função de estabelecer a disciplina do casamento, considerando-o um sacramento. Assim, passou a ser incumbência do Direito Canônico regrar o casamento, fonte única do surgimento da família. (NORONHA; PARRON, 2016, p. 3). Esse marco histórico trazia resquícios do direito romano no que se refere ao poder familiar; no entanto, as relações familiares eram seguidas conforme padrões canônicos, como o surgimento de novas famílias exclusivamente pelo instituto do casamento. Por isso, “podemos dizer que a família brasileira como é hoje conceituada, sofreu influência da família romana, da família canônica e da família germânica”. (GONÇALVES, 2017, P.32) No caso do Brasil, a colonização portuguesa foi crucial para a definição dos rumos das famílias. As influências de Portugal tinham ligação direta com o direito canônico, o que fez com que a colônia absorvesse princípios como o matrimônio indissolúvel e o total controle da família pela igreja: Por muito tempo o casamento perdurou como a única forma de construção familiar juridicamente reconhecida, sempre vinculado às cerimônias religiosas. Tão somente em 1861, entretanto, foram reconhecidas juridicamente as uniões acatólicas, que passaram então a ter valor de casamento civil. A influência dos princípios do direito canônico aos casamentos civis ainda perdurou por muitos anos, tendo sido isto modificado tão somente em 1890, quando o Decreto nº 181 desvinculou o casamento civil do poder religioso, passando a ser celebrado somente por autoridades civis, não contendo o casamento religioso qualquer valor jurídico a partir de então. (CARDOSO, 2017, p. 13). Em 1916 o Código Civil brasileiro, ao ser criado, sofreu forte influência das normas advindas do direito canônico, dentre elas, a legitimidade exclusiva de uniões entre homens e mulheres, celebradas pelo casamento. Interessante perceber que o direito canônico, fundado em valores cristãos, trouxe alguns aspectos positivos, quando em comparação com o direito romano. A solidariedade é um 22 exemplo disso. Nascimento (2017, p. 12) salienta que, com o “surgimento da igreja católica e posteriormente ao direito canônico, aumentou-se muito a percepção da obrigação de pagar alimentos aos familiares, inclusive em relações extrafamiliares”, para exemplificar. A família é então desenvolvida no Brasil, na sombra do modelo europeu (especialmente, pela colonização portuguesa), mas, sobretudo “sob a tentativa de um controle intenso e repressor realizado pela igreja católica” (NORONHA; PARRON, 2016, p. 5). Sendo essa a raiz da família brasileira, fica mais compreensível estudar as mudanças que ocorreram desde então. 1.1.3 Conceito moderno de família Não é uma tarefa fácil conceituar família, haja vista que essa definição pode ser pessoalizada nas particularidades de cada indivíduo. Ainda assim, a doutrina tem se esforçado em estabelecer um conceito para família: A família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social. Em qualquer aspecto em que é considerada, aparece a família como uma instituição necessária e sagrada, que vai merecer a mais ampla proteção do Estado. A Constituição Federal e o Código Civil a ela se reportam e estabelecem a sua estrutura, sem no entanto defini-la, uma vez que não há identidade de conceitos tanto no direito como na sociedade. Dentro do próprio direito a sua natureza e a sua extensão variam, conforme o ramo. (GONÇALVES, 2016, p. 17). No ordenamento jurídico brasileiro, há a estrutura familiar conceituada em vários institutos, bem como pela Constituição Federal de 1988, em que se lê: “a família como a base da sociedade e mesma encontra proteção do Estado” (GONÇALVES, 2016, p. 67). Para Pereira (2017, p. 49), “ao conceituar a ‘família’, destaque-se a diversificação. Em sentido genérico e biológico, considera-se família o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum”. A Constituição Federal, no § 4º, do art. 226, traz o entendimento de família como: “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (PEREIRA, 2017, p. 27). No entanto, é apresentada apenas uma estrutura com normas a serem respeitadas, mas não uma definição efetiva. Isso ocorre porque inexiste um modelo definido,isto é, um conceito a ser apresentado como único e correto. Esse fato decorre da evolução da humanidade e do pensamento social, considerando a variação de parâmetros da sociedade conforme o tempo. 23 O fato é que pessoas formam vínculos a organismos familiares; estando nele, permanecerão vinculadas no decorrer de sua existência, logicamente que não de maneira efetiva, já que futuramente podem vir a constituir suas respectivas famílias, ou até mesmo se distanciar pela proporção tomada pelos rumos da vida, porém, o vínculo familiar permanecerá. 1.2 AS MODALIDADES DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 1.2.1 A família na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002 Para a compreensão de família conforme a visão constitucional, a história traz que a única modalidade compreendida, antes da modernização da família, era a constituição pelo casamento. O matrimônio era entendido como algo sagrado, sendo “abençoado por Deus”; tal pensamento era formado por influências religiosas, advindas do direito romano. A realidade apresentada era a seguinte: A mulher dedicava-se aos afazeres domésticos e a lei não lhe conferia os mesmos direitos do homem. O marido era considerado o chefe, o administrador e o representante da sociedade conjugal. [...] Os filhos submetiam-se à autoridade paterna, como futuros continuadores da família, em uma situação muito próxima da família romana. (VENOSA, 2017, p. 16). Atualmente, a Constituição de 1988 (CF/88) traz várias referências à família. O artigo 226 é o principal dispositivo a ela relacionado, entendendo que a família é o alicerce da sociedade, tendo total proteção do Estado (BRASIL, 2018, p. 77). Assim, conforme Venosa: A Constituição de 1988 consagra a proteção à família no art. 226, compreendendo tanto a família fundada no casamento, como a união de fato, a família natural e a família adotiva. De há muito, o país sentia necessidade de reconhecimento da célula familiar independentemente da existência de matrimônio. (VENOSA, 2017, p. 17). Antes, o Código Civil de 1916 regulamentava a instituição familiar unicamente formada pelo matrimônio, uma vez que a figura patriarcal era evidentemente valorizada. Entretanto, com os novos valores familiares e novas formas de família, foram necessários novos entendimentos quanto ao direito de família. Uma das normas responsáveis pelas mudanças de paradigma, com relação ao direito de família, foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948: A declaração da organização das Nações unidas (ONU) de 1948 proclamou a igualdade de direitos entre homens e mulheres no que se refere ao casamento (art. 16, 24 caput). da mesma forma com os filhos havidos ou não do casamento, ao preceituar que ‘todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social’ (art. 25, II). Considerou ademais que a ‘família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado’ (art. 16, III). Além disso, ao positivar o princípio da dignidade da pessoa humana e proclamar a igualdade entre todos os seres humanos, abriu a discussão sobre a igualdade dos cônjuges e dos filhos ao preceituar em seu artigo primeiro: ‘Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.’ (MELO, 2014, p. 7). Na esteira da DUDH e da CF/88, sobre o Código Civil de 2002: “as alterações introduzidas visam preservar a coesão familiar e os valores culturais, conferindo-se à família moderna um tratamento mais consentâneo à realidade social [...]” (GONCALVES, 2016, p. 22). São notórias as mudanças no decorrer do tempo quanto à família; com essa evolução, foram necessários novos entendimentos, surgindo, então, novas interpretações, jurisprudências, e então, novas visões de família, assim como compreende Gonçalves: Acrescente-se, por fim, que há, na doutrina, uma tendência de ampliar o conceito de família, para abranger situações não mencionadas pela Constituição Federal. Fala-se, assim, como: a) Família matrimonial: decorrente do casamento; b) Família informal: decorrente da união estável; c) Família monoparental: constituída por um ou dois genitores com seus filhos; d) Família anaparental: constituída somente pelos filhos; e) Familia homoafetiva: formada por pessoas do mesmo sexo; f) Familia eudemonista: caracterizada pelo vínculo afetivo. (GONÇALVES, 2016, p. 35) Essa ampliação, da trata Gonçalves, é fruto de uma interpretação abrangente do que entende a Constituição atual. Isso é “ A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, ou seja, a instituição familiar tem sua previsão legal na Constituição Federal, bem como a proteção do Estado. (BRASIL, 2018, p. 77) Diante de entendimento da carta magna, a família tem sua proteção estatal, sendo qual seja sua maneira de constituição ou até mesmo composição, desde de que seja uma família. Pois diante do Estado, o indivíduo tem sua liberdade de escolha nas relações, com base no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. No entanto, ocorre que existem entendimentos contrários a este dispositivo, pois diante do entendimento de grande parte da sociedade a família somente se originaliza através do casamento, de uma união estável, sendo as demais famílias ainda uma ideia nova, e pouca compreensão. 1.2.2 Famílias contemporâneas 25 É notória a evolução da família conforme as necessidades apresentadas pela sociedade. Certo é que a instituição familiar tão somente se firma nas relações pessoais onde se encontra afeto ou afinidade, podendo ela ter como membros quantas pessoas e quais pessoas sejam necessárias para a formação desse vínculo. A família moderna vem para quebrar paradigmas e enaltecer as relações entre os indivíduos, que cada vez mais passa por evoluções e transformações, sendo que a finalidade é somente uma: liberdade de opiniões e princípios. Para Gagliano e Pamplona Filho (2016, p. 119): “hoje o casamento, assim como as outras formas de arranjos familiares, não são fim em si mesmos, mas, tão somente, o locus de realização e busca da felicidade dos seus integrantes. Esta, aliás, consoante já anotamos, é a verdadeira função social da família”. Assim sendo, passa-se ao conhecimento dessas entidades familiares. 1.2.2.1 Família matrimonial A família matrimonial é a forma de família mais conhecida popularmente e pelo ordenamento jurídico, uma vez que é a mais comum e ainda muito evidente nos dias atuais. É o mais antigo instituto que surge com o casamento. Conforme entendimento de Maluf (2010, p. 19), a instituição familiar tem por influência o direito canônico, uma vez que a mesma é constituída através do matrimônio, havendo a concepção de sacramento, bem como era proposto pelos padrões religiosos, aplicando suas concepções no núcleo familiar. A família constituída através do casamento, como já mencionado, é a modalidade mais comum na atualidade, tal como, tem sua previsão legal expressa e clara no Código Civil de 2002 no artigo 1.511 “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. (BRASIL, 2018, p. 217) Na Constituição Federal é notório o entendimento de que o casamento tem sua previsão legal, assim como descreve artigo 226. Desta maneira, o parágrafo 1° transcreve quanto à celebração do casamento civil que será gratuita e o parágrafo 2° discorre quanto ao casamento religioso que terá efeito civil. (BRASIL, 2018, p. 77) Conforme entendimento de Maluf: O casamento civil é um ato solene em que o Estado intervém desde a habilitação, controla a existência de impedimentos,bem como a realização pela autoridade competente. Caracteriza-se por ser um contrato, pois se faz necessário o 26 consentimento das partes contraentes. Para ter eficácia erga omnes, registra-se o casamento no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais. (MALUF, p. 103) Ainda a respeito da natureza jurídica do casamento, a grande questão é que existem divergências entre as doutrinas. Ou seja: alguns entendem casamento por um contrato, outros entendem por um contrato especial ou ainda como instituição, ou seja, instituição ou contrato. (MALUF; MALUF, 2016, p. 5) Ademais, assim como se pode constituir a família através do casamento, a mesma tem autonomia quanto a sua dissolução, como previsto legalmente na CF/88 no art. 226, parágrafo 6º “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divorcio”. (BRASIL, 2018, p. 78) Isto posto, o divórcio vem como mecanismo de auxílio para as pessoas que não estão contentes com suas relações familiares, assim como “ [...] admitir que a dignidade da pessoa humana esteja acima da tentativa do estado de manter algo que já se findou, ou seja, o casamento que já não deu certo, o afeto já não existe mais”. (RIBEIRO, 2017, p. 23) Entretanto, quando se fala em divórcio, cabe mencionar que quanto ao tema houve mudanças através da Emenda Constitucional n. 66, de 13.07.2010, pois a mesma alterou o art. 226, § 6º, da Constituição Federal, enfatizando que o casamento poderá ser dissolvido através do divórcio, uma vez que anteriormente era necessária uma prévia separação judicial tendo como requisito mais de um ano ou também a separação de fato por mais de dois anos. (MALUF; MALUF, 2016, p. 32) Tratando-se de divórcio, abre-se uma discussão a respeito da culpa - se poderá ser questionada diante de um processo de divórcio - buscando entender se é possível responsabilizar alguém quanto à dissolução dessa instituição familiar. No entanto, não existe algo sólido a respeito deste pensamento. Para Maluf e Maluf (2016, p. 53) “ [...] a culpa esta intimamente ligada a um ato de vontade, a uma liberdade. A ideia da culpa no direito de família decorrente da ancestral descrição da família como uma instituição, e para sua ruptura, que ainda guarda certa polemica”. Conforme entendimento doutrinário, a culpa até poderia ser objeto de questionamento, dado que “o código civil admite a discussão da culpa pelo fim do casamento em sede de ação litigiosa de separação”. (CASSETARI, 2017, p. 661). Dessa maneira, esta discussão será em momento posterior à dissolução da conjugalidade, na ocasião de questionamentos de direitos adquiridos posterior à separação. A vista disso, conforme entendimento de Cassettari: 27 Com o fim da separação, a culpa não poderá ser discutida na ação de divór- cio. Assim sendo, a discussão sobre culpa fica mitigada com a modificação constitucional, pois ela será discutida em sede de ação de alimentos, para que o réu possa se defender quando buscar a improcedência do pedido com base no art. 1.704 do Código Civil, e em ação indenizatória, quando um cônjuge causar danos materiais, morais e estéticos ao outro, já que a culpa é elemento da res- ponsabilidade civil. Porém, cumpre lembrar que, no caso dos alimentos, as sanções do citado artigo podem ser relativizadas, como já explicado anteriormente. (CASSETTARI, 2017, p. 661) Diante disso, não há mais o que se falar em culpa na dissolução conjugal, sendo então que esse entendimento já foi superado. Ou seja, cada integrante de um núcleo familiar tem autonomia e vontade e poderá dissolver a união quando achar necessário. 1.2.2.2 Família informal ou União Estável A família informal, ou para alguns doutrinadores, união estável, se forma com a união de pessoas que queiram formar uma família, de forma tal que não se baseiam em formalidades, como por exemplo: o casamento. Esta maneira de constituição de família se pauta na convivência estável, durável e pública. Ao entendimento de Maluf: [...] a família formada pela união estável representa um fato natural e bastante presente na sociedade através dos tempos históricos, legitimada na realidade brasileira pela jurisprudência, por leis esparsas até contrar respaldo constitucional, rompendo assim a injustiça, o causismo, o preconceito, permitindo o homem inserido na tipologia de familia que melhor lhe convier possa, tendo sua intrínseca dignidade valorizada, desenvolver os atributos inerentes a sua personalidade. (MALUF, 2010, p. 108) No Código Civil de 2002, a união estável está reconhecida por meio do caput do artigo 1.723: “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2018, p. 227). A CF/88 também traz menção à união estável, em seu artigo 226, com o entendimento de que a família deverá ter proteção do Estado; nesse entendimento, vem o §3º, do artigo citado: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 2018, p. 77). Cabe frisar que o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 4277 e da ADPF 132, reconheceu a união estável homoafetiva, a despeito da CF/88 e do Código Civil trazerem “entre o homem e a mulher”. Isto porque a Corte atribuiu novo sentido aos artigos 1.723 do Código 28 Civil e 226 da Constituição Federal, interpretando-os conforme as leis como um todo, avançando na ampliação do conceito de entidade familiar. 1.2.2.3 Família monoparental A família monoparental, inicia-se com apenas um dos pais, assim como seus descendentes. Esta família não é tão comum por não ter como base um casal, como normalmente decorrem as demais modalidades de família, tendo sua origem através de uma relação “amorosa”. Poderá também ter sua constituição através de outra instituição familiar dissolvida ou até mesmo através de adoção. Desta forma, essa maneira de família difere do padrão “família tradicional”, no entanto, ela é totalmente protegida por lei, como é descrito no artigo 226, §4°: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL, 2018, p. 78). Neste entendimento, conforme Maluf: A familia monoparental configura-se de forma desvinculada da ideia de um casal e seus filhos, pois é formada pela presença e inter-relação da prole com apenas um dos seus genitores por diversas razões: viuvez, divórcio, separação judicial, adoção unilateral, não reconhecimento da prole pelo outro genitor, inseminação artificial (homóloga- após, a morte do marido, ou da mulher solteira, heteróloga), produção independente. (MALUF, 2010, p. 112) Ainda neste entendimento, conforme Costa: Um modelo familiar que difere da norma nuclear constituída é o das famílias monoparentais. Nesse caso, a família não é formada pela união de um homem, uma mulher e seus descendentes, mas sim por apenas um dos pais e seus filhos. Ocorre muitas vezes em caso de falecimento de um dos indivíduos constituidores ou então pelo abandono afetivo e patrimonial, geralmente por parte do pai, além da possibilidade cada vez mais comum da adoção de crianças por apenas um indivíduo. (COSTA, 2017, p. 33) A compreensão dessa modalidade de família é de suma importância para o Direito de Família, uma vez que a família constantemente passa por mudanças e, com elas, traz demandas a serem debatidas na esfera judicial. Assim, qualquer diferenciação é desnecessária, pois a família monoparental tem suas particularidades, mas com finalidadeigual a todas as demais famílias. 1.2.2.4 Família anaparental 29 A família anaparental - constituída sem pais - talvez não seja muito frequente em nosso ordenamento. No entanto, sua formação é resultado de conflitos de outras formas de família, uma vez que esta família é formada por filhos que tiveram pais e, por motivos alheios, também não estão dentro desta família. Melhor explicando: a família anaparental é formada por parentes em linha colateral (ou não parentes) na ausência dos ascendentes. Seu núcleo é formado pela vontade de ser família, isto é, o laço fraterno: “a convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o nome de família parental ou anaparental” (DIAS, 2015, p. 140). Barros (2003, s.p), que inclusive é o criador da expressão família anaparental, discorre em seu texto que “deve ser incluído na proteção jurídica um tipo de família cada vez mais frequente nos meios brasileiros, sobretudo nos grandes centros urbanos. São as famílias que não mais contam com os pais, as quais eu chamo famílias anaparentais”. Ainda neste entendimento, a Constituição Federal de 1988 de modo expresso, teve que reconhecer a entidade familiar conhecida como anaparental, de forma tal que a mesma por muitas vezes deriva de outra família como a que se originaliza do casamento, por exemplo. No entanto, é diferente do mesmo, tendo sua formação diante de apenas um dos pais. (BARROS, 2003, s.p) Assim sendo, “entende-se por familia anaparental, a convivência de parentes ou pessoas não ligadas por laços de parentesco, em um mesmo lar, dentro de uma estruturação com identidade de propósito de constituir uma família [...]” (SILVA, 2017, p. 49) Portanto, a questão é que as famílias em algum momento se diferenciam das demais, como é o caso da família anaparental, por terem suas próprias características. Mas a grande verdade é que independente de como ou onde for criado esta família, prevalecerá a finalidade de cada uma, ou seja, o interesse próprio de cada um pela qual escolheu se integralizar a esta modalidade de família. 1.2.2.5 Família homoafetiva A constituição familiar que resulta da união homoafetiva é alvo de grandes questionamentos, sejam eles no âmbito social ou jurídico. Juridicamente, o que se entende por família não traz distinção pelo gênero, no entanto, é preciso haver interpretações extensivas para que os direitos de pessoas classificadas como casais homoafetivos sejam resguardados. 30 Existe uma lacuna quanto ao real reconhecimento dessa categoria como família. A jurisprudência vem demonstrando que são necessárias mudanças, pois o assunto ainda é bem questionado quanto à sua legalidade: O ordenamento jurídico brasileiro não traz o reconhecimento dos direitos de união e de casamento do grupo LGBT, ou homoafetivo, mediante legislação, fruto de reflexão dos representantes do povo. Existe uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, que concedeu uma reinterpretação do artigo 1.723 do Código Civil na conversão das uniões estáveis em casamento. (MATTOS; DIAS, 2016, p. 3) Na opinião de Dias (2014), a Constituição Federal, ao ser interpretada de maneira extensiva, é clara no sentido de não discriminar quais seriam as famílias dignas de proteção, pois isso seria excluir determinadas entidades, ferindo o princípio da dignidade humana. Por isso, os tribunais têm se posicionado, no sentido de dar essa interpretação às leis vigentes no Brasil. Cabe mencionar que quanto à relação homoafetiva, “no Brasil, embora não tenha alguma legislação favorecendo essa união, é demonstrado conforma entendimentos doutrinários, bem como jurisprudência vem apontando e demonstrando o entendimento que essa família deve ser reconhecida como tal”. (MALUF, 2010, p.52) Desta maneira, é clara a problemática do entendimento de que as relações familiares seriam constituídas através de homem e mulher, porém, este requisito foi afastado conforme entendimento do STJ, bem como é entendido por Gonçalves: Assim sendo, as famílias formadas por pessoas homoafetivas não são menos dignas de proteção do Estado se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. O que se deve levar em consideração é como aquele arranjo familiar deve ser levado em conta e, evidentemente, o vínculo que mais segurança jurídica confere às famílias é o casamento civil. Assim, se é o casamento civil a forma pela qual o Estado melhor protege a família e se são múltiplos os arranjos familiares reconhe- cidos pela CF/1988, não será negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos nubentes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas e o afeto. Por consequência, o mesmo ra- ciocínio utilizado tanto pelo STJ quanto pelo STF para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável deve ser utilizado para lhes proporcionar a via do casamento civil, ademais porque a CF determina a facilitação da conversão da união estável em casamento (art. 226, § 3°) . (GONÇALVES, 2017, p. 39) Sendo assim, o casamento ou qualquer outra maneira de relação entre pessoas do mesmo sexo terão total proteção do Estado, estando seus membros resguardados de seus direitos e deveres quando estão enquadrados dentro de relações familiares, ou seja, o casamento entre pessoas do mesmo sexo poderá ocorrer, bem como ocorre entre o homem e a mulher. 31 Como já mencionado, uma vez reconhecida a união homoafetiva, a mesma diante do Estado não difere das demais relações, assim como a união estável ou até mesmo o casamento, pois “neste sentido, podemos perceber que a formação atual da família obedece a ditames pessoais, as liberdades individuais, com frontal valorização dos direitos da personalidade e dos direitos humanos” (MALUF; MALUF, 2016, p. 39). Outrossim, o reconhecimento dessa instituição familiar é de total importância para a atualidade, uma vez que tal instituição possui suas particularidades e ainda sofre diante da sociedade religiosa - que acredita na união somente entre homem e mulher - sendo então, o reconhecimento dessa família diante do Estado totalmente relevante, uma vez que ele reflete na atual sociedade. 1.2.2.6 Família eudemonista ou afetiva As famílias socioafetivas são baseadas no afeto, mostrando que, para ser classificado como pai e mãe, não necessariamente precisa haver relação de sangue, seja como for, o que irá prevalecer será o vínculo afetivo que os membros desta família têm e no qual acreditam. A relação familiar socioafetiva terá pai ou mãe “de coração”, ou seja, assemelha-se em certa medida com a adoção, uma vez que a relação será de afeto, de carinho, baseada em valores, e não em vínculo sanguíneo. A família eudemonista é uma instituição familiar inovadora no direito de família, fundada exatamente nesses vínculos afetivos, pois “o eudemonismo se caracteriza como a busca da felicidade, objetivo principal do sujeito quando decide formar sua família” (LOPES, 2018, p. 24). Para Cavalheiro: O conceito de Família Eudemonista é um conceito mais adequado à realidade social atual, uma vez que [...] há um interesse pela busca da realização individual, a sociedade familiar se manifesta no interesse mútuo, busca-se a igualdade entre os membros familiares e a felicidade e a afetividade entre eles. (CAVALHEIRO, 2013, p. 92) Dessaforma, pode-se pensar que esse novo modelo de família veio para concretizar a ideia que, desde meados do século XX para o início do século XXI, tem sido feita de família: aquela cujo vínculo é, basicamente, afetivo, já que, para que seja base da sociedade, a família precisa estar internamente bem resolvida e bem cuidada. 32 A família eudemonista em sua finalidade poderia ser entendida como um gênero das demais relações familiares existentes na atualidade, uma vez que busca a realização pessoal ou a felicidade de cada um de seus membros, como fazem os integrantes de qualquer das demais modalidades de família aqui já mencionadas, que terão evidentemente a mesma busca quando se integralizarem a um núcleo familiar. 33 2 PRINCIPIOS DO DIREITO DE FAMILIA 2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA A Constituição Federal de 1988 é reconhecida como uma constituição principiológica e visa enaltecer os valores jurídicos. À vista disso, em nosso ordenamento, as leis, sozinhas, não conseguem trazer entendimentos de forma efetiva, conforme a demanda evolutiva da sociedade, uma vez que as relações pessoais são amplas e variáveis. Consequentemente, no estudo do direito, é permitido utilizar-se de costumes como fonte, que tem por finalidade ser recurso de auxílio para os operadores da matéria se basear e buscar por melhores adequações quanto ao caso concreto e a qual entendimento se filiarem. Para Barroso (2013, p. 245), os “princípios constitucionais incidem sobre o mundo jurídico e sobre a realidade fática de diferentes maneiras. Por vezes, o princípio será fundamento direto de uma decisão” (grifo nosso). Dessa maneira, cabe esclarecer que os princípios surgem com a finalidade de auxílio para a interpretação judicial, por isso, há o entendimento de que não existe hierarquia jurídica entre os princípios e as regras. Discorrer acerca de princípios, significa tratar de fontes do direito, sendo que “entre todas as fontes do Direito, nos ‘princípios’ é onde se encontra a melhor viabilização para adequação da justiça no particular e em especial campo do Direito de Família” (PEREIRA, 2016, p. 57). Isso significa que, para que se chegue a uma correta aplicação da legislação nas demandas que passam pelas Varas de Família, é necessário que ela seja interpretada em conformidade com os princípios destinados a esse ramo do direito, os quais são delimitados neste capítulo. Conforme entendimento de Barroso: [...] prevalece a concepção de que o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente a segurança jurídica previsibilidade e objetividade e objetividade das condutas, e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto. (BARROSO, 2013, p. 343) Isto significa dizer que, conforme a estagnação da legislação e a evolução dinâmica da sociedade (especialmente das famílias), os princípios cumprem o papel de, uma vez flexibilizados, atenderem às demandas com uma justiça que a “letra fria da lei” não conseguiria realizar, pois está presa no tempo em que foi produzida, naturalmente, dado que é impossível que o legislador preveja o futuro das relações familiares. Logo, os princípios existem com a 34 função de fonte subsidiária ao direito, uma vez que surgiram para preenchimento das brechas legais (BARROSO, 2013). Para Carvalho: As diferentes perspectivas e os diversos discursos para compreender e aplicar o Direito excluem na atualidade uma concepção exclusivamente positivista, diante das diversas situações existentes que envolvem as relações familiares, que somente podem ser agasalhadas em um discurso principiológico que ampare a dignidade do ser humano, acolhendo na plenitude seus direitos fundamentais. Necessário, portanto, uma breve analise dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais norteadores do direito de família, que se tornaram fonte principal da norma, ao estabelecer regras norteadoras e as diretrizes básicas do sistema jurídico-familiar, impedindo interpretação dissonantes da legislação infraconstitucional que não promova o espírito igualitário e solidário das garantias fundamentais. (CARVALHO, 2017, p. 71) Assim sendo, o ordenamento jurídico está baseado em princípios que indicam o caminho que levará a alcançar determinada finalidade. A Constituição Federal de 1988 traz, em seu bojo, inúmeros princípios, cuja finalidade é tutelar e garantir a aplicabilidade das normas constitucionais à sociedade. O direito de família, consequentemente, conta com princípios próprios, voltados especificamente para as situações instauradas nesse âmbito. 2.1.1 Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana A dignidade humana é fundamento da República, conforme enuncia o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Nas palavras de Tartuce (2016, 2017, p. 7), é um “superprincípio”, isto é, o “auge” principiológico do ordenamento jurídico brasileiro. É inafastável, que herda a ideia de Kant de que o homem é “um fim em si mesmo”. Para o direito de família, especialmente, a dignidade humana trata-se de um princípio de grande importância, afinal, é o ramo do direito que mais interfere na vida privada dos indivíduos; trata-se, comumente, de uma seara em que estão sendo judicializadas demandas as quais envolvem o sentimento humano. Diante disso, considera-se a dignidade humana o “núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade” (LÔBO, 2010, p. 53). Segundo Gonçalves (2017, p. 23), este princípio consiste na “base da comunidade familiar, garantindo o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente”. Ou seja, na medida em que o princípio da dignidade humana é essencial para a comunidade familiar, ele auxilia na compreensão de que, 35 na seara do direito de família, a pessoa não deve ser reduzida a patrimônio. A realização e o desenvolvimento do ser humano dentro da família é o que está em evidência, sendo inadmissível sua coisificação, pois “viola o princípio da dignidade da pessoa humana todo ato, conduta ou atitude que coisifique a pessoa, ou seja, que a equipare a uma coisa disponível, ou a um objeto” (LÔBO, 2010, p. 53). Nesse entendimento, cabe mencionar que o que está sendo compreendido é a proteção individual de cada cidadão, sendo que, dessa maneira, ele será respeitado perante a sociedade, assim como consta na Constituição federal, no artigo 227, ao afirmar que é função da família, da sociedade e do Estado assegurar a aplicabilidade das garantias e dos direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes (BRASIL, 2018, p. 78). Ou seja, “a entidade familiar não é tutelada para si, senão como instrumento de realização existencial de seus membros” (LÔBO, 2010, p. 55). Em vista disso, o crescimento e a formação do caráter de um indivíduo são constituídos por carinho e educação dentro do núcleo familiar, visto que, é nesta instituição que serão ensinados valores e diretrizes para que o cidadão cresça e construa seus valores morais - que nada mais é, do que a realização prática do princípio da dignidade humana dentro da família. 2.1.2 Princípios Da Igualdade Entre Os Filhos E Da Igualdade Entre Cônjuges Na CF/88, § 6º, do artigo 227, o princípio da igualdade dos filhos, está assim disposto: “os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terãoos mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas a filiação” (BRASIL, 2018, p. 78). Segundo Tartuce (2016), trata-se de uma ramificação do princípio da igualdade em sentido amplo, trazido também, pela Constituição vigente (todos são iguais perante a lei), no artigo 5º, caput. Ou seja, se todos são iguais perante a lei, não há motivo para a própria lei discriminar filhos dentro de uma entidade familiar. Isto é: Em suma, todos os filhos são iguais perante a lei, havidos ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange também os filhos adotivos e aqueles havidos por inseminação artificial heteróloga (com material genético de terceiro). Diante disso, não se pode mais utilizar as odiosas expressões filho adulterino ou filho incestuoso que são discriminatórias. Igualmente, não podem ser utilizadas, em hipótese alguma, as expressões filho espúrio ou filho bastardo, comuns em passado não tão remoto. (TARTUCE, 2016, p. 16, grifos do autor). O que Tartuce (2016) quer dizer com “comuns em passado não tão remoto” é que a igualdade entre os filhos - apesar de hoje ser vista normalmente entre as famílias existentes - 36 anteriormente não existia, pois os filhos sofriam tratamentos diferenciados em decorrência de sua origem. Inclusive, esse entendimento era sustentado pelo Código Civil de 1916 (que ficou em vigor até ser substituído pelo Código de 2002, isto é, de fato, “um passado não tão remoto”. No que se refere à igualdade dos cônjuges, ela é demonstrada atualmente na CF/88, conforme artigo 226, §5º: “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (BRASIL, 2018, p. 78). Assim como Tartuce (2016) compreende que o princípio da igualdade entre filhos descende do princípio macro da igualdade, Dias (2015, p. 65) afirma que o princípio da igualdade entre cônjuges também é fruto do reconhecimento constitucional cuja “ideia central é garantir a igualdade”. Para ele, a Constituição foi enfática e “até repetitiva ao afirmar que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (CF 5.º I), decantando mais uma vez a igualdade de direitos e deveres de ambos no referente à sociedade conjugal (CF 226 §5º)”. Já na visão de Diniz (2011, p. 33), “com esse princípio desaparece o poder marital, e a autocracia do chefe de família é substituída por um sistema em que as decisões devem ser tomadas de comum acordo entre conviventes ou entre marido e mulher [...]”. Dessa forma, fica superada a desproporcionalidade trazida pelo Código Civil de 1916, que era discriminatório com as mulheres em diversos pontos, sendo mais importante a atribuição do “pátrio poder” ou da chefia familiar exclusivamente ao homem. Isso, nada mais era que um reflexo das famílias existentes no direito romano, baseado na submissão, em que a figura paterna era detentora de todo o poder e os filhos e a mulher eram totalmente submissos ao pai. 2.1.3 Princípio Do Planejamento Familiar O princípio do planejamento familiar tem por alvo demonstrar a autonomia das famílias quanto à sua construção, posto que, o casal dispõe de liberdade para escolher quantos filhos deseja ter, logo, esses filhos poderão ser de quaisquer origens escolhida pela família. Trata-se do conhecido princípio da não intervenção ou da liberdade, trazido no artigo 1513, do Código Civil vigente. Tem, ainda, “relação direta com o princípio da autonomia privada, que deve existir no âmbito do Direito de Família” (TARTUCE, 2016, p. 20). Conforme o Código Civil, não será permitido qualquer intervenção quanto às escolhas dos responsáveis pela instituição familiar (artigo 1.565): “o planejamento familiar é livre decisão do casal [...]” (BRASIL, 2002), sendo, ainda, um princípio constitucional. Afinal de contas, “quando escolhemos, na escalada do afeto [...], com quem ficar, com quem namorar, 37 com quem noivar, com quem ter uma união estável ou com quem casar, estamos falando em autonomia privada” (TARTUCE, 2016, p. 21). Válido lembrar que esse princípio demostra que há liberdade no poder de escolha do casal quanto à formação da sua família, bem como, por meio dessa liberdade. Em contrapartida, surge a responsabilidade quanto à criação e qualidade de vida dos filhos. De fato, a Constituição de 1988 incentiva a paternidade responsável e o planejamento familiar, não eximindo, no entanto, o Estado de fornecer os meios para tanto: educação e saúde pública de qualidade, assistência social às famílias, acesso à justiça, etc. Assim, “a liberdade se realiza [...] no planejamento familiar [...], sem interferências públicas ou privadas; na garantia contra a violência, exploração e opressão no seio familiar; na organização familiar mais democrática, participativa e solidária” (LÔBO, 2010, p. 63). Trata-se, pois, de uma limitação para garantir autonomia da família, porém, aliada a uma ideia de não abandono estatal. 2.1.4 Princípio Da Não Hierarquia Entre As Modalidades De Família O princípio em pauta simboliza a diversidade de famílias existentes, e que, mesmo existindo posicionamentos claros com relação ao tratamento de todos de forma igual, independentemente de suas escolhas (no caso, opções quanto à maneira com que constitui sua família), ainda existem distinções e relutâncias quanto à veracidade e validação jurídica de cada uma. Na doutrina de Dias, trata-se do princípio do pluralismo das entidades familiares: Desde a Constituição Federal, as estruturas familiares adquiriram novos contornos. Nas codificações anteriores, somente o casamento merecia reconhecimento e proteção. Os demais vínculos familiares eram condenados à invisibilidade. A partir do momento em que as uniões matrimonializadas deixaram de ser reconhecidas como a única base da sociedade, aumentou o espectro da família. o princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares. (DIAS, 2015, p. 67) Isto é, se as famílias são plurais, são diversas. Se os arranjos familiares são diferentes entre si, e, ainda, se existe o “superprincípio” da dignidade humana, aliado ao princípio da igualdade, então não faz sentido que um ou outro “modelo de família” seja hierarquicamente superior a outro. Assim, volta-se à premissa de que todos são iguais perante a lei. É inevitável percebermos que, mesmo existindo uma diversidade de núcleos familiares, “a família seguia um modelo único, formado exclusivamente a partir do matrimônio, restando excluídas do sistema as demais formas de união, que simplesmente não eram reconhecidas pelo 38 direito” (CALDERÓN, 2013, p. 231). No entanto, como bem pondera Dias (2015, p. 68), depois da CF/88, “excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares [...] é ser conivente com a injustiça”. Por isso, compreende-se, no âmbito do direito de família constitucional, que não há família válida ou família inválida, muito menos família com mais direitos do que outra. O que há é uma pluralidade de entidades familiares, que devem ser tratadas com igualdade. A busca da pluralidade da família (assim como igualdade de direitos) equivale a todas as famílias. Na verdade o que se busca é, unicamente, uma família, sendo ela como for - em sua origem ou componentes. 2.1.5 A Afetividade: Um Princípio Jurídico? Este princípio consiste no fundamento do “direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico” (LÔBO, 2010, p. 63). A afetividade dentro das relações familiares existia, mas não deforma tão clara como vista atualmente, passando a ser a base das relações familiares, conforme descreve Calderón: A partir do seu reconhecimento como elemento do convívio familiar, a afetividade fez percurso que pode ser descrito como da periferia ao cerne destas relações e, a partir de então, passou a exercer um outro e importante papel. O inicio deste século XXI tornou perceptível como a afetividade passou a figurar de forma central nos vínculos familiares, não em substituição aos critérios biológicos ou matrimonias (que persistem, com inegável importância), mas ao lado deles se apresentou como relevante uma ligação afetiva. [...]. (CALDERÓN, 2013, p. 205) À vista disso, é notória a necessidade da presença do afeto nas relações familiares, dentro dos núcleos familiares bem como nas relações pessoais, de maneira que o poder de amar e respeitar ao próximo são demostrados por meio de cada indivíduo de forma diferente. Dessa maneira, “a afetividade, o amor, o carinho [...], são indispensáveis ao convívio entre pais e filhos, caso contrário haverá lesão a dignidade moral destes” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2016, p. 40). Tanto é que o afeto é apontado pela doutrina como a base das relações familiares; em um contexto pós-Constituição de 1988: “mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana” (TARTUCE, 2016, p. 23-24, grifo do autor). Para Tartuce (2016), Dias (2015) e Lôbo (2010), o princípio da afetividade é válido como um princípio jurídico do direito de família, apesar de não previsto expressamente na legislação. Para explicar esse fenômeno, Tartuce (2016, p. 24) explica que “os princípios 39 jurídicos são concebidos como abstrações realizadas pelos intérpretes, a partir das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais”. A solidificação da afetividade como princípio de direito de família significa a tentativa de conforme dito anteriormente, não reduzir as relações familiares ao aspecto patrimonial, a fim de não objetificar as pessoas, ferindo o princípio da dignidade humana. Evidentemente, não se pode obrigar alguém a amar outra pessoa. Porém, quando se fala em afeto dentro da família, fala-se em uma interação inevitável, que deve ser compreendida e da qual o Judiciário não pode se esquivar - sob pena de estar pondo de lado a maneira com a qual a dinâmica familiar afeta os indivíduos nela contidos - até porque “o vínculo familiar constitui mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico” (TARTUCE, 2016, p. 25). Exatamente por isso, muito se discute a possibilidade de reparação quando há o descumprimento da afetividade. Cabe ressaltar que o que se pretende reparar é o não cumprimento dos deveres do poder familiar dos pais para com os filhos, não tendo a pretensão de questionar o valor do amor ou afeto. A CF/88 mostra um rol de direitos individuais e sociais, uma vez que cada indivíduo tem direito à dignidade perante o ordenamento, o Estado-juiz deve assegurar a todos a dignidade humana. Para Diniz (2010, p. 71), “ainda que com grande esforço se consiga visualizar na lei a elevação do afeto a valor jurídico, mister reconhecer que tímido mostrou-se o legislador”. Ainda conforme entendimento do autor: O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Igualmente tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade universal, cujo lar é a aldeia global, cuja base é o globo terrestre, mas cuja origem sempre será, como sempre foi, a família. (DINIZ, 2010, p. 71). Ou seja, conectando todos os princípios citados concernentes ao direito de família, todos convergem para o mesmo sentido: a relação privada familiar de afeto, pessoalizada e não objetificada por meio da estrita patrimonialização - que em um passado não muito distante era o que ditava as regras do direito de família. Dessa maneira, para Silva (2017, p. 67) “a afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico”. Para Maluf e Maluf: 40 A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações. Assim, a afetividade é um dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles”. Assim, “sem qualquer contradi- ção, podemos referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes entre si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si, e aos cônjuges e companheiros enquanto perdurar a convivência. (MALUF; MALUF, 2016, p. 49) Assim sendo, o afeto é algo que não pode ser manipulado, até mesmo exigido, no entanto, o mesmo é o elemento irradiador da convivência familiar, ou seja, qualquer relação familiar terá o elemento afeto. 41 3 ABANDONO AFETIVO 3.1 ABANDONO AFETIVO: CONCEITO E DEFINIÇÃO O objeto de estudo do Direito de Família nos últimos anos tem se mostrado evidentemente aceitável aos laços emocionais diante das relações familiares. Isto é, a família na sua evolução, nitidamente, passa por um processo de constantes mudanças, e, nessa perspectiva, o afeto tem sido a motivação de discussões da esfera familiar. Todavia, a falta de afeto diante da estrutura familiar (e vislumbrado sob o alcance do desamparo e desprezo) coloca o abando afetivo na esfera jurídico-social, com discussões de ordem técnica e conceitual, pois “o afeto, no sentido de cuidado, conduta, não pode faltar para o desenvolvimento de uma criança” (BARBOSA, 2015, p. 404). Dessa maneira, entendem Pereira, Coltro e Oliveira, a respeito de afeto: O bebê humano necessita dos dois alimentos: o nutriente, de preferência o leite materno, e o afeto. Faz-se necessário esclarecer que afeto não é dizer ‘te amo’, beijar e agarrar, mas é dar cuidados de qualidade, é respeitar sua vulnerabilidade, é ajudar para que ele caminhe no processo de organização de sua mente facilitando seu amadurecimento neurológico, é proteger e incentivar suas explorações do mundo e das relações com as pessoas. Enfim, é olhar no olho do bebê sempre que ele procura o olhar da mãe. (PEREIRA; COLTRO; OLIVEIRA, 2017, p. 23) Ainda sobre o afeto, Barros entende que: O direito ao afeto é a liberdade de afeiçoar-se um indivíduo a outro. O afeto ou afeição constitui, pois, um direito individual: uma liberdade, que o Estado deve assegurar a cada indivíduo, sem discriminações, senão as mínimas necessárias ao bem comum de todos. (BARROS, 2013, s. p) Sendo assim, é claro o entendimento de que o ser humano desde o seu nascimento e até após sua formação adulta, necessita de afeto, bem como dos alimentos devido às necessidades biológicas. A ausência afetiva resulta em problemas para sua formação, sendo estes, talvez, irreversíveis. Na opinião de Pereira, Coltro e Oliveira (2017, p. 21), o abandono acontece dentro dos lares, ou seja, é intrafamiliar. Existem laços afetivos rasos, nada consistentes, porque muitas vezes as crianças são geradas para cumprir um roteiro preconcebidode família feliz para a foto. Para Maluf e Maluf: O abandono afetivo é um conceito novo atribuído à ausência de afeto entre pais e filhos, em que estes buscam por intermédio de demanda judicial a reparação dessa lacuna existente em sua vida. Vê-se, entretanto, que o al- cance do princípio jurídico 42 da afetividade não abrange o obrigar o amor ou a demonstração de afeto entre as pessoas. Mas posicionam-se os tribunais favoravelmente à indenização por abandono afetivo: ‘o art. 226 da Consti- tuição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória’. Dessa forma, ‘o abandono afetivo nada mais é que inadimplemento dos deveres jurídicos de paternidade’. (MALUF; MALUF, 2016, p. 51) Sob tal conceito, percebe-se a importância do tema sob a visão da situação de vulnerabilidade em que fica o filho na posição de “filho abandonado”, que é alguém negligenciado, vítima de omissão, de indiferença, de ausência de afeto e amor. E, diante de tal ausência familiar (pode ser ela paterna ou materna), o filho busca por reparação em vias judiciais. Uma das formas de abandono afetivo pode ser ocasionada pelo genitor que, ao deixar o lar, passa a viver em outro e se esquece de suas obrigações como pai. Ou seja: “No caso do abandono afetivo há a ausência ou a raridade do quesito afeto, fator essencial para legitimar a criação e o cuidado” (ALVES, 2013, p. 4). Dessa forma, a criança tem uma relação mais distante com quem a abandonou, o que se nota é que, por algum problema em que se encontram os responsáveis pelas crianças, eles se distanciam dos filhos, resultando no abandono. No entanto, é valido ressaltar que é muito comum também o abandono de maneira material, quando os filhos são deixados com algum responsável legal, o qual precisa arcar com todas as despesas do menor, sem qualquer ajuda do outro responsável, precisando este ser lembrado de suas obrigações para com os filhos mediante vias judiciais. Cabe frisar que, nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil, encontra-se o poder familiar mencionado como um dever, sendo que é comum entre os genitores ou, melhor dizendo, os responsáveis pelo sustento e proteção dos filhos, de maneira que se faz entender o quão são fundamentais para o desenvolvimento sadio. Conforme Tartuce (2017, p. 507), entende-se o poder familiar “como sendo o poder exercido pelos pais em relação os filhos, dentro da ideia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto”. Para Gonçalves (2017, p. 410), o poder familiar é “um conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante a pessoa e aos bens dos filhos menores”. Sendo assim, conforme artigo 1.630, do CC, “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menor” (BRASIL, 2018, p. 223). Dessa forma, é entendimento doutrinário que o poder familiar, conforme transcreve o Código Civil 2002, será exercido pela mãe e/ou pelo pai, deixando de lado a visão de que somente a figura paterna é poder supremo da casa, entendimento este totalmente superado. Ou 43 seja, há direitos e deveres iguais aos responsáveis pela família (LOBÔ, 2017, p. 507). No entanto, o poder familiar poderá ser extinto por decisão judicial ou, bem como dispõe o artigo 1.635 do Código Civil: Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar: I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5º, parágrafo único; III - pela maioridade; IV - pela adoção; V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638. (BRASIL, 2002). (BRASIL, 2018, p. 223) Assim extinto, o poder familiar poderá ser suspenso, bem como dispõe o artigo 1.637, do atual código civil: Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. (BRASIL, 2018, p. 223). A suspensão é uma “sanção aplicada aos pais pelo juiz, não tanto como intuito punitivo, mas para proteger o menor” (GONÇALVES, 2017, p. 432). Ou seja, o critério para se avaliar a suspensão do poder familiar será sempre o melhor interesse para o menor. Dessa maneira, o poder familiar tem como finalidade o melhor interesse para com o menor, estando sujeito à suspensão, uma vez que não sejam respeitados os critérios estipulados por lei, pois a real finalidade é o melhor convívio entre os integrantes da família. As decisões a serem tomadas mediante os pedidos de reparação diante do poder judiciário irão seguir pelo caminho do melhor interesse da criança, sendo o mesmo um princípio “que leva em conta primordialmente a condição especial de serem pessoas em via de desenvolvimento e que em todos os atos relacionados com a criança deve ser considerado o seu melhor interesse” (PEREIRA, 2008, p. 952-953). É bastante comum, diante da dissolução da união do casal, que os laços afetivos com os filhos sejam desconsiderados. A partir de divórcios litigiosos, as relações que dali em diante serão estabelecidas, sofrem influência dos resultados oriundos da dissolução familiar, pois surgem obrigações, como prestações de cunho alimentar que dão ensejo a relações conflituosas entre pais e filhos. 44 Os reflexos do abandono afetivo são percebidos na vida e no desenvolvimento da criança e do adolescente no decorrer de sua formação como ser humano. Com o passar do tempo, os resultados surgem naturalmente e são refletidos por meio de ações ou comportamentos dessas pessoas. No entanto, esses reflexos não são previsíveis, uma vez que são variáveis de acordo com cada pessoa, sendo que cada um reage diferente diante de determinadas situações. Assim: As consequências desse abandono são as mais variadas, e incluem estigma de rejeição, de ser ignorado, destrói princípios, desvia o caráter, desestrutura personalidades, destrói a autoestima e a autoconfiança da criança ou do jovem, o que poderá acarretar, no futuro, a construção de um adulto desestimulado, que apresenta dificuldades em expressar seus sentimentos, bem como com problemas psíquicos, como por exemplo, depressão, ansiedade, traumas, o que será refletido nas pessoas que convivem com ele. (ALVES, 2013, p. 3). Nesse contexto, muitos buscam nas vias judicias, uma tutela diante de um reconhecimento de paternidade ou até mesmo uma prestação de natureza alimentar, sendo evidente o direito de recorrer ao Judiciário para pedidos de indenização baseados em problemas psicológicos, pautados no orgulho humano e na frivolidade. 3.2 CONSEQUÊNCIAS DO ABANDONO AFETIVO Expostos os entendimentos a respeito do abandono afetivo, resta explanar possíveis consequências oriundas dessa conduta oposta ao que se busca nos modelos atuais de família. Nessa esfera, sabe-se que o estudo da Psicologia aplicada ao Direito busca compreender o abandono afetivo, seu surgimento e seus efeitos na procura pelo entendimento dos danos causados por este, sendo que o descumprimento dos responsáveis pela família para com os filhos dentro do convívio familiar pode gerar indenização. A criança, na sua formação, necessita da presença familiar para seu primeiro contato com as relações interpessoais, surgindo então, o início da
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