Buscar

Uma possível leitura sobre o capítulo do cogito no livro Fenomenologia da Percepção

Prévia do material em texto

Uma percepção sobre um Cogito conciliado: 
uma possível leitura sobre o capítulo do cogito no livro Fenomenologia da Percepção 
 
 
“Ou o Cogito é esse pensamento que se formou há três séculos no espírito de Descartes, ou é 
o sentido dos textos que ele nos deixou, ou enfim uma verdade eterna que transparece através 
deles, de qualquer maneira ele é um ser cultural para o qual meu pensamento antes se dirige 
do que o abarca (...)” (Merleau-Ponty, 2011. p. 493) 
 
O Cogito é um tema central do pensamento cartesiano, além de parecer estar nas bases de 
todo o chamado pensamento moderno. Este mesmo é costumeiramente tratado de forma dual 
na filosofia, sendo abordado de forma idealista ou materialista. E é neste ponto que Merleau-
Ponty parece ir além: ele se desafia a conciliar essas visões. 
Logo no início, o vemos reconhecer no Cogito uma questão cultural, ou seja, há algumas 
coisas no mundo que, diferente do que Descarte expressa, “não me entregam seu segredo” e 
nas quais “minha consciência se esvai e se ignora neles”. Ou seja, o autor não vê possibilidade 
de “afirmar a transcendência efetiva e a existência em si do mundo e das ideias”. (Merleau-
Ponty, 2011. p. 494) 
Ao mesmo tempo, ele se assinala a possibilidade de uma “verdade definitiva” no cogito: 
 
“A própria experiência das coisas transcendentes só é possível se eu trago e encontro em mim 
mesmo seu projeto. (...) por exemplo, minha visão da árvore enquanto êxtase mudo diante de 
uma coisa individual já envolve um certo pensamento de ver e um certo pensamento de 
árvore; enfim, é porque eu não encontro a árvore, não estou simplesmente confrontando com 
ela, e porque reconheço neste existente em face de mim uma certa natureza da qual formo 
ativamente a noção” (Merleau-Ponty, 2011. p. 494) 
 
Mas em seguida, tomando o cuidado de demonstrar que não basta se enveredar para o simples 
“retorno” ao cartesianismo. Seguindo seu raciocínio, o autor remonta o método de Descartes 
de tal forma que acaba por demonstrar que tal interpretação do Cogito é “eternitária”. 
(Merleau-Ponty, 2011. p. 496-497) Ela recai em uma espécie de imobilidade e em uma 
condição de identidade, algo que exclui a diferença e que por isso, destitui o Cogito de uma 
possível temporalidade. Ou seja, se o modelo do cogito de Descartes for aceito, é preciso se 
atentar para as conseqüências que derivam dele. 
Nesta interpretação, o Cogito se “revela um novo modo de existência que não deve nada ao 
tempo”. Seguindo as consequências desta atemporalidade, demonstrando se tratar de uma 
consciência constitutiva, verdadeira e radical, o autor diz que este mesmo Cogito se trata, 
“sem qualquer restrição” de Deus, comparando-o ao Deus spinozano. (Merleau-Ponty, 2011. 
p. 497) Outra consequência que se pode verificar neste modelo é a impossibilidade de haver 
outro Cogito, a alteridade, pois ao se supor que este Cogito esteja presente para ele mesmo 
por toda a eternidade, ele também não pode deixar a si mesmo. Seria um "pensamento do 
pensamento", um pensamento sem objeto, ou ainda um pensamento cujo único objeto possível 
seria ele próprio, se descolando de toda possibilidade de conexão com o mundo, com aquilo 
que não seja sua própria interioridade, com algo que não seja apenas ele mesmo. Ele seria 
incomunicável, impossibilitando também o reconhecimento de outro Cogito, além deser algo 
paradoxal, pois se ele é Deus, é absoluto e, se assim o for, não poderia existir mais de um 
absoluto. (Merleau-Ponty, 2011. p. 498-499) 
Este paradoxo, consequência direta da abordagem cartesiana do Cogito, é indício de algo 
novo, uma necessidade fundamental que servirá de base para um outro modelo de 
consciência, de Cogito: 
 
“Constatamos aqui a necessidade de encontrar um caminho entre a eternidade e o tempo 
despedaçado do empirismo, e de retomar a interpretação do Cogito e a interpretação do 
tempo. Reconhecemos de uma vez por todas que nossas relações com as coisas não podem ser 
relações externas, nem nossa consciência de nós mesmos a simples notação de 
acontecimentos psíquicos.” (Merleau-Ponty, 2011. p. 499-500) 
 
É aqui que Merleau-Ponty começa a demonstrar sua solução. Pode-se dizer que ele confronta 
o Cogito de Descartes por meio de uma concepção da subjetividade “no mundo”. E ele não 
faz uma negação do Cogito cartesiano, mas o reconfigura para ser tácito – temporal e 
relacional. Neste ponto, é a visão que serve de alusão à percepção; e esta última deve ser 
entendida como uma dinâmica perceptiva e filosoficamente construída. 
Dessa forma, o Cogito passa a servir como uma superfície sobre a qual as imagens de um “ser 
no mundo” são projetadas, tanto na forma de um ator que tem, de maneira realista, o poder 
para capturar e conhecer, quanto como um ator que constitui, que pode também ser chamado 
de criador desse mesmo mundo. 
Para Merleau-Ponty, o Cogito não pode ser dissociado da existência, ou seja, a própria 
consciência é também um ato de uma mesma existência. Não há ruptura entre o “eu” e o 
mundo. Dessa maneira, não há um “eu” interno, fechado em si, pois se houvesse, ele deixaria 
até de estar certo sobre seus próprios atos: 
 
“Portanto, de duas coisas uma: ou não tenho nenhuma certeza concernente às próprias 
coisas, mas então não posso mais estar certo da minha própria percepção tomada como 
simples pensamento, já que, mesmo assim, ela envolve a afirmação de uma coisa; ou 
apreendo meu pensamento com certeza, mas isso supões que no mesmo instante eu assuma as 
existências que ele visa.” (Merleau-Ponty, 2011. p. 501) 
 
Aqui é possível notar mais um ponto de atenção sobre essa reconfiguração do modelo 
cartesiano: enquanto Merleau-Ponty aponta para os pensamentos sobre os objetos ou 
“percepções objetivas”, Descartes coloca que os pensamentos do Cogito são verdades 
dissociadas da experiência, sem que tenhamos delas alguma percepção, ou seja, postula a 
existência de ideias inatas. 
Mas o Cogito também não pode ser pensado como um repositório passivo que é simplesmente 
preenchido pela percepção. “A consciência é de um lado ao outro transcendência, não 
transcendência passiva (...) mas ativa”, pois qualquer ato de uma determinada consciência 
supera ela própria, ou seja, se encaminha para essa transcendência. Sendo assim, não há um 
Cogito que seja puramente constitutivo, como no idealismo, mas também não há uma tábula 
rasa na qual a percepção simplesmente imprime aquilo que capta. 
Com isso, há a presença de uma “‘síntese’ perceptiva”, pois se algo é distinto da consciência e 
também não é constituído por ela, não pode se oferecer a ela por completo; é algo que só pode 
ser apreendido por meio de uma perspectiva, ou seja, sempre há alguma coisa escondida. 
(Merleau-Ponty, 2011. p. 503-504) 
Mas, ainda sim, parece haver algo realmente interior à consciência, os chamados “fatos 
psíquicos”, algo “como o amor e a vontade”. E isso poderia se tornar uma objeção ao 
pensamento de Merleau-Ponty, pois “a consciência, parece, retoma seus direitos e a plena 
posse de si mesma” pois tratam-se de operações interiores que independem de uma intenção 
externa. Se fosse este o caso, ao tomar os sentimentos por eles mesmos, estes deveriam ser 
sempre verdadeiros. Mas o autor indica ser bastante fácil perceber que essa afirmação não 
reflete a realidade, isso porque há a capacidade de “distinguir em nós mesmos sentimentos 
‘verdadeiros’ e sentimentos ‘falsos’”. 
Fazer essa distinção, não necessariamente é uma tarefa simples e em alguns momentos é 
possível que haja incapacidade de fazer uma análise mais profunda desses fatos psíquicos. 
Assim, é perfeitamente possível que se descubra um amor falso somente quando houver a 
experiência de um amor verdadeiro. 
Écomo se a vida fosse uma correnteza que leva a todos, de forma inconsciente, sempre 
mudando seu curso e a única forma de escapar desses “valores de situação” está na “verdade 
de seus sentimentos futuros”, pois ela é capaz de desmascarar “a falsidade dos sentimentos 
presentes”. De tal maneira que “não nos possuímos cada momento em toda nossa realidade 
(...) Não se trata de outra coisa senão daquilo que fazemos” (Merleau-Ponty, 2011. p. 508) 
Um ponto essencial desta reflexão sobre o Cogito é alcançado quando percebe-se que a 
consciência não é algo completo e que também não é transparente, mesmo que em um fato 
psíquico, para si mesma. Isso poderia levar ao pensamento de que o Cogito não passa de um 
simples amontoado de percepções que a memória faria remontar a uma identidade. É aqui que 
Merleau-Ponty afunila seu direcionamento para a conciliação das visões idealista e 
materialista. 
O autor começa demonstrando que o Cogito é eficaz em conteúdos existenciais, 
desautorizando a visão de alienação total da existência em relação à consciência. Ou seja, a 
realidade se dá em ato, de tal maneira que não existe uma percepção interna; a consciência 
não se percebe, não se apreende da mesma forma que faz com os objetos pois não se trata de 
um objeto, de algo conclusivo. Assim, a percepção só pode iniciar na experiência, na relação 
com o mundo. Depreende-se então, o erro do dualismo entre o “eu” interior e o exterior. 
O Cogito passa a ser um ato, deixa de ser o “Eu penso, logo existo” para o “Eu penso que é 
reintegrado ao movimento de transcendência do Eu sou e a consciência da existência”. 
Mesmo superando as fases do pensamento e a existência isolada das experiências, Merleau-
Ponty precisa inevitavelmente negar uma absoluta coincidência de “mim comigo”, que, por 
outro lado, só seria possível admitindo a existência de um “pensamento puro” pois o 
pensamento não é anterior à existência nem é fundacional, mas sim um modo de existir. 
O autor analisou o ato em que se supera (ou pretende-se superar) a dispersão temporal de cada 
fase do pensamento e concluiu que não é obrigatório que a apreensão das essências 
desconecte o Cogito do mundo. Nem a própria geometria é capaz de transcender a consciência 
perceptiva, mesmo tratando-se de essências. É importante frisar que a consciência é uma 
consciência encarnada, distinta da “res cogitans” de Descartes. 
Em decorrência disso, surge o “sujeito-corpo” como uma condição de possibilidade e como 
princípio transcendental das essências. O corpo não é o “eu” interior e sem corpo cartesiano, 
pelo contrário, é um “ser-no-mundo”. Por isso, a espontaneidade do pensamento reside na sua 
própria transcendência, na relação do “ser com o ser-do-mundo”, expressa por meio da 
linguagem, assim como qualquer pensamento. 
No entanto, ao dizer “expressar por meio de”, não significa que pensamento e linguagem 
sejam totalmente distintos. A experiência linguística não pode ser reduzida a uma simples 
tradução por meio da combinação de signos arbitrários pois cada palavra, quando 
contextualizada, vai além de seu significado concreto. E é dessa forma que se introduz um 
sentido ao Cogito. 
 
“Portanto, a fala é essa operação paradoxal em que tentamos alcançar, por meio de palavras 
cujo sentido é dado, e de significações já disponíveis, uma intenção que por princípio vai 
além e modifica, em última análise fixa ela mesma o sentido das palavras pelas quais ela se 
traduz.” (Merleau-Ponty, 2011. p. 520) 
 
Em suma, pode-se dizer que, não há pensamento que não seja expresso, ou pela “fala 
secundária”, a qual traduz um pensamento já adquirido, ou pela “fala original”, que o faz 
existir para o emissor e para o receptor. É importante ressaltar que é a “fala original” que leva 
ao pensamento secundário, pois gera certa ambiguidade nessa mesma “fala original”. 
Caso se esqueça desse momento da “fala original”, fica caracterizada a soberania do Cogito 
no modelo cartesiano. Mas este modelo cartesiano não se mantém quando nos referimos ao 
“fazer” como uma aquisição cultural, mas ainda é válido em outras acepções. Como aquisição 
cultural, o Cogito de Descartes é imutável, pois trata-se de algo já realizado por alguém, 
alcançando o outro por meio da “fala secundária”. 
Sendo assim, essa filosofia não tem condições de se manter; é uma herança, uma decorrência 
do cultural. Com isso, ao refazer o caminho cartesiano ao seu princípio e modelo de 
evidência, o autor é levado a considerar esta secundariedade, esta obscuridade de uma “fala 
original” e viver per se, o Cogito. É no momento que o sujeito se depara com essa “fala 
original” que a linguagem atua, em sua totalidade, de forma criativa. O autor evita assim, 
possíveis desvios para um racionalismo exacerbado, ou mesmo para um pensamento dual. 
Ao falar, o sujeito de faz compreender ao mesmo tempo que se compreende, mas ao analisar 
este ato, percebe-se que ele está cercado de ambiguidades. Isso porque o pensamento, que é 
dado como experiência, é incapaz de diminuir a distância que o mantém longe de si próprio. 
Este é portado apenas como uma experiência, como um ato que acontece em um determinado 
tempo; que apesar de não se possuir, se tem de forma passiva, se realiza. Isso sem que se 
perca em nenhum momento a ambiguidade de sua origem, por isso se mantém como um 
sempre como algo inacabado. 
Neste trecho, o autor mostra ser inaceitável fazer referência a um absoluto transcendente pois 
além da linguagem, não existe pensamento transcendente, mas sim o próprio pensamento que 
é transcendido pela linguagem. Ou seja, a palavra, enquanto expressa um pensamento, vai 
além daquele ato de geração linguística que fica no passado. 
O que pode-se observar é que, neste ponto, a própria essência da temporalidade consiste em 
colocar uma existência diante de outras, colocando momentos novos sobre o s anteriores, mas 
sem apagá-los. Ou seja, a “existência sempre assume o seu passado, seja aceitando-o ou 
recusando-o” (Merleau-Ponty, 2011. p. 526) 
Aqui, o autor exemplifica usando o cultural: cada contribuição passada exerce uma influência 
nas experiências futuras, e assim, no momento em que um quadro é contemplado ou se ouve 
uma sinfonia, não é simples contemplação ou audição, uma vez que as aquilo que a 
consciência já adquiriu em experiências anteriores, está presente e “atuante” no agora, e, 
mesmo os criadores dessas obras, também tiveram experiências anteriores à criação das 
mesmas. 
“Aquilo que vivemos é e permanece perpetuamente para nós” (Merleau-Ponty, 2011. p. 526). 
Para o ser humano, a experiência é uma verdade contínua e participativa, pois é algo que 
deriva de “ser-no-mundo”. E isto é a única verdade possível de ser experienciada, o ser-no-
mundo. Com isso, pode-se afirmar que não é Deus quem nos dá a experiência de verdade, 
como descreve o modelo cartesiano. Com isso, fica demonstrado que a experiência da verdade 
é devedora direta da percepção e que o Cogito só pode ter uma consciência perceptiva de uma 
experiência atual e das experiências já vividas. Do que se depreende que, uma verdade está 
sujeita a uma certa ambiguidade - contida na linguagem - pois essa é uma “fala original”, 
sobre a qual podemos concordar ou duvidar, ou seja, não há clareza absoluta. 
Por este mesmo motivo, não se menospreza a verdade de seu próprio Cogito, pois é a única 
experiência possível em relação à verdade, assim como ver um objeto, é a única experiência 
de visão. Ou seja, o Cogito é condicionado ao tempo, apartado de uma possibilidade de 
permanência. 
É por compreender que o “tornar-se” do pensamento como algo inconclusivo, que o autor 
consegue esclarecer que nem o próprio Cogito é capaz de se oferecer como um objeto 
completamente desvelado.É por unificar, por demonstrar que o Cogito só faz sentido em uma 
totalidade, que ele é parte de uma consciência corpórea, de algo que está-no-mundo que 
Merleau-Ponty desvela uma subjetividade que não vive em duas realidades - res cogitans e 
res extensa. 
Por fim, o sujeito não pode ser consciência pura que é unida artificialmente, nem como 
transcendência que é condição de possibilidade de tudo que existe. O Cogito é corpóreo, 
encarnado, é a experiência de ser-no-mundo, destituindo qualquer possibilidade de dualidade, 
reconfigurando tudo em uma relação, uma intenção incessante entre sujeito e objeto e 
tornando o ser sua própria facticidade em uma existência no mundo. E é assim que Merleau-
Ponty supera o dualismo, com um mundo temporal. 
 
 
Bibliografia: 
 
MERLEAU-PONTY, M. A estrutura do comportamento. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 
2006 
___________________. Fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 
2011

Continue navegando