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FACULDADE DE DIREITO SANTO AGOSTINHO – FADISA CAROLINE JORGE E BORGES DOMINAÇÃO E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: (in) eficácia normativo-jurídica da Lei Maria da Penha MONTES CLAROS/MG NOVEMBRO/2017 CAROLINE JORGE E BORGES DOMINAÇÃO E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: (in) eficácia normativo-jurídica da Lei Maria da Penha Trabalho de curso apresentado à Faculdade de Direito Santo Agostinho – FADISA, como requisito para obtenção do grau de bacharel em direito. Nome da orientadora: Prof.ª M.ª Simone Rosiane Corrêa Araújo MONTES CLAROS/MG NOVEMBRO/2017 FACULDADE DE DIREITO SANTO AGOSTINHO – FADISA A monografia Dominação e Violência Simbólica: (in) eficácia normativo- jurídica da Lei Maria da Penha apesentada pela acadêmica Caroline Jorge e Borges, com exigência para obtenção do grau de bacharel em Direito, foi julgada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora. Montes Claros – MG 28 de novembro de 2017 Coordenadora de monografia Banca Examinadora Presidente: Prof.ª M.ª Simone Rosiane Corrêa Araújo Membro: Prof. Dr. Reinaldo Silva Pimentel Santos Membro: Prof. Ms. Marcelo Brito Dedicatória Aos meus pais, exemplo de dignidade e altruísmo. Às minhas irmãs, que dedicam a mim seu amor incondicional. À Vida, que me trouxe alegria além dos livros. Agradecimento Agradeço a Deus por permitir que os obstáculos não fossem empecilho para a vitória. Aos meus familiares, por todo o incentivo e confiança que depositam em mim. Por todos os professores, em especial à Prof.ª Simone, por sua paciência e dedicação, tornando possível este trabalho. Epígrafe No dia que for possível à mulher amar em sua força e não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para de se encontrar, não para se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal. Simone Beauvoir RESUMO Os sistemas simbólicos, edificadores da sociedade como também da cultura patriarcal, influem no modo como os indivíduos se comportam. Com a necessidade de políticas públicas que visassem à igualdade social entre homem e mulher, a Lei Maria da Penha, dotada de discriminação positiva, surge com o intuito de prevenir, proteger e erradicar a violência doméstica baseada no gênero. Objetivou-se com o presente trabalho elucidar a aplicação das Medidas Protetivas elencadas na Lei Maria da Penha e a intervenção do Estado no âmbito familiar que envolva o poder dominante e a violência simbólica, tendo em vista a aparente ineficácia em reduzir a desigualdade de gênero e prevenir que o agressor reincida na prática da violência doméstica. A metodologia utilizada foi hipotético-dedutiva, com pesquisas bibliográficas a partir de leituras e análises em doutrinas, artigos científicos e jurisprudências. Imprescindível é a necessidade de mecanismos capazes de modificar a realidade social e ideologias que confirmam e legitimam a dominação masculina e a inferioridade da mulher. Palavras-chaves: Violência simbólica; gênero; Lei Maria da Penha; dominação masculina; processo protetivo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7 1 O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER .............................................. 9 1.1 Poder e violência simbólicos ................................................................................................ 9 1.2 A violência de gênero ......................................................................................................... 12 1.3 A dominação masculina...................................................................................................... 15 2 A LEI MARIA DA PENHA ................................................................................................ 18 2.1 Criação da Lei 11.340/06 ................................................................................................... 18 2.2 Concepção de Gênero ......................................................................................................... 23 2.3 Inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha ............................................................... 25 3 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA .................................................................... 27 3.1 O Processo Protetivo .......................................................................................................... 27 3.2 Natureza Jurídica ................................................................................................................ 30 3.3 Medidas protetivas em espécie ........................................................................................... 34 3.3.1 Medidas aplicáveis ao agressor ....................................................................................... 35 3.3.2 Medidas protetivas de urgência à ofendida ..................................................................... 37 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 41 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 42 7 INTRODUÇÃO A Lei 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, foi formulada visando à proteção, prevenção e erradicação da violência doméstica, sendo aquela cometida em âmbito familiar, através de ação ou omissão baseada no gênero. A necessidade de criação desta Lei parte do reconhecimento da desigualdade de gêneros existente entre homens e mulheres. O Estado, através desta ação afirmativa e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher, previu Medidas Protetivas de modo a coibir a incidência da violência. No entanto, esta desigualdade advém da própria sociedade na qual os indivíduos estão inseridos. A religião, a arte, os mitos e a língua constituem símbolos os quais dão forma à cultura, sendo que na sociedade há predominância do Patriarcalismo, caracterizado pelo poder dominante masculino e pela consequente inferioridade feminina, que faz com que a violência contra a mulher seja considerada como algo natural, visto sua habitualidade. Bourdieu (p.122, 2012) esclarece que o motivo da manutenção da relação de dominação entre os homens e mulheres é a “constatação da constância trans-histórica da relação de dominação masculina”. Desta forma, permeia todos os espaços sociais havendo a “permanência da estrutura da relação de dominação entre os homens e as mulheres, que se mantém acima das diferenças substanciais de condição, ligadas aos momentos da história e às posições no espaço social”. A falta do conhecimento a respeito da violência e do poder simbólico, caracterizados por serem invisíveis por contada própria vítima não os reconhecer, tendo em vista justamente sua habitualidade, levam a sociedade a um ciclo vicioso de violência. Dessa forma, três objetivos foram delimitados visando discutir tais problemas. O primeiro implica em definir os conceitos de violência simbólica e poder simbólico e qual o seu impacto na relação privada, em âmbito doméstico, tendo em vista que estes originam a violência de gênero e a dominação masculina. O segundo objetivo versa em torno de explicar brevemente a respeito da criação da Lei Maria da Penha, tendo em vista a necessidade do Estado em implantar políticas públicas. Por fim, o terceiro objetivo é tratar das medidas protetivas destinadas aos agressores e às vítimas, bem como da necessidade de uma lei diferenciada e a responsabilidade do Estado perante a desigualdade de gênero. 8 O trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro capítulo trata a respeito do problema da violência contra a mulher, abordando pontos como a violência simbólica e o poder simbólico que decorrem dos sistemas de símbolos e influenciam para a manutenção da dominação masculina. No segundo, tratou-se a respeito da criação da Lei Maria da Penha, a importância de se compreender gênero e quais as inovações trazidas ao ordenamento jurídico. Após tal explanação, o terceiro capítulo trata especificamente das Medidas Protetivas, que por não terem um procedimento próprio para sua efetivação tem gerado questionamentos em torno de sua natureza jurídica em âmbito doutrinário e jurisprudencial, podendo ser de natureza cautelar ou inibitória. Diante tal formação da sociedade, buscou-se, utilizando o método hipotético dedutivo, através de pesquisas em doutrinas, artigos científicos e jurisprudências, elucidar a influência que os símbolos exercem nos indivíduos bem como se, apesar de estarem tão arraigados principalmente no âmbito doméstico, as Medidas Protetivas são eficazes na busca da igualdade de fato e em coibir o agressor e, não sendo eficazes, quais as causas desse fracasso. Buscou-se, ao final, apresentar aspectos conclusivos aos questionamentos expostos, objetivando aferir o cumprimento e a eficácia ou não das medidas protetivas através de mecanismos estatais. 9 1 O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A violência contra a mulher, compreendida como problema intrínseco à sociedade, neste capítulo, é analisada precipuamente no âmbito do Poder e da Violência Simbólica, termo este utilizado pelo sociólogo Pierre Bourdieu e do qual advém a concepção de uma estruturação da sociedade por meio de símbolos que moldam a cultura e estabelecem a relação de dominação masculina e ainda a violência de gênero, tendo na mulher a figura submissa e no homem a figura superior. 1.1 Poder e violência simbólicos A sociedade constitui um sistema de símbolos que podem ser identificados nos âmbitos da arte, religião, ciências, códigos jurídicos e no uso da linguagem. Os Símbolos, como elementos estruturantes de uma sociedade e intrínsecos a ela, norteiam a atividade humana, seu comportamento, a interação entre os indivíduos e os modos como estes se organizam. Diante tais entendimentos, importante é a compreensão da existência de sistemas simbólicos com função política de imposição ou de legitimação da dominação masculina. Bourdieu (1989, p. 10) afirma que: É a partir dos símbolos que uma determinada comunidade linguística, artística, religiosa, entra em consenso acerca dos sentidos e representações que circulam neste meio e que contribuem para a reafirmação e reprodução de paradigmas, de ideias e de uma ordem social. Segundo Bourdieu (1989, p.10) os símbolos são instrumentos de integração social, de conhecimento e de comunicação, são o modo como a realidade é representada e contribui para integração lógica e moral, sendo meio para que uma cultura, bem como os valores que a compõem sejam expressos pelos sistemas simbólicos. O poder simbólico, dentre os sistemas simbólicos (arte, religião e língua) apresentados por Bourdieu (1989, p.7) é conceituado como “invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”. 10 Segundo o mesmo autor (1989, p. 9) tal poder constrói a realidade “que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica 1 : o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)”. O poder simbólico seria desta forma, exercido apenas se for reconhecido de maneira a permitir que se alcance o mesmo que seria conseguido pela força física ou através do poder econômico. É, segundo o sociólogo, o poder que está por trás, escondido nas entrelinhas. Quando reconhecido, está-se diante do poder simbólico, o qual se mostra menos por ocorrer em âmbito privado, podendo tornar-se invisível, ignorado pela sociedade, exercido pela ausência de importância dada à sua existência. Através deste sistema simbólico surge também a violência simbólica a qual, de acordo com Sandenberg (2011, p.1) apud Costa (2015, sn) 2 “se infiltra por toda a nossa cultura, legitimando os outros tipos de violência”. Importante observação a respeito da violência simbólica é feita por Adília (2009, sn) 3 : Nas relações sociais em que o vínculo é de domínio/submissão, os dominados, inconsciente e involuntariamente, assimilam os valores e a visão do mundo dos dominantes e desse modo tornam-se cumplices da ordem estabelecida sem perceberem que são as primeiras e principais vítimas dessa mesma ordem. Não são violentados nem por palavras nem por actus, aparentemente não há coacção nem constrangimento, mas a violência continua lá sob forma sutil e escondida, sob forma de violência simbólica: o modo de ver, a maneira de valorar, as concepções de fundo são as dos dominantes, mas os dominados ignoram totalmente esse processo de aquisição e partem ingenuamente do princípio que essas ideias e esses valores são os seus. Bourdieu (1998, p.8): estabelece a violência simbólica como: [...]violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um principio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo 1 Entende-se por gnosiológica, relativo a gnosiologia, parte da filosofia que trata dos fundamentos do conhecimento humano. Estudo das fontes, formas e valor do conhecimento humano. 2 Disponível em http://www.naomekahlo.com/single-post/2015/06/29/O-Poder-Simb%C3%B3lico-e-a- Viol%C3%AAncia-Simb%C3%B3lica Acesso em 20 de novembro de 2016. 3 Disponível em http://sexismoemisoginia.blogspot.com.br/2009/08/violencia-simbolica-estrutura-e.html Acesso em: 20 de novembro de 2016. 11 dominado, de uma prioridade distintiva, emblema ou estigma, dos quais o mais eficiente simbolicamente é essa propriedade corporal inteiramente arbitrária. Segundo Bourdieu (2002, p. 3) “A base da violência simbólica está nas estruturas que a produzem e a mantém viva, estruturas estas que defendem o papel do homem como superior, para o que podemos destacar a sociedade, a família, a escola e a Igreja, etc.”. Como principais motores da violência simbólica tem-se a mídia, o próprio Estado e as religiões, que impõem determinadas exigências para se seguir uma crença ou determinadaconduta. Bourdieu (1998, p. 26) esclarece que: Lembrar os traços que a dominação imprime perduravelmente nos corpos e os efeitos que ela exerce através deles não significa dar armas a essa maneira, particularmente viciosa, de ratificar a dominação e que consiste em atribuir às mulheres a responsabilidade de sua própria opressão, sugerindo, como já se fez algumas vezes, que elas escolhem adotar práticas submissas ou mesmo que elas gostam dessa dominação [...]. A violência simbólica decorre então do Poder Simbólico, advindo das principais estruturas da sociedade como a Igreja, a escola e os locais de trabalho, tornando-a, desta forma, intrínseca e quase invisível, não sendo percebida pelas próprias vítimas ou mesmo por aqueles que a exercem, visto estarem culturalmente inseridos e por serem praticados habitualmente. Os dois, violência e poder simbólicos, como instrumentos simbólicos, funcionam como um verdadeiro instrumento de dominação em que a mulher assume posições de inferioridade e submissão. Fernandes (2015, p. 110) aborda pontos dentre as previsões de violência física, patrimonial e moral da Lei Maria da Penha que, mesmo estando previstos não foram capazes de instrumentalizar o Estado a agir devido às imunidades, normas de isenção de pena e condicionantes da ação à representação. Desta forma, haveria a “necessidade de corrigir distorções e omissões pontuais dos tipos para se assegurar efetividade à prevenção da violência.”. Além das distorções e omissões da própria norma, que para Fernandes (2015, p. 11) obstariam a efetividade da lei, “raríssimas são as hipóteses de queixa por crimes contra a honra e, assim, essas vítimas escapam à proteção do Estado [...]”. No mesmo sentido Mattos (2011, sn) entende que “apesar de existir uma lei para proteger as mulheres contra a agressão física ainda não existe uma norma que dê conta de 12 combater a “violência simbólica”, que não é percebida pelas próprias mulheres”.4 E ainda “indicam a recorrência da violência simbólica nas relações e práticas sociais e institucionais”. A violência simbólica decorrente do poder simbólico seria de difícil identificação já que se mostra intrínseca e habitual numa sociedade patriarcal na qual os símbolos, constituindo a própria cultura, fazem com que os indivíduos adotem comportamentos pautados, por um lado, na dominação masculina e, por outro, na submissão feminina. Desta relação de poder advém, além da violência simbólica, a violência de gênero. Sendo assim, do poder simbólico compreendido como uma construção prática da própria sociedade que somente se exerce a partir da aceitação em subordinação, havendo consentimento mesmo que imperceptível dos que são subordinados, além da violência simbólica, decorre também a violência baseada no gênero, vez que fundada na divisão entre homem e mulher, a partir de uma hierarquia de poder androcêntrica 5 a qual induziria as relações violentas entre os sexos. 1.2 A violência de gênero A supremacia masculina em relação à mulher considera-se como legitimada pela sociedade, conforme dispõe Saffioti (1995, p. 32) “a mulher inscreve-se nas vísceras da sociedade com supremacia masculina”. Surge desta relação de poder de dominação do homem e submissão da mulher o conceito de violência de gênero. Saffioti 6 (1994, p. 460) faz a seguinte observação: O importante a reter da discussão sobre a violência perpetrada por homens contra mulheres é que este fenômeno é consubstancial ao gênero. Trata-se, pois, de um importante meio de controle social, cuja função precípua consiste na domesticação das mulheres. Isto não significa que a ideologia não tenha enorme eficácia. Ocorre que ela é, necessariamente, porosa ou lacunar, a fim de poder adaptar-se às variáveis conjunturas econômicas, políticas e sociais. Aparentemente, a ideologia é insidiosa, enquanto a violência é brutal. 4 Disponível em http://feminismo.org.br/lei-maria-da-penha-e-a-violencia-simbolica/ Acesso em 20 de novembro de 2016. 5 Entende-se por poder androcêntrico a visão de mundo onde se valoriza o ponto de vista masculino. A forma com a qual as experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos e tidas como uma norma universal. 6 Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16177/14728 Acesso em: 02 de novembro de 2016. 13 Deste modo, a sociedade construída sob o pilar do patriarcalismo, sob a desigualdade entre mulheres e homens que surge através da construção cultural da identidade, teria na violência um importante papel na normatização visto que auxiliando no controle social. Laraia, (1997, p. 159) apud Cordeiro (2014, p. 47) traz uma análise do que move o humano a agredir o outro no qual: A principal mensagem do conjunto de mitos produzidos por uma sociedade de pastores e guerreiros nômades, fortemente patriarcal e patrilinear como demonstram as genealogias do Gênesis, imbuída de uma ideologia machista, refere-se exatamente à questão da mulher vista como um ser extremamente perigoso, necessitando, portanto, ser fortemente controlada. O homem, ao realizar tal conduta de agressão baseada no gênero estaria autorizado, historicamente, a fazer com que a mulher aprenda qual é o seu lugar, devendo sempre servi-lo com dedicação. Sanderberg 7 (2011, sn) conceitua que: Por “violência de gênero”, refiro-me a toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual. Isso implica dizer que tanto homens quanto mulheres, independente de sua preferência sexual, podem ser alvos da violência de gênero. Contudo, em virtude da ordem de gênero patriarcal, ‘machista’, dominante em nossa sociedade, são, porém, as mulheres e, em menor número, os homossexuais, que se vêem mais comumente na situação de objetos/vítimas desse tipo de violência. No livro: A Dominação Masculina, Bourdieu (2012, p.18) trata que “a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. Adentrando no campo doméstico a raiz de tal violência, segundo Fernandes (2015, p. 59) “está no sentimento de posse do homem em relação à mulher, como se ela fosse sua propriedade. Afirmações como “se não for minha não será de mais ninguém” indicam a coisificação da mulher. Tal como o homem detém um objeto, também acredita que detém a mulher, ainda que contra a sua vontade”. 7 Disponível em http://www.observe.ufba.br/noticias/exibir/344 Acesso em 20 de novembro de 2016. 14 Formas de violência como racismo e homofobia por serem praticadas fora do domicílio, fora do ambiente íntimo, por muitas vezes são capazes de gerar mais comoção e se fazer mais graves, do que aquela que ocorre em âmbito privado. Segundo Cordeiro (2014) uma justificativa para tanto seria que a violência entre homens ocorre no meio das ruas e é eventual, ao passo que a violência contra a mulher ocorre dentro de casa e tem como característica primordial a sua cronicidade. No mesmo sentido, Saffioti (1995, p.33): Se os homens cometem e sofrem violências no espaço público, reinam soberanos no espaço privado, como detentores do monopólio do uso legítimo da força física. Com efeito, o domicílio constitui um lugar extremamente violentopara mulheres e crianças. Desta sorte, as quatro paredes de uma casa guardam os segredos de sevícias, humilhações e atos libidinosos, estupros graças à posição subalterna da mulher e da criança face ao homem e da ampla legitimação social desta supremacia masculina. O artigo “O Maxista, com X” 8, ao tratar da coisificação da mulher traz o entendimento de que muito mais que violência contra a mulher, a coisificação violenta o próprio homem já que esta traria a impossibilidade de desfrutar de relações plenas de sentido e riqueza. Ainda a respeito da coisificação Melhem e Rosas (2013, p. 3), ao analisarem a vitimização e coisificação da mulher sob o olhar criminológico transcrevem do Manual de Criminologia, de autoria de Farias Junior (2002, p. 207) que trata a relação de dominação como uma construção social naturalizada: Ela está livre das amarras desse patriarcalismo, mas jamais se libertará de seus instintos femininos que a inibem. [...] sua capacidade é limitada. Por isso, se adapta ao campo do magistério, da pedagogia, da psicologia, das línguas, das belas artes, da decoração, da assistência social, das atividades de escritório, enquanto os homens se sobressaem nos campos de engenharia, construções de grandes edifícios, na informática, nos campos econômico- financeiros, nas ciências exatas, na medicina, na advocacia, como escritores de obras de grande alcance, nas grandes descobertas. Mesmo como empresária, a mulher fica na superfície das pequenas e médias empresas porque ela é limitada na sua capacidade técnica, financeira [...]. Não consegue acumular muito trabalho. Tudo isso porque, enquanto o homem busca a conquista do poder, a mulher busca apenas conservar o que tem nas mãos. 8 Disponível em https://omaxista.wordpress.com/2013/04/15/o-maxista-com-x/ Acesso em 22 de novembro de 2016. 15 Percebe-se as mulheres vistas como um ser fraco e submisso, podendo a dominação masculina ser identificada em todos os âmbitos da sociedade, tanto no do trabalho quanto na vida afetiva. Deste modo, importante a elucidação desta forma de dominação. 1.3 A dominação masculina A violência contra mulheres é considerada como uma grave violação dos direitos humanos. Consequências físicas, mentais, sociais e mesmo a morte são alguns dos impactos que sofre a mulher vítima de violência. Além de, consequentemente, atingir suas famílias e a comunidade em geral. Para Bourdieu (1998), a dominação masculina é tida como uma forma de violência simbólica que legitima o discurso dominante e as práticas de discriminação podendo ser compreendida na divisão arbitraria das coisas e das atividades, segundo a oposição entre masculino e feminino, bem como um meio de se exercer o Poder Simbólico. O artigo “Pelo fim da violência simbólica contra a mulher” 9 demonstra a violência simbólica como algo intrínseco à sociedade e que, por diversas vezes acaba por passar despercebido. Deste modo, Baía (2015, p.1) elucida que haveria, através desta espécie de violência, a legitimação do discurso dominante e as práticas de discriminação reforçadas pela mídia desde os jornais às propagandas. Ainda a respeito da violência simbólica pode-se dizer que se dá através de atitudes que levam a mulher à coisificação, através de práticas pejorativas. Muitas vezes mulheres que sofrem com tal violência, dado o poder inscrito duradouramente através das estruturas de dominação produzidas pela sociedade, não reclamam e passam, até mesmo, a sugerir que contribuem para que a violência se mantenha e desenvolva. Bourdieu (1998), ao desenvolver o tema da violência simbólica descreve a dominação masculina como baseada na divisão sexual do trabalho de produção e reprodução biológica e social e diz ainda: A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio de predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos. 9 Disponível em http://www.senge-pr.org.br/wp-content/uploads/2015/11/artigo-Viol%C3%AAncia-contra-a- mulher-2015.pdf Acesso em 22 de novembro de 2016. 16 A violência simbólica é a propulsão de todas as outras violências. É invisível, sutil e, portanto, mais perigosa, amplamente propagada pelos noticiários e propagandas e ainda em produções artísticas e culturais. Pode-se afirmar que o âmbito doméstico é um dos lugares em que a dominação masculina se manifesta de maneira mais clara e irrefutável, não só através de violência física, como também de forças simbólicas, e se colocaria além da unidade doméstica como a Igreja, o Estado e a Escola. Para manter e reproduzir essa concepção de superioridade do homem em relação à mulher, a igreja teve e tem papel fundamental. Na verdade, conforme aponta Bourdieu (1998), as religiões inculcam explicitamente uma moral marcada por valores patriarcais, e modelam estruturas históricas do inconsciente por meio do simbolismo presente nos textos sagrados da liturgia, do espaço e do tempo religioso. Rodrigues, Nascimento e Nonato (2015, sn) fazem uma abordagem da violência simbólica e da dominação masculina contra a mulher em âmbito religioso no qual: A dominação masculina foi uma criação do homem com o surgimento da família monogâmica e patriarcal, após o curto período de domínio do matriarcado, na fase pré-histórica. E, que, para a legitimação e a reprodução dessa estrutura social foi fundamental o papel da religião cristã, com a exortação à prática continuada de submissão e obediência da mulher ao homem que, por meio da violência simbólica, naturaliza e perpetua essa relação de poder. A libertação dessa dominação masculina só se pode realizar mediante a liberação dos homens das mesmas estruturas territoriais que contribuem para essa imposição. Se as mulheres são submetidas a um trabalho de socialização que as leva à diminuição e negação de suas virtudes, os homens também são prisioneiros dessa mesma estrutura, e, algumas vezes sem perceberem, sujeitos dessa mesma representação e violência. A mulher, com o passar do tempo, foi adquirindo nova percepção de mundo. Os movimentos feministas em meados do Século XX 10 foi o início para as conquistas das mulheres como reconhecimento e garantia do direito ao voto, bem como civis, trabalhistas, educação, trabalhar sem ser necessário que o marido assim autorizasse, e muitas outras conquistas. Bourdieu (2012, p.138), ao abordar tal assunto expõe que: O movimento feminista contribuiu muito para uma considerável ampliação da área política ou do politizável, fazendo entrar na esfera do politicamente discutível ou contestável objetos e preocupações afastadas ou ignoradas pela 10 Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4320&secao=387 Acesso em 28 de novembro de 2017. 17 tradição política, porque parecem pertencer à ordem do privado; mas não deve igualmente deixar-se levar a excluir, sob pretexto de elas pertencerem à logica mais tradicional da política, as lutas a propósito de instâncias que, com sua ação negativa, e em grande parte invisível – porque elas estão ligadas às estruturas dos inconscientes masculinos e também femininos -, contribuem fortemente para a perpetuação das relações sociais de dominação entre os sexos. Há, no entanto, mulheres que se comportam como dependentes e submissas aos homens, tanto no planoeconômico, como no plano social e cultural. Estas ainda consideram o homem como seu dono, o chefe incontestável da casa, o dono das decisões. O artigo “A dominação masculina e a violência simbólica contra a mulher no discurso religioso” 11de autoria de Nascimento; Nonato; Rodrigues (2015, sn) traz ainda: A violência institucionalizada contra a mulher não é somente um ato de violência particular, mas uma construção social que tende a diminuir o feminino e exaltar o masculino. Poder-se-ia dizer que exercendo a violência contra as mulheres é contra a estrutura hierárquica da sociedade que se está investindo. E mais grave se torna essa violência, porque ao contrário da violência real, a violência simbólica não tem uma previsão legal sancionatória. Se é verdade que, ao longo dos últimos séculos, foram imensas as conquistas obtidas pelos movimentos feministas, com avanços no reconhecimento dos direitos civis, políticos e econômicos, também é verdadeiro que ainda permanece, em segmentos da sociedade, o estigma da inferioridade feminina em relação ao homem, e que ainda não foi superada. Não há previsão legal para que seja sancionada a violência simbólica. Sendo assim, a dominação masculina acaba por persistir em meio transformações sociais, com o aparente empoderamento da mulher, já que o Estado, ao considerar as ameaças e intimidações em âmbito familiar com baixo grau de periculosidade, ou como intrínsecas à relação entre homens e mulheres, acaba por fomentar o ciclo de dominação e a sensação de impunidade. Sauaia e Passos (2016, p. 151) 12 concluem que ao aceitar como inerentes os atos de dominação e inferiorização da mulher o Judiciário “além de duplicar a vitimização da mulher pela violência institucional que representa, a sociedade recebe como resultado prático, um verdadeiro mandado autorizador para que crimes mais graves sejam praticados”. Em consonância com a afirmação de que a inexistência de lei que leve em conta todos os tipos de violência, em especial a simbólica, de forma a possibilitar a quebra da dominação masculina, Bourdieu (1998, p.69) defende que: 11 Disponível em http://periodicos.est.edu.br/index.php/identidade/article/view/2524 Acesso em 22 de novembro de 2016. 12 Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/8219>. Acesso em: 20 out. 2017. 18 Só uma ação política que leve realmente em conta todos os efeitos de dominação que se exercem através da cumplicidade objetiva entre as estruturas incorporadas (tanto entre as mulheres quanto entre os homens) e as estruturas de grandes instituições em que se realizam e se produzem não só a ordem masculina, mas também toda a ordem social (a começar pelo Estado, estruturado em torno da oposição entre sua “mão direita”, masculina, e sua “mão esquerda”, feminina, e a Escola, responsável pela reprodução efetiva de todos os princípios de visão e de divisão fundamentais, e organizada também em torno de oposições homólogas) poderá, a longo prazo, sem dúvida, e trabalhando com as contradições inerentes aos diferentes mecanismos ou instituições referidas, contribuir para o desaparecimento progressivo da dominação masculina. O enfrentamento de tais violências, de modo eficaz deveria então, conforme entende Fernandes (2015, p.242) “resultar de uma visão multidisciplinar compatível com a complexidade do fenômeno. ” Imprescindível então que se conheça a violência para que as políticas afirmativas voltadas não apenas à proteção da mulher, mas também à igualdade de fato entre o homem e a mulher como a Lei Maria da Penha, possam ser dotadas de efetividade. 2 A LEI MARIA DA PENHA Este capítulo versa a respeito da criação da Lei Maria da Penha e de sua constitucionalidade quando posta em análise com o princípio constitucional da isonomia. Na sequência, é conceituado o gênero, sendo esta Lei política pública afirmativa destinada a erradicar a desigualdade de gênero, destacando suas diferenças quanto ao sexo e sua relação com a cultura. Por fim, são abordadas as inovações trazidas pela Lei 11.340/2006 ao ordenamento jurídico brasileiro que implicaram na retirada da competência dos Juizados Especiais Criminais para julgar crimes de violência contra a mulher e na instituição de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar, na possibilidade do Juiz decretar a prisão preventiva do agressor, na proibição de penas pecuniárias, bem como na criação de medidas que obrigam o agressor e as que são aplicáveis à vítima. 2.1 Criação da Lei 11.340/06 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é considerada um verdadeiro marco histórico na garantia de igualdade para homens e mulheres, retirando da lei 19 diferenças discriminatórias, estando previsto em seu art. 5°, I que: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Neste sentido Fernandes (2015) traz em seu livro: “Lei Maria da Penha: O Processo Penal no Caminho da Efetividade” a necessidade de se positivar a discriminação de forma que não há como se falar em Justiça social sem que, primeiro, a discriminação e a violência contra as mulheres e a família sejam erradicadas. A Constituição ter reconhecido a igualdade formal entre homens e mulheres já teria, portanto, sido um passo inicial para a efetividade da igualdade. No entanto, foi com a criação da Lei 11.340/06, que se buscou dotar as normas jurídicas de efetividade com o intuito de transpor a violência contra a mulher do âmbito privado para o público. Com a Lei Maria da Penha o seio familiar e as relações de afeto deixariam de ser âmbito de abusos e violência. Desta forma, dispõe Fernandes (2015, p.40): Pelo sistema multidisciplinar de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, a lei permite aos aplicadores transformar o direito em uma realidade de justiça. E o tratamento diferenciado estabelecido é imprescindível para se proteger a mulher: uma discriminação positiva. Conhecida por Lei Maria da Penha, a Lei 11.340/06 foi criada por conta de uma pressão sofrida pelo Estado Brasileiro perante órgãos internacionais a partir da denúncia feita por Maria da Penha Maia Fernandes à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) que, após 18 anos de ter sido vítima de tentativa de homicídio por parte de seu próprio marido não teve sua pretensão atendida pelo Poder Judiciário brasileiro. A partir desta denúncia o Brasil foi condenado por negligência e omissão em relação à violência doméstica tendo sido recomendada a criação de uma lei que tratasse especificamente da violência contra a mulher. Em 04 de abril de 2001, a OEA, no relatório nº 54/01 13 , que tratou deste respeito dispôs que: Dado que essa violação contra Maria da Penha é parte de um padrão geral de negligência e falta de efetividade do Estado para processar e condenar os agressores, a Comissão considera que não só é violada a obrigação de processar e condenar, como também a de prevenir essas práticas degradantes. Essa falta de efetividade judicial geral e discriminatória cria o ambiente propício à violência doméstica, não havendo evidência socialmente percebida da vontade e efetividade do Estado como representante da sociedade, para punir esses atos. 13 Disponível em https://cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm Acesso em: 01 de novembro de 2016. 20 Com a Lei Maria da Penha teve-se reconhecida a posição jurídica da vítima e, segundo Cordeiro(2014) a partir do momento em que a intervenção penal é solicitada nestes casos de violência doméstica, há uma reafirmação da mulher como vítima e com a necessidade de ter no Estado, seu tutor. Criou-se um sistema interdisciplinar de enfrentamento e prevenção à violência. Tal discriminação positiva fez com que a Lei se tornasse alvo de diversas críticas. Conforme entendimento de Silva (2002) a concessão de benefícios a determinados grupos ou pessoas, de forma a proporcionar-lhes tratamento não aplicável a outros seria ato inconstitucional já que estaria em desacordo com o princípio da isonomia. Seria inconstitucional a Lei Maria da Penha já que violaria o Princípio da Igualdade por tratar com maior rigor os homens e por tornar, em caso de violência doméstica, inaplicável a Lei 9.099/95 a qual trata dos Juizados Especiais Criminais e estabelece, em seu art. 89 a possibilidade da suspensão condicional do processo. Conforme elucida a Súmula 536 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) “A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.”. Tal entendimento veio afirmar a necessidade de proteção à mulher que, caso fosse proposta e concedida suspensão condicional ao agressor, estaria em situação de risco. A respeito da Inconstitucionalidade Santin (sd, sn) apud Santos (2014, sn) 14 entende que: [...] a pretexto de proteger a mulher, numa pseudopostura ‘politicamente correta’, a nova legislação é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e mulher, ao prever sanções a uma das partes do gênero humano, o homem, pessoa do sexo masculino, e proteção especial a outra componente humana, a mulher do sexo feminino, sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa aparente formação de casta feminina e pior colocando-o como monstro causador do dano social , como já citado temos todos os tipos de lei protecionista como para o idoso para a criança e nada para o homem . Da mesma forma, Jorio 15 (2011, sn): [...] a Lei Maria da Penha viola o Princípio da Isonomia "na ida e na volta": ao tratar mais severamente o réu, apenas por ser do sexo masculino; e ao proteger menos intensamente a vítima, somente por ser do sexo masculino. 14 Disponível em https://jus.com.br/artigos/34366/a-inconstitucionalidade-da-lei-maria-da-penha Acesso em: 01 de novembro de 2016. 15 Disponível em https://jus.com.br/artigos/19996/lei-maria-da-penha-breves-consideracoes-sobre-igualdade- material Acesso em: 01 de novembro de 2016 21 No artigo “Lei Maria da Penha: breves considerações sobre igualdade material” 16, Jorio (2011, sn) aborda ainda que os homens de hoje não devem pagar pelas faltas que seus antepassados cometeram. Entende que a responsabilidade deve ser exclusivamente do Estado já que não se deve transferir a ineficiência deste ao indivíduo. Desta forma o tratamento desigual não deveria levar em consideração o gênero (masculino/feminino) a fim de determinar quem será responsabilizado pela violência, mas sim deveriam ser averiguados, concretamente, a força física e poder econômico. Jorio (2011, sn) entende que: [...] se a razão para o tratamento mais severo é a desigualdade concreta de força física e poder econômico, a lei deveria contemplar as duas hipóteses: a da hipossuficiência da mulher, frente ao marido, e da eventual hipossuficiência do marido, frente à esposa. E ainda: O que se quer fazer, com a Lei Maria da Penha, é compensar o prejuízo acumulado pelas mulheres. Funciona quase como uma "indenização" para aquele que, contrariando o princípio constitucional, voltaria a ser o "sexo frágil" Contrária a este entendimento Dias (2007, sn) 17 defende que o princípio da igualdade funda-se em tratar com igualdade os iguais e com desigualdade os desiguais de forma que: Não ver que a Lei Maria da Penha consagra o princípio da igualdade é rasgar a Constituição Federal, é não conhecer os números da violência doméstica, é revelar indisfarçável discriminação contra a mulher, que não mais tem cabimento nos dias de hoje. (DIAS, 2007, s.n.) No entanto, conforme traz Fernandes (2015, p. 45) tais questionamentos com a Ação Direta de Constitucionalidade nº 19 de 09 de fevereiro de 2012 restaram-se superados já que reconheceu a Constitucionalidade da Lei Maria da Penha, em especial seus artigos 1º, 33 e 41, os quais dispõem que: 16 Disponível em https://jus.com.br/artigos/19996/lei-maria-da-penha-breves-consideracoes-sobre-igualdade- material Acesso em: 01 de novembro de 2016 17 Disponível em http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2397 Acesso em 01 de novembro de 2016. 22 Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Art. 33 Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente. Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput. Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n o 9.099, de 26 de setembro de 1995. A Lei Maria da Penha é, portanto, uma política afirmativa, cujo intuito ao criar mecanismos e medidas para coibir e prevenir a violência doméstica e proteger a mulher é corrigir as desigualdades presentes na sociedade advindas da visão androcêntrica e a consequente dominação masculina. Entende Bianchini (2013, sn) 18 serem as políticas afirmativas “critério de equiparação desigual igualitário” e ainda, especificamente a Lei Maria da Penha “para permitir que ocorra o aceleramento da igualdade de fato entre o homem e a mulher, circunscrita aos casos de violência doméstica e familiar, já que o alcance da Lei é limitado”. O artigo 3º da Constituição Federal de 1988 estabelece a possibilidade de intervenção do Estado para fins de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Desta forma, quando em uma análise sociocultural ficar perceptível a discriminação ou desigualdade social, o Estado se torna legítimo para atuar de forma positiva, visando, conforme elucida Filho (2011, s.n.) 19 “intervir nas relações sociais para quebrar a ordem vigente na sociedade [...] surgindo também como instrumento reparador em razão de um contexto histórico de desigualdade”. Conclui Fernandes (2015) que a Lei Maria da Penha instrumentalizaa justiça social para as mulheres já que cria mecanismos para promover a eliminação da discriminação de gênero não ofendendo a Constituição Federal. 18 Disponível em https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/121814474/lei-maria-da-penha-e-de-acao- afirmativa. Acesso em 20 de outubro de 2017. 19 Disponível em https://jus.com.br/artigos/27001/acoes-afirmativas-a-luz-da-constituicao-federal-de-1988. Acesso em 20 de outubro de 2017 23 Deste modo, necessária a análise do conceito e especificação do gênero. 2.2 Concepção de Gênero O gênero, para Saffioti (2001), é concebido como uma construção cultural. Logo, não bastaria nascer com o sexo feminino ou masculino para que fossem considerados e se considerassem mulher ou homem. Seria um processo de construção em que a sociedade, seja pela supremacia masculina, seja pela inferioridade feminina, acabaria por estabelecer a personalidade forte, de homem racional, superior ou fraca de mulher inferior, irracional e submissa a ser adotada pela pessoa. Saffioti (2001, p. 34) traz entendimento de que: As próprias mulheres acabam acreditando que são menos capazes de fazer ciência que os homens, uma vez que não sabem usar a razão. Acabam por desenvolver desproporcionalmente a dimensão afetiva de sua personalidade, em prejuízo do aspecto racional. [...] A ideologia machista, que considera o homem um ser superior à mulher, não entra apenas na cabeça dos homens. Também as mulheres, majoritariamente, acreditam nestas ideias e as transmitem aos filhos. O Gênero, desta forma, para ser determinado, dependeria dos fatores supremacia masculina e subordinação feminina, permeados na sociedade e demonstrando a relação de poder homem-mulher existente quer seja no âmbito do trabalho, quer em relações amorosas o qual seria alimentado não apenas pelos homens, mas também pelas próprias mulheres. Butler (2003, p. 25) a despeito de o gênero ser construído culturalmente elucida que: Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza. O sexo, sob esta análise, seria considerado como definido pela natureza do ser humano, através de sua anatomia enquanto que o gênero surge através de influência externa exercida pela cultura. Ou seja, a cultura exerceria uma pressão para que o indivíduo se identifique com um ou outro gênero. 24 Oliveira 20 (2010, sn) adota o gênero como uma construção psicossocial em que: O conceito de gênero não explicita, necessariamente, desigualdades entre homens e mulheres. Verifica-se que a hierarquia é apenas presumida, e decorre da primazia masculina no passado remoto, transmitida culturalmente com os resquícios de patriarcalismo. Oliveira 21 (2010) adota a posição de que as diferenças de gênero surgem biologicamente, ou seja, a mulher por ser fisicamente mais fraca que o homem acabou por se tornar submissa a este. Esta ideologia de inferioridade da mulher teria se tornado tão imbuída na sociedade que elas se assumiriam como inferiores. Desta forma, caberia à sociedade e aos demais poderes públicos realizarem ações com o intuito de reduzir as desigualdades de gênero e diminuir os índices e vítimas de violência doméstica. Oliveira (2010,sn) verificou que: [...] as diferenças de gênero influenciam diretamente na vida econômica, política, social e inclusive, na maneira de relacionar-se em sociedade. Nesse contexto, ao longo do tempo, a mulher sempre foi vítima de exclusão. Tornou-se refém da realidade social, de acordo com cada cultura de cada região. Seus direitos, sonhos, aspirações e desejos, primeiramente pertenciam ao pai, posteriormente, com o casamento, eram transferidos ao seu marido. Assim, ela não tinha poder de gerenciamento sobre a sua própria vida e a sua tarefa de maior relevância era apenas cuidar e administrar o lar, considerando que não tinha acesso à educação como os homens. Ainda transformou-se em vítima da violência, devido ao modelo conservador adotado, o qual é passado de geração em geração, tendo em vista que este conduz a mulher à posição de sujeição, submissão e inferioridade. O conceito de gênero decorre, portanto, das desigualdades históricas, econômicas e sociais. A cultura de cada sociedade será determinante no modo como mulheres e homens se relacionam, importando ou não na submissão da mulher ao homem. Segundo Silva Junior (sd, sn) 22 “o conceito de gênero é utilizado largamente nas ciências sociais designando a construção social do masculino e do feminino”. Tem-se então o 20 Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.29209 Acesso em 02 de novembro de 2016. 21 Disponível no site http://repositorio.unisc.br/jspui/bitstream/11624/851/1/Andressa%20Porto%20de%20Oliveira.pdf Acesso em 02 de novembro de 2016. 22 Disponível em http://tmp.mpce.mp.br/nespeciais/promulher/artigos/leimariadapenhacondutabaseadanogênero.pdf Acesso em 22 de novembro de 2016. 25 gênero como construção sociológica, cultural, utilizado para, de acordo com Teles e Melo (2003, p. 16) apud Silva Jr.: [...] demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram polos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornando- as dependentes. A cultura, portanto, na qual se está inserido, determinaria os papéis masculino e feminino tendo na mulher a figura submissa ao homem, dando a este o poder de, em uma cultura patriarcal, machista, castigá-la caso saia de seu papel. A concepção de gênero toma importância na medida em que a proteção da mulher pela Lei Maria da Penha, como estabelecido em seu artigo 5º, é feita a partir de conduta que vá de encontro ao gênero, bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher, mais conhecida por Convenção de Belém do Pará (1994), aprovada pelo Decreto legislativo nº 107 em 1995, que em seu art. 1º definiu a violência contra a mulher: Para os efeitos desta convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na esfera privada. Os Estados Partes a fim de dar a necessária intolerância à violência contra a mulher, segundo a Convenção em seu art. 7º deveriam estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeita à violência. Daí advindo a Lei Maria da Penha. 2.3 Inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha A Lei Maria da Penha, já conhecida por todos os brasileiros, vem fazendo com que a cada ano o número de denúncias cresça demonstrando o aumento da conscientização por parte de familiares, vizinhos e da própria vítima que se descobre não estar sozinha diante a violência doméstica. O Portal Brasil 23divulgou em agosto de 2016 os seguintes dados: 23 Disponível em http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/08/ligue-180-registra-mais-de-555-mil- atendimentos-este-ano Acesso em: 27 de outubro de 2016. 26 Em 11 anos de funcionamento, cerca de 5,4 milhões de atendimentos foram realizados pela Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180. Somente no primeiro semestre de 2016, a central contabilizou 555.634 atendimentos, em média 92.605 atendimentos por mês e 3.052 por dia. Quase 68 mil atendimentos, equivalentes a 12,23% do total, são relatos de violência: 51% correspondem a violência física; 31,1% psicológica; 6,51% moral; 1,93% patrimonial; 4,30% sexual; 4,86% cárcere privado; e 0,24% tráfico de pessoas. Explica ainda que o fato dos números de denúncia terem aumentado não implica em dizer que está havendo maior número de vítimas, mas sim uma maior conscientização, maior envolvimento da sociedade: O número da primeira metade de 2016 é 52% maior que o de atendimentos realizados no mesmo período de 2015, 364.627. Ainda comparado ao primeiro semestre do ano passado, os dados deste ano são 142% maiores nos registros de cárcere privado, com a média de dezoito por dia, e de 147% nos casos de estupro, média de treze por dia. O artigo “Sobre a Lei Maria da Penha”24 apresenta as seguintes inovações dentre os mecanismos de lei: A Lei Maria da Penha tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher. Conforme o art. 5º da Lei 11.340/06 configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em âmbito doméstico, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto, além de ainda estabelecer formas de violência doméstica contra a mulher como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Tratadas no art. 7º da Lei 11.340/06, na qual se tem como física aquela que ofenda a integridade ou saúde corporal; psicológica, que cause dano emocional, diminuição da autoestima, humilhação, dentre outras condutas que visem a atingir a saúde psicológica da mulher; sexual, na qual o agente utilizará de qualquer conduta que a faça presenciar, manter ou participar de relação sexual que não deseje; patrimonial, que se caracteriza pela retenção, subtração, destruição de objetos, documentos, bens, dentre outros e a moral na qual o agente se valerá de qualquer conduta que calunie, difame ou configure injúria contra a mulher. A mulher somente poderá renunciar à denúncia perante o juiz. A renúncia, segundo o art. 16 da Lei Maria da Penha só é possível de ser feita em audiência própria, 24 Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/lei-maria-da-penha/sobre-a-lei-maria-da-penha Acesso em 02 de novembro de 2016. 27 especialmente designada, com tal finalidade desde que ouvido o Ministério Público e antes do recebimento da denúncia. A Lei Maria da Penha inova ainda em proibir as penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas), bem como em retirar dos juizados especiais criminais a competência em julgar crimes de violência em âmbito familiar contra a mulher. A lei de execuções penais foi alterada para permitir ao juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação, bem como o Código de Processo Penal, possibilitando ao juiz decretar a prisão preventiva em havendo riscos à integridade física ou psicológica da mulher, devendo a pena ser aumentada em um terço caso tal violência seja praticada contra mulher com deficiência. A Lei Maria da Penha determinou a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher com competência cível e criminal. No entanto, o que poderia dar efetividade à norma, seria a implantação de políticas de prevenção do Estado capazes de abranger não só a violência visível, ou mesmo psicológica, mas a violência simbólica que, por estar tão intrínseca à sociedade por vezes não é percebida nem por aqueles que a sofrem. Mecanismos para coibir a violência doméstica também estão elencados na Lei 11.340/2006, nos artigos 22 a 24. Além de prever medidas de proteção que obriguem o agressor a, por exemplo, manter distância da ofendida e de seus familiares e a praticar determinadas condutas que importem em risco para a mulher, conforme o artigo 22, estão previstas também, nos arts. 23 e 24 Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida para possibilitar a manutenção da sua integridade física, psíquica e patrimonial, conforme abordado adiante. 3 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA Este capítulo trata da criação do processo protetivo, sendo abordada sua natureza jurídica 3.1 O Processo Protetivo 28 As contradições do binômio masculino/feminino, implicando na dominação masculina culturalmente constituída e na submissão da mulher, fundamentam a necessidade de serem instituídas políticas públicas almejando, conforme prevê o artigo 5º, I da Constituição Federal, a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações. Desta forma, o Estado, através da discriminação positiva de mulheres buscaria a superação de mecanismos de exploração e discriminação da mulher. Neste sentido, Bianchini (2014, sn) 25 afirma: A máxima tratar os iguais de modo igual, e os desiguais de modo desigual representa um reconhecimento de que os indivíduos que se estabeleceram no mundo em condições desiguais não podem, por mera declaração de vontade, obter condição de vida igual equivalente aos que gozam de vantagem, sejam elas quais forem. Daí a necessidade de ações afirmativas, ou discriminações positivas ou ações positivas, consubstanciadas em políticas públicas que objetivem concretizar materialmente o discurso relevante, porém vazio, de igualdade, com o objetivo de mitigar os efeitos das discriminações que heranças de costumes passados insistem em manter no presente, sem nenhum argumento ético que as justifiquem. Dessa forma, necessária, pois, a criação de uma lei diferenciada capaz de efetivar a igualdade entre homens e mulheres prevista na Constituição. Tratando-se da Lei Maria da Penha, tem-se que esta é política pública afirmativa de gênero composta por medidas que visam minimizar as desigualdades e discriminações sofridas pelas mulheres em decorrência do empoderamento do homem na sociedade. Tais mecanismos, importante salientar, terão vigência apenas enquanto durar a situação de desigualdade entre o homem e a mulher, desta forma, não implica dizer em manutenção da desigualdade. Com o advento da Lei 11.340/06 foi criado o processo protetivo para a mulher, sendo estabelecidos os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, dotados de competência civil e criminal para atender os casos de violência doméstica. As medidas protetivas estão previstas no Capítulo II da mesma Lei, sendo um rol meramente exemplificativo. Os processos criminal e protetivo, sendo este composto pelas medidas protetivas destinadas a vítima e ao agressor, aspectos procedimentais e consequências do descumprimento, visam a oportunizar a intervenção do Estado na família, conforme previsão 25 Disponível em https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/121814474/lei-maria-da-penha-e-de-acao- afirmativa Acesso em 25 de maio de 2017. 29 no artigo 226, §8º da Constituição Federal, o qual estabelece que “oEstado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações", bem como a recuperação do agressor. O processo protetivo objetiva conferir agilidade, informalidade e efetividade na proteção da mulher dando-lhe capacidade postulatória, extensão das medidas protetivas a seus familiares, prazo de 48 (quarenta e oito) horas para o encaminhamento ao juiz do pedido pela autoridade judicial bem como para proferir decisão. A respeito da informalidade do processo protetivo Fernandes (2015, p.186) esclarece que: A informalidade permite que o processo penal protetivo cumpra sua função instrumental de romper a violência. Esse sistema protetivo é, mais do que um garantidor da persecução penal, um garantidor da vida e da integralidade das pessoas envolvidas na crônica violência doméstica. Protege para o futuro. Cumpre, assim, sua função instrumental de modificador da realidade. O processo protetivo daria fim à violência no sentido de fazer com que o agressor se intimidasse e, desta forma, mudasse sua conduta e sua ideologia de modo a não mais infringir violência à mulher. A informalidade, portanto, tem o condão de permitir que a própria vítima requeira a implantação das medidas protetivas perante a autoridade policial, o pedido, portanto, não está condicionado à representação por advogado. Visa proteger para o futuro impedindo que haja demora na reparação do dano causado e que o agressor possa vir a provocar danos irreparáveis à vítima. Como ensina Dias (2007,p. 78): A autoridade policial deve tomar as providências legais cabíveis (art. 10) no momento em que tiver conhecimento de episódio que configura violência doméstica. Igual compromisso tem o Ministério Público de requerer a aplicação de medidas protetivas ou a revisão das que já foram concedidas, para assegurar proteção à vítima (art. 18, III, art. 19 e § 3º). Para agir o juiz necessita ser provocado. A adoção de providência de natureza cautelar está condicionada à vontade da vítima. Desta forma, para que haja deferimento das medidas protetivas faz-se necessário que a vítima se manifeste requerendo que sejam implantadas tais medidas, ainda que seja feito o registro da ocorrência, a iniciativa de pedir proteção será dela. O juiz não poderá agir de ofício, deverá ser provocado pela autoridade policial, a qual cabe prestar os atendimentos iniciais à ofendida e adotar as providências necessárias para remeter o pedido ao Poder Judiciário, ou pelo Ministério Público. 30 Esclarece Dias (2007, p. 81) que o magistrado, ao proferir decisão que defira as medidas protetivas, pode estipular prazo para sua vigência, ou seja, a limitação temporal só existirá caso imposta pelo juiz. A COPEVID – Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Grupo Nacional de Direitos Humanos firmou no Enunciado n. 004/2011 o entendimento de que “As medidas de proteção [..], de natureza cível e/ou criminal, podem ser deferidas de plano pelo juiz [...] devendo perdurar enquanto persistir a situação de risco da mulher”.26 Quanto aos requisitos para deferimento da medida protetiva tem-se da combinação do artigo 5º (que conceitua violência doméstica e familiar) com o artigo 7º da Lei Maria da Penha (trata das formas de violência doméstica e familiar) que será exigida a prática de violência nos termos da lei e, como segundo requisito, a necessidade da medida, observando-se o “fumus boni juris” e “periculum in mora”. Os pedidos de medida protetiva deverão ser encaminhados aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e, quando não instalados, ao Juízo Criminal. A vítima poderá escolher o foro competente, devendo ser o local de seu domicílio, do domicílio do agressor ou do local em que tiver ocorrido a violência. A Lei Maria da Penha prevê medidas que obrigam o agressor, como afastamento do lar, proibição de contato com a ofendida, elencadas no artigo 22 da Lei 11.340/06 e medidas protetivas de urgência à vítima, como determinar a separação de corpos e determinar a recondução da ofendida ao seu domicílio (arts. 23 e 24) que podem ser tidas como de caráter satisfativo, visto objetivar a proteção da vítima, testemunhas e parentes, bem como seu patrimônio. 3.2 Natureza Jurídica As medidas protetivas de urgência contemplam medidas de natureza civil ou criminal. Tal diferenciação importa na medida em que, a depender da natureza da medida deferida pelo juiz é que será estabelecida a competência recursal em caso de deferimento ou indeferimento das medidas protetivas. O entendimento firmado seria de que as medidas protetivas estariam vinculadas a um inquérito ou processo penal, já que após a ocorrência feita pela autoridade policial o 26 Disponível em http://www.compromissoeatitude.org.br/enunciados-da-copevid-comissao-nacional-de- enfrentamento-a-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher/ Acesso em: 26 de março 2017. 31 expediente deverá ser remetido ao juiz. No entanto, conforme evidencia Fernandes (2015, p. 142) “de uma releitura da Lei Maria da Penha sob o prisma da proteção, chega-se à conclusão de que a medida de proteção não está vinculada a um processo penal”. A Lei Maria da Penha, portanto, ao visar à proteção máxima e integral da mulher, visto sua vulnerabilidade, não deverá vincular as medidas protetivas a um processo. Importa ao Estado livrar a mulher de uma situação de violência e garantir a proteção dos bens jurídicos integridade física, sexual, psíquica, patrimonial e moral. Não havendo vinculação, a proteção da vítima não estará condicionada à persecução penal, garantindo que, mesmo que não haja o desejo de um processo criminal contra o agressor, as medidas possam ser deferidas. Há ainda medidas que não se encaixam em bem jurídico tutelável pelo direito penal. Como exemplos têm-se o sofrimento psicológico, dano moral e retenção de objetos pessoais, situações estas acomodadas no processo civil. Neste sentido, Diniz (2007, p. 79): Enquanto não instalados os JVDFMs as medidas protetivas serão enviadas ao juízo criminal. A este compete apreciar as medidas protetivas inclusive de natureza cível: decretar a separação de corpos, fixar alimentos, suspender visitas etc. A execução das medidas urgentes que obrigam o agressor é providência a ser determinada pelo juiz que as deferiu (Vara Criminal). Assim, cabe ao juiz da Vara Criminal fazer cumprir a separação de corpos, retirando o varão do lar e assegurando o retorno da vítima. Quanto às medidas de trato sucessivo, como alimentos e regulamentação de visitas, depois de intimado o agressor e decorrido o prazo recursal, o procedimento é enviado ao juízo cível ou de família. Havendo inadimplemento, a execução cabe ser buscada junto à vara para onde os expedientes foram remetidos (Vara Cível ou de Família) Portanto, tendo sido a medida protetiva requerida junto à Vara Criminal, quando não instalado o Juizado Especializado de Violência Doméstica, não determinará a natureza da medida protetiva, tampouco o sistema recursal. O fator determinante será o bem jurídico tutelado. A Lei 11.340/06 no artigo 33 traz a possibilidade das varas criminais acumularem competências civil e criminal, ou seja, terá uma competência híbrida enquanto não instalados os Juizados Especiais. Tem-se ainda discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito das medidas protetivas serem tidas como cautelares ou de tutela inibitória. O fato da lei não ter definido a natureza jurídica das medidas protetivasfaz com que a prestação jurisdicional reste 32 prejudicada, não havendo uniformização nem mesmo entre os julgados de um mesmo tribunal. 27 Tal lapso faz com que surjam, segundo Brandão (2013, p.7), questões como a duração das medidas de proteção, a perda de eficácia pelo não ajuizamento de ação principal, o recurso cabível contra a decisão que aprecia sua aplicação, a competência para conhecimento do recurso e as consequências do descumprimento da ordem. Brandão (2013, p.8) questiona ainda: Nesse sentido, as protetivas seriam medidas de caráter cautelar, demandando ajuizamento de processo principal? O processo principal seria cível ou criminal? O não ajuizamento do principal implicaria cessação da eficácia da ordem cautelar? Ou estas guardariam caráter satisfativo, dispensando qualquer outro instrumento? Qual o procedimento a ser seguido? Contra a decisão que aprecia o pedido, seria cabível o agravo de instrumento, o recurso em sentido estrito, a apelação ou o habeas corpus? Qual a turma competente para conhecimento do recurso ou da ação autônoma, a cível ou a criminal? A prisão preventiva seria instrumento idôneo para garantia de sua execução? Sendo possíveis tantos questionamentos a respeito da ausência da determinação da natureza jurídica das medidas protetivas pela lei Maria da Penha, importante se faz a diferenciação da tutela cautelar e da tutela inibitória, as quais são objeto de divergência entre doutrinadores como Dias (2010) que entende tratar-se de cautelar e Didier (2008), para o qual a natureza jurídica seria inibitória. A tutela cautelar objetiva garantir a efetividade da prestação jurisdicional futura. Sendo as medidas protetivas de natureza cautelar, implica dizer que estarão vinculadas a um processo, ao provimento jurisdicional. O que, como exposto anteriormente, não cumpriria com a finalidade da Lei Maria da Penha de garantir proteção imediata e efetiva à vítima- mulher. Dias (sd, p.148 apud Fernandes, 2015, p.141) entende tratar-se de cautelar inominada: A própria Lei Maria da Penha não dá origem a dúvidas, de que as medidas protetivas não são acessórias de processos principais e nem a eles se vinculam. Assemelham-se aos writs constitucionais que, como o habeas corpus ou mandado de segurança, não protegem processos, mas direitos fundamentais do indivíduo. São, portanto, medidas cautelares inominadas que visam garantir direitos fundamentais. 27 Disponível no site: http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/1semestre2013/trabalhos_12013/KellenAlvesJauharGe rmanoBrandao.pdf Acesso em: 29 mar.2017. 33 Conforme se pode depreender, para Dias (2010), a medida protetiva seria uma espécie de cautelar inominada, de caráter satisfativo que, no entanto, não teria perdida sua eficácia no prazo de 30 (trinta dias) como ocorre na tutela cautelar que necessita ser ajuizada uma ação no mencionado prazo decadencial para não perderem sua validade já que no caso das medidas protetivas o juiz é quem estabelecerá a limitação temporal. Câmara (2013, p.28) posiciona-se no sentido de, sendo medidas cautelares, estas podem ser revogadas ou modificadas, de ofício ou a requerimento das partes, frisando ainda que possuem caráter temporário e, portanto, ainda que não sejam substituídas terão sua duração limitada. Todavia, há autores, a exemplo de Bechara (2010, sn, apud Fernandes, 2015, p. 141) e Didier (2008, p. 12, apud Fernandes, 2015, p.141) que entendem tratar-se de tutela inibitória já que “a medida protetiva, porque autônoma e satisfativa, não é tutela de natureza cautelar”. Marinoni (2012, p.32) conceitua a tutela inibitória como sendo “aquela que tem por fim impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito.” Sendo assim, ao adotar-se a tutela inibitória como sendo a natureza das medidas protetivas, implica dizer que se está adotando um procedimento que é também preventivo, ou seja, a ofendida estará tutelada de ilícitos já praticados, bem como de situações futuras. Marinoni (2014, p. 67) expõe que: A situação pode ser mais grave quando se pensa nos direitos que não podem ser tutelados de forma adequada através do ressarcimento em pecúnia e, principalmente, nos direitos não patrimoniais. Não viabilizar a tutela inibitória quando em jogo direitos não patrimoniais é admitir a expropriação desses direitos, transformando-se o direito ao bem em direito ao ressarcimento ou, em outras palavras, em simples pecúnia. Tal possibilidade, como é óbvio, está muito distante das Constituições fundadas na dignidade do homem e preocupadas em propiciar a sua inserção em uma sociedade mais justa. Desta forma, a tutela inibitória seria aquela capaz de proteger os bens jurídicos não patrimoniais como vida, dignidade e honra. No entanto, adotando a vertente da corrente majoritária, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais firmou o entendimento de que as medidas protetivas têm natureza de tutela cautelar, conforme se depreende do seguinte julgado: 34 AGRAVO DE INSTRUMENTO - LEI MARIA DA PENHA - MEDIDAS PROTETIVAS - NATUREZA CAUTELAR - DECADÊNCIA DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO - PERDA EFICÁCIA JURÍDICA - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. As medidas protetivas da Lei Maria da Penha têm natureza cautelar, vinculando-se à existência de processo criminal. 2. Inviável é a aplicação das medidas protetivas diante da decadência do direito de representação. 3. Recurso desprovido. (TJ-MG - APR: 10024101826675001 MG, Relator: Pedro Vergara, Data de Julgamento: 28/01/2014, Câmaras Criminais / 5ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 03/02/2014) 28 Entende-se, portanto, que as medidas protetivas deverão ser aplicadas apenas em caso de urgência, devendo ser preventiva e provisória, já que não tem caráter definitivo devido a sua natureza de medida cautelar. Para garantia da proteção à mulher em sua integridade física, mental e saúde em âmbito doméstico deve-se facilitar o alcance do seu direito, garantindo maior eficácia ao processo. Conclui Brandão (2013, p.5) que: Na experiência brasileira, o regime cautelar comum revelou-se insuficiente para conter a violência doméstica e familiar, muitas vezes praticada mediante reiteradas lesões corporais ou agressões verbais punidas com detenção. Em acréscimo, a vítima pode depender economicamente do agressor, com ele mantendo laços civis, o que torna a prisão cautelar, desacompanhada de providências civis, como a referente aos alimentos provisórios, um ônus excessivo, induzindo-a a manter em segredo os abusos e a tolerá-los. Do exposto, depreende-se que as medidas protetivas terão natureza cautelar, porém com caráter satisfativo, na medida em que não estariam vinculadas a um processo anterior ou posterior, dependendo de decisão judicial que fixe o prazo de vigência, bem como para que as revogue. 3.3 Medidas protetivas em espécie As medidas protetivas, consideradas grandes inovações da Lei Maria da Penha, conforme já destacado, estão previstas do artigo 22 a 24. Tratando no artigo 22 a respeito das medidas que obrigam o agressor e nos artigos 23 e 24, estão elencadas aquelas destinadas à ofendida. 28 Disponível em https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/119350116/apelacao-criminal-apr- 10024101826675001-mg/inteiro-teor-119350143?ref=juris-tabs Acesso em: 30 de mar.2017. 35 3.3.1 Medidas aplicáveis ao agressor Com previsão no artigo 22 da Lei 11.340/06, em rol exemplificativo, as medidas
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