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LACAN, J. (1985). O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Capítulo IV - Uma Definição Materialista do Fenômeno de Consciência A vivência e o destino. “Ensino-lhes que Freud descobriu no homem o peso e o eixo de uma subjetividade que ultrapassa a organização individual como soma das experiências individuais, e até mesmo, como linha do desenvolvimento individual. Dou-lhes uma definição passível da subjetividade, ao formulá-la como sistema organizado de símbolos que almeja cobrir a totalidade de uma experiência, animá-la, dar-lhe sentido. E o que será que tentamos realizar aqui, senão uma subjetividade? As direções, as aberturas, que são aqui trazidas para vocês, sobre nossa experiência e nossa prática, são feitas para inspirá-los a prolongá-las numa ação concreta.” p.58 “As resistências têm sempre sua sede, nos ensina a análise, no eu. O que corresponde ao eu é o que por vezes chamo a soma dos preconceitos que comporta todo saber, e que cada um de nós carrega individualmente. Trata-se de algo que inclui o que sabemos ou cremos saber - pois saber é sempre, por algum lado, crer saber. Por isto, quando uma perspectiva nova lhes é trazida de uma maneira descentrada com relação à experiência de vocês, sempre se opera um movimento pelo qual vocês tentam reencontrar o equilíbrio, o centro habitual do ponto de vista de vocês - sinal daquilo que lhes explico, e que se chama resistência.” p.58 “Vocês estão vendo que o que aí está em destaque não é, como sempre se tem tendência a acreditar, a dependência concreta, afetiva da criança com relação a adultos supostos mais ou menos parentais. Se o sujeito se coloca a questão do que ele é como filho não é para saber se ele é mais ou menos dependente, e sim se é reconhecido ou não, tendo ou não o direito de usar seu nome de filho de fulano de tal. E na medida em que as próprias relações onde ele se acha são levadas ao grau do simbolismo, que o sujeito se interroga sobre si mesmo.” p.60 “Então ‒ é aí que quero chegar ‒ o que é a análise das resistências? Não é como se tende não apenas a formular ‒ e se formula isto, dar-lhes-ei muitos exemplos ‒, porém, muito mais a praticar, não é intervir junto ao sujeito para que ele se conscientize da maneira pela qual seus apegos, seus preconceitos, o equilíbrio do seu eu, o impedem de enxergar. Não é uma persuasão que vai dar bem depressa na sugestão. Não é reforçar, como se diz, o eu do sujeito ou fazer de sua parte sã um aliado. Não é convencer. É saber, a cada momento da relação analítica, em que nível deve ser trazida a resposta. Esta resposta é possível que, às vezes, ela deva ser trazida ao nível do eu. Mas no caso que estou-lhes dizendo não é nada disto.” p.60-61. "O núcleo de nosso ser." “Uma fala é matriz da parte não reconhecida do sujeito, e eis aí o nível próprio do sintoma analítico ‒ nível descentrado com relação à experiência individual, visto ser aquele do texto histórico que a integra. Fica, a partir de então, patente que o sintoma só cederá com uma intervenção que incida neste nível descentrado. Fracassará toda intervenção que se inspirar numa reconstituição pré-fabricada, forjada a partir de nossa ideia sobre o desenvolvimento normal do indivíduo, e visando a sua normalização ‒ eis o que faltou a ele, eis o que deve aprender a suportar de frustração, por exemplo. Trata-se de saber se o sintoma se resolve num registro ou no outro, não há meio termo.” p.61 “Esta função da fala, trata-se de saber se, na análise, ela exerce sua função pela substituição do eu do sujeito pela autoridade do analista ou se ela é subjetiva. A ordem instaurada por Freud prova que a realidade axial do sujeito não está no seu eu. Intervir substituindo-se ao eu do sujeito, como se faz sempre numa certa prática da análise das resistências, é uma sugestão, não é análise.” p.61 “O sintoma, seja qual for, não se acha propriamente resolvido quando a análise é praticada sem que seja colocado no primeiro plano a questão de saber onde deve incidir a ação do analista, qual é o ponto do sujeito, se posso expressar-me assim, a que ele deve visar.” p.61 “[...] quando Freud trata do processo primário, ele quer falar de alguma coisa que tem um sentido ontológico e que ele denomina o núcleo de nosso ser. O núcleo de nosso ser não coincide com o eu.” p.62 “Mas acreditam vocês que basta que se fique nisto, e que se diga ‒ [eu] do sujeito inconsciente não é o eu? Não basta. Pois nada, para vocês que pensam espontaneamente, se é que se pode dizer isto, implica a recíproca, E vocês se põem normalmente a pensar que este [eu], é o eu verdadeiro. Vocês imaginam que o eu é apenas uma forma incompleta, errônea, deste [eu]. Assim, este descentramento essencial para a descoberta freudiana, vocês o efetuaram, mas imediatamente o reduziram.” p.62 “Pensava-se que, ao se analisar o eu, achava-se o avesso do que era para fazer entender. Operava-se assim uma redução da ordem daquela de que lhes estou falando ‒ duas imagens diferentes numa só.” p.62 O eu é um objeto. “Com certeza [eu] verdadeiro não é o eu. Mas não basta, pois, a gente pode sempre vir a acreditar que o eu seja apenas [eu] errado, um ponto de vista parcial, cuja simples tomada de consciência bastaria para alargar-lhe a perspectiva, o suficiente para que se descobrisse a realidade que se busca atingir na experiência analítica. O importante é a recíproca que deve ficar-nos sempre presente no espírito ‒ o eu, não é [eu], não é um erro, no sentido em que a doutrina clássica faz dele uma verdade parcial. Ele é uma outra coisa ‒ um objeto particular dentro da experiência do sujeito. Literalmente o eu é um objeto ‒ um objeto que preenche uma certa função que chamamos aqui de função imaginária." p.62-63 “O sistema de consciência não cabe na sua teoria [de Freud].” p.64 “A questão foi colocada, que permanece aberta, de saber se [eu] é imediatamente apreendido no campo da consciência.” p.64 “A imagem no espelho, o que é? Os raios que voltam para o espelho nos fazem situar num espaço imaginário o objeto que se acha além disso ‒, em algum lugar na realidade. O objeto real não é o objeto que vocês vêem no espelho. Há, pois, aí um fenômeno de consciência como tal.” p.64 “Suponham que todos os homens tenham desaparecido da terra.” p.65 “Digo os homens, devido ao valor elevado que vocês conferem à consciência. Já basta para perguntar ‒ o que será que sobra no espelho? Mas suponhamos até que todos os seres vivos tenham desaparecido. Sobram então apenas fontes e cachoeiras ‒ e também raios e trovões. A imagem no espelho, a imagem no lago, será que elas ainda existem? É óbvio que ainda existem.” p.65 “Tendo desaparecido todo ser vivo, a câmera pode ainda assim registrar a imagem da montanha no lago [...]” p.65 “Pois bem! eis aí, portanto, o que lhes proponho considerar como essencialmente um fenômeno de consciência, que não terá sido percebido por mim algum, que não terá sido refletido por nenhuma experiência êuica ‒ estando ausente nesta época toda e qualquer espécie de mim e de consciência do eu.” p.65 “Explico-lhes que é na medida em que ele [o eu] está enfiado num jogo de símbolos, num mundo simbólico, que o homem é um sujeito descentrado. Pois bem, é com este mesmo jogo, com este mesmo mundo, que a maquina é construída. As mais complicadas máquinas são feitas apenas com falas.” p.66 “A máquina é a estrutura como desvinculada da atividade do sujeito. O mundo simbólico é o mundo da máquina. A questão daquilo que, neste mundo, constitui o ser do sujeito, se abre então.” p.66 “Só para começar a colocar a questão do que é o eu, já é preciso desvincular-se da concepção que chamaremos religiosa da consciência. Implicitamente, o homem moderno pensa que tudo que aconteceu no universo, desde a origem, foi feito para convergir para esta coisa que pensa, criação da vida, ser precioso, único, cume das criaturas, que é ele mesmo, no qual existe este ponto privilegiado que se denomina consciência.” p.66 “Mas, quando em embriologia se fala da intervençãode uma forma formadora no embrião, logo se pensa que a partir do momento em que há um centro organizador, pode haver apenas uma consciência. Consciência, olhos, orelhas ‒ pois deve haver um demoniozinho dentro do embrião. Daí não se procurar rnais organizar o que é manifesto no fenômeno porque se crê que tudo o que é superior implica consciência. Sabemos, no entanto, que a consciência está ligada a algo de totalmente contingente, tão contingente quanto a superfície de um lago num mundo inabitado ‒ a existência de nossos olhos ou de nossas orelhas.” p.67 “O behaviorismo diz ‒ Nós aqui vamos observar as condutas totais, não liguemos para a consciência. Mas sabe-se suficientemente que esta colocação entre parênteses da consciência não foi assim tão fecunda.” p.67 “Rogo-lhes que considerem ‒ durante urn certo tempo, durante esta introdução ‒ que a consciência, isso, se produz toda vez que é dada ‒ e isto se produz nos lugares mais inesperados e distantes uns dos outros ‒ uma superffcie tal que possa produzir o que se denomina uma imagem. É uma definição materialista. Uma imagem, isso quer dizer que os efeitos energéticos que partem de um ponto dado do real ‒ imaginem que elas são da ordem da luz, já que é o que melhor permite criar imagens em nosso espírito ‒ vem refletir-se em algum ponto de uma superfície, vem bater no mesmo ponto correspondente do espaço.” p.68 “Coisas de todo tipo no mundo comportam-se como espelhos.” p.68 “Puderam assim dar-se conta de que tudo o que é imaginário, tudo o que é ilusório, propriamente falando, não é nem por isto subjetivo. Há um ilusório perfeitamente objetivo, objetivável [...]” p.69 “Nesta perspectiva, como é que fica o eu? O eu é deveras um objeto. O eu, que vocês percebem, segundo se pretende, dentro do campo da consciência clara como sendo a unidade deste, é justamente aquilo diante do qual o imediato da sensação é posto em tensão. Esta unidade não é nada homogênea ao que se passa na superfície deste campo, que é neutro. A consciência como fenômeno físico é justamente o que gera esta tensão.” p.69 Fascinação, rivalidade, reconhecimento. “Toda a dialética que lhes dei a título de exemplo com o nome de estádio do espelho está fundamentada sobre a relação entre, de um lado, um certo nível das tendências vivenciadas ‒ digamos, por enquanto, num certo momento da vida ‒ como que desconectas, discordantes, despedaçadas ‒ e sempre fica alguma -, e por outro lado, uma unidade com a qual ele se confunde e se emparelha. Esta unidade é aquilo em que o sujeito se conhece pela primeira vez como unidade, porém, como unidade alienada, virtual. Ela não participa dos caracteres de inércia do fenômeno de consciência sob sua forma primitiva, pelo contrário, ela tem uma relação vital, ou contravital com a sujeito. Ao que parece, o homem tem aí uma experiência privilegiada. Talvez haja, afinal, algo desta ordem em outras espécies animais. O ponto não é crucial para nós. “ p.69 “Casal paralítico e cego: A metade subjetiva de antes da experiência do espelho é o paralítico, que não pode mover-se só, a não ser de maneira descoordenada e desajeitada. O que o domina e a imagem do eu, que é cega e que o carrega. Contrariamente às aparências, e eis todo o problema da dialética, não é, como Platão acredita o senhor quem cavalga o cavalo, ou seja, o escravo, e o contrário. E o paralítico, a partir do qual se constrói esta perspectiva, só pode identificar-se à sua unidade na fascinação, na imobilidade fundamental pela qual ele vem corresponder ao olhar ao qual está preso, o olhar cego.” p.70 “A subjetividade no nível do eu é comparável a este casal, introduzido pela imaginária do século XV - e, por certo, não sem razão ‒ de maneira particularmente acentuada. A metade subjetiva de antes da experiência do espelho é o paralítico, que não pode mover-se só, a não ser de maneira descoordenada e desajeitada. O que o domina é a imagem do eu, que é cega e que o carrega. Contrariamente às aparências, e eis todo o problema da dialética, não é, como Platão acredita, o senhor quem cavalga o cavalo, ou seja, o escravo, é o contrário. E o paralítico, a partir do qual se constrói esta perspectiva, pode identificar-se à sua unidade na fascinação, na imobilidade fundamental pela qual ele vem corresponder ao olhar ao qual está preso, o olhar cego.” p.70 “Uma outra imagem é a da serpente e do pássaro fascinado pelo olhar. A fascinação é absolutamente essencial para o fenômeno da constituição do eu. É na qualidade de fascinada que a diversidade descoordenada, incoerente, da despedaçagem primitiva adquire sua unidade. A reflexão também é fascinação, bloqueio. Esta função da fascinação e até mesmo do terror, mostrá-la-ei a vocês do próprio punho de Freud, a propósito justamente da constituição do eu.” p.70 “Na medida em que a unidade da primeira máquina estiver pendente na unidade da outra, que a outra lhe fornecer o modelo e a própria forma de sua unidade, aquilo para o que se dirigir a primcira dependerá sempre daquilo para o que se dirigir a outra. Disto não vai resultar nada menos que esta situação de impasse própria à constituição do objeto humano. Esta se acha, com efeito, inteiramente pendente desta dialética de ciúme ‒ simpatia que se expressa, com exatidão, na psicologia tradicional, pela incompatibilidade das consciências.” p.71 “Isto não quer dizer que uma consciência não possa conceber uma outra consciência, mas sim que um eu, inteiramente pendente da unidade de um outro eu, é estritamente incompatível com ele no plano do desejo. Um objeto temido, desejado, é ou ele ou eu quem o terá, tem de ser de um ou de outro. E quando é o outro que o tem é porque ele me pertence. Esta rivalidade constitutiva do conhecimento em estado puro é, evidentemente, uma etapa virtual. Não há conhecimento em estado puro, pois, a estrita comunidade do eu e do outro no desejo do objeto enceta uma coisa radicalmente outra, ou seja, o reconhecimento.” p.71 “O reconhecimento supõe com toda evidência um terceiro.” p.71 “Este terceiro é, no entanto, o que encontramos no inconsciente.” p.72 “Vocês estão vendo através disto que o eu não pode, em caso algum, ser outra coisa senão uma função imaginária, mesmo que num certo nível ele determine a estruturação do sujeito. Ele é tão ambíguo quanto pode ser o próprio objeto, do qual ele é, de certa maneira, não apenas uma etapa, mas o correlato idêntico.” p.72 “O sujeito se coloca como operante, como humano, como [eu], a partir do momento em que aparece o sistema simbólico. E este momento não é dedutível de nenhum modelo que seja da ordem de uma estruturação individual. Dizendo isto de outra maneira, para que o sujeito humano aparecesse seria preciso que a máquina, nas informações que ela fornece, se contasse ela mesma como uma unidade entre as outras. E é justamente a única coisa que ela não pode fazer. Para que ela mesma possa contar-se, seria preciso que não fosse mais a máquina que é, pois pode-se fazer tudo, salvo fazer com que uma máquina se adicione ela mesma como elemento num cálculo.” p.72 Capítulo V - Homeostase e Insistência Idolatria. La difficulté quand on parle de la subjetivité, c’est de ne pas entifier le sujet. p.71 (edição francesa) Le corps morcelé trouve son unité dans l’image de l’autre, qui est sa propre image anticipée - situation duelle où s’ébauche une relation polaire, mais non-symétrique. p.72 (edição francesa) Le sujet est personne. Il est décomposé, morcelé. Et il se bloque, il est aspiré par l’image, à la fois trompeuse et réalisée de l’autre, ou aussi bien sa propre image spéculaire. Là, il trouve son unité. p.72 (edição francesa) D’où un cercle, qui peut être vaste, mais dont la liaison essentielle est donnée par ce rapport imaginaire à deux. Je vous ai montré les conséquences de ce cercle quant au désir. p.72 (edição francesa) Il s’agit d’introduire une régulation symbolique, dont la sous-jacence mathématique inconsciente des échanges des structures élémentaires vous donne le schéma. p.73 (edição francesa) Cette voix, notre déductiondu sujet exige pourtant que nous la situions quelque part dans le jeu interhumain. p.73 (edição francesa) A autocontagem do sujeito. Supposez que la machine puisse se compter elle-même. En effet, pour que fonctionnent les combinaisons mathématiques qui ordonnent les échanges objectaux, au sens où je les ai définis tout à l’heure, il faut que dans la combinatoire chacune des machines puisse se compter elle-même. “No entanto, nossa dedução do sujeito exige que situemos esta voz em algum canto no jogo inter-humano.” p.76 “E talvez, com efeito, seja em última instância precise reconhecê-Ia, esta voz, como sendo a voz de ninguém. Eis porque da última vez tinha enveredado pelo caminho de dizer-lhes que somos levados a exigir que seja a máquina que tome a palavra ordenadora. E indo um pouco mais depressa, como por vezes ocorre no fim de um discurso onde sou forçado ao mesmo tempo a dar o remate e a encetar a retomada, eu dizia o seguinte ‒ suponham que a máquina possa se contar cia mesma. Com efeito, para que funcionem as combinações matemáticas que ordenam as trocas objetais no sentido em que as defini há pouco, é preciso que na combinatória cada uma das máquinas possa ela mesma se contar.” p.76 “Onde será que o indivíduo em função subjetiva se conta ele mesmo ‒ senão no inconsciente? Este é um dos fenômenos mais manifestos que a experiência freudiana descobre.” p.76 Binet e Simon: “Tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu.' Há certamente uma ilusão desta ordem no fato de acreditar que o fato de o próprio sujeito se contar ele mesmo seja uma operação de consciência, uma operação vinculada a uma intuição da consciência transparente a si mesma.” p.77 “Não seria difícil mostrar que, do ponto de vista existencialista, a apreensão da consciência por si mesma está, no ponto extremo, desvinculada de qualquer apreensão existencial do eu. O eu só aparece aí como experiência particular, ligada a condições objetiváveis, dentro da inspeção que se acredita ser apenas esta reflexão da consciência sobre si mesma. E o fenômeno da consciência não tem nenhum caráter privilegiado em semelhante apreensão. Trata-se de livrar nossa noção da consciência de qualquer hipoteca com respeito à apreensão do sujeito por si mesmo.” p.77 Heterotipia da consciência. “Trata-se de um fenômeno, não diria contingente com relação à nossa dedução do sujeito, mas sim heterotrópico, e foi por esta razão que me entretive fornecendo-lhes um modelo no próprio mundo físico. A consciência, esta vocês sempre verão aparecer com uma enorme irregularidade nos fenômenos subjetivos. Na reviravolta de perspectiva que a análise impõe, sua manifestação aparece sempre mais ligada a condições físicas, materiais do que psíquicas.” p.78 “Assim, será que o fenômeno do sonho não envolve o registro da consciência? Um sonho é consciente. Este furta-cor imaginário, estas imagens movediças, eis algo que é absolutamente da mesma ordem que este lado ilusório da imagem sobre o qual insistimos a propósito da formação do eu. O sonho se assemelha muito a uma leitura no espelho, procedimento de adivinhação dos mais antigos, e que também pode ser utilizado na técnica da hipnose. Fascinando-se diante de um espelho, e de preferência um espelho tal como sempre foi, desde os primórdios da humanidade até uma época relativamente recente, mais obscuro que claro, espelho de metal polido, o sujeito pode conseguir revelar a si mesmo muitos elementos de suas fixações imaginárias.” p.78 “Então, onde está a consciência? Em que direção buscá-la, situá-la?” p.78 “Precisamos com efeito de um triângulo. Mas há mil maneiras de operar com um triângulo. Não se trata forçosamente de uma figura sólida a repousar numa intuição. Pode igualmente ser um sistema de relações. Em matemática, só se começa deveras a manejar o triângulo a partir do momento em que, por exemplo, nenhum de seus lados tem privilégio.” p.78 “Ei-nos, pois, em busca do sujeito na medida em que ele mesmo se conta. A questão é de saber onde ele está. Que ele esteja no inconsciente, pelo menos para nós analistas, é aonde penso tê-los trazido no ponto em que estou chegando agora.” p.78 A análise do eu não é a análise do inconsciente ao avesso. “A questão é saber se, entre estes dois sistemas, o sistema do eu ‒ do qual Freud, num dado momento, chegou inclusive a dizer que era tudo o que havia de organizado no psiquismo ‒ e o sistema do inconsciente há equivalência. Será que a oposição entre eles é da ordem de um sim e de um não, de uma inversão, de uma pura e simples negação?” p.80 “A introdução por Freud de sua nova tópica foi entendida como a volta do born velho eu.” p.80 “Ora, se há algo que Freud quer dizer no momento em que introduz sua nova tópica é justamente o contrário. Trata-se, para ele, de lembrar que entre o sujeito do inconsciente e a organização do eu, não há apenas dissimetria absoluta, porém diferença radical.” p.81 “Há um princípio do qual partimos até agora, diz Freud, de que o aparelho psíquico, como organizado, se situa entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. [...] Pois se seguimos a realidade, é justamente porque o princípio da realidade é um princípio do prazer diferido. Inversamente, se o princípio de prazer existe é consoante alguma realidade ‒ esta realidade e a realidade psíquica.” p.81 “Existe um recinto fechado em cujo interior um certo equilíbrio é mantido através do efeito de um mecanismo que, hoje em dia, se chama homeostase, o qual amortece, tempera a irrupção das quantidades de energia vindas do mundo exterior.” p.81-82 “Esta regulação, vamos denominá-la função restituidora da organização psíquica.” p.82 “Descarga e volta a posição de equilíbrio, esta lei de regulação vai para os dois sistemas, enuncia Freud. Mas da mesma feita e levado a perguntar-se ‒ qual é a relação entre os dois sistemas? Será simplesmente que o que é prazer num é desprazer no outro, e inversamente? Se os dois sistemas fossem o inverso um do outro, deveria chegar-se a uma lei geral de equilíbrio e, neste caso, haveria uma análise do eu que seria a análise do inconsciente ao avesso.” p.82 “E aqui que Freud se dá conta de que alguma coisa não coaduna com o princípio do prazer. Ele se dá conta de que o que sai de um dos sistemas ‒ o do inconsciente ‒ é de uma insistência ‒ eis a palavra que eu queria introduzir - particularíssima.” p.82➔ COMPULSÃO À REPETIÇÃO “Percebeu-se, num dado momento, que para fazer sair um coelho da cartola, é preciso sempre tê-lo previamente posto ali dentro. É o princípio da energética, e é por isso que a energética também é uma metafísica.” p.83 “É o princípio da homeostase que obriga Freud a inscrever tudo o que deduz em termos de investimento, de carga, de descarga, de relação energética entre os diferentes sistemas. Ora, ele se dá conta de que há algo que não funciona aí dentro. Além do princípio do prazer é isto. Nem mais nem menos.” p.83 “Freud se pergunta o que significa, do ponto de vista do princípio do prazer, o caráter inesgotável desta reprodução. Será que ela se dá por haver algo de desregulado ou será que ela obedece a um princípio diferente mais fundamental?” p.85 Capítulo VI - Freud, Hegel e a Máquina O instinto de morte. “No início do Além, Freud nos representa os dois sistemas, e nos mostra que, o que é prazer num se traduz em penar no outro, e inversamente. Ora, se houvesse simetria, reciprocidade, acoplamento perfeito dos dois sistemas, se os processos primário e secundário fossem exatamente o inverso um do outro, eles seriam apenas urn, e bastaria operar sobre urn para operar ao mesmo tempo sobre o outro. Ao operar sobre o eu e a resistência, atingir-se-ia da mesma feita o fundo do problema. Freud escreve justamente Além do princípio do prazer para explicar que não dá para se ficar nisto.” p.87. “Com efeito, a manifestação do processo primário no nível do eu, sob a forma do sintoma, se traduz por um desprazer, um sofrimento, e, no entanto, volta sempre. Este simples fato deve deter-nos. Por que será que o sistema recalcado se manifestacom isto que da última vez chamei de insistência? Se o sistema nervoso é destinado a alcançar uma posição de equilíbrio, por que será que não consegue? Estas coisas, quando a gente as expressa assim, são de uma evidência total.” p,87 “Vejam a primeira grande noção original que ele introduziu no plano puramente teórico, a libido, e o realce, o caráter irredutível que lhe confere ao dizer ‒ a libido é sexual. Para fazer-nos entender bem hoje em dia, seria preciso dizer que o que Freud introduziu é o seguinte ‒ o motor essencial do progresso humano, o motor do patético, do conflituoso, do fecundo, do criador da vida humana, é a luxúria.E logo, ao cabo de dez anos, já havia Jung para explicar que a libido era os interesses psíquicos. Não, a libido é a libido sexual. Quando falo da libido, é da libido sexual.” p.87 Racionalismo de Freud. “Há dois registros que se mesclam, que se entrelaçam, uma tendência restitutiva e uma tendência repetitiva [...].” p.88 “[...] será que não se trata pura e simplesmente da tendência restitutiva? Mas ele constata, a cada vez, que isto não basta, e que, após a manifestação da tendência restitutiva, resta algo que se apresenta no nível da psicologia individual como que gratuito, paradoxal, enigmático, e que é propriamente repetitivo.” p.88 “Com efeito, segundo a hipótese do princípio do prazer, o conjunto do sistema deve sempre retornar ao seu estado de início, operar de maneira homeostática, como se diz hoje em dia.” p.88 Alienação do senhor. “É muito surpreendente que os sábios de laboratório continuem cultivando esta miragem segundo a qual é o indivíduo, o sujeito humano ‒ e por que ele entre todos os outros? ‒, que é deveras autônomo e que existe, nele, em algum canto, quer seja na glândula pineal ou em outro canto, um timoneiro, o homenzinho que está dentro do homem. que faz funcionar o aparelho. Pois bem, é a isto que o pensamento analítico todinho, salvo raras exceções, está por ora retornando.” p.91 “Falam-nos de ego autônomo, de parte sadia do eu, de um eu que é preciso reforçar, de um eu que não é suficientemente forte para que nele possamos apoiar-nos para fazer uma análise, de um eu que deve ser o aliado do analista, o aliado do eu do analista, etc. [...] é exatamente o contrário que ocorre ‒ é no nível do eu que ocorrem todas as resistências. É realmente de se perguntar de onde elas poderiam sair se não fosse deste eu.” p.91 A psicanálise não é um humanismo. “[...] será que a psicanálise é um humanismo? ‒ a qual coloca em questão uma das premissas fundamentais do pensamento clássico a partir de uma certa data do pensamento grego. O homem, dizem-nos, é a medida de todas as coisas. Mas onde está a sua própria medida? Será que é em si mesmo que ele a tem?” p.92 SR. HYPPOLITE: “Há dois homens em Freud. De vez em quando, vejo o racionalista, e este é o lado do humanista ‒ se nos livrarmos de todas as ilusões, o que é que restará? Outras vezes aparece o puro especulativo, que se descobre lá para os lados do instinto de morte. " p.92 Fenomenologia do Espírito: “Em Hegel, Bewusstsein está bem mais perto do saber do que da consciência. Contudo, se a assembleia de ontem não tivesse sido tão bem comportada, uma das perguntas que eu teria feito teria sido ‒ qual é em Hegel a função do não-saber?” p.94 “Como frequentemente o fiz notar, não gosto muito de que se diga que se ultrapassou Hegel, como se diz ultrapassar Descartes. Ultrapassa-se tudo e se fica muito simplesmente no mesmo lugar. Portanto, um domínio cada vez mais elaborado. Vamos ilustrá-lo. O fim da história é o saber absoluto. Não se sai disto ‒ se a consciência é o saber, o fim da dialética da consciência é o saber absoluto, escrito como tal em Hegel.” p.95 SR. HYPPOLITE: “O saber absoluto não seria pois nunca um momento da história, e seria sempre. O saber absoluto seria a experiência como tal, e não um momento da experiência. A consciência, por estar no campo, não vê o campo. Ver o campo, é isso o saber absoluto.” p.95 “Contudo, em Hegel o saber absoluto se encarna num discurso.” p.95 “No saber absoluto permanece uma última divisão, uma última separação ontológica se é que posso expressar-me assim, no homem.” p.96 Hegel mostra que “a realidade, se é que se pode dizer isto, de cada ser humano está no ser do outro. No final das contas, há uma alienação recíproca, [...], e insisto nisso, irredutível, sem saída”. p.96 “Hegel está nos limites da antropologia. Freud saiu dela. Sua descoberta é que o homem não está exatamente no homem. Freud não é um humanista.” p.96 “É muito engraçado, isso comporta uma incoerência deveras estranha, que se diga ‒ o homem tem um corpo. Para nós isso faz sentido, é até provável que isso sempre tenha feito sentido, mas que esteja fazendo mais sentido ainda para nós do que para um outro qualquer, porque, com Hegel e sem sabê-lo ‒ dado que todo mundo é hegeliano sem sabê-lo ‒, levamos extremamente longe a identificação do homem com seu saber, que é um saber acumulado. É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza, apesar de a gente andar o tempo todo agitando as asas a se gabar de ter reinventado a unidade humana, que esse idiota do Descartes havia recortado.” p.97 “Há algo de que se fala, em Freud, e de que não se fala em Hegel, é a energia.” p.99 “Entre Hegel e Freud, há o advento de um mundo da máquina. A energia, fiz-lhes notar isto da ultima vez, e uma noção que só pode aparecer a partir do momento em que há máquinas." p.99 Freud e a energia. “A energia, fiz-lhes notar isto da última vez, é uma noção que só pode aparecer a partir do momento em que há máquinas. Não que a energia não esteja aí desde sempre. Só que as pessoas que tinham escravos nunca se tinham dado conta de que se podia estabelecer equações entre o preço de sua comida e o que faziam nos latifundia.” p.99 “Mais tarde, deram-se conta, coisa na qual nunca se pensara antes, de que os seres vivos se mantêm sozinhos, em outros termos, que representam homeostatos.” p.100 “Os biólogos crêem que se consagram ao estudo da vida. Não se vê por que. Até prova do contrário, seus conceitos fundamentais procedem de uma origem que nada tem a ver com o fenômeno da vida, o qual permanece, em sua essência completamente impenetrável.” p.100 “A biologia freudiana não tem nada a ver com a biologia. Trata-se de uma manipulação de símbolos no intuito de resolver questões energéticas, como manifesta a referência homeostática, a qual permite caracterizar como tal não só o ser vivo, mas também o funcionamento de seus mais importantes aparelhos. E em torno desta questão que gira a discussão inteira de Freud ‒ energeticamente, o que é o psiquismo?” p.100 “Se soubermos revelar o sentido deste mito energético, veremos que, desde a origem e sem que se entendesse, estava implicado na metáfora do corpo humano como máquina.” p.101 “Freud partiu de uma conceção do sistema nervoso segundo a qual este sempre tende de a voltar a um ponto de equilíbrio. Foi daí que ele partiu, porque era então uma necessidade que se impunha ao espírito de qualquer médico daquela idade científica que se ocupasse do corpo humano.” p.101 “E ele vem então topar, ele tropeça, no sonho. Ele se dá conta de que o cérebro é uma máquina de sonhar.” p.101 “Donde a revolução completa de seu pensamento e a passagem para a Traumdeutung. ·Diz-se que ele abandona uma perspectiva fisiologizante por uma perspectiva psicologizante. Não é disto que se trata. Ele descobre o funcionamento do símbolo como tal, a manifestação do símbolo em estado dialético, em estado semântico, nos seus deslocamentos, os trocadilhos, os chistes, gracejos funcionando sozinhos na máquina de sonhar.” p.101
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